concepções de linguagem revisitando conceitos

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CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM: REVISITANDO CONCEITOS1
Juliana Contti Castro
2
Resumo: Este artigo trata das concepções de linguagem (e, consequentemente, aborda também
3
questões relativas à língua e à fala) tomando como arcabouço teórico as ideias de dois grandes
4
autores do campo da linguagem , a citar: Ferdinand de Saussure e Mikhail M. Bakhtin. Objetiva
estabelecer uma comparação entre as concepções de linguagem, língua e fala na perspectiva dos
autores escolhidos. Procura estabelecer as divergências encontradas, bem como pesquisar indícios
5
da existência de possíveis pontos de contato entre os autores. Para tanto, utiliza como método de
análise uma perspectiva dialética, entendendo-o como um tipo de argumentação dialogada, a arte da
discussão ou um método de perguntas. Apresenta-se também como um pequeno estudo comparativo
na medida em que procura ressaltar as diferenças e pequenas similaridades entre as duas
abordagens escolhidas. Conclui reafirmando a grande distância existente entre as concepções de
linguagem em Saussure e Bakhtin; no entanto, no que se refere ao tipo de método de argumentação
utilizado pelos autores nas obras escolhidas, vê aí um ponto de aproximação.
Palavras-chave: Linguagem. Língua. Fala. Signo linguístico. Interação verbal.
Introdução
Este artigo parte, na verdade, de uma questão filosófica, ou seja, a da relação
entre Saussure e Bakhtin, a propósito da ideia de linguagem presente nos dois
autores. Gostaríamos de afirmar que nosso pequeno estudo não pretende, de
maneira alguma, esgotar o tema em questão (nem o poderia, já que toma como
1
Nossa intenção primeira era não só realizar um estudo comparativo, mas, também, relacionar o
pensamento dos autores escolhidos com o campo da educação, o que, devido ao caráter pouco
extenso do trabalho não foi possível realizar.
2
Especialista em educação, com ênfase para a Educação a distância; Mestranda do Programa de
Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, com bolsa da CAPES. E-mail:
[email protected]
3
Entende-se que as questões de linguagem são complexas e envolvem diversos conceitos
subjacentes, dos quais iremos tratar mais especificamente (além dos já citados) da questão da
concepção de signo linguístico e da questão da interação verbal.
4
Mesmo sabendo que, no caso de Mikhail M. Bakhtin, seus estudos e explanações vão muito além
do campo da linguística propriamente dita.
5
Entende-se método como: “[...] um procedimento, um dispositivo ordenado, um conjunto de
procedimentos sistemáticos, utilizado para se obter um resultado desejado, por exemplo, uma
observação, um dado, uma comparação, uma demonstração etc.” (MICHEL, 2009, p. 50)
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base apenas uma obra de cada autor escolhido6); no entanto, com o intuito de
clarificarmos e compararmos concepções básicas no estudo da linguagem,
pretende-se trabalhar e desenvolver conceitos basilares do pensamento dos autores
selecionados.
Intentamos, pois, assim como fez Julia Kristeva (1969), na introdução de seu
livro intitulado História da Linguagem, iniciarmos este pequeno artigo com as
seguintes indagações: o que é a linguagem? Como é que a linguagem pôde ser
pensada? Nas próprias palavras da autora, quando da apresentação do livro, temos:
“Pondo assim o problema, recusamo-nos a procurar uma pretensa ‘essência’ da
linguagem, e apresentamos a prática linguística através desse processo que a
acompanhou: a reflexão que suscitou, a representação que dela se elaborou.”7
Nesse sentido, tomaremos como base as representações de linguagem, ou
de que forma ela foi pensada. Se ela foi pensada [a linguagem], ela foi pensada por
alguém, assim, nossa pretensão é realizar um pequeno estudo comparativo sobre as
concepções de linguagem de Ferdinand de Saussure e M. M. Bakhtin (Volochínov).
As principais problematizações que nos moveram podem ser assim
expressas: quais os principais aspectos de divergência, no que se refere ao conceito
de linguagem, entre Saussure e Bakhtin? Existe algum ponto de contato entre a
perspectiva de linguagem/língua em Saussure e Bakhtin, ou o ponto de contato
entre os dois fica apenas no campo do método de argumentação utilizado? Qual
seria o ponto central de ruptura entre as duas concepções de linguagem?
Antes de passarmos às concepções dos autores escolhidos, faz-se mister
enunciar o porquê da escolha dos autores então selecionados. Saussure foi
escolhido por ser denominado de “o pai da linguística moderna” e ter o seu
pensamento influenciado toda a linguística a posteriori; é inegável, pois, a grande
penetração de suas ideias contidas no Cours de linguistique générale (Curso de
Linguística Geral – CLG) sobre as formas de se pensar (ou mesmo de se
6
Como este estudo tem um porte pequeno e direcionado, exploraremos apenas uma obra de cada
autor. De Ferdinand de Saussure, tomaremos o Curso de Linguística Geral (primeira edição de 1916);
e de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin (V. N. Volochínov), estudaremos a obra intitulada: Marxismo e
Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem (sendo sua
primeira edição datada de 1929).
7
KRISTEVA, Julia. História da linguagem. Trad. Maria Barahona. Lisboa: Edições 70, 1969. p. 13.
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questionar) a linguagem a partir de 1916, quando de sua primeira publicação8. Fazse mister citar inclusive o grande êxito do CLG que, segundo Dosse (1993) vai se
converter no “livrinho vermelho do estruturalista de base”. É bom ressaltar que esse
êxito enunciado por Dosse (1993) se dará a partir de dois fatores essenciais: o
primeiro fator está relacionado com o destaque dos linguistas russos e suíços pós
Primeira Guerra Mundial, num campo que era até então dominado pelos linguistas
alemães, inclinados essencialmente a uma filologia comparativa9. O segundo
fator/acontecimento que fazem do CLG um documento essencial da linguística
moderna se deu na França, principalmente detonado com o artigo de Greimas de
1956, intitulado “L’actualité du saussurisme”10.
No que se refere à escolha do segundo interlocutor, cabe aqui enunciar,
primeiramente, a intensa afinidade existente entre suas ideias e nossos próprios
pensamentos
acerca da
linguagem e de
sua
intrínseca natureza
social
(diferentemente da natureza social com que Saussure concebe a língua, Bakhtin irá
valorizar a fala, a enunciação – não como um processo de criação individual, mas de
natureza eminentemente social). Sobre a importância de Bakhtin para os estudos da
linguagem contemporâneos, encontramos em Brait:
Bakhtin e seu Círculo têm merecido, nos últimos anos, grande
atenção por parte de diferentes áreas do conhecimento. Esse fato
pode ser constatado nas inúmeras traduções, nos incontáveis
ensaios interpretativos e, especialmente, na circulação de noções,
categorias, conceitos advindos diretamente do pensamento
bakhtiniano, com ele aparentados ou, ainda, por ele motivados. Esse
arcabouço teórico-reflexivo aparece, portanto, no enfrentamento da
8
“Foi necessário, porém, esperar a publicação do Cours de linguistique générale [Curso de
Linguística Geral] (chamado o CLG) para assistir ao nascimento da linguística moderna. Como se
sabe, essa obra de Saussure é oral, ela resulta dos cursos que ele ministrou entre 1907 e 1911, e da
coleta, depuração e ordenamento dos raros escritos deixados pelo mestre, assim como dos
apontamentos recolhidos por seus alunos durante as aulas. São dois professores de Genebra,
Charles Bally e Albert Séchehaye, que publicam o CLG após a morte de Saussure, em 1915”
(DOSSE, 1993, p. 65).
9
Ainda segundo Dosse (1993, p. 66), “No I Congresso Internacional de Linguística realizado em Haia
em 1928, sela-se uma aliança prenunciadora de um grande futuro: “As propostas apresentadas pelos
russos Jakobson, Karcevski e Troubetskoy, por uma parte, e pelos genebrinos Bally e Séchehaye,
por outra, têm em comum destacar a referência a Saussure para descrever a língua como sistema.
Portanto, Genebra e Moscou estão na base de definição de um programa estruturalista. Aliás, foi
nessa ocasião que Jakobson empregou pela primeira vez o termo ‘estruturalismo’... Saussure só
fizera uso do termo sistema, múltiplas vezes citado, 138 vezes nas 300 páginas do CLG.”
10
Sobre o seu artigo, Greimas escreve (apud DOSSE, 1993, p. 66): “Nesse artigo, eu mostrava que a
linguística era invocada por toda a parte: Merleau-Ponty em filosofia, Lévi-Strauss em antropologia,
Barthes na literatura, Lacan na psicanálise, mas que nada acontecia na linguística propriamente dita,
e que seria tempo, portanto, para repor Ferdinand de Saussure em seu justo lugar.”
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linguagem, não apenas em áreas destinadas a essa finalidade, caso
dos estudos linguísticos e literários, mas na transdisciplinaridade de
campos como a educação, a pesquisa, a história, a antropologia, a
11
psicologia etc.
Acreditando que já justificamos a escolha dos autores selecionados, é nossa
intenção, ainda, especificar nossa forma de explanação. Em termos de estruturação
do texto, procuramos, na medida do possível, intercalar as concepções de
linguagem (linguagem/língua/fala) de Saussure e Bakhtin, tentando efetivamente
tecer comentários pertinentes sobre os conceitos enunciados e dialogar com as
noções a seguir expostas.
De Saussure à Bakhtin: uma leitura possível
Cumpre primeiro elucidar as profundas distinções epistemológicas dos
autores escolhidos. Saussure, como defende o próprio Bakhtin (2010) é, pois, um
dos principais representantes do que ele chama de – um tipo de orientação do
pensamento filosófico-linguístico12 denominada “objetivismo abstrato”13, tendo sido
um dos pilares do estruturalismo nascente; sua teoria está, pois, ligada ao campo da
Linguística propriamente dita. Bakhtin (2010), em contraposição se insere numa
perspectiva ideológica marxista; além do campo propriamente filosófico, se inscreve
também no campo sociológico.
Para a abordagem dos conceitos propriamente ditos, passaremos às palavras
dos autores escolhidos para interlocução. Iniciaremos com as postulações de
11
BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 8.
Bakhtin (2010) opera também uma crítica profunda acerca do que ele denomina como a 1ª
orientação do pensamento filosófico-linguístico – o subjetivismo idealista ou individualista – embora
para os fins desse estudo não nos seja possível efetuar o aprofundamento dessa orientação do
pensamento filosófico-linguístico; apesar de não menosprezarmos sua importância no
desenvolvimento e nas reflexões operadas no que se referem às concepções de linguagem, língua e
fala.
13
Tendo em vista que o foco desse artigo não é, todavia, aprofundar todas as características que
Bakhtin atribui ao objetivismo abstrato, apenas citamo-as sucintamente: “1. Nas formas linguísticas, o
fator normativo e estável prevalece sobre o caráter mutável; 2. O abstrato prevalece sobre o concreto;
3. O sistemático abstrato prevalece sobre a verdade histórica; 4. As formas dos elementos
prevalecem sobre as do conjunto; 5. A reificação do elemento linguístico isolado substitui a dinâmica
da fala; 6. Univocidade da palavra mais do que polissemia e plurivalência vivas; 7. Representação da
linguagem como um produto acabado, que se transmite de geração a geração; 8. Incapacidade de
compreender o processo gerativo interno da língua” (BAKHTIN, 2010, p. 106-107).
12
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Saussure (2006). Assim, no intuito de fundar uma “verdadeira” ciência Linguística,
Saussure (2006), estabelece para esse campo de estudos as seguintes tarefas, ou
seja, a tarefa da Linguística14 é, pois, edificar a descrição e a história de todas as
línguas possíveis, com ênfase para a reconstituição das línguas-mães de cada
família; e delimitar-se e definir-se a si própria. O objetivo maior de Saussure, como já
dito, é fazer da Linguística uma ciência (que, devido ao contexto da época, deveria
seguir a rigorosidade e objetividade presentes no paradigma hegemônico da ciência
moderna), bem delimitada e tendo seu objeto bem definido. E se pergunta sobre a
utilidade da Linguística, asseverando que as questões ligadas a essa área de
interesse são proveitosas a vários campos do saber, ou melhor, a todos aqueles
campos onde se requer o manejo de textos. Aqui podemos enunciar um primeiro
ponto de contato entre Saussure e Bakhtin, já que os dois veem o estudo do texto
como essenciais a diversas ciências, como a Filologia, a História, a Antropologia,
Sociologia, dentre outras.
Um outro ponto de aproximação entre os autores pode ser enunciado
tomando-se como ponto de partida o contexto da época em que as obras (foco
desse estudo) foram escritas. O Cours de Saussure foi publicado pela primeira vez
em 1916 (três anos após a morte de Saussure, tornando-se uma obra póstuma) e
Marxismo e Filosofia da Linguagem foi publicado em Leningrado, assinado por V. N.
Volochínov, na data de 1929. Pode-se verificar, pois, que ambas as obras situam-se
na primeira metade do século XX, época marcada, ainda como herança do século
XIX, pela exaltação da ciência e pela crença no contínuo progresso humano. Essa
época também é marcada pela Primeira Guerra Mundial15 (1914 a 1918) e pela
Revolução Russa16 de 1917, fatos que deixam essa época profundamente
conturbada.
14
Utilizaremos a palavra Linguística com letra maiúscula quando falarmos de Saussure, já que a
mesma é enunciada com letra maiúscula em sua obra.
15
Num trecho de uma carta encontrada no bolso de um soldado alemão, temos a seguinte descrição
da catástrofe: “Estamos tão exaustos que dormimos, mesmo sob intenso barulho. A melhor coisa que
poderia acontecer seria os ingleses avançarem e nos fazerem prisioneiros. Ninguém se importa
conosco. Não somos revezados. Os aviões lançam projéteis sobre nós. Ninguém mais consegue
pensar. As rações estão esgotadas – pão, conservas, biscoitos, tudo terminou! Não há uma única
gota de água. É o próprio inferno!” (COTRIM, 2005, p. 419). A partir desse trecho percebe-se o
momento delicado que o mundo vivia, especialmente, a Europa.
16
Lenin, acerca desse momento tão ímpar, escreve: “Uma revolução, uma revolução real, profunda,
do povo, para usar a expressão de Marx, é o processo incrivelmente complicado e penoso de morte
de uma velha ordem social e o nascimento de uma nova, o ajustamento das vidas de dezenas de
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Voltando ao nosso propósito, podemos afirmar, pois, que Saussure parte do
princípio de uma tripla distinção: le langage (a linguagem), la langue (a língua) e la
parole (a fala). Sendo os dois últimos elementos, a citar: a língua e a fala –
entendida aqui como um ato da enunciação individual – os itens que constituem a
linguagem. Diferentemente, Bakhtin (2010), não parte de uma tripla distinção, mas
sim de uma perspectiva linguística, onde a linguagem é tida, sobretudo, como um
fenômeno ideológico/social e de bases eminentemente filosóficas e sociológicas.
Se Bakhtin (2010), se pergunta sobre o objeto da filosofia da linguagem, ou
onde se pode encontrar tal objeto, qual seria sua natureza concreta e que
metodologia
se
deve
adotar
para
estudá-lo;
Saussure
(2006)
coloca
questionamentos acerca do objeto da Linguística e inicia um de seus capítulo do
Cours, perguntando-se: “Qual é o objeto, ao mesmo tempo integral e concreto, da
Linguística?”17.
Apesar
do
autor
não
responder
imediatamente
a
esse
questionamento, falará acerca do fenômeno linguístico. Sobre esse fenômeno, pois,
enuncia: “[...] o fenômeno linguístico apresenta perpetuamente duas faces que se
correspondem e das quais uma não vale senão pela outra.”18 e exemplifica essa
postulação a partir das seguintes enunciações: não é possível reduzir a língua ao
som e nem isolar o som da articulação vocal (e vice-versa); o som, considerado
como unidade complexa acústico-vocal, forma com a ideia uma unidade complexa,
fisiológica e mental; e continua, dizendo que a linguagem possui um lado individual e
um lado social, sendo “[...] impossível conceber um sem o outro.”19 e por fim,
enuncia:
A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tempo um sistema
estabelecido e uma evolução: a cada instante, ela é uma instituição
atual e um produto do passado. Parece fácil, à primeira vista,
distinguir entre esses sistemas e sua história, entre aquilo que ele é e
o que foi; na realidade, a relação que une ambas as coisas é tão
20
íntima que se faz difícil separá-las.
milhares de pessoas. Uma revolução é a mais aguda, mais furiosa e desesperada luta de classes e
guerra civil. Nenhuma grande revolução da história escapou da guerra civil. Se não houvesse
circunstâncias excepcionalmente complicadas, não haveria revolução. Quem teme os lobos não vai à
floresta” (COTRIM, 2005, p. 431).
17
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 15.
18
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 15.
19
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 16.
20
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 16.
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É a partir dessas reflexões que Saussure estabelece o ponto essencial de sua
teoria. Para o autor é preciso escolher um caminho, um método e um objeto – o
objeto da Linguística – para que não ocorra confusão com outras áreas do saber. A
solução para as dificuldades encontradas por ele em seu percurso está no fato da
necessidade de se colocar “[...] primeiramente no terreno da língua e tomá-la como
norma de todas as outras manifestações da linguagem. De fato, entre tantas
dualidades, somente a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece
um ponto de apoio satisfatório para o espírito”.21
A partir desse momento, Saussure (2006), distingue claramente a língua da
linguagem. Para o autor, a linguagem, tomada em sua totalidade, é multiforme e
heteróclita; possui ao mesmo tempo uma dimensão física, fisiológica e psíquica;
pertence ao domínio individual e social; “não se deixa classificar em nenhuma
categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade”22. Na
verdade, diante da dificuldade de existir uma unidade, ou um núcleo único da
linguagem, a mesma não pode se constituir em objeto científico satisfatório. Esse é
outro aspecto de profundas distinções entre Saussure e Bakhtin; este último não
esfacela a linguagem, apesar de reconhecer a existência da língua e da fala, mas as
toma em todas as suas complexidades, estudando além da própria língua, o ato de
enunciação concreto, ou seja, a fala.
Apesar das diferenças fundamentais entre os autores, tanto Saussure (2006),
como Bakhtin (2010) estão preocupados com a delimitação de um objeto de estudo.
Se Saussure (2006) está preocupado com a delimitação ou demarcação do objeto
da Linguística, Bakhtin (2010) também está à procura do objeto da filosofia da
linguagem. Bakhtin (2010), dessa forma, enuncia os seguintes questionamentos: “No
que consiste o objeto da filosofia da linguagem? Onde podemos encontrar tal
objeto? Qual é a sua natureza concreta? Que metodologia adotar para estudá-lo?” E
continua indagando: “Mas o que é a linguagem? O que é a palavra?”23
21
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 17.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 17.
23
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 14. ed. Trad. de Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 71.
22
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A partir do momento em que Saussure (2006), escolhe o objeto que lhe
interessa, a saber, a língua, ele, então, se pergunta o que é a língua, qual é o
conceito de língua que se deve adotar? E afirma:
Para nós, ela [a língua] não se confunde com a linguagem; é
somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente.
É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e
um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social
24
para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos.
Nesse sentido, Saussure (2006) define claramente seu objeto de estudo – a
língua, cujas características principais seriam: é um objeto bem definido,
distinguindo-se do conjunto heteróclito dos fatos da linguagem; é a parte social da
linguagem em contraposição à sua parte individual que seria constituída pela fala
(parole); é exterior ao indivíduo em contraposição à fala que é interior ao indivíduo
(ou seja, é individual); é um sistema de signos25 aonde se unem o significante e o
significado; e apresenta uma natureza concreta, ou melhor, “[...] os signos
linguísticos, embora sendo essencialmente psíquicos, não são abstrações”.26
Bakhtin (2010), apesar de considerar, e nesse ponto concorda com Saussure,
(2006) a língua como um fato social, cujo ente se estabelece nas necessidades de
comunicação; diferentemente de Saussure (2006), valoriza a fala, a enunciação. E a
enxerga (a fala) como algo social, não individual – como afirma Saussure (2006). A
perspectiva bakhtiniana está profundamente ligada a uma dimensão social; numa
ruptura total com Saussure (2006). Nesse sentido, afirma que:
[...] o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação,
não pode de forma alguma ser considerado como individual no
sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das
condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de
27
natureza social.
24
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 17.
O signo linguístico para Saussure (2006) é, pois, uma entidade psíquica que apresenta duas faces,
ou seja, a junção de um conceito (que seria o significado) com sua respectiva imagem acústica (o
significante).
26
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 23.
27
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 14. ed. Trad. de Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 113.
25
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Aqui, pois, existe uma profunda distinção entre as concepções de língua em
Saussure e Bakhtin. Para Bakhtin (2010), a língua não é um sistema estático, um
produto acabado que se transmite de geração a geração como pensa Saussure
(2006), mas, sim, a constituição de um processo constante de evolução, sendo
constituído através da interação verbal social dos locutores. Para Bakhtin (2010),
diferentemente de Saussure (2006), “os indivíduos não recebem a língua pronta
para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal”.28 E é somente
nesse mergulho que há um despertar das suas próprias consciências.
Interessante aqui observar que, de certa maneira, tanto Saussure (2006),
quanto Bakhtin (2010) partem das mesmas problematizações, enunciando perguntas
similares, embora não cheguem às mesmas conclusões. Também é curioso
observar que tanto Saussure (2006), quanto Bakhtin (2010), ao escreverem seus
pensamentos, partem de premissas interrogativas.
Assim, sem mais considerações a serem colocadas, encaminhamos nossa
pequena incursão teórica para a sua finalização.
Considerações finais
Nesse espaço final nos achamos obrigados a enunciar e a reafirmar que,
diante dos conceitos trabalhados e das profundas diferenças epistemológicas,
filosóficas e sociológicas que marcam o pensamento dos autores com os quais
dialogamos (apesar de alguns pontos de contato), devemos, pois, afirmar a nossa
posição basicamente simpática à concepção de linguagem bakhtiniana, a nosso ver
mais aberta e mais adequada para o entendimento das complexas relações que
estão na base dos fenômenos linguísticos e na própria constituição dos sujeitos e
das sociedades.
Encerramos esse artigo com algumas indagações acerca da relação
linguagem/educação. Pergunta-se, pois: em que medida nos importa aqui a
discussão sobre o conceito de linguagem e língua? De que maneira ou qual a
28
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 14. ed. Trad. de Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 111.
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incidência ou a importância do entendimento desses conceitos para o campo da
educação? Ou ainda, de que maneira ou de que forma conceitos muitas vezes
naturalizados (mesmo que o indivíduo não tenha consciência) podem interferir nas
concepções de ensino da língua? Poder-se-ia relacionar concepção de língua e
formas de ensino? Indagações que por ora não poderão ser respondidas, mas que
ficarão para uma próxima oportunidade.
REFERÊNCIAS:
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico da linguagem. 14. ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
DOSSE, François. História do estruturalismo: o campo do signo, 1945-1966. Tradução Álvaro
Cabral. São Paulo: Ensaio/Unicamp, 1993.
GONÇALVES, Hortência de Abreu. Manual de artigos científicos. São Paulo: Avercamp, 2004.
KRISTEVA, Julia. História da linguagem. Trad. Maria Barahona. Lisboa: Edições 70, 1969.
MICHEL, Maria Helena. Metodologia e pesquisa científica em ciências sociais. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2009.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
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