“Um episódio na vida de Joãozinho da Maré”, de autoria do

Propaganda
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
“UM EPISÓDIO NA VIDA DE JOÃOZINHO DA MARÉ”: A CRÔNICA
NO ENSINO DE CIÊNCIAS
Léa Dutra Costa1
Este estudo é fruto do que para mim, professora de Língua Portuguesa em
escola técnica de nível médio, foi um desafio: cursar uma disciplina de pós-graduação
sobre argumentação com professores de Biologia, Física e Química. Duas ou quatro
identidades profissionais em um esforço consciente da dificuldade inerente à finalidade
de unir concepções e vivências distintas sobre a linguagem em prol do conhecimento
sobre o processo de aprendizagem de ciências por um lado e por outro na direção de
uma atuação do professor de Língua Portuguesa mais significativa nesse processo de
ensino aprendizagem. Entre os muitos autores estudados, na referida disciplina, apenas
Patrick Charaudeau “foi chamado” a participar das discussões a respeito do tema da
argumentação na educação em ciências de onde vieram naturalmente os demais autores,
que, embora
pudessem
explorar
conhecimentos
já
desenvolvidos na
lingüística,
salientavam apenas – grosso modo – as condições de produção do saber em sala de
aula.
Assim neste trabalho procuro analisar o processo de produção do texto “Um
episódio na vida de Joãozinho da Maré”2, a partir do qual foi possível perceber como o
autor desse texto (professor de ciências) lida com as questões específicas da sua área de
formação por meio da linguagem, com destaque especial para o uso da linguagem
literária e da noção de gênero textual, que subjazem ou mesmo sustentam no texto a
argumentação, um fenômeno que marca sobremaneira as tendências mais atuais no
campo do ensino de ciências. Parto, inicialmente, de alguns dos pesquisadores da
argumentação nesse campo. Em seguida, resumo o referido texto, para então propor
uma análise do emprego da crônica e de seus elementos nesse contexto de ensino: a
generacidade da crônica, o narrador, os personagens, entre outros.
Entre os diversos pesquisadores da argumentação em ciências, Baker (2009)
destaca que a aprendizagem emerge de grupos sociais, em situações práticas e que a
construção do conhecimento se dá em relação ao conhecimento co-construído,
apropriado e mutuamente aceito, através de um diálogo cooperativo voltado para a
compreensão de um problema. Walton (2008) enfatiza que o contexto de uso das
proposições é fundamental para a compreensão dos raciocínios elaborados. Neste
sentido,
1
2
Charaudeau
(2009),
ao
discutir
Mestre em Língua Portuguesa. COLTEC/UFMG.
Texto disponível em diversos sites.
as
circunstâncias
de
discurso,
aborda
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
principalmente as estratégias discursivas determinadas pelo contrato de comunicação e
chama a atenção para o fato de que
(...) o ritual sociolinguageiro do qual depende o implícito codificado e o definimos dizendo
que ele é constituído pelo conjunto das restrições que codificam as práticas
sociolinguageiras, lembrando que tais restrições resultam das condições de produção e de
interpretação (Circunstâncias de Discurso) do ato de linguagem. O contrato de
comunicação fornece um estatuto sociolinguageiro aos diferentes sujeitos da linguagem.
Assim as estratégias discursivas mencionadas anteriormente devem ser estudadas em
função desse contrato. (CHARAUDEAU, 2009, p.60)
“Um episódio na vida de Joãozinho da Maré”, de autoria de Rodolpho Caniato,
professor, doutor em Física pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(1973) e experiente profissional da área de formação de professores de ciências,
conforme é possível constatar em diversas fontes, é uma narrativa escrita, composta por
uma breve sequência de ações cotidianas, atuais, realizadas por dois personagens
protagonistas: um menino pobre, morador de uma favela carioca, curioso e observador,
chamado Joãozinho, e uma professora da rede pública do Ensino Fundamental da cidade
do Rio de Janeiro, uma mera reprodutora de saber, que fora salva pelo sinal de fim de
aula. Esses personagens constroem uma trama em torno de um único fato: uma aula de
Ciências a respeito dos movimentos da Terra.
Joãozinho sai de sua casa e vai para a escola em dia em que seria distribuída
merenda. Lá, encontra a professora e, a partir da exposição inicial do tema da aula e dos
seus conhecimentos de mundo, o garoto insiste em manter com ela um longo e
polemizante diálogo, no qual questiona o conhecimento da protagonista sobre a relação
dos movimentos da Terra em torno do sol com as estações do ano. A aula termina,
finalmente, para alívio da professora, que vai para casa, onde faz uma reflexão sobre o
acontecido em sala de aula.
Essa sequência da lógica narrativa é construída linearmente por um narrador em
terceira pessoa, que, ao longo da narração, vai se valendo de sua onisciência e
onipresença, para tecer reflexões sobre o fato narrado, revelando assim seu ponto de
vista ao leitor. No caso, depreende-se uma visão negativa em relação à escola e ao
ensino de Ciências, uma vez que para ele o fato de Joãozinho ser um estudante ativo e
questionador, é sinal de que o menino ainda não teria sido “domado’ pela escola. Ele
ainda não havia perdido o hábito e a iniciativa de fazer perguntas, e querer entender as
coisas.” (CANIATO, p. 72)
Paradoxalmente, esse narrador traz também uma perspectiva de esperança para
a transformação do fato a partir de um processo de conscientização, de mudança de
pensamento da professora a respeito dos seus próprios conhecimentos, dos alunos e da
escola. Ela diz para si mesma
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Os argumentos do Joãozinho foram tão claros e ingênuos. Se o inverno e o verão fossem
provocados pelo maior ou menos afastamento da Terra em relação ao sol, deveria ser
inverno ou verão em toda a Terra. Eu sempre soube que enquanto é inverno em um
hemisfério, é verão no outro. Então tem mesmo razão o Joãozinho. (...) Como eu posso
estar durante anos ‘ensinando’ uma coisa que julgava ser Ciência, e que de repente pode
ser totalmente demolida pelo raciocínio ingênuo de um garoto, sem nenhum
conhecimento científico. (CANIATO, p. 75)
Diante disto, salienta-se que, nesta narrativa, portanto, além do modo de
organização do discurso narrativo, encontram-se procedimentos do modo argumentativo
bem como descritivo (caracterização de personagens, por exemplo) e enunciativo
(relação do locutor com o interlocutor), lembrando que, para Charaudeau (2009), todos
esses modos podem estar presentes em um único texto.
Levando-se em conta tais características, é inicialmente importante considerar,
dentro das circunstâncias do discurso, a escolha feita pelo autor por gênero textual. “Um
episódio na vida de Joãozinho da Maré” poderia ser classificado, de acordo com as
características acima mencionadas, como uma crônica: um gênero bastante comum em
manuais didáticos de todas as áreas do ensino, principalmente, nas publicações
destinadas ao nível Básico da Educação, que esperam oferecer ao professor alternativas
didáticas para o modelo tradicional de ensino (transmissivista e passivo). Tal como é o
caso do livro Terra em que vivemos, onde também se encontra o texto focalizado e em
cuja resenha lemos as seguintes palavras:
O livro apresenta, de forma didática e lúdica, módulos que auxiliam o professor no ensino
de Ciências. As atividades incitam o aluno a refletir sobre os conhecimentos já adquiridos
e relacioná-los com os aqui apresentados, auxiliando, assim, a assimilação dos conteúdos.
Neste modelo, as respostas não são dadas de presente. Por meio de discussões, o aluno
aprenderá, de forma lúdica, como conquistar o verdadeiro conhecimento que não
depende da simples memorização e sim, de questionamentos e reflexão sobre as
atividades.3
Na perspectiva de Charaudeau (2009, p.79), existe uma correspondência entre
modos de organização de discurso e gêneros textuais. Os relatos (romances, novelas,
contos, incluindo-se a crônica entre outros) correspondem aos modos narrativo e
descritivo, podendo haver também o enunciativo (intervenção variável do autor-narrador
de acordo com o gênero – autobiografia, depoimento, notícia, etc). De acordo com essa
perspectiva, como a crônica se encontra em um manual escolar (outro gênero textual –
aqui considerado gênero textual), haveria no manual uma correspondência predominante
do descritivo e do narrativo, variando de acordo com a disciplina e havendo a
possibilidade de encontrar-se o modo argumentativo, principalmente em disciplinas com
a Matemática e a Física (Charaudeau, p.79). Mesmo sem sabermos de fato que o autor
3
Acesso pela internet em 10/01/2011
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
do texto pode ser professor de Física, por meio de um implícito na linguagem do
narrador, podemos inferir que ele seria graduado em Física, pois é comum entre
profissionais dessa área se referirem a pouca qualidade da escola brasileira, usando
expressões como: “Não há curiosidade que agüente
aquela ‘decoreba’ sobre corpo
humano, por exemplo.” (p.70) Ora, o narrador poderia dito: “decoreba de fórmulas
físicas ou químicas!”
A esse respeito, segundo o agrupamento provisório dos gêneros, elaborado por
Dolz e Schneuwly (2004, p.60), uma crônica pode ocupar dois domínios sociais da
comunicação: o domínio da “Cultura literária ficcional” e o da “documentação e
memorização das ações humanas”. No primeiro, estão, além das crônicas literárias e
outros tipos de texto, narrativas como o conto, a fábula, a piada, advinha, que exigem
por parte de autores e leitores a capacidade de linguagem dominante de “mimeses da
ação através da criação da intriga no domínio do verossímil” (p.60). No segundo domínio,
estão narrativas como os relatos de experiência e de viagem, o testemunho, o diário, a
reportagem bem como a crônica social e esportiva, as quais, inseridas na esfera de ação
de relatar, demandam a capacidade de linguagem dominante de “Representação pelo
discurso de experiências vividas, situadas no tempo” (Schneuwly, 2004, p.60).
A partir disto, proponho que uma crônica como a discutida possa fazer parte de
ambos os domínios: tanto traz a questão da mimeses e da verossimilhança quanto traz a
memorização de ações humanas, mimeses e verossimilhança estas envolvidas quando
um professor – autor – se dedica à elaboração de material didático ou à formação de
outro professor, como é o autor do texto em estudo. A escolha por um gênero como a
crônica, dentro das circunstâncias de discurso, torna ainda mais evidente o discurso de
experiências vividas, situadas no tempo, que sustenta no nível implícito da linguagem
uma série de relações de sentido a serem feitas durante o processo de produção e
interpretação de tal texto.
Outra característica marcante de uma crônica é a presença de diálogo, o que
representa um elemento importante na compreensão de problemas, já que através dele
ocorre uma das primeiras e mais importantes formas de interação cognitiva. O diálogo
entre os dois protagonistas da história – segundo enfoque corrente nos estudos literários.
Nesse texto, o diálogo entre os interlocutores ou entre os “sujeitos de fala” para a teoria
semiolinguística de Patrick Charaudeau, se inicia, quando ela diz que as estações se
formam de acordo com a posição do Sol, a distância da Terra em relação a este e com a
forma elíptica da órbita terrestre:
– Eu já disse a vocês numa aula anterior que a Terra é uma grande bola e que essa bola
está rodando sobre si mesma. É sua rotação que provoca os dias e as noites. Acontece
que, enquanto a Terra está girando, ela também está fazendo uma grande volta ao redor
do Sol. Essa volta se faz em um ano. O caminho é uma órbita alongada chamada elipse.
Além dessa curva ser assim alongada e achatada, o Sol não está no centro. Isso quer
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
dizer que, em seu movimento, a Terra às vezes passa perto, às vezes passa longe do Sol.
Quando passa perto do Sol é mais quente: é VERÃO. Quando passa mais longe do Sol
recebe menos calor: é INVERNO. (p.70)
Imediatamente, o menino lhe remete uma série de indagações, que geram
impaciência, irritação e insegurança na professora, como é evidenciado no trecho a
seguir:
–Professora, a senhora não disse antes que a Terra é uma bola e que está girando
enquanto faz a volta ao redor do Sol?
– Sim, eu disse. - respondeu a professora com segurança.
– Mas, se a Terra é uma bola e está girando todo dia perto do Sol, não deve ser verão em
toda a Terra?
– É, Joãozinho, é isso mesmo.
– Então é mesmo verão em todo lugar e inverno em todo lugar, ao mesmo tempo,
professora?
– Acho que é, Joãozinho, mas vamos mudar de assunto. (p.71)
A conversa entre os dois gera um tumulto na sala de aula e um mal estar na
professora: “A essa altura, a classe se havia tumultuado.” (p.74). Baseado em seus
conhecimentos sobre as estações do ano e outros assuntos, aos quais associa eventos
culturais como o Natal, o estudante continua a contestar a professora, revelando um
raciocínio lógico, capaz de desestruturar todas as certezas da professora. É o que se
depreende da fala que se segue: “_ Professora, como é que pode ser verão e inverno ao
mesmo tempo, em lugares diferentes, se a Terra, que é uma bola, deve estar perto ou
longe do Sol? Uma das duas coisas não está errada?” (p.72). Enquanto a professora quer
apenas finalizar a aula, cumprir o programa e manter a disciplina da classe (p.72), sem
dar a devida atenção a seu aluno e perdendo a oportunidade de mediar a formação do
conhecimento pelo aluno, este deseja aprender. Para tanto raciocina a partir de sua
experiência de vida, tal como se verifica nesta passagem:
Sem se dar conta da irritação da professora, nosso Joãozinho se lembra de sua
experiência diária e acrescenta:
– Professora, a melhor coisa que a gente tem aqui na favela é poder ver avião o dia
inteiro.
– E daí, Joãozinho? O que tem a ver isso com o verão e o inverno?
– Sabe, professora, eu acho que tem. A gente sabe que um avião tá chegando perto
quando ele vai ficando maior. Quando ele vai ficando pequeno é porque ele tá ficando
mais longe.
– E o que tem isso a ver com a órbita da Terra, Joãozinho?
– É que eu achei que se a Terra chegasse mais perto do Sol, a gente devia ver ele maior.
Quando a Terra estivesse mais longe do Sol, ele deveria aparecer menor. Não é,
professora?
– E daí, menino?
– A gente vê o Sol sempre do mesmo tamanho. Isso não quer dizer que ele tá sempre da
mesma distância? Então verão e inverno não acontecem por causa da distância.
– Como você se atreve a contradizer sua professora? Quem anda pondo “minhocas” na
sua cabeça? Faz quinze anos que eu sou professora. É a primeira vez que alguém quer
mostrar que a professora está errada. (p.73)
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Esse
enredo
constrói
identidades
antagônicas,
pois,
à
medida
que
um
persoangem – a professora – tenta prosseguir em suas ações para alcançar seu objetivo
final (a realização da aula), o outro personagem – o aluno – a todo instante a impede de
dar continuidade a seu intento, opondo-se firmemente às explicações dadas pela
professora para o fenômeno discutido: “– Mas, professora, – insiste o garoto – enquanto
a gente está ensaiando a escola de samba, na época do Natal, a gente sente o maior
calor, não é mesmo?” (p.72). Esse antagonismo é próprio de circunstâncias de discurso
envolvendo argumentação, sendo que para argumentar é necessário haver diferença e
divergência de opinião sobre um mesmo fato, o que será adiante retomado.
Neste sentido, é possível considerar que o diálogo argumentativo entre
Joãozinho e a professora tem semelhança com um debate, que para Baker (2009) é
lugar privilegiado de produção de conhecimento, uma vez que através da expressão de
argumentos e de uma negociação de sentido, pode ocorrer mudança de opinião, o que
seria fundamental para a aprendizagem de conteúdos de ciências. Ainda sobre o debate,
Ribeiro (2009, p.30) ressalta que
O debate, enquanto gênero oral argumentativo, é marcado por uma linguagem
persuasiva que se propõe a convencer ou persuadir o outro. Isto significa acionar
mecanismos argumentativos que resultam na defesa ou elaboração de um ponto de vista,
oportunizando aos interlocutores – no caso, os alunos confrontarem suas próprias
opiniões acerca de questões discutidas.
Outra característica das crônicas de um modo geral, adequada aos propósitos do
autor, é a presença de reflexão. A professora, à noite e “já mais calma”, passa a dialogar
consigo mesma, interrogando-se sobre o processo de ensino-aprendizagem e sobre a
transmissão impensada de “verdades científicas ou históricas”. É o que se vê, por
exemplo, nas seguintes falas: “– Imagine se a moda pega, pensa a professora.” (p.74) e
– Como posso eu ter ‘aprendido’ coisas tão evidentemente erradas?” (p.75).
professora
permanece
a
refletir,
o
que
demonstra
a
intensa
exploração
A
das
características do gênero pelo autor, conforme encontramos no seguinte trecho:
– Por que tantas outras crianças aceitaram sem resistência o que eu disse? Por que
apenas o Joãozinho resistiu e não “engoliu” o que eu disse? No caso do verão e do
inverno a inconsistência foi facilmente verificada. Era só pensar. Se “engolimos” coisas
tão evidentemente erradas, como devemos estar “engolindo” coisas mais erradas, mais
sérias e menos evidentes! Podemos estar tão habituados a repetir as mesmas coisas que
já nem nos damos conta de que muitas delas podem ter sido simplesmente acreditadas.
Muitas podem ser simples "atos de fé" ou crendice que nós passamos adiante como
verdades científicas ou históricas:
“ATOS DE FÉ EM NOME DA CIÊNCIA”. (p.76)
Importa notarmos ainda que, nesse trecho, ocorre uma fusão de falas e
pensamentos dessa personagem com pensamentos que seriam do narrador, uma vez
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
que a crítica expressa é mais apropriada a este do que à professora, como pode ser
verificado no vocabulário e nas frases usados, por exemplo: “inconsistência”, “atos de fé
em nome da ciência”, “Podemos estar tão habituados a repetir as mesmas coisas que já
nem nos damos conta de que muitas delas podem ter sido simplesmente acreditadas.”,
entre outras expressões lingüísticas. Desse momento em diante, como se estivesse
ocorrendo um monólogo interior, o narrador consolida sua estratégia de utilização do
discurso indireto livre a ponto de fazer com que a professora conclua, em decorrência
dos tais atos de fé, que “(...) Não é à toa que se diz da escola: um lugar onde as
cabecinhas entram ‘redondinhas’ e saem quase todas ‘quadradinhas” (p. 77), terminando
com esta fala também a história.
Desta maneira, fica caracterizado o uso do discurso indireto livre como uma
estratégia discursiva, um procedimento do modo de organização narrativo, tal como
propõe Charaudeau (2009). Uma estratégia que revela a interferência do narrador no
modo de pensar, sentir e agir dos personagens, fazendo com que essa voz seja inserida
na trama narrativa ultrapassando os limites de uma narração objetiva e isenta. O
narrador dirá o que o autor diria. Maingueneau (2001) afirma que este tipo de narrador,
cuja voz se insere na ação, “(...) não tem nem a neutralidade de um narrador anônimo,
nem a feição desta ou daquela personagem” (p.125). A uma voz como esta Maingueneau
chama de “narrador-testemunha, o qual partilha o ponto de vista e a linguagem” (2001,
p.125) daqueles a quem se destina a história narrada, vale dizer para a narrativa em
questão: o ponto de vista e a linguagem dos leitores, prováveis professores. Somente
isto poderia explicar o conteúdo da reflexão da professora e a artificialidade da
linguagem da linguagem desta personagem e até mesmo do Joãozinho.
Consequentemente, notamos mais uma estratégia discursiva usada pelo autor: o
jogo entre ficção e realidade, que também caracteriza o gênero crônica. Charaudeau
(2009) afirma que um ato de linguagem (palavra, frase ou texto) necessita estabelecer
um contrato de comunicação entre os interlocutores, sendo que: “A noção de contrato
pressupõe que os indivíduos pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais estejam
suscetíveis de chegar a um acordo sobre as representações linguageiras dessas práticas
sociais.” (p.56). Desta forma, esses leitores, além de partilhar, seja como for o mesmo
ponto de vista, devem estar predispostos a interpretar um texto ficcional como parte de
um livro destinado ao ensino de Ciências (“A terra em que vivemos”4, do mesmo
Rodolpho Caniato). Devem, portanto, saber discernir realidade de ficção, e entrar no
circuito comunicativo não só explorando a ludicidade proposta pelo autor, mas também
realizando a interpretação previamente concebida no processo de produção em que, de
acordo com Charaudeau (2009, p.56), esse sujeito irá organizar sua produção conforme
4
A terra em que vivemos. Vol.1, Campinas: Papirus,1989.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
suas competências, considerando a margem de liberdade e de restrições de ordem
relacional. Afirma ainda que o sucesso, certamente pretendido, está subordinado à
coincidência de interpretações, que poderá ocorrer entre os interlocutores (p.56).
Se um desses leitores – um dos sujeitos da linguagem – for o professor de
Ciências, como é o mais esperado, é pertinente afirmar que o autor – outro sujeito da
linguagem – pretende estabelecer um contrato de comunicação com o leitor, em que a
realidade é lúdica e dialeticamente caracterizada: a objetividade das ciências e do
objetivo a que se destina a referida publicação e a subjetividade que as escolhas feitas
pelo autor e a própria linguagem têm em si mesmas. Assim objetividade e subjetividade
se juntam na organização de ações. Em se tratando da análise aqui desenvolvida, seriam
ações do autor do livro e da narrativa, ações portadoras de um fim social, educacional,
específico: a oferta ao professor de um material didático interessante e de qualidade
científica atestada, conforme determinada perspectiva. Desta forma, seria válida a
observação de que Rodolpho Caniato tem um blog5, chamado “Literatura + Educação”,
que se apresenta como tendo:
(...) a missão reunir informações sobre literatura, formação de professores e a verdadeira
educação. Auxiliando, aquele que tem compromisso com o conhecimento e acredita que a
cultura pode transformar o mundo para melhor, a alcançar pelo menos uma fração da
legítima sabedoria.
Neste ponto, consolida-se a voz do autor na linguagem do narrador, ou seja,
autor e narrador também podem se amalgamar tal como ocorre com narrador e
personagem, fazendo-se mais uma vez necessário remeter esta análise a Charaudeau
(2009, p.43 a p.48), que propõe o ato de linguagem composto por quatro sujeitos, e não
apenas dois (emissor e destinatário), como ocorre em formulações teóricas decorrentes
da visão de Roman Jacobson sobre o processo de comunicação. Do lado do processo de
produção, são eles: o sujeito enunciador (EUe) – sujeito de fala, interno à configuração
verbal – e o sujeito comunicante (EUc) – externo à configuração verbal; do lado do
processo de interpretação, o sujeito destinatário (TUd) – interrno à configuração verbal e
o sujeito interpretante (TUi), que seria um elemento externo à configuração verbal.
Tendo em vista o texto em estudo, o narrador, dentro da formulação de
Charaudeau, seria o sujeito de fala (EUe), aquele que diz os enunciados. O autor
corresponderia ao EUc, o “sujeito agente que se institui como locutor e articulador de fala
(...)
5
iniciador
do
Acesso: 16/01/2011
processo
de
produção,
processo
construído
em
função
das
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Circunstâncias de Discurso, que o ligam ao TU e que constituem sua intencionalidade6
(Charaudeau, 2009, p.48). É o autor, professor, doutor, profissional engajado na
formação de professores de Ciências quem escolhe e constrói a narrativa ficcional e seus
elementos (personagens, enredo, tempo, espaço e um “narrador-testemunha”) e o
discurso indireto livre como estratégias discursivas. Ele é um EUc , “(...) testemunha de
um determinado real, mas de um real pertencente ao seu universo de discurso.”,
conforme caracterização feita por Charaudeau (2009, p.48).
As estratégias até aqui discutidas (escolha, uso e características do gênero
crônica bem como dos elementos da narrativa: personagens, enredo e principalmente o
narrador e seus procedimentos lingüísticos), vão sendo exploradas pelo autor do texto e,
dessa forma, concretizam a proposta do mesmo de provocar uma mudança no seu leitor,
vale dizer que esta crônica serve a um fim argumentativo maior do seu autor: persuadir
e convencer seu interlocutor, sensibilizando-o a valorizar tanto a ludicidade (e porque
não a literatura!) bem como a argumentação no processo de ensino-aprendizagem, que,
de acordo com autores já mencionados, é ideal para o desenvolvimento da aprendizagem
de conteúdos científicos e constitui de certa forma a identidade dos educadores da área
atualmente.
Como visto nas passagens do texto anteriormente citados, o autor também
insere, no modo de organização narrativo da crônica, um “diálogo argumentativo” para o
qual é imprescindível que seus interlocutores (aluno e professora) se apresentem
capazes de refletir e de compreender. Joãozinho demonstra atender a essa condição. Em
diversos momentos, ouve a professora e elabora outra explicação para o fenômeno da
formação das estações do ano. As falas a seguir exemplificam o que se afirma:
– Ninguém, não, professora. Eu só tava pensando. Se tem verão e inverno ao mesmo
tempo, então isso não pode acontecer porque a Terra tá perto ou tá longe do Sol. Não é
mesmo, professora? (p.73)
– A gente vê o Sol sempre do mesmo tamanho. Isso não quer dizer que ele tá sempre da
mesma distância? Então verão e inverno não acontecem por causa da distância. (p.73)
Essa característica seria uma das condições para a eficácia de uma comunicação
pautada pelo modo de organização argumentativo, conforme está em Charaudeau (2009,
p.201 a 249), que também afirma que argumentação é uma atividade que só existe com
interlocutor que raciocina (Charaudeau, 2009, p.205), e Joãozinho raciocina tanto a
partir do conteúdo da fala da professora quanto baseado nos seus conhecimentos de
mundo, conforme já discutido e reiterado nesta passagem:
6
Charaudeau, na mesma página, faz a observação de que por intencionalidade se deve entender
como sendo um conjunto das intenções comunicativas que podem ser mais ou menos conscientes,
o consideramos ser relevante para o caso estudado.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
– E o Papai Noel no meio da neve com roupas de frio e botas?A gente vê nas vitrinas até
as árvores de Natal com algodão. Não é para imitar a neve? (A 40C no Rio).
– É, Joãozinho, na terra do Papai Noel faz frio.
– Então, na terra do Papai Noel, no Natal, faz frio?
– Faz, Joãozinho.
– Mas então tem frio e calor ao mesmo tempo? Quer dizer
que existe verão e inverno
ao mesmo tempo? (p.72)
Nesta direção, é importante considerarmos que
O sujeito que argumenta passa pela expressão de uma convicção e de uma explicação
que tenta transmitir ao interlocutor para persuadi-lo a modificar seu comportamento”:
(Outra mãe a seu filho)’Se você andar na beira do parapeito, vai acabar caindo e se
machucando. (CHARAUDEAU, p.205)
Em um diálogo argumentativo, como nesse trecho da narrativa, o interlocutor
está sempre buscando convencer ou persuadir o outro por meio do discurso, sempre
recorrendo “(...) ao raciocínio lógico, às evidências, às emoções, às provas e outros
mecanismos de argumentação, no sentido de validar o discurso próprio.” (grifo meu),
conforme Ribeiro (2009, p.43). Neste sentido, também realiza uma busca por uma
racionalidade e por uma influência (Charaudeau, p.206), assim como vemos em mais
esta sequencia do diálogo entre os personagens:
– É que eu achei que se a Terra chegasse mais perto do Sol, a gente devia ver ele
maior. Quando a Terra estivesse mais longe do Sol, ele deveria aparecer menor.
Não é, professora?
– E daí, menino?
– A gente vê o Sol sempre do mesmo tamanho. Isso não quer dizer que ele tá
sempre da mesma distância? Então verão e inverno não acontecem por causa da
distância. (p.73)
Importa acrescentar que nessa sequência Joãozinho (sujeito argumentante) tem
um raciocínio lógico baseado em um procedimento da lógica argumentativa, como
propõe Charaudeau (2009, p.215 a 217), vale dizer, desenvolve uma atividade mental de
dedução pragmática: se o avião fica maior ou menor de acordo com a distância até o
observador, logo, “(...) se a Terra chegasse mais perto do Sol, a gente devia ver ele
maior. Quando a Terra estivesse mais longe do Sol, ele deveria aparecer menor”
(Charaudeau, p. 214). Na segunda fala do aluno, nessa mesma sequência, é possível
observarmos que o aluno faz um outro procedimento da lógica argumentativa: a dedução
por silogismo (Charaudeau, p. 214), ou falácias de acordo com os estudos da nova
retórica. Ainda é importante levar em consideração que, no decorrer de todo o diálogo, o
aluno vai construindo este e outros raciocínios argumentativos.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Enquanto Joãozinho tece uma argumentação, pois preenche as condições
necessárias para tanto na medida em que, diante de “uma proposta sobre o mundo” (as
estações do ano se formam a partir do movimento de aproximação e afastamento do
sol), apresenta um questionamento quanto à legitimidade dessa proposta por meio de
mecanismo de refutação e tem como sujeito alvo a professora, esta “simplesmente”
rejeita as idéias do aluno, enquanto conversa com ele, perfazendo o discurso da
negação, como depreendido de falas como estas:
– E daí, Joãozinho? O que tem a ver isso com o verão e o inverno?
(...)
– E o que tem isso a ver com a órbita da Terra, Joãozinho?
(...)
– E daí, menino?
(...)
– Como você se atreve a contradizer sua professora? Quem anda pondo “minhocas” na
sua cabeça? Faz quinze anos que eu sou professora. É a primeira vez que alguém quer
mostrar que a professora está errada. (p.73)
Embora possam se combinar com o discurso argumentativo, a negação acima
comentada, assim como a proibição – que se encontra no nível de linguagem implícito de
uma fala, proferida por uma professora na situação já descrita, como a que segue “- É,
Joãozinho, mas vamos mudar de assunto. Você já está atrapalhando a aula e eu tenho
um programa a cumprir.” (p.71) – não podem ser confundidas com a argumentação, pois
não procedem “de um movimento que consista em demonstrar que uma tese é falsa”,
explicação esta que se encontra também Charaudeau (2009, p.204).
Para finalizar, as estratégias discursivas inferidas do texto “um episódio na vida
de Joãozinho da Maré”, principalmente aquelas decorrentes dos modos argumentativo e
narrativo, pretendem não deixam para o leitor dessa crônica outra possibilidade de
interpretação senão aquela decorrente da fala do narrador-testemunha e sujeito
comunicante: “_ Que bom que houve um Joãozinho.” (p.76) e o reconhecimento do
mérito de propostas educacionais criativas e sérias como parecem ser a do Professor de
Física e pesquisador Rodolpho Caniato.
Referências Bibliográficas
BAKER,
M.J.
knowledge.
(2009).
In:
N.M.
Argumentative
Mirza
&
A.-N.
interactions
and
Perret-Clermont
the
social
(Eds.)
construction
Argumentation
of
and
Education:Theoretical Foundations and Practices. Berlin: Springer Verlag, pp. 127-144.
CANIATO, Rodolfho. Um episódio na vida de Joãozinho da Maré. IN__: A Terra em que
vivemos. Vol.1. Campinas: Papirus, 1989. pp. 69- 77.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. [coordenação da
equipe de tradução Angela M.S. Correa & Ida Lúcia Machado].- 1.ed., 1ª. Impressão. São
Paulo: Contexto, 2009.
DOLZ, Joaquim; SCHENEUWLY, Bernard. Gêneros e progressão em expressão oral e
escrita – elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). IN:
SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim e colaboradores. Gêneros orais e escritos na
escola. Campinas: Mercado das Letras, 2004, p.22 a p.41.
MAINGUENEAU, Dominique. O discurso citado. IN__: Elementos de Lingüística para o
texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp.103-156
RIBEIRO, R. M. A construção da argumentação oral no contexto de ensino. São Paulo:
Cortez, 2009)
WALTON, N. Douglas. Pragma-Dialectics and Critical Discussion. IN__: Informal Logical:
A Handbook of Critical Argumentation. Cambridge: 2008. pp.275-289.
Download