A RELAÇÃO DE DOMINAÇÃO/EXPLORAÇÃO NO CAPITALISMOPATRIARCAL: APROPRIAÇÃO DA VIDA DAS MULHERES Leonardo Nogueira Alves1 Marília Soares Nascimento2 Thais Dias de Queirós3 RESUMO: Este estudo propõe-se a aprofundar as análises pertinentes ao sistema capitalistapatriarcal-racista. A partir do entendimento das bases que determinam a dominação/exploração das mulheres, discute-se a divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo no intuito de apontar a indissociabilidade do patriarcado e do capitalismo. Nesta direção, realiza-se a crítica à ideologia decorrente do sistema patriarcal-racista-capitalista, fundamental para a reprodução e perpetuação do mesmo, uma vez que naturaliza a dominação/exploração decorrentes desse sistema, pois estas não são percebidas facilmente devido à alienação reinante nesta sociedade. Em suma, busca-se assim, explicitar os mecanismos de apropriação da vida das mulheres a partir da lógica do sistema capitalista-patriarcal que se expressam no controle do corpo, do trabalho e da vida das mulheres. Palavras Chave: Capitalismo-patriarcado; Relações Sociais de Sexo; Mulher. INTRODUÇÃO: 1 Assistente Social pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri; Mestrando do PPGSS/Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 2 Assistente Social graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Analista de Políticas da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte na Equipe de Proteção Social Básica – Oeste. 3 Assistente Social pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Diretora na Subsecretaria de Participação Social do Estado de Minas Gerais. 1 A partir da aproximação com a bandeira de luta das mulheres, ou seja, do feminismo – este entendido como um movimento social emancipatório que se propõem a superação da dominação/exploração patriarcal capitalista, pautando a igualdade e a liberdade para mulheres – é que surgiu o interesse no estudo sobre a relação de dominação/exploração no capitalismo-patriarcado. O movimento feminista tem travado varias lutas ao longo de sua história, estando estas ligadas as questões que atende aos interesses particulares das mulheres, mas também confrontando diretamente o capital. Podemos colocar em destaque a luta pelo fim da propriedade privada e da exploração da força de trabalho na esfera produtiva e reprodutiva, uma vez que estas são uma das principais condicionalidades do capitalismo. Assim se faz necessário questionarmos as bases da exploração/dominação para compreendermos em que se sustenta a bandeira de luta feminista, bem como suas ações e estratégias ao longo da historia. Portanto, neste trabalho pretendemos colocar em relevo, um das questão sociais de longo e atual tempo: os mecanismos de apropriação da vida das mulheres a partir da lógica do sistema capitalista-patriarcal. Esse trabalho se realizou como um ensaio, pela complexidade de dialogar sobre o objeto proposto, “a relação de dominação/exploração no capitalismo-patriarcal: apropriação da vida das mulheres”, que requer uma apreensão do referido objeto que considere suas múltiplas determinações, de forma a construir uma análise sob a perspectiva de totalidade. Tornar simples os conceitos complexos que denominam fenômenos complicados, se faz necessário, para dialogar sobre a relação de dominação/exploração das mulheres e para que todas levantem a bandeira da causa. 1.1– A apropriação da vida e corpo das mulheres no capitalismo-patriarcal: A difusão da ideologia dominante decorrente do sistema patriarcal-racistacapitalista é fundamental para a reprodução e perpetuação do mesmo, uma vez que neutraliza as opressões e explorações decorrentes desse sistema, pois estas não são percebidas facilmente devido à alienação reinante nesta sociedade. A condição das mulheres lhes parece, muitas vezes, naturais/normais ou imutáveis, por isso o processo de naturalização da subalternidade. Só é possível compreender como o capitalismo se estruturou, em nível mundial, se incorporamos a dimensão de raça e do colonialismo ao analisarmos o continente latino-americano. Isso é essencial para as representações do ser mulher, como 2 adequadas ou “desviadas” em nossa história e para reforçar as hierarquias e divisões entre as mulheres. Igualmente, essa sociedade possui várias relações de poder imbricadas, sendo as relações sociais de sexo e raça/etnia indispensáveis para entender a exploração do mundo do trabalho, uma vez que o capitalismo amplia o contingente humano disponível para os mais baixos salários, aumentando a sua capacidade de exploração do trabalho associada a essas apropriações. No seio da sociedade, o papel posto para mulher foi condicionado pelo modelo econômico, político e social, elementos que correspondem a certa dominação de interesses ao longo do processo histórico, condicionamento pelo qual a figura masculina se sobrepusesse à feminina, sendo que, Assim é que dois coincidentes modos de dominação que se determinam um a outro determinam o processo da história: o controle sobre a força de trabalho na produção dos meios de vida, e o controle do homem sobre a força trabalhista da mulher, sua capacidade reprodutiva e seus corpos sexuais (HAUG, 2006, p. 316). Saffioti (2004) destaca dois fatores históricos que marcaram as bases de constituição do patriarcado, sendo 1) a produção do excedente econômico, núcleo de desenvolvimento da propriedade privada e, portanto, o domínio e exploração do homem sobre a mulher, e 2) a descoberta da participação dos homens na procriação dos filhos(as), o que antes era um poder divino das mulheres. Este sistema tornou as mulheres “objetos de satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e novas reprodutoras”. Legitimou-se na família o patriarcado4, uma formação social em que o homem corrobora seu poder sobre a mulher e seus filhos, como coloca Kergoat (2003), “patriarcas são os primeiros chefes de família”, no qual a “formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens”. Para compreendermos as raízes do modo pelo qual a mulher é explorada, é preciso compreender o sistema produtivo de bens e serviços e a marginalização da mulher em relação à estrutura familiar na qual ela desempenha funções consideradas 4 O patriarcado é anterior ao capitalismo - segundo Saffioti (2004), este sistema tem cerca de 5.203 anos mas, se mantém com ele, de forma que suas características se associam e se reforçam. 3 naturais. Em Latim o termo família, “famulus” significa “conjunto de servos dependentes de um chefe ou senhor” (PRADO, p.51). A família patriarcal cumpre um importante papel ideológico, na difusão do conservadorismo, pois mantêm em sua estrutura os valores conservadores “que mascara a prática da violência em suas diversas formas: violência física, psicológica e sexual e maus tratos contra mulheres, crianças, adolescentes e idosas/os” (PLATAFORMA FEMINISTA, 2002, p.26). Desde a infância, as crianças possam por uma formação doutrinaria da estrutura posta pela sociedade de classe. Desde pequenos meninas e meninos são tratados de forma diferente, esperam-se coisas diferentes de cada um, permitindo-lhes coisas diferentes. Não se instiga as meninas a manejar a lógica e a técnica, assim estas não irão deter o poder sobre esses instrumentos. Desde a infância as mulheres são criadas para serem responsáveis pelas funções “místicas” da vida, como a maternidade, sendo esta colocada como a realização da mulher por meio do cuidado, do zelo, pelo amor ao dever maternal. As relações conjugais, a vida caseira, a maternidade foram assim um conjunto em que todos os momentos se determinam; ternamente unida ao marido, a mulher pode assumir com alegria os encargos do lar; feliz com os filhos, será indulgente com o marido. Mas essa harmonia não é facilmente realizável porque as diferentes funções consignadas à mulher se conjugam mal entre si. [...] A mulher encerrada no lar não pode fundar ela própria sua existência; não tem os meios de se afirmar em suas singularidades e esta, por conseguinte, não lhe é reconhecida (BEAUVOIR, 1967, p.294). O lugar que as mulheres ocupam na sociedade não foi dado pela expressão da natureza feminina, mas sim posto por condições materiais, pelo surgimento da propriedade privada, pelas instituições, ou seja, fruto de uma relação de opressão entre homens e mulheres, baseada em elementos socioeconômicos. Segundo Beauvoir (1967, p.09) “não se nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”, as mulheres não são frágeis e doces por natureza, mas foram educadas para serem assim. A obra “Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir, é de suma importância para os estudos feministas, uma vez que traz analise fundamentada para desvendar que o “ser mulher” é algo construído historicamente e socialmente. O estudo de Beauvoir sobre a mulher na sociedade nega completamente a ideia de uma suposta natureza feminina. 4 “Não nascemos naturalmente submissas e passivas, mas incorporamos essa ideologia que expressa historicamente os interesses dominantes” (ÁLVARO, p.145, 2013). A relação de dominação e exploração, posta pelo patriarcado, se coloca de forma naturalizada na consciência, fazendo com que as mulheres naturalizem e reproduzam a sua condição de subalterna, colocado como função natural, biológica. Assim o poder hegemônico do patriarcado nas relações sociais vigentes permite que o mesmo se perpetue com a ausência dos homens, as “mulheres reproduzem o patriarcado independente da presença masculina e não porque gostam de ser submissas” (CISNE p.145, 2013), pois se trata de um sistema regido pelo medo, e ideologicamente. No processo de consolidação do capitalismo, o papel econômico da família e do trabalho das mulheres é ocultado, constituindo-se o modelo adequado de feminilidade para o exercício da maternidade, reforçando a dupla moral e controle sobre o corpo e a sexualidade das mulheres. Não é pertinente fragmentar a esfera econômica da esfera politica e social. A realidade histórica econômica, politica e social nos mostra a base pela qual a sociedade impõe um padrão de sociabilidade. A construção social do sexo masculino e feminino é definida pela interface das relações sociais onde a mulher se encontra em posição de subordinação. 1.2- A consubstancialidade das relações de sexo e classe no capitalismo-patriarcal: A cada período da história vão se dando relações diferenciadas, determinadas pela articulação das relações materiais de produção e as variadas formas de ideais, vale ressaltar que estes ideais são fruto da realidade objetiva. A realidade social posta em sua totalidade é que se constitui no fundamento da consciência, ou seja, “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina consciência” (MARX e ENGELS, 2009). Portanto, os valores, normas, relações e instituições que os homens criam no decorrer de sua vida são frutos da realidade social, na qual temos o trabalho como matriz. Entender a história é também apreender as relações contraditórias que vão se configurando entre os homens a partir das formas concretas de produção; como essas contradições vão dar origem à divisão do trabalho, ao surgimento da propriedade privada, à exploração do homem pelo homem, às classes sociais e à luta entre elas, ao problema da alienação, bem como a determinadas instituições jurídicas e políticas necessárias de cada forma de sociabilidade (TONET, 2009, p.14). 5 Com o aumento da produtividade, da multiplicação das necessidades e pela multiplicação dos homens5, se configuraram novas formas de organização societal correspondentes a este processo. Quando olhamos para a vida das mulheres e homens, vemos que o que condiciona dialeticamente a vida de cada um é o lugar que ocupa no processo de trabalho de acordo com cada período histórico. Desse modo, é necessário compreender as relações sociais de sexo articuladas às relações de classe desta sociedade. Este entendimento, parte do pressuposto que é impossível analisar as relações sociais de sexo sem as devidas mediações com as relações de classe e vice-versa. Ressalta-se a necessidade de articulação com o entendimento das relações de raça/etnia, contudo, para este trabalho, destacam-se as relações sociais de sexo e classe. Concorda-se com Kergoat (2009) e Saffioti (2004) ao apontar a necessidade de compreender a consubstancialidade das relações sociais de sexo e classe e o novelo sexo-classe-raça respectivamente. Cisne (2013) defende que não se deve apreender essas relações numa perspectiva de sobreposição, como se tais relações fossem adicionais ou somáveis. Deste modo a autora também defende que “é impensável estudar as relações sociais entre os sexos dissociada das dimensões de raça e de classe” (CISNE, 2013, p. 116). Nesse sentido, de acordo com Hirata (2014, p. 64-65), A ideia de articular relações sociais de sexo e de classe foi proposta na França desde o final dos anos de 1970 por Danièle Kergoat (1978), que quis compreender de maneira não mecânica as práticas sociais de homens e mulheres diante da divisão social do trabalho em sua tripla dimensão: de classe, de gênero e de origem (Norte/Sul). Hirata (2014) também destaca os estudos da Elisabeth Souza-Lobo no Brasil ao final da década de 1980. Ressaltam-se ainda as contribuições de Heleieth Saffioti, que desde a década de 1960 havia feito um esforço teórico-político para compreender a inserção na sociedade de classes. Para Kergoat (2012), As relações sociais são consubstanciais: elas formam um nó que não pode ser sequenciado ao nível das práticas sociais, apenas em uma perspectiva analítica da sociologia; e elas são co-extensivas: implantando as relações 5 Marx e Engels colocam em sua obra, A Ideologia Alemã, a relação dos “homens que, dia a dia, renovam a sua vida começam a fazer outros homens, a reproduzir-se - a relação entre homem e mulher, pais e filhos, a família”. Essa família, que a principio é a única relação social, torna-se mais tarde, quando o aumento das necessidades cria novas relações sociais e o aumento do número dos homens cria novas necessidades, uma relação de subordinação (MARX, ENGELS, 2009. p.42). 6 sociais de classe, de gênero e de “raça”, se reproduzem e se co-produzem mutuamente. (KERGOOAT, (2012) apud Cisne, 2013, p. 117). Assim, percebe-se que há uma permanente articulação entre sexo, classe e raça, que não é simples. Profundamente dialético, é impensável apreender a dinâmica de uma sem considerar as determinações da outra. A base material desta sociedade – o trabalho, e, decorrente deste, e a divisão sexual do trabalho comprova e reafirma essa afirmação. Falquet (2008) apud Cisne (2013, p. 121) numa crítica ao entendimento da divisão sexual do trabalho restrita ao trabalho doméstico, afirma que “sexo, raça e classe são mobilizadas e reorganizadas para construir uma nova divisão sexual do trabalho ao nível da família, de cada Estado e do conjunto do globo”. Nesta mesma direção política, Saffioti (1987, 1988 e 2004) chama atenção para compreender a simbiose e o novelo que conforma o chamado sistema patriarcal-racistacapitalista. A autora, em meados da década de 1980 publica o ensaio intitulado “O Poder do Macho”, no qual explicita o entendimento de que existe uma dinâmica própria conformada pela “simbiose” do racismo, do patriarcado e do capitalismo. Diante de tal simbiose, é impossível pensar estes sistemas como sobrepostos ou dissociados. Ao contrário, existe uma dinâmica nova posta a partir dessa “fusão”. Nas palavras da autora, Com a emergência do capitalismo, houve a simbiose, a fusão, entre os três sistemas de dominação-exploração [...]. Só mesmo para tentar tornar mais fácil a compreensão deste fenômeno, podem-se separar estes três sistemas. Na realidade concreta, eles são inseparáveis, pois se transformaram, através deste processo simbiótico, em um único sistema de dominação-exploração, aqui denominado patriarcado-racismo-capitalismo (SAFFIOTI, 1987, p. 60). Saffioti (2004) revigora a análise deste debate problematizando a necessidade de combater as desigualdades criadas a partir desta articulação. Para isso, a autora problematiza que, É difícil lidar com esta nova realidade, formada pelas três subestruturas: gênero, classe social, raça/etnia, já que é presidida por uma lógica contraditória, distinta das que regem cada contradição em separado. [...] O importante é analisar estas contradições na condição de fundidas ou enoveladas ou enlaçadas em um nó. Não se trata da figura de um nó górdio nem apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de suas componentes. Não que cada uma dessas contradições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova realidade, presidida por uma lógica contraditória. [...] novelo - patriarcadoracismo-capitalismo – historicamente constituída (SAFFIOTI, 2004, p. 125). 7 Assim, combater e destruir o novelo patriarcado-racismo-capitalismo requer esforços e estratégias que extrapolam uma concepção monolítica das classes sociais. Requer, sobretudo, reconhecer que a classe trabalhadora possui sexo e raça/etnia, conforme Cisne (2012 e 2013). Parafraseando Souza-Lobo (2011), “a classe operária tem dois sexos”. Isso significa que os processos históricos travados pela classe trabalhadora, que almejam a transformação radical das relações de opressão, devem se atentar para o combate ao patriarcado enquanto modo de vida que subalterniza as mulheres. Ou seja, enquanto modo de vida que supervaloriza o papel do homem, dando poder a este sobre a vida das mulheres. Para Delphy (2009, p. 173), numa abordagem feminista, devemos compreender o patriarcado como “uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda mais simplesmente, o poder é dos homens (...) quase sinônimo de dominação masculina ou de opressão das mulheres”. Defender a pertinência da consubstancialidade das relações de sexo, raça e classe e do novelo patriarcado-racismo-capitalismo é essencial para vislumbrar a verdadeira emancipação de homens e mulheres. Por isso, concorda-se com Saffioti (2004, p. 57) ao defender a necessidade e a vitalidade da categoria patriarcado, 1- não se trata de uma relação privada, mas civil; 2- dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres [...]; 3- configura um tipo hierárquico de relação, que invade todos os espaços da sociedade; 4- tem uma base material; 5corporifica-se; 6- representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência. (SAFFIOTI, 2004, p. 57) Delphy (2009) destaca que tanto relações sociais de sexo, quanto patriarcado são categorias que visam extrapolar as atitudes individuais, mas, sobretudo, descrever um sistema coletivo que perpassa todas as atividades humanas, seja elas coletivas ou individuais. Assim, compreende que a relação de dominação/exploração no sistema capitalista-patriarcal demarca a especificidade da opressão das mulheres. Com isso, numa perspectiva de emancipação humana é necessária à destruição do patriarcado na mesma proporção que se busca destruir a propriedade privada, a mais-valia etc. Socialismo e feminismo continuam sendo uma relação necessária aos/às revolucionários/as. 8 1.3 - Crítica à naturalização da opressão das mulheres: Anteriormente apontou-se que o desenvolvimento histórico da humanidade propiciou a conformação de uma relação de dominação/exploração dos homens sob as mulheres. Mesmo levando em conta os inúmeros avanços que as mulheres obtiveram por meio da sua luta, ainda persiste uma noção que transforma as diferenças biológicas entre homens e mulheres em pressupostos para legitimar a desigualdade, seja no trabalho, nas relações de poder, direitos sociais, civis e políticos etc. No intuito de combater as explicações que recorrem à ideia de natureza, Colette Guillaumin nos apresenta uma análise que busca ir à raiz dessa problemática, identificada por ela como relação de sexagem6. A formulação do conceito de sexagem leva em conta o entendimento dos conceitos servidão e escravidão, no qual a autora se apropria para construir sua formulação acerca da dominação das mulheres. A relação de sexagem se encontra como a base da ideologia que justifica a existência de uma suposta “natureza feminina” que por sua vez é utilizada como motivação para apropriação das mulheres pelos homens. Cisne (2013, p. 146) inspirada no pensamento de Guillaumin aponta que “por meio da sexagem as mulheres são resumidas ao sexo, sendo apropriadas não apenas no que diz respeito a sua força de trabalho, mas, também, ao seu corpo e sua vida”. Mathieu apud Cisne (2013, p. 146) aponta que a sexagem constitui-se numa “relação social de classe que se revela na apropriação do corpo, do trabalho e do tempo do conjunto das mulheres para o benefício pessoal e social dos homens em seu conjunto”. A relação de sexagem designaria uma relação social de apropriação física direta, “uma relação de classe geral em que o conjunto de uma está à disposição da outra” (GUILLAUMIN, 2002). A autora nos coloca quatro expressões concretas da apropriação, sendo o tempo, dos produtos do corpo, a obrigação sexual e o encargo físico dos membros do grupo. Apresenta também cinco meios de apropriação da classe das mulheres pela dos homens, podendo esses ou não específicos das relações de sexagem, sendo o mercado de trabalho, o confinamento no espaço, a demonstração de força (agressão), a coação sexual, e o arsenal jurídico e o direito consuetudinário. A forma exposta por Guillaumin nos permite figurar o fato de que a apropriação se refere à individualidade física completa, ao espírito e ao corpo da pessoa, pautando 6 “Sexagem é a apropriação do corpo, dos produtos do corpo, do tempo e da energia psíquica da classe das mulheres por parte da classe dos homens” (GUILLAUMIN, 1978) 9 em uma reflexão histórica e dinâmica sobre a imbricação das relações sociais, uma vez que as relações de sexo, de “raça” e o assalariamento (relações sociais de classe) podem perfeitamente andar juntas. Estas duas contradições comandam toda a análise das relações de sexo, ou caso prefira, das relações de sexagem. A apropriação coletiva das mulheres (a mais “invisível” hoje) manifesta-se pela apropriação privada (o casamento), que a contradiz. A apropriação social (coletiva e privada) manifesta-se através da venda livre (recente) da força de trabalho, que a contradiz. (GUILLAUMIN, 1992) A centralidade da formulação de Colette Guillaumin encontra-se na crítica à concepção que um destino e uma essencial natural no desenvolvimento de homens e mulheres. De acordo com Cisne (2013, p. 148), Guillaimin aponta que o naturalismo é expressão do sexismo e do racismo. Saffioti (2004, p. 124) afirma que “sexismo e racismo são irmãos gêmeos”. A condição de subordinação das mulheres impacta diretamente o exercício dos direitos reprodutivos. Normas modeladoras sustentadas por instituições como a igreja e o estado na qual perpetuam o modelo adequado de feminilidade para o exercício da maternidade, reforçando a dupla moral e controle sobre o corpo e a sexualidade das mulheres. A maternidade se apresenta como destino das mulheres, como sua principal realização, ocultando a maternidade como construção social. O movimento feminista coloca como fundamental a separação da maternidade e a sexualidade, defendendo o direito das mulheres de expressar o seu desejo sexual, colocando em pauta a questão da autonomia do corpo da mulher e do seu poder de decidir e escolher. Isso vai diretamente de encontro com os interesses do capitalismo de controlar a reprodução da vida e da força de trabalho. Por isso, a perspectiva adotada neste trabalho é de que somente uma mudança radical na estrutura da sociedade de classe poderia preparar definitivamente o caminho para a libertação das mulheres em todos os âmbitos da vida social. Diante deste contexto, afirmar a vida das mulheres é garantir a autonomia e o direito ao corpo e a sexualidade, o direito de separar a sexualidade da maternidade e decidir sobre a maternidade. Frente a este contexto, temos o caso brasileiro, no qual são realizados anualmente cerca de um milhão de abortos ilegais, e aproximadamente 250 mil mulheres ficam com sequelas, sendo internadas nos serviços públicos, segundo pesquisas realizadas pelas Católicas pelo direito de decidir 7. 7 Aborto: dialogar é estratégico. Boletim da AJD, ano 11, n.40, dez 2006/fev.2007. 10 A necessidade de combater a ideologia que naturaliza a opressão das mulheres, dando poder aos homens deve ser permanente e aliada às lutas gerais da classe trabalhadora na ruptura com o capitalismo. Numa sociedade em que o poder é macho, branco, rico e heterossexual, conforme Saffioti (2004) aponta, faz-se necessário questionar todos estas manifestações de poder no qual as mulheres são diretamente oprimidas. Considerações Finais É preciso olhar para o próprio curso da história para percebermos como foram constituídos os paradigmas do sistema capitalista-patriarcal-racista, para que possamos propor formas de rompê-los. Neste ensaio podemos observar os paradigmas relacionados às bases que determinam a dominação/exploração das mulheres, a divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo no intuito de apontar a indissociabilidade do patriarcado e do capitalismo. A compreensão destes aspectos históricos, é que nos permite compreender, os mecanismos de apropriação da vida das mulheres a partir da lógica do sistema capitalista-patriarcal que se expressam no controle do corpo, do trabalho e da vida das mulheres. A sociedade não se transformará se não nos propusermos a lutar pela construção da nossa história, compreendendo como esta sociedade se sustenta por injustiças sociais. A partir da análise crítica do real seremos capazes de contribuir na luta pela transformação de elementos estruturantes, no qual um deles é a dominação/exploração sofrida pelas mulheres. O esforço foi realizado com a finalidade de apresentar elementos que possibilitem um debate crítico em torno do referencial da autonomia do corpo das mulheres, no intuito de ultrapassar as análises imediatistas, articulando estudos que se integrem à luta de classes, disponibilizando conhecimento para que seja utilizado na prática social. É preciso compreender e interpretar o que está por trás dos elementos apresentados para que através das descobertas possamos ir além da aparência e assim correspondendo o objetivo proposto, lembrando que este movimento não se esgota aqui, pois se trata de um ensaio. Precisamos efetuar a transformação radical na estrutura da sociedade de classes, preparando definitivamente o caminho para a libertação das mulheres. 11 Referências ANTUNES, Ricardo; MORAIS Maria A. 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