PRODUÇÃO DE SENTIDO POR MEIO DO SINCRETISMO DE LINGUAGENS: UM ESTUDO A PARTIR DE UM FILME DE GUEL ARRAES Yvana Fechine Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) A produção de sentido nos meios audiovisuais envolve, necessariamente, procedimentos de articulação das linguagens. Antes mesmo da chegada do som direto no cinema, a preocupação com a relação entre a imagem e o áudio já preocupava os seus diretores. Entre eles, um nome merece destaque. O cineasta russo Seguei Eisenstein pode ser considerado o primeiro a teorizar sobre tais procedimentos em vários ensaios reunidos em O sentido do filme e A forma do filme, publicados originalmente nos anos 40 (cf. 1990, 2002). A partir tanto da concepção quanto da análise a posteriori dos filmes que realizou, Eisenstein tentou descrever “um método de construção de correspondências áudio-visuais” ou “um princípio geral”, de acordo com o qual a unidade audiovisual é obtida (1990: 100, 128). Buscou identificar o “unificador dos elementos plástico e musical”, estabelecendo “relações entre movimentos fundamentais” da música e da imagem, buscando “correlações” entre imagens musicais e visuais, entre som e enquadramento, volumes, contornos da própria imagem, ou entre som e luminosidade (intensidade da luz) dentro do plano (1990: 128, 98). Esforçou-se, enfim, para mostrar a existência de “um sistema unificado para métodos de expressividade cinematográfica, postulando que a relação entre imagens visuais e auditivas, por meio de contrapontos e combinações, pode produzir uma percepção comum, dotada em si mesma de um novo sentido” (2002: 44, 31). A maioria das postulações teóricas de Eisenstein pode ser traduzida no seu conceito de “montagem vertical”. O que é, então, essa “montagem vertical”? Trata-se de um tipo de montagem que explora toda expressividade que emerge da relação entre elementos de diferentes sistemas semióticos e/ou de diferentes mídias postos em operação num mesmo texto ou numa única seqüência. Ou seja, a própria montagem se apresenta, nesse caso, como um componente expressivo, evidenciando a combinação, a superposição ou as oposições entre tais elementos. Não se trata mais de organizar as unidades audiovisuais considerando apenas a sua seqüencialidade, mas de concebê-las a partir da lógica da simultaneidade. Se, orientados antes pelo princípio da seqüencialidade, os discursos se articulam dando ênfase à ordem sintagmática (modalidade articulatória do e...e), pautados agora pela simultaneidade, elementos oriundos de diferentes linguagens podem se acumular na tela a partir de uma organização paradigmática (eixo do ou...ou), cujo sentido está justamente na articulação, ao mesmo tempo, de todos eles. Hoje, essa montagem “vertical”, preconizada por Eisenstein, pode ser traduzida, na linguagem mais contemporânea do audiovisual, pelo apelo aos recursos de pósprodução disponíveis nos sistemas de edição digital, assim como pela exploração das possibilidades de migração de imagens e de procedimentos técnico-expressivos de um suporte para o outro. Nos meios audiovisuais, essa sobreposição, acumulação ou articulação “vertical” (paradigmática) dos seus mais diversos elementos expressivos pode ser pensada como uma estratégia de convergência: convergência de várias linguagens de manifestação para uma mesma forma fílmica por meio de procedimentos que resultam na sua sincretização. Apesar da preocupação recorrente em seus ensaios com a articulação entre música e imagem, Eisenstein não chegou, no entanto, a formular uma teoria cinematográfica capaz de descrever, sistematicamente, suas intuições sobre o que, hoje, podemos, de modo mais apropriado, identificar como procedimentos de sincretização de linguagens no cinema. Também não houve, a partir de suas idéias, um desenvolvimento teórico que nos permitisse apontar hoje, no campo de estudos cinematográficos, uma metodologia de análise dessas relações entre linguagens no audiovisual1. Por se ocupar justamente da identificação de princípios de organização e da descrição dos modos de articulação de elementos que constroem o sentido, a semiótica tem se mostrado como um aparato teórico-metodológico de grande operatividade para uma melhor compreensão desses procedimentos de sincretização no audiovisual. Nesse campo de estudos, um outro nome merece destaque. Jean-Marie Floch formulou, a partir da descrição dos dois planos constitutivos da linguagem proposta por Hjelmslev, a definição corrente hoje de objeto semiótico sincrético2. No Dicionário de Semiótica 1 Destaco aqui o livro La audiovisión, de Michel Chion, no qual ele empreende uma análise da relação entre imagem e som no cinema. No livro, Chion descreve os mais variados usos do som no cinema e discute como a imagem sobredetermina a interpretação do áudio e vive-versa. Sua abordagem não chega, porém, a pensar a natureza das relações que propiciam essa mútua determinação e, conseqüentemente, a produção de sentido por meio desses procedimentos sincréticos (cf. Chion, 1993). 2 Segundo Hjelmslev, o signo define-se a partir de dois planos interdependentes e isomórficos: o plano da expressão e plano do conteúdo, sendo cada um deles manifesto por uma forma e por uma substância. A 2 (Greimas e Courtés, 1991), Floch define como discursos/objetos sincréticos aqueles cujo plano da expressão é composto por uma pluralidade de substâncias para uma única forma. Ou seja, acionam pelo menos duas “matérias” (a visual e a sonora, no caso do audiovisual) que se manifestam como linguagens distintas, mas articuladas como um “todo de significação”. Diante de um objeto dotado de tal natureza, a questão que surge, necessariamente, é: como essas distintas linguagens interagem, sobredeterminam umas às outras, relacionam-se mutuamente? Responder a essa questão nada mais é do que se ocupar dos procedimentos pelos quais se dá a sua sincretização. Na busca de descrição de tais procedimentos é preciso, antes de mais nada, resistir à tentação de identificar e “separar” os enunciados verbal, visual, gestual ou musical, entre outros, para analisá-los isoladamente e, depois, correlacioná-los. É preciso, ao contrário, atentar para o que diz o segundo volume do Dicionário de Semiótica e observar “a estratégia global de comunicação sincrética que administra o contínuo discursivo” (Greimas e Courtés, 1991: 234)3, identificando as relações de interdependência que permitem a articulação dessas diferentes linguagens de manifestação como um texto único, um “todo” de sentido. Nos textos sincréticos, os elementos articulados no plano da expressão não apenas figurativizam, “concretizam”, os temas abstratos do plano do conteúdo, mas agregam a eles novos significados (Barros, 1994: 89). Para entender como elementos expressão “produzem” sentido é preciso, no entanto, observar como se constroem correspondências com o conteúdo, pois o sentido é sempre o resultado de uma articulação entre esses dois planos. Partindo, aqui, dos caminhos abertos por Jean-Marie Floch, no estudo das semióticas sincréticas, e aproveitando heuristicamente as idéias de Eisenstein, tentaremos mostrar que as relações de convergência entre as várias linguagens de manifestação nos discursos audiovisuais se estabelecem, entre outros procedimentos, por meio de uma homologação entre categorias dos planos da expressão e do conteúdo. Na metalinguagem da semiótica, esse procedimento é denominado de substância do conteúdo está identificada, segundo Hjelmslev, às ideologias e ao conjunto genérico das idéias que circulam socioculturalmente. A substância da expressão designa, por usa vez, a “matéria” por meio da qual se manifesta uma forma (os sons, no caso da língua, por exemplo). A função semiótica une uma forma da expressão com uma forma do conteúdo, de tal modo que não se pode analisar, em qualquer dos planos, a substância per si. A substância é resultante da forma. A forma corresponde às oposições, combinações e relações que produzem o sentido justamente a partir dessa substância, do conteúdo ou da expressão, “enformada” (cf. Hjelmslev, 1978: 80-81;174;192-193). 3 semi-simbolismo e, desde as análises de discursos das mídias e das artes feitas por JeanMarie Floch, tem se mostrado um caminho produtivo na descrição desse sentido que emerge do sincretismo de linguagens. Sincretismo semi-simbólico A partir da natureza da relação entre os planos da expressão e do conteúdo, a semiótica distingue três grandes sistemas de linguagem. Os sistemas semi-simbólicos se interdefinem por sua relação com os dois outros – os sistemas simbólicos e os sistemas semióticos propriamente ditos. Os sistemas semióticos propriamente ditos são aqueles nos quais não há qualquer conformidade entre os dois planos, sendo possível, por isso mesmo, estudar separadamente expressão e conteúdo. O grande exemplo são as línguas naturais. Nos sistemas meramente simbólicos – como os sinais de trânsito, por exemplo – os dois planos estão, ao contrário, em conformidade total, de tal modo que a cada elemento da expressão corresponde um – e somente um – elemento do conteúdo (vermelho=pare, verde=siga, amarelo=atenção) . Como os planos da expressão e do conteúdo possuem, nesse caso, a mesma forma já não há mais nem porque distingui-los na análise. O semi-simbolismo se define pela conformidade não entre elementos isolados dos planos (termo a termo), mas justamente pela correspondência entre uma categoria do plano de expressão e uma categoria do plano de conteúdo. Greimas exemplifica esse tipo de relação com as linguagens gestuais, nas quais as categorias “afirmação” (sim) e “negação” (não), no plano do conteúdo, correspondem às categorias de movimento da cabeça verticalidade/horizontalidade, no plano da expressão (Greimas e Courtés, 1991: 228). Nos painéis medievais com a representação do Juízo Final – o exemplo, agora, é de Jean-Marie Floch –, a categoria espacial direita/esquerda corresponderá à categoria semântica recompensa/punição (2001: 29). Um sistema semi-simbólico pode se apoiar em uma única categoria da expressão, como no exemplo acima, ou em uma hierarquia de categorias. Essa acumulação de categorias produz, nos discursos semi-simbólicos, uma paradigmatização que, conforme aprendemos com Jakobson, é a essência da função poética (projeção do eixo paradigmático no eixo sintagmático). Por isso mesmo, os sistemas semi-simbólicos são facilmente identificáveis dos discursos artísticos, nos 3 Como não há tradução para o português do segundo volume do Dicionário de Semiótica, as indicações 4 quais os procedimentos adotados no plano da expressão já produzem, por si sós, um sentido sensível (instaurado sensorialmente). Os sistemas semi-simbólicos, segundo os autores do Dicionário de Semiótica, podem se configurar a partir de uma única substância – visual, como na pintura – ou numa pluralidade de substâncias, como no caso dos objetos semióticos sincréticos. Nesse caso, categorias da expressão podem resultar da articulação de elementos oriundos das diferentes linguagens de manifestação acionadas na constituição do objeto de análise. Ou seja, certo tipo de discurso sincrético parece combinar categorias que dependem de várias substâncias da expressão (visual, auditiva, etc) para expressar uma só categoria do conteúdo (Greimas e Courtés, 1991: 227-230). Esta parece ser exatamente a configuração mais comum nos discursos audiovisuais. Numa determinada seqüência de um filme, o analista pode identificar, por exemplo, uma categoria como a /continuidade/, conformada no plano da expressão tanto por um determinado movimento de câmera (um plano-seqüência, eventualmente) quanto pela reiteração de uma determinada música, ou pela ocorrência de ambos ao mesmo tempo. Nesses casos, os sistemas semi-simbolismos produzem também, com muita freqüência, efeitos sinestésicos: a convocação de diferentes ordens sensoriais se dá por algum tipo de correspondência entre elementos das diversas linguagens de manifestação sincretizados justamente na constituição de categorias da expressão definidas e homologadas por e na sua relação com o conteúdo. Se a categoria da expressão pode ser o resultado da convergência de elementos das diversas substâncias em operação, nos vemos agora diante da necessidade de, antes mesmo de proceder a qualquer homologação entre planos, examinarmos as relações existentes dentro do próprio plano da expressão (intra-plano). Essa convergência de elementos das diversas substâncias parecer ser presidida, por sua vez, por dois outros tipos de relação que, na falta de uma terminologia dentro da própria semiótica, chamaremos, por ora, de relações de consonância ou dissonância. Novamente, as formulações de Eisenstein funcionam, aqui, heuristicamente. Para ele, a relação entre os diferentes elementos da montagem4 estabelecia-se por ligação ou colisão. Nesta última, aqui se referem à sua versão espanhola. 4 Não é demais lembrar que, para Eisenstein, a montagem não era apenas um procedimento técnico. Ele entendia a montagem como o modo mesmo de desenvolver uma idéia num meio audiovisual (cf. 1990, 2002). Numa perspectiva semiótica, a montagem corresponde aos próprios procedimentos de textualização. 5 o montador explorava, dialeticamente, as oposições, as contraposições, entre os elementos técnico-expressivos do audiovisual. Na primeira, ao contrário, explorava a complementaridade entre eles. As noções de ligação e colisão eisensteinianas nos remetem, em outros termos, a relações de dissonância e consonância entre elementos das diferentes substâncias da expressão, que, independente das suas respectivas naturezas contrastiva ou complementar, só produzem significação quando são apreendidos como um “todo” (audio)visual. Ou seja, por confronto ou complementaridade, um elemento de uma determinada substância da expressão (sonora, por exemplo) só adquire sentido em relação à sua consonância ou dissonância com um outro de uma substância distinta (visual, por exemplo). Na montagem do seu filme Alexander Nevsky (1938), Eisenstein nos dá, mais uma vez, uma demonstração prática desse procedimento de sincretização. É ele próprio, ao analisar o filme depois, que destaca o seu esforço para obter uma perfeita sincronização entre música e imagem, fazendo corresponder a cada movimento e tonalidade musical (“descidas” e “subidas” representadas por linhas e arcos ascendentes e descendentes na partitura) uma determinada composição gráfico-plástica produzida pelo contorno, volume e disposição das figuras no plano (representadas igualmente por linhas e arcos ascendentes e descendentes na diagramação interna dos planos)5. A densidade produzida pela convergência consonante de elementos visuais e sonoros na expressão corresponde, aqui, à tensão e expectativa manifestas no conteúdo dessa seqüência que, no desenrolar do filme, antecede a clássica Batalha do Gelo6. Nos sistemas semi-simbólicos sincréticos, os elementos de diferentes substâncias da expressão (visual, auditiva, etc) podem convergir não apenas por consonância, como no filme de Eisenstein, mas também por dissonância. Nesse caso, porém, a categoria da expressão que emerge de uma deliberada dissonância entre elementos dessas diferentes substâncias só será reconhecida como tal a partir de sua correspondência com uma categoria do conteúdo. Imaginemos, por exemplo, uma seqüência na qual vimos a 5 Para provar essa correspondência entre os “movimentos fundamentais” da música e da imagem, Eisenstein elege uma das seqüências do filme e produz um esquema comparativo no qual evidencia as correspondências, dispondo, lado a lado, um “diagrama da composição” das imagens, um “diagrama do movimento”, trechos da partitura musical e uma série de 12 fotogramas (1990: 97-131). 6 Alexander Nevsky trata das constantes invasões da Rússia por cavaleiros mongóis. O príncipe pescador Alexader Nevsky assume o comando da reação à invasão do seu país por guerreiros germânicos. Apesar da sucessivas vitórias dos germânicos, quando estes dominavam a cidade de Pskov, são, surpreendentemente, batidos por Nevsky na Batalha do Gelo. 6 imagem de um homem praticamente imóvel, calado, com semblante circunspecto. O que acontece se sobrepormos a tal imagem uma música como o famoso Bolero de Ravel? Imediatamente, no plano da expressão, evidenciaremos a dissonância entre a estaticidade da imagem (uma verdadeira “paralisia” do nosso personagem) e o andamento progressivo da música (que “avança”, “cresce”, “invade”). É no próprio contraponto estabelecido pela mobilidade musical e pela imobilidade visual que se configura, na expressão, uma categoria como a da /tensão/ que pode, por sua vez, corresponder, no conteúdo, a um valor semântico como a inquietação ou a insatisfação, por exemplo. Seja por correspondências consonantes ou dissonantes, a sincretização desses elementos pode produzir também sinestesias, desde que esse conceito seja compreendido como um estímulo de um sentido pelo outro, a partir justamente da convocação de uma substância pela outra. Sincretismo na seqüência inicial de Caramuru – A invenção do Brasil O pernambucano Guel Arraes (Miguel Arraes de Alencar Filho) é um dos mais respeitados criadores de televisão do Brasil. Diretor de um dos núcleos de produção da Rede Globo, Guel produziu e programas na Rede Globo que se tornarem uma referência de qualidade estética na TV pela exploração inovadora dos recursos técnico-expressivos do meio. Ao fazer isso, Guel acabou, intuitivamente, tirando proveito do próprio sincretismo do audiovisual, pois nisso reside, em grande medida, sua própria potencialidade expressiva. A análise dos seus trabalhos pode ser, por isso mesmo, muito produtiva nessa discussão sobre procedimentos de sincretização. Na tentativa de mostrar como a produção de sentido no audiovisual depende também de tais procedimentos, nos propomos agora a descrever na seqüência inicial de um dos seus filmes como o semisimbolismo, que confere grande poeticidade à abertura, constrói-se justamente a partir dessa sincretização de linguagens. Caramuru – A invenção do Brasil (2001, Globo Filmes, 88 minutos) é o resultado da reedição da minissérie A invenção do Brasil (2000), produzida e exibida pela Rede Globo como parte da comemoração dos 500 anos de descobrimento do Brasil. A estória recriada por Guel Arraes e Jorge Furtado conta o romance entre um jovem 7 pintor português, Diogo Álvares, e uma sedutora índia tupinambá, Paraguaçu7. A trama começa quando Diogo (Selton Mello) é enganado por uma cortesã francesa, Marquesa de Sevigny (Débora Bloch), e envolve-se no roubo do mapa da expedição que levaria Pedro Álvares Cabral às Índias. Como punição, é deportado para a África e, durante a viagem, escapa do naufrágio, remando até a praia. Depois de conseguir a admiração dos índios, apresentando-os à pólvora e às armas que “cospem” fogo, Diogo (batizado de Caramuru) não apenas se casa com a bela índia Paraguaçu (Camila Pitanga), filha de um cacique tupinambá, como também se torna uma de suas lideranças, uma espécie de “rei” num Brasil “selvagem”, mas cheio de cobiçadas riquezas naturais. Na primeira seqüência tanto do filme quanto da minissérie, um narrador em off (Marco Nanini) apresenta os dois personagens, realçando, por um lado o caráter lendário da estória, e, por outro, o quanto o encontro dos dois foi predestinado. A descrição da seqüência já evidencia, por si só, que estamos diante de um objeto sincrético (cf. Tabela 1). Há, pelo menos, duas substâncias da expressão articuladas numa forma fílmica única: uma substância sonora, manifesta por um enunciado verbal na voz do narrador, ao qual se soma uma música de fundo (áudio em BG), e uma substância visual, manifesta por imagens gravadas ou criadas por meio computador e efeitos de pós-produção. Se postulamos que as categorias produzidas por meio dessa sincretização instauram, aqui, um sistema semi-simbólico, precisamos agora, na segmentação de cada um dos planos, identificá-las e homologá-las entre si. Comecemos, então, pelo conteúdo. A seqüência de abertura de Caramuru antecipa o próprio enredo do filme (funciona como uma espécie de “resumo”) e, ao fazê-lo, constrói, pares categoriais que subsumem as oposições semânticas fundamentais da narrativa: identidade/união/encontro vs. alteridade/separação/desencontro8. Toda a narrativa se constrói, então, como um percurso de transformação dos actantes de seu estado inicial de alteridade e de separação para um estado final de identidade e união (social, cultural, geográfica, etc.). Todas essas categorias se desprendem facilmente do texto verbal que “ancora” a seqüência de abertura e que, por seu estilo, já confere um caráter de fabulação ao que 7 O roteiro do filme e da minissérie foi inspirado no poema épico “Caramuru”, do Frei José de Santa Rita Durão, e na sua versão romanceada por Viriato Corrêa (cf. Arraes e Furtado, 2000). 8 A definição dessas categorias semânticas é o resultado das discussões realizadas com Ana Sílvia Médola no atelier Sincretismo de Linguagens, um dos grupos de trabalho do Centro de Pesquisas Sociossemióticas (PUCSP – USP – CNRS). Agradeço, aqui, sua colaboração neste trabalho. 8 veremos a seguir. Nele, o narrador aponta a distância, de todas as ordens, que havia entre os “mundos” de Diogo (Caramuru) e Paraguaçu. O realce que o narrador dá a essa distância é, no entanto, apenas um meio para evidenciar depois como, a despeito dela, os dois acabarão juntos. Os enunciados verbal e visual, articulados, nos sugerem, em vários momentos, como o romance entre os dois já estava, de algum modo, escrito nas estrelas (uma figurativização, aqui, da própria idéia de destino). Eles viviam a sete mil quilômetros de distância, separados por um oceano e por culturas radicalmente diferentes, mas estavam “predestinados” um ao outro. O céu e os sonhos que Diogo tinha, em Portugal, eram os mesmos de Paraguaçu em Pindorama (O Brasil): bastaria, então, cada um seguir a sua estrela (destino) para, no final, suas vidas se encontrarem. Como, então, esse encontro (união), que só ocorrerá, de fato, no decorrer da estória, é antecipado nessa seqüência inicial não apenas através do enunciado verbal, mas, sobretudo, pela sua articulação com o visual? Na primeira parte da seqüência (cf. Tabela 1, I), parece possível identificar, no plano de expressão, uma oposição homologável com a que identificamos no conteúdo: afastamento vs. aproximação (manifestas também pela articulação de oposições como abertura/fechamento ou desfocalização/focalização), sendo o primeiro termo correspondente à categoria /alteridade/ e o segundo, à categoria /identidade/, assim como aos seus respectivos desdobramentos (cf. Figura 1). A construção dessas categorias do plano de expressão depende, porém, da articulação de vários elementos constituintes da substância visual. Para configuração das categorias /aproximação/ e /afastamento/, recorre-se na primeira parte da seqüência a: (1) movimentos de câmera e enquadramentos: câmera “fechando”, do plano geral ao detalhe, ou câmera “abrindo” do detalhe ao plano geral; (2) efeitos de desfererencialização da imagem por meio de movimentos centrífugos (como se a imagem estivesse sendo “sugada”) ou centrípeto (como se imagem estivesse sendo “cuspida”, “expelida”), efeitos de zoom-in e zoom-out nas imagens9; (3) fusão: superposição, “mistura” de imagens, produzindo, ora um efeito de focalização (imagem desfocada, “borrada”, vai adquirindo nitidez) ou desfocalização (imagem com nitidez vai sendo “borrada”, “desmanchada”, desfocada). 9 A designação zoom refere-se à abertura ou ao fechamento do quadro obtidos por um movimento de lentes no registro analógico ou através do processamento posterior de um enquadramento fixo na codificação digital ( como ocorre em Caramuru). Quando o zoom se abre do particular para o geral chama-se zoom-out e quando se fecha do geral ao particular, zoom-in. 9 Esses movimentos alternados de fechamento e abertura de planos, de focalização e desfocalização de imagens estão em perfeita sincronia tanto com o andamento (ritmo/entonação) imprimido pelo narrador ao texto oral, quanto com a música instrumental no fundo, cujos movimentos se expandem e se contraem também de acordo com os efeitos digitais de zoom. Dessa convergência consonante de elementos oriundos de diferentes linguagens, surgem, na expressão, as categorias aproximação/afastamento. A alternância de tais movimentos constrói losangos imaginários em cujos vértices se encontram justamente as figuras-chaves desse encontro (cf. Figura 2). Não por acaso, as figuras que, por meio de efeitos de fusão, se “misturam” (aproximação extrema) são justamente os olhos de Diogo e Paraguaçu e as terras de Portugal e Pindorama, construindo assim, na expressão, uma correspondência clara com um valor semântico fundamental que orientou toda a construção do nível narrativo: a identidade – identidade entre uma índia tupinambá e um degradado português e, por meio do seu encontro, da união de suas vidas, o surgimento da própria identidade cultural entre colonizador e colonizado. Também não é por acaso que os momentos nos quais Diogo e Paraguaçu são apresentados cada qual no seu próprio mundo correspondem exatamente a movimentos de “abertura” (afastamento) nas imagens, culminando com os planos gerais de Diogo, numa paisagem tipicamente européia, e Paraguaçu numa praia deserta e selvagem de um continente que acabava de ser descoberto (as paisagens em plano geral evidenciam, aqui, as diferenças e a distância entre os dois) (cf. Tabela 1, I.2, I.3, I.4). Pode-se considerar que, após esse momento inicial, no qual o texto verbal explora esse paralelismo entre os mundos de Diogo e de Paraguaçu, a seqüência de abertura entra numa segunda fase de desenvolvimento (cf. Tabela 1, II). Nela, o narrador passa, então, a nos apresentar quem é esse jovem português e quem é essa jovem índia, protagonistas de um romance, à primeira vista, muito pouco provável diante das suas trajetórias de vida. No enunciado verbal, o narrador diz seus nomes, diz o que eles significam e, com isso, evidencia suas diferenças. Diogo quer dizer, em latim, “pessoa bem educada”, bem comportada, contida; Paraguaçu, em tupi, significa “mar grande”, indomável, incontrolável, o contrário de tudo que se espera das pessoas ditas civilizadas. Por tais características, eles parecem, a princípio, muito diferentes, mas, no final, vão se tornar iguais: ele será “rei do Brasil” e ela, sua rainha. No convívio com 10 Diogo, Paraguaçu nos revelará que não é apenas selvagem. Ao lado de Paraguaçu, Diogo revelará que é muito mais que um reles degredado. Novamente, verificaremos a mesma oposição semântica de base no conteúdo (identidade/alteridade). No plano da expressão, no entanto, definem-se, agora, novas categorias, a partir da exploração de outros recursos técnico-estéticos do audiovisual. A descrição da seqüência (cf. Tabela 1, II.1) já evidencia uma outra segmentação possível do plano da expressão, a partir da identificação das categorias continuidade vs. descontinuidade, às quais se pode associar ainda a oposição unidirecionalidade vs. multidirecionalidade. Como são, então, construídas essas categorias do plano da expressão? Inicialmente, por meio de fusões e de cortes que, ao promoverem a transição de uma cena à outra, assim como de um plano mais aberto a um outro mais fechado, produzem, respectivamente, efeitos de continuidade e descontinuidade. Tome-se, aqui, como exemplo desse procedimento, a passagem do espaço-tempo em que se encontra Diogo àquele no qual se localiza Paraguaçu, operada por meio de uma fusão entre a estrela desenhada no papel pelo português e a estrela-do-mar que a índia apanha na areia da praia (cf. Tabela 1, II.1). Assim como a fusão nas imagens fechadas (detalhe das estrelas) instaura, neste ponto, a correspondência aproximação/identidade, os cortes de um plano mais aberto ao outro marcam, ao contrário, o par afastamento/alteridade (identidade e alteridade, apresentados, aqui, como um revestimento semântico mais explícito dos valores natureza/cultura manifestos nas duas estrelas, uma da imaginação ou de papel; a outra, real ou do mar). É importante observar, ainda nesse trecho, o modo como o seu encontro é construído, no plano da expressão, pelo topológico (disposição dos elementos no quadro). Quando são enquadrados em plano americano, tanto Diogo quanto Paraguaçu, encontram-se dispostos no lado direito da tela: neste enquadramento, o jovem português reclina ligeiramente a cabeça para cima, olha para o céu e, ao fazê-lo, instaura pela direção do seu olhar, uma linha diagonal ascendente da direita para esquerda. Do mesmo modo, Paraguaçu, já em plano americano, depois de apanhar a estrela-do-mar da areia, joga-a para o alto, em direção ao mar, instaurando com tal movimento uma outra linha diagonal ascendente da direita para esquerda, que constrói, pela convergência de linhas produzida pela articulação sucessiva dos quadros, um ponto de encontro 11 imaginário no vértice de um triângulo imaginário. Por ele, aproxima-se mais uma vez, simbolicamente, um personagem ao outro, um “mundo” ao outro. No momento seguinte (cf. Tabela 1, II.2), a mesma oposição semântica, identidade/alteridade, é homologável, no plano da expressão, com o par categorial movimento/estaticidade. Como isso se dá? Basicamente, por meio de um travelling imaginário – construído graças ao recorte e sobreposição de imagens propiciados pelos equipamentos de edição digital –, que nos conduz do lugar em que está Paraguaçu (sentada sobre um monte em meio a uma mata) ao outro em que está Diogo (na frente de um castelo europeu). Para produzir esse efeito, uma lua se desloca continuamente, de um cenário ao outro, sobre um fundo escuro que engloba as imagens estáticas e discretizadas de Paraguaçu e Diogo, dispondo as duas figuras humanas (englobadas) numa superfície comum (englobante). Graças à continuidade do movimento e à homogeneidade do fundo, as figuras de Diogo e Paraguaçu parecem, agora, fazer parte de um mesmo quadro, de uma mesma cena, de um mesmo espaço e tempo. Mais uma vez, os procedimentos de exploração dos recursos plástico-visuais do suporte “expressam” aqui a transformação dessa alteridade inicial na identidade do final – uma transformação que, no texto verbal, é construída a partir de contraposições entre o que cada personagem é (o que os une) e o que parece ser (o que os separa)10, Para a produção desse sentido de identidade, no conteúdo, colabora também um outro recurso expressivo: a continuidade e unidirecionalidade do movimento da lua. No momento seguinte (cf. Tabela 1, II.3), a bidirecionalidade instaurada pelos movimentos simultâneos de Diogo e Paraguaçu instaura o sentido contrário: dispostas, agora, lado a lado, como se fossem ilustrações das páginas abertas e opostas de um livro, as imagens de Diogo e Paraguaçu movimentam-se como se tivessem saindo “vivas” do livro, cada uma para um lado: a índia levanta-se e dirige-se para direita; o português, para esquerda, instaurando assim, na expressão, uma descontinuidade homologável, no conteúdo, a já mencionada alteridade entre as personagens. É nesse momento que o prólogo acaba e começa a narrativa propriamente dita, cujo início se dá justamente a partir de um estado de disjunção actancial. Todo o sentido de predestinação desse insólito encontro entre 10 Se, a partir do próprio nome, Diogo apresenta-se como uma alma dócil (bem educado), Paraguaçu, ao contrário, revela seu temperamento indomável (mar grande). Entre os seus, Paraguaçu ocupa uma posição social superior (é uma princesa, a filha do cacique) mas, para os outros, parece não ter o mesmo status (é apeans uma selvagem). Entre os seus, ao contrário, Diogo ocupa uma posição social inferior (é um degredado), mas, perante os outros, parecerá ser superior a todos (um rei). 12 um jovem português e uma índia tupinambá, em pleno século XVI, pode ser considerado, então, o resultado de um procedimento semi-simbólico dependente de categorias produzidas nesse sincretismo de linguagens que se observa logo na seqüência de abertura do filme. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRAES, Guel e FURTADO, Jorge Furtado (2000). A invenção do Brasil – O livro da minissérie da TV Globo. Rio de Janeiro: Objetiva. BARROS, Diana Luz Pessoa de (1994). Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática. CHION, Michel (1993). La audiovisión, trad. Antonio L. Ruiz. Paidós: Barcelona. EISENSTEIN, Sergei (1990). O sentido do filme, trad. Teresa Ottoni. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro.. _____ (2002). A forma do filme, trad. Teresa Ottoni, Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro. FLOCH, Jean-Marie Floch (2001). Alguns conceitos fundamentais em semiótica geral, Documentos de estudo do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, Nº1. São Paulo: Edições do CPS. GREIMAS, A. J. e COURTÉS, J. (1991). Semiótica. Diccionario razonado de la teoría del lenguaje, Tomo II, trad. Enrique B. Aguirre. Madrid: Gredos Editorial. HJELMSLV, Louis Trolle (1978). Prolegômenos a uma teoria da linguagem, in Os pensadores (textos selecionados), 2ª. edição. Abril Cultural: São Paulo. 13 Vídeo Parte (I). Imagens gravadas e computadorizadas. Áudio Parte (I). Voz do narrador. Música instrumental em BG. Céu estrelado. Um “rabo” brilhante de estrela Primeiro de janeiro de 1500. Um jovem português olha a movimenta-se da esquerda para a direita. Fusão do brilho primeira noite do século XVI. da estrela com o brilho do olho de Diogo. Imagem vai abrindo do detalhe até um plano geral, no qual se vê Diogo num castelo, observando o céu. (I.1) Movimento panorâmico, da direita para esquerda, saindo A estrela polar, guia dos navegantes, faz um ângulo de 25 do castelo até imagem de um mar azulado, no fundo. (I.2) graus com o horizonte. Fusão da imagem do mar, azulada e com efeito de desfoque, com uma outra imagem azulada (uma mancha) desfiocada. Desfaz-se, progressivamente, o desfoque e produz-se um efeito de aproximação, ao fim do qual se vê, com nitidez, a imagem do globo terrestre no universo. A terra fica girando em torno de si própria, até que se produz um novo desfoque. Dessa vez, o efeito é de aproximação do globo terrestre em direção a um ponto que, pretensamente, seria Pindorama. Antes de chegar a este ponto, a imagem fica completamente desfocada e se funde com imagem azulada e, com reflexo, das ondas do mar. Paraguaçu está sentada, em plano geral, à beira mar, observando o céu. (I.3) A constelação de Órion está quase afundando no Oceano Atlântico. Ele ainda não sabe, mas os astros lhe reservaram um destino incomum. Nesse mesmo momento, a sete mil quilômetros dali, do outro lado do Atlântico, num lugar chamado Pindorama, brilha a constelação do Cruzeiro do Sul, que lá se chama PiauíPódole. Imagem de Paraguaçu à beira mar vai sendo fechada até detalhe do seu olho, no qual se vê um reflexo de luz esverdeado. Por meio de efeitos de desfoque e fusão, produz-se a impressão de expansão (ou abertura) do brilho esverdeado no olho de Paraguaçu com imagem de uma constelação também esverdeada no céu. Imagem aberta do céu. (I.4) Uma jovem índia vê este outro céu. Ela sabe que as estrelas são as almas dos heróis indígenas que morreram. Parte (II). Parte (II) O que ela não sabe é que também vai se tornar uma heroína e virar estrela lá no céu. Diogo, em plano americano, no castelo, olhando o céu e Ele se chama Diogo, nome que vem do latim e quer dizer desenhando. Corte. Detalhe da mão de Diogo desenhando pessoa “bem educada”. Ela se chama Paraguaçu, que, em uma estrela. Fusão da estrela desenhada no papel por tupi, significa “mar grande”. Diogo com estrela-do-mar. Corte. Paraguaçu, em plano americano, sentada à beira-mar, apanha a estrela-do-mar e a joga, de volta, ao mar. Corte. Detalhe da estrela caindo na água azulada do mar. (II.1) Paraguaçu, em plano geral, sentada no topo de um monte Ela é uma princesa, mas ele vai tomá-la por uma de terra, cercado de mata, com fundo azul bem escuro e selvagem. Ele será degredado e se tornará Rei do Brasil. lua aureolada se movimentando da esquerda para direita. O movimento prossecutivo da lua produz um efeito de continuidade entre os cenários nos quais estão Paraguaçu e Diogo. Diogo, em plano americano, em frente ao castelo, sobreposto ao mesmo fundo azul bem escuro. (II.2) Por meio de fusão, as mesmas imagens de Paraguaçu, no A história dos dois juntos vai virar lenda. topo do monte, e de Diogo, no castelo, são inseridas nas páginas de um livro. Dentro das imagens inseridas no livro, como ilustração, os dois se movimentam. Paraguaçu levanta-se e sai para esquerda e Diogo, para a direita. Corte. Fim da seqüência de imagens coincidindo com o final da locução. (II.3) Tabela 1 14 Focalização Abertura Desencontro Separação Afastamento Alteridade :: Aproximação Identidade Fechamento Desfocalização União Encontro Figura 1 CÉU (estrela se movendo) OLHO (Diogo) FUSÃO Diogo em P.G FUSÃO TERRA (Portugal) Universo globo terrestre TERRA (Pindorama) FUSÃO Paraguaçu em P.G OLHO (Paraguaçu) FUSÃO CÉU (constelação “verde”) FINAL DA PARTE I Figura 2 15