OS MARCADORES DE EVIDENCIALIDADE/MODALIZAÇÃO DERIVADOS DA 1ª PESSOA PLURAL DO VERBO DIZER1 Heloísa Cristina Renovato (UFS) [email protected] 1 INTRODUÇÃO Marcadores discursivos são definidos por Freitag como “elementos linguísticos que exercem funções importantes na interação, amarrando o texto no plano cognitivo e também Interpessoal” (FREITAG, 2007, p.22). Dentre estes, podemos destacar os marcadores de evidencialidade e modalização. A modalização refere-se ao modo pelo qual o falante relaciona-se com o enunciado, utilizando-se do distanciamento e da polidez, ele profere fatos que induzem o ouvinte a chegar a certas interpretações, sem disso o enunciador se responsabilizar. Marcadores evidenciais são definidos por Bybee, Perkings e Pagliuca (1994 apud FREITAG, 2003, p.114) como “marcadores que indicam algo sobre a fonte de informação da proposição”. Os marcadores que analisamos neste trabalho são os originados das formas verbais de 1ª pessoa do plural, como vamos se dizê/vamos dizer/digamos, cuja função é dar pistas ao ouvinte sobre o grau de distanciamento com o conteúdo proposicional. Nosso objetivo, neste trabalho, é mostrar o efeito das sequências discursivas controladas (narrativa, descritiva, injuntiva e argumentativa) para a emergência das formas e gramaticalização dos valores de evidencialidade/modalização que os marcadores passam a desempenhar no discurso. 2 O FENÔMENO EM ESTUDO A análise apresentada segue a ótica do funcionalismo, que define a língua como um instrumento de interação social. Segundo Neves, a língua “não existe, em si e por si, como uma estrutura arbitrária de alguma espécie, mas existe em virtude de seu uso para o propósito de interação entre seres humanos” (NEVES, 1997, p. 82). As construções de evidencialidade/modalização vamos dizer/vamos se dizer/digamos são formadas por sujeito elíptico + verbo com conjugação na primeira pessoa do plural + complemento oracional. No seu significado original tais construções indicam ação verbal, ou seja, vamos dizer e digamos significam o ato de falar que algumas pessoas podem realizar. (1) De cada turma... de vamos supor... de cem alunos que entram em um curso no máximo no máximo vinte por cento conclui... o restante fica pelo caminho... (se ita mb lq 01) Nesse exemplo, podemos observar que a forma utilizada pelo falante é vamos supor. É por meio desta que o informante supõe uma quantidade, para explicar que no máximo vinte por cento dos alunos concluem o curso. 1 O presente trabalho é resultado da execução de plano de trabalho do projeto Procedimentos discursivos na fala e na escrita de Itabaiana/SE: estratégias de evidencialidade/modalização (Programa Institucional de Iniciação Científica/Universidade Federal de Sergipe/2009-2010), coordenado pela Profa. Dra. Raquel Meister Ko. Freitag. Além desse emprego, também encontramos expressões vamos dizer/ vamos se dizê/ digamos em dois contextos: na primeira, o falante por meio de tais formas, promove uma fuga, ou seja, não se responsabiliza pelas interpretações que o ouvinte possa fazer; na segunda o falante faz tal uso para preencher o intervalo, em que está planejando a continuidade da sua fala ou para conseguir elaborar uma melhor explicação sobre o assunto em conversação, tais miragens foram encontradas em sequências narrativas e descritivas, respectivamente. Em suma estas construções marcam a modalização/ evidencialidade, ou seja, o modo pelo qual o falante se relaciona com o seu enunciado; este pode se dá como uma forma de fuga, para que o falante não se comprometa com a informação transmitida e com o valor de marcador discursivo, para auxiliar no momento do rearranjo da fala. 2. 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE EVIDENCIALIDADE/MODALIZAÇÃO Alguns estudos mostram a possibilidade do surgimento de marcas evidenciais no português brasileiro por meio da gramaticalização, um processo de mudança linguística no qual itens e construções num determinado contexto linguístico desempenham funções gramaticais, e depois de gramaticalizados, passam a desenvolver outras funções cada vez mais gramaticais (cf. BYBEE et alli, 1994; HOPPER; TRAUGOTT, 1993; HEINE et alli, 1991). Evidenciais são definidos por Bybee, Perkings e Pagliuca (1994, apud FREITAG, 2003) “como marcadores que indicam algo sobre a fonte de informação da proposição”. As pesquisas sobre evidencialidade são recentes, por isso, ainda não estão claras as fronteiras deste domínio. Segundo Freitag (2003), Palmer (1986) considera a evidencialidade unida aos julgamentos, no campo da modalidade epistêmica; já Galvão (2002) afirma que alguns autores diferenciam modalidade e evidencialidade, já outros afirmam que a evidencialidade é uma categoria da modalidade, que pode ou não estar se gramaticalizando. Segundo Neves (2002, p.171), os modelos lógicos estabelecem, especialmente, noções como: a) A distinção entre a proposição modal de dictum e a de re, que está na base da distinção entre os dois tipos de estruturas modais nos enunciados (Nef, 1976); b) O estabelecimento de dois eixos conceituais básicos, o do conhecimento e o da conduta. Quanto ao de dictum e ao de re, é relevante mencionar que o primeiro é “o componente proposicional, construído de sujeito + predicado”, enquanto o segundo é o componente modal ou modus, que é uma avaliação sobre o dictum”. (CASTILHO, 2008, p.424), em que de dictum trata-se da forma como se diz o enunciado e de re ou modus é o conteúdo. O de dictum está presente no modo pelo qual o locutor transmite o comentário. Já o de re trata-se do conteúdo do enunciado, que pode ser abordado com pressuposição e com estratégias de descomprometimento. A partir disso, diferenciamos de dictum do de re na nossa investigação, em que o primeiro trata-se apenas das formas vamos dizer/ vamos se dizê/ digamos empregadas na frase, já o segundo trata-se da avaliação dessas expressões, ou seja, as intenções (de amenizar a gravidade da informação, para não comprometer-se) do falante por trás da sua fala. Quanto aos marcadores discursivos, segundo Freitag (2010, p.2): Marcadores discursivos (ou ‘marcadores conversacionais’, ‘operadores argumentativos’, ‘articuladores textuais’, não há consenso na literatura acerca da denominação) é um rótulo amplo que recobre construções que atuam tanto no plano textual, estabelecendo elos coesivos entre partes do texto, como no plano interpessoal, mantendo a interação falante/ouvinte e auxiliando no planejamento da fala (GORSKI et al., 2004; MARCUSCHI, 1989). Segundo a autora, os marcadores discursivos estão presentes, tanto no plano textual, quanto no interpessoal. Porém, como este trabalho visa analisar procedimentos de fala, estudaremos apenas as ocorrências dos marcadores no plano interpessoal, em que o falante utiliza-se das formas vamos dizer/ digamos com função de marcadores para auxiliar no rearranjo da fala. Em seguida apresentamos algumas funções que os verbos dicendi assumem na fala. 2.1.1 As funções que o verbo discendi (“dizer”) assume na fala As construções estudadas derivam de verbos discendi, pois tais formas servem para interpolar a fala do indivíduo. Neves define essa categoria como “verbos de ação cujo complemento direto é o conteúdo do que se diz” (2000, p.48). Além disso, na forma vamos dizer, por exemplo, destaca-se o verbo dizer, cuja função é introduzir a fala do indivíduo. Ou seja, esse verbo serve para acrescentar algo na conversação ou no texto escrito. Os verbos discendi possuem várias funções, demonstradas por Rodrigues (2005 apud VIEGAS, 2009, p. 86), a seguir: a) Transitiva: essa função permeia as demais. Embora alguns verbos discendi sejam considerados, segundo a tradição gramatical, intransitivos, o fato de esses verbos estarem, discursivamente, relacionados ao dito, ou seja, de haver um complemento do discendi, explicitamente, demarcado no texto, já pressupõe um caráter transitivo. Por outro lado, o “dizer” está implícito em todos os verbos discendi. Assim, negar que esses verbos admitem transitividade seria de tal forma incoerente que não nos permitiria chama-los de “discendi”. b) Metalinguística: essa função torna-se bastante evidente com os verbos discendi, uma vez que o narrador, ao reportar as falas, centraliza a sua atenção no próprio texto, tentando caracterizá-lo ou descrevê-lo. c) Argumentativa: essa função está relacionada à interpretação (bastante subjetiva) que o narrador faz sobre o dito e que deseja imprimir, no texto final, como verdadeiro. O escritor, ao selecionar os verbos discendi e, antes ainda, ao elaborar (ou reproduzir) as falas das personagens, poderá argumentar contra ou a favor. d) Caracterizadora: essa função é mais facilmente observável quando tomamos o conjunto de verbos discendi utilizados para uma mesma personagem, considerando-a como “ser individual” ou “coletivo”. e) Coesiva: essa função apresenta-se como a principal responsável pela estruturação do texto reportado. Alguns verbos discendi dão progressão ao discurso, ao passo que outros o encerram. f) Expressiva: essa função não diz respeito apenas ao plano conotativo da linguagem, mas a capacidade de o escritor selecionar e combinar elementos fonéticos, sintáticos, semânticos, morfológicos, tecendo associações mentais que caracterizem a criatividade e o “fazer estético” no uso da linguagem. Diante dessas funções, percebemos que um verbo pode ter vários empregos. Entre tais enfoques a abordagem deste trabalho está ligada a “argumentativa” e a “expressiva”. Pois, segundo o autor a primeira trata-se da interpretação que o falante faz e que deseja passar, ou seja, na sua fala ele induz o ouvinte a compreender certas interpretações que não foram ditas explicitamente. A segunda relaciona-se a função de marcador discursivo, porque é através deste que o indivíduo organiza o seu enunciado mentalmente, para assim prosseguir na conversação, como também, os marcadores podem estar presentes no texto. Contudo, não nos deteremos neste último, pois foge à nossa investigação que é baseada na fala. A partir de tais afirmações, o nosso trabalho analisará as funções das construções oracionais, de primeira pessoa do plural, em que o verbo dicendi (dizer) é utilizado para introduzir a fala dos indivíduos, as quais podem introduzir certas interpretações implícitas (promovendo o descomprometimento) ou apenas marcar a continuidade da conversação, tendo o valor de marcador discursivo. A seguir, abordamos a preservação de faces que está associada ao descomprometimento do falante quanto ao seu enunciado. Como também, relacionamos essa modalização ao emprego das formas estudadas. 2.1.2 A preservação das faces: face positiva e negativa Na conversação, ocorrem dois tipos de pressões: as comunicativas, para garantir o entendimento da mensagem, e as rituais, para garantir a recíproca preservação das faces dos interlocutores. Conforme explicam Saito e Nascimento (2005, p.1-2) As pressões rituais são as que mais influenciam a estrutura do discurso, pois o processo de figuração que visa neutralizar as ameaças potenciais à face dos interlocutores influencia tanto a realização do enunciado quanto a estruturação da troca comunicativa impondo aos interagentes a adoção de sutilezas para estratégias de preservação das faces (facework), estratégias de polidez e estratégias de negociação. As estratégias de polidez na conversação consistem em amenizar a ameaça à face, para garantir uma boa relação social, através do bem estar dos interlocutores. Brown e Levinson (apud SAITO; NASCIMENTO, 2005, p.2) denominam essas estratégias de polidez positiva, polidez negativa e polidez indireta. A polidez positiva trata-se da reparação de agravo à face positiva do interlocutor. Em que se satisfaz a pretensão do interlocutor, demonstrando que compartilham da mesma opinião. Saito e Nascimento (2005) listam algumas estratégias de polidez positiva: manifeste atenção ao interlocutor; exagere na aprovação e simpatia pelo interlocutor; mostre que você entende o que ele diz; evite discordância; dê ou peça razões, justifique-se. A polidez negativa acontece quando evitamos impor algo ao outro, usando expressões que facilitam a evasão, em que o locutor não se compromete com o interlocutor. Saito e Nascimento (2005) abordam as seguintes estratégias: seja convencionalmente indireto; seja evasivo, não se comprometa; seja pessimista; mostre deferência; peça desculpas; impessoalize locutor e interlocutor para indicar que o locutor não quer impingir algo ao interlocutor; ofereça compensações. A polidez indireta (“of record”) apresenta uma comunicação indireta, em que o locutor provoca uma fuga para si mesmo, deixando algumas interpretações subtendidas, das quais ele poderá se defender. Com isso, o locutor tem permissão de pronunciar atos ameaçadores da face, sem responsabilizar-se. Dessa forma, o interlocutor torna-se responsável pelas suas próprias interpretações. Saito e Nascimento (2005) destacam os seguintes procedimentos: forneça pistas e sugestões indiretas; pressuponha; minimize a expressão, não diga tudo; exagere sua expressão (hipérbole); recorra à tautologia; recorra a contradições; seja irônico; use metáforas; use perguntas retóricas; seja ambíguo; seja vago; generalize. Dentre a polidez positiva, a polidez negativa e a polidez indireta, nos deteremos nesta última, a qual está interligada a nossa proposta de investigação, pois é por meio destas que o enunciador promove uma fuga, e não se compromete com as interpretações que o ouvinte venha a fazer, acontecendo, assim, a preservação de face. Dessa forma, ele evita as críticas e as confusões, que ocorreriam caso a pessoa de quem se fala, ou algum amigo ou parente soubesse. As sequências narrativas abaixo tratam destes usos, na fala de itabaianenses: (2) o:: o outro cidadão... ele só pegou um cortizinho leve no rosto... na face... de... de... três pontos quatro ponto... mais tava tudo bem... já o meu como abriu o crânio... aqui a cabeça... eu fiquei em coma... deu traumatismo craniano... e o médico daqui não::... vamo se dizê que não foi que ele não tava preparado ou... mais eu não sei se a gravidade era tão grande que ele não quis me é:: mexer muito com essa coisa e mandou... encaminhou pra Aracaju... (3) me atrapalhou no trabalho muito... e aí ficou meio... meio... meio assim... vamo se dizê o dono ficou meio receoso... eu tinha apenas um ano de trabalho... (4) mas:: em questões até:: vamo se dizê... psicológicas... eu acho que hoje... como tem... isso já tem muito tempo acontecido... to melhor... tal... certas vezes eu ainda dá um:: dá uns impulsos meio esquisitos né? na cabeça uma dô de cabeça forte... você até dá um branco... Esses exemplos encaixam-se na polidez indireta (“of record”), em que o locutor provoca uma fuga para si mesmo, deixando o interlocutor responsável pelas suas próprias interpretações, pois o locutor subtende algumas interpretações, das quais ele poderá se defender. Com isso ele tem permissão de pronunciar atos ameaçadores de face, sem responsabilizar-se. Entre os procedimentos apresentados anteriormente por Saito e Nascimento (2005), identificam-se com os exemplos dados: forneça pistas e sugestões indiretas; pressuponha; minimize a expressão, não diga tudo. Adiante, vemos o uso das expressões vamos dizer/ digamos com função de marcador discursivo. 2.2.2 Marcador discursivo Os marcadores discursivos não estão prescritos nas gramáticas, por isso, seu uso é estigmatizado, “sendo muitas vezes considerados um ‘vício de linguagem’ ou um ‘cacoete linguístico’” (FREITAG, 2007, p. 23). Contudo, como veremos adiante, os marcadores discursivos possuem papéis essenciais na elaboração da fala. Segundo Freitag, “por não existirem nas gramáticas normativas como uma categoria, os marcadores discursivos são estruturas às margens da língua, sendo alvo de estigma e de restrição de uso. Porém, não deixam de ser usados por causa deste estigma, dada a sua motivação funcional”. (2007, p.33). Ou seja, no momento da conversação o indivíduo tem necessidade de preencher a pausa, provocada pelo planejamento da fala, com algum termo. Isso para que o ouvinte perceba que ele ainda não terminou a sua fala, mas está a elaborando. 3 METODOLOGIA A fim de analisar o fenômeno, foram utilizados dados coletados de duas amostras, Entrevistas Sociolinguísticas e Fala & Escrita, ambas vinculadas ao Grupo de Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade. A coleta segue a metodologia da Sociolinguística Variacionista (LABOV, 2008; WEINREICH et al., 2006), nos moldes do que é feito, por exemplo, pelo VALPB (Variação Linguística no Estado da Paraíba), a fim de possibilitar a comparação de resultados entre as variedades linguísticas. 3.1 FORMAÇÃO DO BANCO DE DADOS O banco de dados constituído conta com vinte e oito entrevistas sociolinguísticas, com pessoas selecionadas em função de seu perfil social, de acordo com a metodologia sociolinguística (morador de cidade, nascido na cidade, com pais nascidos na cidade), estratificados em seis células sociais. Também faz parte do Banco de dados do GELINS à amostra de Fala & Escrita, constituída nos moldes do banco de dados do projeto Discurso & Gramática (FURTADO DA CUNHA, 1998). São dezesseis informantes estratificados socialmente que produziram cinco tipos de texto falados – narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e de opinião, os quais foram registrados por meio de gravadores, – e depois na modalidade escrita, o que totaliza oitenta excertos de análise. A estes, acrescentamos as entrevistas realizadas com doze universitários, da UFS (Universidade Federal de Sergipe). Nestes registros de fala, que também foram obtidos através de gravadores, os entrevistados desenvolveram os seus textos orais, acerca das dificuldades enfrentadas durante o curso, como também, sobre os projetos e eventos dos quais participaram e quanto as suas perspectivas profissionais. É importante mencionar, que nestas últimas entrevistas não foram realizados textos escritos. 3.2 COLETA DE DADOS Primeiramente, foram escolhidos dez indivíduos para serem entrevistados. Cada entrevistado produziu cinco tipos de textos orais e escritos, sendo estes últimos realizados a partir dos primeiros, totalizando assim, cem registros. Os tipos de textos são: narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e relato de opinião. Os entrevistados foram escolhidos a partir do fator condicionante extralinguístico, em que foram selecionados dois informantes de: classe de alfabetização-infantil, 5º e 9º ano da educação básica, 1º e 3º ano do ensino médio. Para aumentar o corpus de análise adicionamos entrevistas, realizadas com alunos do curso superior, que já estavam perto de se formar ou tinha pouco tempo de formado. Antes da entrevista, o informante já sabia quais eram os cinco itens que iria explorar. Também fora informado quanto à finalidade das coletas, que por sua vez tem fins acadêmicos e sociais. O anonimato é ressaltado e, por fim, o horário e o local da entrevista são marcados. Dessa forma, espera-se obter a espontaneidade do indivíduo. Além disso, alguns cuidados o entrevistador deve adotar: não tornar a entrevista um interrogatório; evitar as interrupções; preencher a ficha de identificação de informante e tipo de texto coletado e o diário de campo para cada informante; fazer um relatório de coleta para cada informante. Após a entrevista, faz-se a transcrição da fala. Porém, invalidam o material, nos textos escritos, a suspeita de que o entrevistado não teve “boa vontade” para produzir o material e, nos textos orais, o desvio por parte do informante, do tipo de texto proposto e a ocorrência de interrupções frequentes do informante. Os textos invalidados são substituídos. Após detectar a validação passa-se a transcrição, que por sua vez foi baseada em algumas normas utilizadas pelo Projeto NURC/SP. Quanto à seleção das ocorrências, depois das entrevistas serem lidas, as sequências discursivas em que apareciam as construções verbais, de primeira pessoa do plural, com sujeito elíptico (vamos dizer/ vamos se dizê/ digamos/ vamos supor) foram recortadas. Em seguida, analisaram-se em quais sequências discursivas tais formas tinham mais ocorrência e a relação existente entre elas. A partir disso, descobrimos que os falantes além de empregar as expressões no seu sentido original, modalizaram-nas como estratégias de descomprometimento em relação ao fato narrado e apresentaram o papel de marcador discursivo em sequências descritivas. Nas amostras foram encontradas apenas quinze ocorrências daquelas expressões, por isso não foi possível realizar a análise quantitativa, mas qualitativa. O próximo capítulo demonstra tal análise, nos empregos: estratégias de polidez e marcadores discursivos. 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO Quanto ao tipo de sequência discursiva, destacam-se a narrativa e a descritiva, pois estas apresentam ocorrências dos marcadores de evidencalidade/modalização vamos se dizê/vamos dizer/digamos. Na sequência narrativa o falante faz uso de tais expressões para promover o descomprometimento com o que está sendo dito e na sequência descritiva o indivíduo pronuncia as construções verbais, no momento da conversação, para preencher a pausa, enquanto organiza suas ideias mentalmente. Vejamos a seguir estes usos. 4.1 ESTRATÉGIAS DE POLIDEZ O termo estratégia é definido pelo dicionário como: “arte de aplicar os meios disponíveis ou explorar condições favoráveis com vista a objetivos específicos”. A partir disso, Saito e Nascimento (2005, p.2) dizem que “essa definição preserva a ideia de planejamento e execução de movimentos, de ações linguísticas, ou seja, a melhor maneira de alcançar um objetivo dentre as possibilidades de escolhas entre as várias táticas”. A finalidade desse trabalho é observarmos as estratégias da formação do enunciado, em que o locutor garante seus objetivos comunicativos e interacionais. Devido às críticas e opiniões contrárias, o discurso do locutor é realizado com apagamento das marcas da enunciação, ou seja, ele recorre a certos recursos de impessoalização (“é possível que, parece que, é provável que” (SAITO; NASCIMENTO, 2005)) e de indeterminação do sujeito (“dizem, falam, diz-se” (SAITO; NASCIMENTO, 2005)). Apesar de citados, este trabalho se deterá nas formas, de primeira pessoa do plural, vamos dizer/ digamos, exemplificadas nas sequências narrativas a seguir: (5) eu acho que poderia ter uma maior abordagem nela... assim do tipo (hes) incentivar mais os alunos porque hoje em dia aqui mesmo... vamos dizer... que não é todo mundo que é tão interessado com estudo (est) é eu não vou citar o meu exemplo porque ((risos)) mas aqui... percebe-se porque aqui o colégio eu vejo assim pessoas mais velhas... (M3_2) (6) não não é... assim... vamos dizer que política aqui o que o povo entende de política aqui é simplesmente... votação... você vai lá e volta pra escolher... (M3_2) (7) aí às vezes ela ficava até puxando o meu saco né? Digamos assim entre aspas ((risos)) e aí quando eu saí do ensino fundamental e fui pro ensino ah quando eu sai do ensino fundamental não... quando eu sai da quarta série do ensino fundamental e fui pra quinta série do ensino fundamental... (se ita mp lq 03) (8) mas depois quando eu terminei o ensino fundamental eu acabei namorando com uma menina que eu conheci que morava bem próximo a minha casa sabe? Mais por incentivo dela do que meu digamos assim... sabe? Porque ela que... como eu era ainda bastante tímido ainda né? Eu não tinha... toda essa coragem não ((risos)) (se ita mp lq 03) (9) durante as aulas de Química no ensino médio... ou seja no meu estágio... que eu estagiei foi na escola em Aparecida... na escola Estadual João Salónio... no qual os professores de Química não tinham vamos dizer... não adotavam metodologia de ensino as quais surtiram efeito ao – à aprendizagem do aluno... e para eles tanto faziam ter aula de Química como não ter... (se ita mp lq 08) A partir destes segmentos de fala percebemos que a narração de assuntos comprometedores acarreta no uso das expressões estudadas, para assim promover o distanciamento por parte do falante. No exemplo (5), o falante faz uso da expressão vamos dizer para introduzir o conteúdo proposicional, por isso trata-se de verbo dicendi. Ao mesmo tempo, o enunciador se distancia e, assim, se descompromete com aquilo que informou visto que vamos dizer é uma construção cuja função é supor algo, justamente que o locutor fez. Em (6), o entrevistado mais uma vez faz uso de vamos dizer para passar a informação que deseja. Através da construção usada o falante não se compromete com as interpretações possivelmente feitas pelo ouvinte, dando origem a preservação de face. Já em (7), observamos a ocorrência da forma digamos cuja função é corrigir o que foi dito, ou seja, o de re avalia o de dictum, em que o falante está tencionado a provocar um certo distanciamento do assunto sobre o qual falou. O exemplo (8) apresenta a construção digamos que provoca o distanciamento e o descomprometimento do enunciatário em relação a sua afirmação. Por fim, no exemplo (9), a expressão vamos dizer foi empregada como estratégia de descomprometimento, pois, o falante não se compromete com as interpretações que o ouvinte possa realizar. 4.2. MARCADORES DISCURSIVOS Muitas vezes, a organização da fala necessita de algum termo para preencher a pausa, enquanto o falante projeta o que será dito. Essa função do marcador discursivo é denominada por Marcedo e Silva (1996) como “requisito de apoio discursivo”. A partir disso, este estudo analisará os marcadores discursivos (vamos dizer e digamos) que exercem tal papel na conversação, principalmente em segmentos descritivos, como veremos adiante. Os requisitos de apoio discursivo são essenciais na formação da fala, nos planos: - interpessoal tem necessidade do uso do marcador para produzir a fala e assim dar continuidade à conversa. Os exemplos abaixo demonstram tal uso, com os marcadores, em primeira pessoa do plural, vamos dizer/ digamos presentes em sequências descritivas: (10) Bom o lugar onde eu mais gosto de ficar no momento é a casa da minha né? ((risos)) pra eu descrever é assim... é uma casa não muito grande... é um pouco afastada da cidade... (hes) vamos dizer assim (hes) tem... pastos assim perto... (M3_2) (11) mas eu sempre fui um cara que nunca... fui obediente à mãe sabe? Digamos assim... porque eu tenho os meus pensamentos e eu considero eles como certo... já ela considera o meu como errado porque diz que adolescente não pensa... (se ita mp lq 03) (12) então eu acho que não é bem por aí e o conhecimento o saber popular é também às vezes é válido né? Então vamos dizer o exemplo do casaco né? A mãe pede por pro filho colocar o casaco para esquentá-lo né? Mas na realidade cientificamente o casaco não esquenta né? O casaco é só um isolante (se ita mp lq 05) (13) pra ser sincero já falavam do curso... eu entrei com um pouco de medo... pelo fato de eu ser de uma cidade assim... afastada de Itabaiana... o pessoal muito tímido... é você de uma família (hes) vamos dizer... de classe média... de classe média na verdade... (se ita mp lq 08) No exemplo (10), vamos dizer tem valor de marcador discursivo, pois é uma forma do indivíduo continuar a descrição, do local onde mais gosta de ficar, ou seja, o verbo dicendi (dizer) tem a função de introduzir uma informação. Como também, esse marcador tem a função de preencher a pausa, para que o falante organize suas ideias. Em (11), o informante utiliza a forma digamos com valor de marcador discursivo, pois serve para reformular suas ideias e assim continuar a descrição do relacionamento dele com a mãe. No exemplo (12), identifica-se a expressão vamos dizer, com função de ajudar na continuação da descrição do saber popular, esta feita em forma de exemplo. Novamente em 13, temos a presença de vamos dizer, como marcador. Essa expressão tem a função de planejamento verbal, pois após essa pronúncia o locutor consegue terminar a descrição da sua família. - interpessoal e textual precisa do marcador, para dar ênfase a algo que já foi dito ou corrigir alguma afirmação. Os exemplos a seguir mostram esse uso, com os marcadores, em primeira pessoa do plural, vamos dizer/ digamos: (14) Bom a questão da educação... a educação eu acho que assim... aqui em Sergipe não vamos dizer no Brasil né? Ela não eu eu assim tenho pra mim que ela não é abordada como deveria... (se ita mp lq 03) (15) adolescente (hes) não tem a cabeça no lugar digamos assim... mas eu eu sempre... sempre não... de um tempo pra cá eu venho colocando as coisas no lugar e sempre venho fazendo as coisas do jeito que eu quero sabe? No exemplo (14), vamos dizer tem a função de marcador discursivo, porque essa pronúncia serviu para o indivíduo fazer uma pausa na fala para repensar e assim corrigir a descrição a cerca da educação. Logo, essa expressão marca a discordância do que foi dito anteriormente. Por fim, em (15), observamos que a forma digamos ao ser empregada, o falante preenche a pausa para a organização do falante para descrever seu comportamento em relação aos demais adolescentes. Esta expressão também marca oposição ao que foi dito anteriormente, pois apesar do falante ser adolescente “coloca as coisas no lugar”. - rítmico necessita de marcadores que atuam no ritmo e na pontuação. Conforme Freitag, “Nesta sub-categoria, estão os marcadores né? e tá?, que apesar de serem formas reduzidas, extremamente recorrentes e esvaídas de significado referencial, desempenham a função de manter e ritmar o turno do falante” (2000, p.26). Contudo, vamos dizer/ digamos não tiveram ocorrência com essa função. Percebemos, portanto, que as formas oracionais de primeira pessoa do plural do verbo dizer podem apresentar outros usos, com diferentes sentidos e significados. Para tanto, o falante modaliza as palavras alterando o sentido delas segundo suas necessidades de fala. Por isso, houve ocorrências das formas em estudo nas sequências narrativas e descritivas, indicando respectivamente, descomprometimento e função de marcador discursivo. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho foram analisados os procedimentos de polidez e das estratégias que marcam o distanciamento por meio de construções verbais, vamo se dizê/ vamos dizer/ digamos, de 1ª pessoa do plural, encontradas em sequências narrativas. Como também, foi observado tal uso com função de marcador discursivo, presentes em segmentos descritivos. Esses estudos foram realizados a partir de análises qualitativas, isso devido ao pequeno número de ocorrências de usos (apenas quinze), dessas formas nas funções citadas abaixo, na fala de itabaianenses. Os verbos estudados desempenham diferentes funções do seu sentido original. Isso ocorre porque, o falante tem necessidade de moldar os verbos para realizar a comunicação. A partir de tal afirmação, analisamos a modalização das formas investigadas e identificamos dois tipos: o descomprometimento do indivíduo, em relação à narração transmitida, e o uso de tais expressões com valor de marcador discursivo presentes em seguimentos descritivos. Este auxilia a interação verbal, pois enquanto a pessoa o pronuncia faz o rearranjo das ideias descritivas e mostra ao ouvinte que ainda não terminou a sua fala, mas está organizando-a para ser transmitida. Quanto à modalização de descomprometimento, descobrimos que o indivíduo faz uso de tais construções verbais, em sequências narrativas, para não se responsabilizar com a gravidade da informação, ou seja, se for abordado quanto ao assunto pronunciado ele poderá se defender, pois não disse tal afirmação apenas ficou subentendido, isto é, faz parte da interpretação do ouvinte. REFERÊNCIAS CASTILHO, Ataliba T. de; ILARI, Rodolfo; NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008. FREITAG. Raquel Meister Ko. Gramaticalização e variação de acho (que) e parece (que) na fala de Florianópolis. Dissertação (Mestrado em Linguística). Curso de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003. FREITAG, Raquel Meister Ko. Marcadores Discursivos não são vícios de Linguagem! Revista Interdisciplinar, v. 4, n. 4 - p. 22-43 - Jul/Dez de 2007. FREITAG. Raquel Meister Ko. 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