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UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA
UNOESC CAMPI CHAPECÓ
Julia Dambrós Marçal
O TRANSCONSTITUCIONALISMO COMO MEIO DE FORTALECIMENTO DO
SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A (IN)EXISTÊNCIA DE
DIÁLOGO ENTRE OS ESTADOS E A CORTE DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA
MESTRADO EM DIREITO
CHAPECÓ
2014
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JULIA DAMBRÓS MARÇAL
O TRANSCONSTITUCIONALISMO COMO MEIO DE FORTALECIMENTO DO
SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A (IN)EXISTÊNCIA DE
DIÁLOGO ENTRE OS ESTADOS E A CORTE DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade do
Oeste de Santa Catarina como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Direito, área de concentração Direitos
Fundamentais Civis, sob a orientação da Professora Pós-Doutora Riva
Sobrado de Freitas.
CHAPECÓ
2014
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JULIA DAMBRÓS MARÇAL
O TRANSCONSTITUCIONALISMO COMO MEIO DE FORTALECIMENTO DO
SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A (IN)EXISTÊNCIA DE
DIÁLOGO ENTRE OS ESTADOS E A CORTE DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade do Oeste de Santa
Catarina como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, área
de concentração Direitos Fundamentais Civis, sob a orientação da Professora PósDoutora Riva Sobrado de Freitas.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Presidente, Profª Pós-Doutora Riva Sobrado de Freitas
Orientadora
_____________________________________________________
Prof. Doutor Matheus Felipe de Castro - UNOESC
_____________________________________________________
Prof. Pós-Doutor José Querino Tavares Neto - UFGO
Aprovada em: ___/___/___
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AGRADECIMENTOS
Quiçá os agradecimentos que devem compor o fim de um trabalho que se prolongou por dois
anos seja o momento de maior reflexão do pesquisador. Digo isto devido ao fato de a gratidão
ter de florescer do cerne do indivíduo e de ser regada de tantos outros sentimentos que
merecem ser externados – mesmo que de modo simplório - a pessoas que, desde a primeira
infância, influenciaram de modo (in)direto a finalização de mais um ciclo e início de outro.
Este momento não se trata de pesquisa, paráfrases ou cientificidade; mas, do mesmo modo
que estas; é imbuído de dificuldades de ordem tamanha no sentido de buscar os vocábulos
mais adequados para fazer jus a todo o apoio recebido.
Primeiramente a gratidão deve ser externada à minha família, pois representa tudo o que tenho
de melhor. À minha mãe, por ser o maior exemplo de força e humildade. És meu espelho e
orgulho-me de ter chegado até aqui com teu apoio constante e principalmente por acreditar
que mesmo diante das tormentas tudo iria dar certo. À minha irmã, pelo exemplo de
dedicação, de pessoa e profissional. És meu referencial e também espelho-me muito em ti. À
minha tia Vera, por ser a segunda mãe, somente tenho de agradecer por todo o esforço e
doação em todos os períodos da minha vida. Ao Anderson, sobretudo pela compreensão em
meus momentos de ausência.
À meu pai, in memoriam, que mesmo diante das dificuldades que a vida impunha e muito
embora não tenha presenciado do plano terreno nenhuma das conquistas mais importantes que
um filho pode ter, agradeço pelo amadurecimento que tive enquanto pessoa pelo tempo que
Ele permitiu que estivesse conosco.
À Professora e orientadora de graduação Drª Daniela Menengoti Gonçalves Ribeiro por abrir
meus olhos para o mundo do Direito Internacional e ser a maior responsável pelo caminho
que escolhi seguir. Deixo aqui registrada minha gratidão, amizade e enorme apreço por tudo o
que aprendi.
À meu chefe e colega de mestrado Neli Lino Saibo, pela oportunidade concedida
profissionalmente, a qual foi preponderante para dar seguimento a esta nova etapa.
Às colegas de trabalho Taize e Caiane, agradeço pela amizade, companheirismo,
solidariedade, compreensão, torcida e principalmente por me fazerem acreditar que o esforço
diário valeria a pena. O apoio constante durante este período foi imprescindível para que esta
etapa fosse concluída. Gratidão!
À Celer Faculdades, também estendo meu agradecimento especial na pessoa de D. Ioli e ao
coordenador Vitorio, por terem me concedido a oportunidade de lecionar na instituição e nela
ter vivido um ano de grande crescimento.
Aos meus orientandos Bruna, Cristiane, David, Marcelo, Patrícia e Rodrigo por terem
confiado a mim a tarefa de orientá-los em seus trabalhos de conclusão de curso. Sou
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imensamente grata pela confiança, companhia e constantes trocas neste ano. Hoje mais do que
nunca vejo que nosso convívio ao longo deste ano transcendeu a relação aluno-professor, para
tornar uma relação de amizade. Acreditem, aprendi muito com vocês.
Aos acadêmicos das turmas 6º e 9º período 2014/1 e 2014/2 da Celer Faculdades por me
fazerem acreditar que a docência vale a pena.
À minha orientadora Riva Sobrado de Freitas pelo préstimo nestes dois anos.
Aos professores que estiveram presentes na banca do projeto e na qualificação da dissertação
– Daniela Menengoti, Matheus Felipe de Castro e Maria Cristina Pezzella - pelas
contribuições e palavras de incentivo.
Por fim, aos colegas de mestrado, pois juntos passamos pelas mesmas angústias, cansaços,
mas também por um crescimento único.
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“Soy... Soy lo que dejaron
Soy toda la sobra de lo que se robaron
Un pueblo escondido en la cima
Mi piel es de cuero, por eso aguanta cualquier clima
Soy una fábrica de humo.
Mano de obra campesina para tu consumo
Frente de frío en el medio del verano
El amor en los tiempos del cólera, mi hermano!
Soy el sol que nace y el día que muere
Con los mejores atardeceres
Soy el desarrollo en carne viva
Un discurso político sin saliva
Las caras más bonitas que he conocido
Soy la fotografía de un desaparecido
La sangre dentro de tus venas
Soy un pedazo de tierra que vale la pena
Una canasta con frijoles, soy Maradona contra Inglaterra
Anotándote dos goles
Soy lo que sostiene mi bandera
La espina dorsal del planeta, es mi cordillera
Soy lo que me enseñó mi padre
El que no quiere a su patría, no quiere a su madre
Soy América Latina, un pueblo sin piernas, pero que camina
Oye!
Tú no puedes comprar el viento
Tú no puedes comprar el sol
Tú no puedes comprar la lluvia
Tú no puedes comprar el calor
Tú no puedes comprar las nubes
Tú no puedes comprar los colores
Tú no puedes comprar mi alegría
Tú no puedes comprar mis dolores
[…]
Tengo los lagos, tengo los ríos
Tengo mis dientes pa' cuando me sonrio
La nieve que maquilla mis montañas
Tengo el sol que me seca y la lluvia que me baña
Un desierto embriagado con peyote
Un trago de pulque para cantar con los coyotes
Todo lo que necesito, tengo a mis pulmones respirando azul clarito
La altura que sofoca,
Soy las muelas de mi boca, mascando coca
El otoño con sus hojas desmayadas
Los versos escritos bajo la noches estrellada
Una viña repleta de uvas
Un cañaveral bajo el sol en Cuba
Soy el mar Caribe que vigila las casitas
Haciendo rituales de agua bendita
El viento que peina mi cabellos
Soy, todos los santos que cuelgan de mi cuello
El jugo de mi lucha no es artificial
Porque el abono de mi tierra es natural
[…]
Trabajo bruto, pero con orgullo
Aquí se comparte, lo mío es tuyo
Este pueblo no se ahoga con marullo
Y se derrumba yo lo reconstruyo
Tampoco pestañeo cuando te miro
Para que te recuerde de mi apellido
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La operación Condor invadiendo mi nido
Perdono pero nunca olvido
Oye!
Vamos caminando
Aquí se respira lucha
Vamos caminando
Yo canto porque se escucha
Vamos dibujando el camino
(Vozes de um só coração)
Vamos caminando
Aquí estamos de pie
Que viva la América!
No puedes comprar mi vida”
-- (Latinoamérica, Calle 13)
“… porque en realidad nuestro norte es el Sur”.1
1
TORRES-GARCÍA, Joaquín. Universalismo Constructivo. Buenos Aires: Poseidón, 1941.
8
RESUMO
O trabalho objetiva verificar duas questões essenciais: 1) se o diálogo entre os Estados e o
Sistema Interamericano de Direitos Humanos pode constituir um meio de fortalecimento da
promoção e proteção dos direitos positivados no Pacto de San José da Costa Rica; e 2) se o
diálogo é realizado de forma efetiva entre a Corte Interamericana e os Estados que aceitaram
sua competência contenciosa. O marco teórico escolhido para dar desenvolvimento à
pesquisa, sobretudo no que se refere ao “diálogo”, trata-se da tese desenvolvida por Marcelo
Neves denominada “transconstitucionalismo”, o qual pode ser compreendido como um
constitucionalismo relativo à (soluções de) problemas que se apresentam simultaneamente em
diversas ordens jurídicas por meio de conversações (seja por meio da incorporação de
sentidos normativos extraídos de outras ordens jurídicas, pelo intejudicialismo, etc). Para a
verificação da (in)existência de diálogo/conversações, optou-se por realizar o estudo de oito
sentenças de casos submetidos à jurisdição da Corte de San José, os quais versam sobre a
análise da responsabilidade dos Estados pelos atos perpetrados durante a ditadura militar, bem
como da supervisão de cumprimento de tais decisões. Neste sentido, foi realizada a escolha
dos seguintes casos: 1) “Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil”; 2) “Ticona
Estrada y Otros vs. Bolivia”; 3) “Almonacid Arellano y otros vs. Chile”; 4) “Contreras y otros
Vs. El Salvador”; 5) “Velásquez Rodríguez vs. Honduras”; 6) “Goiburú y Otros vs.
Paraguay”; 7) “Loayza-Tamayo vs. Peru”; e, por fim, 8) “Gelman Vs. Uruguay”. A partir do
estudo realizado, verificou-se que todos os Estados que figuraram no pólo passivo da
demanda foram condenados no âmbito internacional. Também concluiu-se que a Corte IDH
mostra-se aberta ao diálogo no momento em que faz referência em suas sentenças a
precedentes de outros sistemas de proteção de direitos humanos e ainda por conta da análise
de julgados das Cortes Constitucionais e legislações dos Estados Latino Americanos,
utilizando-os como ratio decidendi. Por outro lado, constatou-se uma desídia na postura dos
Estados condenados quando não cumpriram ou tardaram demasiadamente o cumprimento das
obrigações fixadas nas sentenças ditadas pela Corte. Esta situação demonstra que os países
pouco estão abertos para a realização de um diálogo efetivo com a Corte Interamericana, e tal
conjuntura faz com que seja postergada, cada vez mais, a possibilidade de fortalecer o
Sistema Interamericano de Direitos Humanos e concretizar os anseios positivados no Pacto de
San José da Costa Rica, o qual tem como maior desiderato consolidar no continente
americano as instituições democráticas, a liberdade pessoal e a justiça social.
Palavras-chave: América Latina. Transconstitucionalismo. Sistema Interamericano de
Direitos Humanos. Corte Interamericana.
9
RESUMEN
El trabajo tiene como objetivo comprobar dos cuestiones esenciales: 1) si el diálogo entre los
Estados y el Sistema Interamericano de Derechos Humanos puede ser un medio de fortalecer
la promoción y protección de los derechos positivados el Pacto de San José, Costa Rica; y 2)
si el diálogo se lleva a cabo de manera efectiva entre la Corte Interamericana y los Estados
que han aceptado su competencia contenciosa. Ha sido elegido el marco teórico para el
análisis del “diálogo” la tesis defendida por Marcelo Neves llamada
“transconstitucionalismo”, lo cual puede ser entendido como un constitucionalismo relativo a
(soluciones) de problemas que son encontrados simultáneamente en diferentes órdenes
jurídicas, por medio de conversaciones (con la incorporación de significados normativos de
diferentes órdenes, por el intejudicialismo, etc.). Para la verificación de la (in)existencia de
diálogo/conversaciones, ha sido elegido el estudio de ocho sentencias de casos sometidos a la
jurisdicción de la Corte de San José, los cuales se refieren sobre el análisis de la
responsabilidad de los Estados por los atos cometidos durante la dictadura militar, así como la
supervisión de cumplimiento de las decisiones. En este sentido, fue realizada la elección de
los siguientes casos: "1) “Gomes Lund y otros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil”; 2) “Ticona
Estrada y Otros vs. Bolivia”; 3) “Almonacid Arellano y otros vs. Chile”; 4) “Contreras y otros
Vs. El Salvador”; 5) “Velásquez Rodríguez vs. Honduras”; 6) “Goiburú y Otros vs.
Paraguay”; 7) “Loayza-Tamayo vs. Peru”; e, por fim, 8) “Gelman Vs. Uruguay”. A partir del
estudio, ha sido verificado que todos los Estados fueron condenados internacionalmente.
También se concluyó que la Corte está abierta al diálogo cuando face referencia en sus
sentencias a casos de otros sistemas de protección de derechos humanos y cuando realiza el
análisis de juzgados de Cortes Constitucionales y legislaciones de los Estados
Latinoamericanos; utilizándolos como ratio decidendi. Por otr lado, ha visto que existe una
desidia en la postura adoptada por los Estados condenados cuando no cumplen o tardan
demasiadamente el cumplimiento de las obligaciones fijadas en las sentencias. Esta situación
demostró que los Estados están poco abiertos para la realización de un diálogo efectivo con la
Corte Interamericana, postergando, cada vez más, la posibilidad de fortalecer el Sistema
Interamericano de Derechos Humanos y concretizar los deseos positivados en el Pacto de San
José de Costa Rica, lo cual tiene como objetivo consolidar en el continente americano las
instituciones democráticas, la libertad personal y la justicia social.
Palabras-clave: Latinoamérica. Transconstitucionalismo. Sistema Interamericano de
Dierechos Humanos. Corte Interamericana.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
§
parágrafo
AGU
Advocacia Geral da União
ADPF
Arguição de descumprimento de Preceito Fundamental
CADH
Convenção Americana sobre Direitos Humanos
CAN
Comunidade Andina
CEDH
Convenção Europeia dos Direitos do Homem
CEJIL
Centro pela Justiça e o Direito Internacional
CONADE
Comitê Nacional de Defesa da Democracia
CORTE IDH Corte Interamericana de Direitos Humanos
DIDH
Direito Internacional dos Direitos Humanos
DINA
Dirección de Inteligencia Nacional
DNAT
Direção Nacional de Assuntos Técnicos
DSN
Doutrina de segurança nacional
DOP
Dirección de Orden Público
EUA
Estados Unidos
FMLN
Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional
HC
Habeas Corpus
MERCOSUL Mercado Comum do Sul
MRTA
Movimento Revolucionário Túpac Amaru
nº
número
NAFTA
Comércio
North American Free Trade Agreement ou Tratado Norte-Americano de Livre
NCL
Novo Constitucionalismo Latino Americano
OEA
Organização dos Estados Americanos
ONU
Organização das Nações Unidas
11
O.P.M.
Organización Política Militar
ORPA
Organización Revolucionaria del Pueblo en Armas
p.
página
PIDCP
Protocolo Facultativo I do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
REsp
Recurso Especial
SID
Sistema de Informação de Defesa
SIDH
Sistema Interamericano de Direitos Humanos
STJ
Superior Tribunal de Justiça
STF
Supremo Tribunal Federal
TPI
Tribunal Penal Internacional
TEDH
Tribunal Europeu de Direitos Humanos
TRF
Tribunal Regional Federal
12
A aprovação da presente dissertação não
significará o endosso da Professora Orientadora, da
Banca Examinadora e da Universidade do Oeste de
Santa Catarina à ideologia que a fundamenta ou
que nela é exposta.
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15
1. A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS ............................... 21
1.1 Direitos de primeira dimensão ..................................................................................... 23
1.1.2 Direitos de segunda dimensão .................................................................................. 24
1.1.3 Direitos de terceira dimensão ................................................................................... 25
1.2 O estado moderno e a construção da soberania ............................................................ 26
1.2.1 Globalização ............................................................................................................. 28
1.2.2 A internacionalização dos direitos humanos ............................................................ 30
1.2.3 O indivíduo como sujeito de direito internacional ................................................... 38
1.2.4 Direitos humanos e justiça internacional: o sistema global e os sistemas regionais
de proteção ........................................................................................................................ 39
1.2.5 A necessidade de efetivação do direito humano fundamental ao acesso à justiça no
âmbito internacional .......................................................................................................... 44
1.3 O Transconstitucionalismo (Marcelo Neves) ................................................................. 54
1.3.1 A constituição transversal do estado constitucional ................................................. 56
1.3.2 Transconstitucionalismo entre direito internacional público e direito estatal .......... 62
1.3.3 Transconstitucionalismo entre ordens jurídicas estatais .......................................... 65
1.3.5 Transconstitucionalismo pluridimensional dos direitos humanos ........................... 68
2. O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A JUSTIÇA DE
TRANSIÇÃO NOS ESTADOS LATINO AMERICANOS ................................................ 70
2.1 A necessidade de (re) pensar a América Latina ............................................................ 70
2.1.1 Sistema Interamericano de Direitos Humanos ......................................................... 78
2.1.2 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos.................................................. 80
2.1.2 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos .................................................. 80
2.1.3 A Corte Interamericana de Direitos Humanos ......................................................... 83
2.2 O reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos e o
status dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro ............................ 85
2.2.1 Conflito entre as decisões da Corte de San José e o Supremo Tribunal Federal .... 86
2.3 Perfil dos casos submetidos à Corte Interamericana de Direitos Humanos ............... 87
2.3.1 Ponto em comum – Ditadura Militar na América latina e seus períodos históricos 89
2.3.2 Argentina: 1976-1983 .............................................................................................. 90
2.3.3 Bolívia: 1964-1982 ................................................................................................... 92
2.3.4 Brasil: 1964-1985 ..................................................................................................... 93
2.3.5 Chile: 1973-1990 .................................................................................................... 100
2.3.6 El Salvador: 1979-1991 .......................................................................................... 104
2.3.7 Honduras :1963-1990 ............................................................................................. 106
2.3.8 Uruguai: 1973-1985 ............................................................................................... 107
2.3.9 Paraguai: 1954-1989 .............................................................................................. 110
2.3.10 Peru: 1980-2000 ................................................................................................... 112
14
3. ANÁLISE DE CASOS: A (IN) EXISTÊNCIA DE DIÁLOGO E AS
PERSPECTIVAS
PARA
O
FORTALECIMENTO
DO
SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS ......................................................... 115
3.1 Caso 1. Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil ........................... 115
3.1.1 Caso 2.Ticona Estrada y Otros vs. Bolivia............................................................. 126
3.1.2 Caso 3.Almonacid Arellano y otros vs. Chile ........................................................ 130
3.1.3 Caso 4. Caso Contreras y otros Vs. El Salvador .................................................... 136
3.1.4 Caso 5. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras ................................................. 141
3.1.5 Caso 6. Caso Goiburú y Otros vs. Paraguay .......................................................... 144
3.1.6 Caso 7.Caso Loayza-Tamayo vs. Peru ................................................................... 149
3.1.7 Caso 8. Caso Gelman Vs. Uruguay ....................................................................... 153
3.2 O exemplo da Argentina ................................................................................................ 157
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 160
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 166
15
INTRODUÇÃO
Os temas relacionados aos direitos humanos tornaram-se objeto de preocupação e de
maior estudo na sociedade internacional, após as inúmeras atrocidades cometidas em face dos
indivíduos durante a Segunda Guerra Mundial, sobretudo quando revelações das barbáries
sórdidas perpetradas vieram a conhecimento público, nas suas mais diversas formas.
Fora neste momento que um sentimento latente apoderou-se da consciência dos povos
para uma racionalidade voltada à indagações sobre como criar mecanismos de proteção aos
direitos dos seres humanos, pois o mundo não mais desejava que as violações de outrora
voltassem a ocorrer.
O ano de 1945 pode ser considerado o marco do fim de uma era e início de outra.
Inaugura-se, pois, a conjugação de esforços de países para lograr objetivos comuns: preservar
as futuras gerações da tragédia da guerra; reafirmar a fé nos direitos humanos; promover o
progresso; a paz e a segurança internacional.
Com o término da segunda grande guerra fora criada a Organização Internacional que
hodiernamente mais possui Estados membros (ONU), e aventou-se uma mudança
paradigmática do direito que abalou então a estrutura dos países: está-se a falar do advento do
chamado “direito internacional dos direitos humanos”.
Neste momento da história foi dado início a um período de profunda integração dos
países, haja vista que passaram a redigir com frequência declarações, convenções e tratados
internacionais, contemplando os mais diversos temas. Inegável, portanto, que a labuta dos
Estados em unirem-se em prol de objetivos comuns positivados em instrumentos
internacionais, representa um importante passo (primeiro) para a tentativa de mudança de uma
realidade marcada por ofensas àqueles direitos mais intrínsecos que os indivíduos possuem.
No entanto, é cediço que a simples criação de documentos internacionais que visam
proteger e promover direitos, de per si, não são suficientes para que exista a cristalização de
sua eficácia. Do mesmo modo, tão somente a ratificação de tais documentos no ordenamento
jurídico interno dos Estados também é insuficiente para que exista a proteção dos direitos que
estão neles positivados.
É devido a esta conjuntura que o direito internacional dos direitos humanos vem a
ganhar cada vez mais espaço nas agendas de discussões políticas e na academia, porquanto
surgem duas faces de uma nova era - idealismo e realismo.
Ora, se neste momento houve uma preocupação no âmbito global (ONU) de
conquistar a proteção dos direitos humanos, após a positivação da Declaração Universal de
16
1948, os Estados passaram a amadurecer a ideia de que, se existissem Organizações no
ambiente regional, a eficácia destes direitos poderia ser lograda de melhor modo,
principalmente no que diz respeito ao acesso facilitado dos indivíduos para apresentar
denúncias em face do violador, já que, com o movimento de internacionalização, o indivíduo
passou a ser sujeito de direito internacional.
Mesmo que de modo breve, o panorama narrado permite declarar algo visível: a
profunda integração da sociedade mundial revela que problemas relacionados a direitos
humanos tornaram-se insuscetíveis de serem tratados somente por uma ordem jurídica, seja
ela de natureza estatal ou internacional.
De fato, o desenvolvimento da sociedade revela que os Estados possuem inúmeras
assimetrias, diferenças históricas e culturais, no entanto, têm entre si a existência de
problemas
comuns
relacionados
a
violações
de direitos
humanos
que atingem
concomitantemente seus territórios.
Como meio de delimitação do tema, a análise do gênero direitos humanos será neste
estudo voltada para o continente americano, o qual é marcado por retrocessos a respeito da
temática, mas também por avanços, exemplo disto é a criação e ratificação de diversos
instrumentos internacionais, entre eles: a Carta da Organização dos Estados Americanos
(1948); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (1969); Protocolo Adicional à Convenção Americana em matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), entre outros.
Contudo, muito embora exista o reconhecimento formal destes direitos, torna-se
imperioso analisar o papel do Sistema Interamericano (enquanto Organização no âmbito
regional) e dos Estados na defesa, promoção e proteção dos direitos humanos.
A escolha para o estudo ser delimitado no território latino-americano deriva da
necessidade de fomentar maiores reflexões aos indivíduos de voltarem o olhar para a
relevância desta região dentro da história regional/mundial, e estarem atentos às
problemáticas e conquistas alcançadas na temática de estudo.
Portanto, neste momento justifica-se a relevância da pesquisa: 1) na atitude de
repensar os direitos humanos na América Latina, visando priorizar construções teóricas e
jurisprudenciais que reflitam os anseios da região, situação esta que não será encontrada a
partir de reproduções meramente eurocêntricas (por vezes deveras contraditórias à realidade
desta região); e 2) devido ao fato de o meio acadêmico –
todavia
– ter maior interesse na
produção de temáticas relativas ao Sistema Europeu de Direitos Humanos e não ao Sistema
Interamericano de Direitos Humanos.
17
Ou seja, o objetivo geral ganha contornos na necessidade de análise da América
Latina, desdobrando-a em meio a um reencontro do reconhecimento do latino enquanto latino;
no mister de repensar a América Latina dentro do seu próprio tempo, com o estudo de seus
problemas e na busca de respostas para solucioná-los por meio de conversações, isto é, um
diálogo baseado na alteridade visando conhecer o “outro”. No entanto, somente é possível
conhecê-lo quando se compreende o meio onde se vive e aceita ser possível aprender com a
experiência de outrem.
É a partir deste panorama que surge a indagação para o problema da pesquisa: o
diálogo entre ordens jurídicas diversas pode ser considerado um meio para o fortalecimento
do Sistema Interamericano e de seus respectivos Estados membros na proteção dos direitos no
continente americano?
Para buscar responder este questionamento, a pesquisa terá como marco teórico a tese
denominada “transconstitucionalismo” desenvolvida pelo professor Doutor Marcelo Neves.
Esta tese é fruto de debates do autor na qualidade de Jean Monnet Fellow no Instituto
Universitário Europeu por volta dos anos de 1999/2000, e, ulteriormente, apresentado como
tese para o concurso de professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, realizado em maio de 2009.
O transconstitucionalismo pode ser compreendido como um constitucionalismo
relativo
à
(soluções
de)
problemas
jurídico-constitucionais
que
se
apresentam
simultaneamente em diversas ordens por meio de conversações (seja por meio da
incorporação de sentidos normativos extraídos de outras ordens jurídicas, pelo
interjudicialismo, etc).
Ele
rejeita
o
estatalismo,
o
internacionalismo,
o
supranacionalismo,
o
transnacionalismo, bem como o localismo como solução dos problemas constitucionais, haja
vista a necessidade de existência de “pontes de transição” para que ocorra de maneira efetiva
“conversações constitucionais” entre as diversas ordens jurídicas, com o consequente
rompimento do dilema “monismo/pluralismo”. Este pensamento busca afastar-se do
provincianismo constitucional do direito estatal para mirar a ordem jurídica do “outro” com
base na alteridade e no aprendizado recíproco.
Com a breve exposição do marco teórico, esta pesquisa propõe os seguintes objetivos
específicos: (1) dissertar sobre o transconstitucionalismo e seu âmbito de abrangência; (2)
determinar o alcance de atuação da Corte Interamericana e (3) avaliar os casos julgados pela
Corte de San José para determinar se o diálogo pode ser um meio de fortalecimento do
Sistema Interamericano e dos Estados.
18
Para alcançar estes objetivos, a pesquisa fora dividida em três capítulos relacionados
respectivamente com os três objetivos alhures expostos.
No primeiro capítulo realizar-se-á uma fundamentação dos direitos humanos baseada
em sua historicidade e suas sucessivas dimensões (primeira, segunda e terceira) demonstrando
como foram concebidos, tendo como marco temporal o século XVIII em meio ao contexto das
grandes Revoluções Francesa e Americana, até a concepção contemporânea no Estado de
Direito das sociedades tecnológicas.
Posteriormente, perpassa-se ao estudo da soberania estatal, devido a sua importância
para a temática, notadamente em razão da transformação de seu conceito para a busca de uma
maior proteção dos direitos humanos, a partir do momento em que os Estados encontraram-se
dispostos em um plano horizontalizado e com limitações dentro de uma lógica de ceder parte
de sua soberania para instituições de caráter supranacional.
Após, a atenção será voltada para o fenômeno da globalização como fator
preponderante para o desaparecimento das fronteiras entre os países e intensificação dos
intercâmbios no âmbito econômico, cultural e jurídico com influências recíprocas. De suma
importância também a realização de um ensaio acerca da internacionalização dos direitos
humanos; da característica ímpar que os indivíduos passaram a ter enquanto sujeitos de direito
internacional; da criação do sistema global e sistemas regionais de proteção dos direitos
humanos e da necessidade de efetivação do direito de acesso à justiça no âmbito internacional.
Para finalizar o primeiro capítulo, discorrer-se-á acerca do marco teórico da pesquisa:
a tese desenvolvida por Marcelo Neves denominada “transconstitucionalismo” com o objetivo
de traçar os pilares do diálogo para análise dos capítulos subsequentes.
No segundo capítulo propor-se-á um ensaio acerca da necessidade de (re)pensar a
América Latina, no sentido de priorizar construções teóricas que representem as experiências
históricas e culturais da região, para que não exista uma perda da identidade do “ser
latinoamericano” com o forte eurocentrismo existente na cultura popular e jurídica.
Posteriormente, o estudo focará na análise do Sistema Interamericano de Direitos Humanos,
com o fito de demonstrar o contexto histórico de sua implantação, estrutura, funcionamento e
composição, com especial desvelo para seus dois principais órgãos: a Comissão e a Corte
Interamericana.
Cumpre informar que até o dia 10 de outubro de 2013 (dia da propositura do projeto
desta dissertação) a autora realizou uma pesquisa em 153 sentenças de mérito julgadas pela
Corte Interamericana, com a finalidade de identificar um perfil temático.
19
Verificou-se que há certa variedade de casos propostos nos 25 anos de existência da
Corte de San José, aqui destacam-se: i) direito de propriedade; ii) massacres/conflitos
armados; iii) tortura e detenção arbitrária; iv) omissão das garantias no processo judicial; v)
fertilização in vitro; vi) violação à liberdade de pensamento/expressão/consciência/religião;
vii) omissão estatal na investigação de crimes; viii) discriminação na vida privada e familiar,
ix) interceptação ilegal de linhas telefônicas; x)
condições inumanas e degradantes em
internação em hospital/falta atenção médica, xi) sobre pena de morte, etc.
Contudo, de uma forma muito mais expressiva encontrou-se sentenças que
condenaram os Estados por violações cometidas pela polícia/exército durante o período
ditatorial e no início do processo de redemocratização (29 casos de condenações em face da
Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Paraguai,
Peru, República Dominicana e Venezuela).
Uma vez identificado o perfil de casos julgados pela Corte de San José, fez-se a
escolha de oito casos a serem analisados nesta pesquisa, os quais serão objeto de estudo no
terceiro capítulo com a aplicação do marco teórico da pesquisa.
Com a identificação do perfil, ainda no segundo capítulo buscar-se-á fazer uma breve
análise sobre o período ditatorial que assolou a América Latina nas décadas de 60 a 80, com
especial enfoque para Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, El Salvador, Honduras, Uruguai e
Paraguai. Ressalta-se, desde logo, que a abordagem realizada nos tópicos deste capítulo não
possui pretensões de estudo tal qual um historiador faria. Em primeiro lugar porque o objetivo
do trabalho não é este; em segundo lugar, pois o desiderato é demonstrar que a América
Latina possui e passa por problemas comuns em razão de ter vivenciado períodos marcados
por violações e retrocessos muito semelhantes; em terceiro lugar, porque devido à recentidade
dos fatos a bibliografia é escassa.
A partir da delimitação teórica realizada nas duas primeiras partes da pesquisa, no
terceiro capítulo realizar-se-á a análise de oito sentenças proferidas pela Corte
Interamericana, assim dispostas: 1) “Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) vs.
Brasil”; 2) “Ticona Estrada y Otros vs. Bolivia”; 3) “Almonacid Arellano y otros vs. Chile”;
4) “Caso Contreras y otros Vs. El Salvador”; 5) “Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras”;
6) “Caso Goiburú y Otros vs. Paraguay”; 7) “Caso Loayza-Tamayo vs. Peru”; 8) “Caso
Gelman Vs. Uruguay”, visando estudar se a Corte de San José realiza diálogo com outras
ordens jurídicas para, posteriormente, verificar se os Estados condenados na instância
internacional cumprem as obrigações definidas no decisum, com o desiderato de aferir se a
postura adotada pelos Estados é aberta ao diálogo ou não.
20
O método de abordagem utilizado fora o dedutivo, tendo em vista que a pesquisa
busca estabelecer por meio do estudo de casos julgados pela Corte IDH a (in)existência de
diálogo entre ordens jurídicas diversas, a partir da aplicação da tese Transconstitucionalismo
de Marcelo Neves.
Outrossim, foram adotados os métodos histórico, comparativo e monográfico de
procedimento e a investigação de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. Ressalta-se, por
conseguinte, que todas as traduções de material estrangeiro foram feitas pela autora e que o
estudo não tem por escopo central esgotar o debate, mas sim, apenas dar um passo inicial de
reflexão sobre a importância do diálogo na América Latina.
21
1.
A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS
O mundo atual caracteriza-se por inúmeras privações, destituições e opressões,
exemplo disto é a persistência da pobreza, das necessidades mínimas não satisfeitas, da
violação de liberdades básicas, omissão da condição das mulheres, ameaças ao meio
ambiente, problemas na vida econômica e social, etc. Muitas dessas privações podem ser
encontradas tanto em países ricos como em países pobres (SEN, 2010).
O desrespeito aos direitos humanos torna-se cada vez mais evidente, seja em razão da
existência de guerras civis; pela corrupção; ocorrência de desastres ecológicos; por razões
políticas; religiosas, além do grande fluxo de refugiados e movimentos migratórios (HÖFFE,
2005).
As manifestações negativas e repletas de violações a direitos dos indivíduos
desencadeiam a reflexão sobre como minimizar os problemas existentes na sociedade
mundial. A partir de 1945 o tema concernente aos direitos humanos ganhou grande relevo na
academia e acabou por produzir grandes mudanças na área do direito internacional e na
legislação interna dos Estados (GUERRA, 2008).
Tal situação consubstancia-se na codificação das normas internacionais com a maior
valorização da pessoa humana, no entanto, em que pese tenha havido significativos avanços,
inúmeras violações aos direitos humanos seguem ocorrendo concomitantemente em vários
Estados (GUERRA, 2008).
Norberto Bobbio (1992) sustenta que quando a temática relacionada aos direitos do
homem é abordada, é necessário sempre ter em mira que a teoria e a prática percorrem
caminhos com velocidades diversas e, por vezes, desiguais, porquanto fala-se muito entre
juristas, filósofos, eruditos e políticos sobre a temática muito mais do que se conseguiu fazer
na prática para que sejam efetivamente protegidos.
O tema encontra-se, de fato, em um paradoxo, pois ao passo em que se evidencia cada
vez mais sua incorporação em textos legais nacionais e internacionais, por outro lado sua
realização transformou-se quase em uma utopia, tendo em vista as inúmeras violações e
desrespeito por parte da sociedade e dos Estados (BARRETTO, 2010).
Para Sidiney Guerra (2008, p. xviii) “embora os problemas sejam de difícil solução e
não haja uma “fórmula mágica”, é certo que uma série de medidas devem ser tomadas pelos
diversos atores sociais e não apenas creditar esse papel para os Estados”.
Muito embora os termos direitos humanos e direitos fundamentais sejam comumente
utilizados como sinônimos, a sua distinção é deveras necessária. Na dimensão
22
empírica/historicista, os direitos fundamentais são direitos humanos, todavia, é necessário
fazer um corte epistemológico com a finalidade de distingui-los e compreender em qual plano
jurídico cada um atua (GUERRA FILHO, 2001).
Por direitos fundamentais, consideram-se os direitos do ser humano reconhecidos e
positivados na esfera constitucional do direito positivo de determinado Estado; já os direitos
humanos guardam relação com os documentos de direito internacional, independentemente de
sua vinculação com determinada ordem constitucional (SARLET, 2009).
Como se vê, direitos humanos não se confundem com os direitos fundamentais, haja
vista estes serem mais restritos por dependerem da positivação constitucional, ao passo que
aqueles são mais abrangentes (esfera internacional) (SAYEG, 2011) por guardar relação com
um conjunto de valores básicos e históricos relativos aos seres como condição fundante da
vida. Em sua dimensão universal, constitui uma construção teórica sustentada nas identidades
comuns a todos os povos (MORAIS, 2002).
O fato é que o reconhecimento dos direitos humanos em documentos internacionais dá
maior segurança às relações na sociedade. Caso não houvesse este reconhecimento,
certamente os valores éticos existentes no cerne de cada indivíduo tardariam para se impor na
vida coletiva (COMPARATO, 2013).
Segundo Gregorio Peces Barba (1987, p. 11-14):
Os direitos fundamentais são um conceito histórico do mundo moderno que surge
progressivamente a partir do advento da modernidade. Os direitos fundamentais
supõem a resposta do Direito às necessidades básicas dos indivíduos e das
comunidades e são, na cultura jurídica e política moderna, um instrumento de
organização social que favorece o desenvolvimento moral das pessoas. Os direitos
fundamentais podem ser definidos como a faculdade que o direito atribui às pessoas
e aos grupos sociais, expressão de suas necessidades no que se refere à vida, à
liberdade, à igualdade, à participação política ou social, ou a qualquer outro aspecto
fundamental que afete o desenvolvimento integral das pessoas em uma comunidade
de homens livres, exigindo o respeito ou a atuação dos demais homens, dos grupos
sociais e do Estado e com garantia dos poderes públicos para restabelecer seu
exercício em caso de violação ou para realizar sua prestação.
Neste sentido aduz José Querino Neto: “Os direitos fundamentais, são, acima de tudo,
fruto de conquistas históricas dos mais diversos setores da sociedade, nomeadamente, dos
movimentos sociais, minorias, e não podem ser vistos como concessão, mas emancipação”.
(NETO, 2008, p. 71)
23
Para Matheus Felipe de Castro (2001, p. 7924-7925):
A proteção de direitos humanos fundamentais teria surgido na história da
humanidade como maneira de conter o poder do Estado, sempre propenso ao abuso
e à arbitrariedade, dentro de certos limites fixados pela lei, colaborando para
conformar muito mais do que uma simples nova ordem política da sociedade, mas
consolidando, decisivamente, a própria civilização burguesa.
A mutação histórica sofrida pelos direitos humanos fundamentais, fez com que se
começasse a falar na existência de três gerações de direitos (muito embora exista quem
defenda a existência de uma quarta, quinta ou até mesmo sexta gerações) (SARLET, 2009).
Importante ressaltar que a doutrina faz críticas ao termo gerações de direitos. Ingo
Wolfgang Sarlet (2009) afirma que esta expressão pode ensejar a falsa impressão da
substituição gradativa de uma geração por outra, ao passo que o termo dimensões dá entender
que os direitos humanos fundamentais não se substituem com o passar do tempo, pelo
contrário, adensam-se (SAYEG, 2011).
Ressalte-se, todavia, que tal discordância reside tão somente à esfera terminológica,
não afetando o conteúdo das gerações ou dimensões de direitos. Por tais razões, optou-se por
fazer utilização da terminologia dimensões de direitos nos próximos tópicos.
1.1
Direitos de primeira dimensão
Como dito alhures, a mudança histórica dos direitos humanos determinou a aparição
de sucessivas dimensões de direitos. No âmbito das primeiras Constituições escritas, os
direitos humanos nasceram com o pensamento liberal-burguês no bojo da atmosfera
iluminista, a qual inspirou as revoluções do século XVIII (SARLET, 2009).
Fora no contexto histórico das Revoluções Francesa2, Americana e Latinoamericana
que surge a primeira dimensão de direitos, própria do constitucionalismo clássico do Estado
Moderno, reduzida basicamente aos direitos individuais (CARÍAS, 1997).
A primeira dimensão foi marcada pela afirmação dos direitos dos indivíduos frente ao
Estado, como uma forma de defesa e autonomia individual. Logo, o perfil ideológico desta
dimensão é de cunho individualista (SARLET, 2009).
2
O lema revolucionário da Revolução Francesa em 1789 exprimiu os três princípios cardeais dos direitos
fundamentais, profetizando inclusive até mesmo sua sequência histórica e sua gradativa institucionalização:
liberdade, igualdade, fraternidade. In: BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15 ed. São Paulo:
Editora Malheiros, 2004, p. 562.
24
Os direitos humanos da Declaração de Virgínia (1776) e da Declaração Francesa
(1789) são considerados direitos de primeira dimensão, pois baseiam-se na inspiração
individualista e considerados inerentes aos indivíduos, isto é, naturais, tendo em vista que
precedem o contrato social (LAFER, 1988).
Para Norberto Bobbio (2004), esta dimensão corresponde aos direitos de liberdade ou
de um não agir do Estado que inauguram a fase constitucional no Ocidente. Encontram-se na
categoria do status negativo, os quais ressaltam os valores políticos e a nítida separação entre
a sociedade e o Estado. São direitos que valorizam primeiramente o homem-singular - o
homem das liberdades abstratas (BONAVIDES, 2004).
1.1.2 Direitos de segunda dimensão
O período entre as duas guerras mundiais3 foi marcado pela Revolução Bolchevique e
do Socialismo Marxista na Rússia. Nesta época, buscou-se desenvolver uma conciliação do
liberalismo democrático com os direitos que asseguram um nível de vida adequado perante a
crítica realizada pelo marxismo, a qual afirmava que os direitos individuais e políticos eram
considerados somente "liberdades formais" do Estado capitalista e burguês. Durante este
período era dada ênfase nas situações de graves desigualdades e injustiça social existentes no
século XIX e no início do século XX (ALCALÁ, 2003).
Desta maneira, a matriz ideológica individualista caracterizada pelos direitos de
primeira dimensão, sofreu um amplo processo de erosão e impugnação nas lutas sociais do
século XIX (LUÑO, 1991), cujos reflexos podem ser vistos nas Constituições de Weimar,
Mexicana e Soviética (CARÍAS, 1997).
Estes movimentos reivindicativos evidenciaram a necessidade de completar o catálogo
dos direitos e liberdades da primeira dimensão com uma onda de direitos econômicos, sociais
e culturais, os quais alcançaram sua paulatina consagração jurídica e política quando da
substituição do Estado Liberal de Direito pelo Estado Social de Direito (LUÑO, 1991).
Os direitos de segunda dimensão, também chamados de “direitos sociais”, fizeram
nascer a consciência de que a proteção da realidade social era tão importante quanto
salvaguardar o indivíduo. Esta concepção fez surgir a ideia de que os direitos fundamentais
não se restringem aos direitos de liberdade (BONAVIDES, 2004).
3
1ª guerra mundial: 1914-1918.
2ª guerra mundial: 1939-1945.
25
A distinção entre ambas as dimensões se mostra evidente, pois enquanto os direitos de
primeira dimensão são caracterizados pela defesa das liberdades do indivíduo, os quais
exigem uma autolimitação e a não ingerência dos poderes públicos na esfera privada; os
direitos de segunda dimensão, correspondentes aos direitos econômicos, sociais e culturais,
traduzem-se em direitos de participação, os quais requerem uma política ativa dos poderes
públicos visando garantir seu exercício e se realizam por meio das técnicas jurídicas de
prestações e por meio dos serviços públicos (LUÑO, 1991).
1.1.3 Direitos de terceira dimensão
A consciência de um mundo dividido entre as nações desenvolvidas e
subdesenvolvidas deu lugar a uma nova dimensão dos direitos até então desconhecida
(BONAVIDES, 2004).
Surgiu o que se denomina de direitos de terceira dimensão (no fim do século XX),
conhecidos como direito dos povos, direitos solidários ou direitos de toda a humanidade, entre
os quais se encontra o direito ao meio ambiente são ou livre de contaminação, o direito ao
desenvolvimento, à paz (ALCALÁ, 2003), de propriedade sobre o patrimônio comum da
humanidade e o direito de comunicação (BONAVIDES, 2004).
Para Pérez-Luño (1991), a terceira dimensão de direitos humanos complementa as
anteriores, posto que se apresenta como uma resposta ao fenômeno da denominada
“contaminação das liberdades” (liberes’ pollution), termo utilizado por alguns setores da
teoria social anglo-saxônica que aludem à erosão e degradação que
aflige os direitos
fundamentais com os usos de novas tecnologias. Isto é justificado, pois a revolução
tecnológica redimensionou as relações do ser humano com seu contexto.
Esta dimensão contribuiu para redimensionar a própria imagem do homem enquanto
sujeito de direitos. As novas condições de exercício dos direitos humanos determinaram uma
nova forma de ser cidadão no Estado de Direito das sociedades tecnológicas, do mesmo modo
que a mudança do Estado Liberal ao Estado Social de Direito configurou também formas
diferentes de exercer a cidadania (LUÑO, 1991).
Dotados de teor de humanismo, tais direitos cristalizaram-se no fim do século XX
enquanto direitos que não se destinam à proteção específica do indivíduo ou de um grupo,
pois o destinatário é o gênero humano (BONAVIDES, 2004).
26
A terceira dimensão não poderia sequer ter sido imaginada quando os direitos de
segunda dimensão foram propostos. Tais exigências nascem em razão da mudança das
condições sociais e quando o desenvolvimento técnico permite satisfazê-los (BOBBIO, 2004).
Partindo destas premissas, é possível afirmar que o futuro irá revelar outras dimensões
de direitos humanos, sobretudo pelo fato de o universo ser ilimitado (SAYEG, 2011).
A partir do exposto, muito embora tenha sido possível verificar que os direitos
humanos tenham origem na concepção jusnaturalista e iluminista desenvolvidas no continente
europeu entre os séculos XVII e XVIII, foi somente a partir do século XX com as
problemáticas existentes no mundo pós-moderno é que o homem passou a figurar em
primeiro plano e passou a existir um pensamento mais crítico sobre a forma pela qual se darão
efetividades a estes direitos (MAZZUOLI, 2010).
Se no plano teórico há dificuldades para a conceituação, Fábio Konder Comparato
(2013, p. 71) questiona: “como reconhecer a vigência efetiva desses direitos no meio social,
ou seja, o seu caráter de obrigatoriedade?”. E ainda, existe uma hierarquia normativa ente
direitos humanos e direitos fundamentais? O direito internacional prevalece sobre o direito
interno? Como resolver eventuais conflitos entre estes ramos do direito?
Tais questionamentos correspondem às perguntas secundárias que esta pesquisa
objetiva verificar, para contextualizar e responder o problema da pesquisa proposto.
1.2 O estado moderno e a construção da soberania
O tema relativo à soberania4 é um dos conceitos mais complexos e debatidos na teoria
do Estado e do direito internacional, notadamente em razão de seu conceito ser
demasiadamente abstrato (HÄBERLE; KOTZUR, 2011).
A soberania é considerada uma das principais características do Estado Moderno,
tendo sido empregada teoricamente pela primeira vez em 1576 em Les Six Livres de la
République, de Jean Bodin. Antes disso, a construção do conceito baseava-se no poder de
forma absoluta e perpétua, adstrito às leis divinas e naturais (MORAIS, 2002).
4
A soberania tem como expoente o francês Jean Bodin (autor do livro Os seis livros da República, em 1576)
publicado em meio a guerras religiosas ocorridas na França. Trata-se de um livro escrito dentro de um contexto
de transnacionalismo, momento pelo qual Bodin busca valorizar a soberania e fazer dela uma chave mestra. Para
Bodin, a soberania não pode ser limitada por nenhuma lei humana, tampouco pelas leis de seus predecessores.
(BADIE, 1999)
27
Historicamente a soberania era entendida como o poder do Estado de impor suas
decisões, editar leis e executá-las dentro do seu território (MAZZUOLI, 2002). No entanto,
fora com o término da guerra dos trinta anos entre católicos e protestantes (século XVII,
1618-1648) que a soberania passou a ter um novo conceito (BREMER, 2013).
O fim do conflito com a vitória dos protestantes deu origem à assinatura dos Tratados
de Müster e Osnabrück, os quais além de abranger temas políticos e religiosos, fizeram com
que eclodisse uma nova ordem territorial/religiosa e equilibrou os poderes nas relações
interestatais (BREMER, 2013).
De Wetfalia até hoje ocorreu grande avanço do direito internacional, notadamente a
partir do surgimento de limitações da soberania entre os sujeitos da sociedade internacional
(BREMER, 2013).
Para Dallari (1999, p. 23) a soberania “é uma das bases da ideia de Estado Moderno,
tendo sido de excepcional importância para que este se definisse, exercendo grande influência
prática nos últimos séculos”.
Apesar de o conceito de soberania ter sofrido grande mudança com os tratados de
Westfalia, uma nova transformação ocorreu a partir da proteção “universal” dos direitos
humanos, com a positivação no artigo 2º, parágrafo primeiro da Carta das Nações Unidas
(1945)5 (HÄBERLE, 2011).
A concepção hodierna de soberania está vinculada estreitamente com o tema relativo
aos direitos humanos, porquanto a partir do momento em que o Estado comete determinados
atos contra os indivíduos, pode vir a ser condenado por um Tribunal Internacional por suas
condutas (CANÇADO TRINDADE, 2002).
A soberania possui especial relevância na área das relações internacionais, tendo em
vista que os Estados encontram-se dispostos dentro de um plano horizontalizado, isto é, de
forma igual em sua convivência relacional (MORAIS, 2002).
Com as modificações da concepção da soberania, a qual passou a ser entendida como
um poder passível de sofrer limitações, uma nova lógica começou a ser empregada, sobretudo
a partir do surgimento de instituições de caráter supranacional (por exemplo: Comunidade
Econômica Europeia, União Europeia, NAFTA, Mercosul, CAN, etc) com a aplicação de
normas jurídicas de direito internacional para que Cortes de Justiça supranacionais passassem
5
Artigo 2. A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de
acordo com os seguintes Princípios:
1. A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus membros.
28
a apreciar os atos praticados pelos Estados, seja na matéria relativa a direitos humanos,
acordos comerciais, alianças militares, emissão de moeda, etc. (MORAIS, 2002).
A União Europeia, por exemplo, compartilha de um sentimento de responsabilidade
pelo futuro, do bem-estar de todos e de buscar soluções para os conflitos que se apresentam.
No entanto, caminha de modo rudimentar quando encontra obstáculos no caminho, como por
exemplo, na relutância em abandonar a antiga soberania (BAUMAN, 2006).
Para que os processos de integração6 se consolidem é necessário que exista apoio
jurídico-institucional profundo com órgãos supranacionais, quando os Estados acabam por
transferir determinadas competências e poderes para defender e melhorar os interesses
comuns, mas mantendo o atributo da soberania, visando defender sua individualidade e forma
de governo (ARBUET-VIGNALI, 2004).
A transferência de faculdades – típicas da supranacionalidade – respeita, por um lado,
as diversidades dos Estados membros, no entanto, a vigência da ordem comunitária integrada
exige coerência e harmonia jurídica, motivo pelo qual, os Estados estão obrigados a assegurar
a vigência de normas comunitárias dentro de seus limites territoriais (OCAMPO, 2007).
É importante que os sistemas aproximem-se harmoniosamente7 com a subordinação à
uma ordem supranacional coordenada de acordo com princípios comuns. Nas palavras de
Mireille Delmas-Marty (2004, p. 306) “como nuvens que, levadas por um mesmo sopro, se
ordenassem aos poucos guardando seu ritmo próprio, suas formas próprias”.
1.2.1 Globalização
Esclarecido o desenvolvimento dos direitos humanos e sua relação com a soberania,
cumpre ressaltar que devido ao fato de o mundo hodierno cada vez mais possibilitar que as
relações humanas sejam transnacionais; faz-se necessário dissertar breves considerações sobre
a globalização para, ulteriormente, analisar o impacto que este fenômeno causou nas relações
entre os Estados e no desenvolvimento de uma nova ramificação no Direito Internacional.
O termo globalização é bastante onipresente na sociedade atual. Miguel Carbonell
(2003, p. 01) afirma que “parece ser um conceito que chegou para ficar”, pois não há reunião
6
O Estado somente existe porque se integra de modo constante, trata-se de um processo de união entre os
homens. In KELSEN, Hans. O estado como integração: um confronto de princípios. Tradução de Plínio
Fernandes Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
7
“A harmonização não quer dizer a unificação. Ela admite diferenças e as põe em ordem”. (DELMAS-MARTY,
Mireille. Por um direito comum. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2004, p. 256).
29
de políticos ou de acadêmicos onde pelo menos um dos participantes não faça referência aos
"desafios" da globalização. Dentro deste contexto, é possível afirmar que o maior problema
encontrado quando se fala em globalização é a ausência de conhecimento do interlocutor
sobre o que se está referindo.
A ideia da globalização perpassa toda a história da humanidade e é encontrada no
âmago do indivíduo, sobretudo na vontade de transcender os limites pessoais e territoriais.
Por tal motivo, é possível encontrar a globalização ainda na época pré-histórica, no momento
em que homens e mulheres nômades buscavam lograr uma melhor vida em outras localidades
(SILVA, 2007).
Em que pese exista várias teorias que associam a ideia da globalização à época antiga,
há um consenso de que ela está situada no século XV com o surgimento do capitalismo (por
volta do fim da idade média e o começo da idade moderna). Por isso, fala-se em globalização
do capital, cujo marco inicial corresponde a descoberta da América em 1492 e pela utilização
das rotas marítimas para as Índias em 1498 (SILVA, 2007).
A globalização expressa uma nova era de expansão do capitalismo, pois envolve
diversas civilizações, culturas e também desafia práticas consolidadas e interpretações
sedimentadas (IANNI, 2001).
O processo de globalização propiciou a expansão cultural que ultrapassou as fronteiras
nacionais (LUCAS, 2010) e acabou por realizar, segundo Boaventura de Souza Santos (2001),
a compressão tempo-espaço, ou seja, o processo social pelo qual os fenômenos se aceleram
acabaram se difundindo pelo globo.
De acordo com José Querino Tavares Neto (2007, p. 76) “a globalização não produz
efeitos apenas no âmbito econômico, mas também, de forma contundente, no âmbito cultural
e político”.
Aos poucos as fronteiras existentes entre os mundos passaram a desaparecer;
alteraram-se os significados das nações e embaralhou-se o mapa do mundo prenunciando
horizontes até então desconhecidos. Ocorreu também a redução do significado da soberania
nacional, no momento em que o Estado viu-se obrigado a aceitar diretrizes advindas de
centros de poder regionais e mundiais (IANNI, 2001).
Além disto, todos os povos estão sendo desafiados pelos novos dilemas, facilidades,
tensões e antagonismos existentes (IANNI, 2001). Trata-se de um processo incerto e
ambivalente que afeta os mais diversos setores da vida social, política e econômica do mundo
(MORAIS, 2010).
30
O século XX proporcionou uma crescente complexidade nas relações internacionais.
A globalização, em sua perspectiva de mercado que se processa em sentido político,
econômico, social e cultural, produziu profundas transformações na estrutura do
Estado e do Direito (NETO, 2007, p. 76)
Atualmente o conceito de globalização tem sido indicado quase como um sinônimo de
“tecnologia”, porquanto a informática que outrora era vista como um instrumento relacionado
à técnica e ao setor industrial particular, a partir da década de 80 passou a repercutir na vida
econômica, política e cultural da sociedade. Com isto, os indivíduos passam a explorar de
modo positivo as potencialidades existentes no mundo hodierno, muito embora sua
repercussão seja indeterminada (LÉVY, 2001).
Manuel Castells (2001) aduz que com o passar do tempo foi sendo estabelecida uma
nova estrutura social – “sociedade em rede” - a qual oferece inúmeras oportunidades, mas também
desafios. Seu futuro é incerto, pois está submetida a dinâmicas contraditórias que opõe de um
lado a face obscura e de outro algumas fontes de esperança.
A oportunidade de maior acesso como uma das consequências da globalização
conjuga-se com o "direito à informação", o qual não é compreendido somente como o "direito
a ser informado", mas como o direito de ter acesso a determinadas informações públicas e
privadas (RODOTÁ, 2008).
Para Manuel Castells (2005, p. 68) “diferentemente de qualquer outra revolução, o
cerne da transformação que estamos vivendo na revolução atual refere-se às tecnologias da
informação, processamento e comunicação”.
Com isto, a globalização passou a produzir uma maior exposição das políticas interna
e internacional com a maior participação dos sujeitos e atores internacionais (SOUZA, 2010).
Uma das consequências da globalização é o fato de que se Estados litigam entre si ou
mantêm relações por meio de intercâmbio econômico e cultural, cada vez mais vislumbra-se
que nenhum país vive sua própria história sem ter influência de outros (HÖFFE, 2005).
Por conseguinte, a globalização não pode ser concebida como um fato acabado, pois
sua marcha generaliza-se, sofre mutações, aprofunda-se dia após dia (SILVA, 2007) e
maximiza interconexões no espaço, projetando-se ao infinito (MORAIS, 2010).
1.2.2 A internacionalização dos direitos humanos
31
A história da humanidade é marcada por vários fatores nefastos, entre eles a guerra
pode ser considerado como o mais antigo. Muito embora ao longo dos séculos as guerras
limitavam-se a uma determinada região, a Idade Moderna no continente europeu passou a
abranger um caráter global que foi fortalecido durante as duas grandes guerras (HÖFFE,
2005).
O conflito bélico protagonizado pela humanidade ocorrido na “Europa das Luzes”, que
séculos atrás exportava aos outros continentes os ideais de liberdade e igualdade (valores do
constitucionalismo clássico), converteu-se em um cenário gélido e cinza (PIZZOLO, 2012).
A segunda guerra mundial diferiu para primeira grande guerra não somente pelo
número de países envolvidos e pela duração do conflito, mas, sobretudo, pela exorbitância de
indivíduos que se tornaram vítimas das ações perpetradas pelos Estados. Calcula-se que 60
milhões de pessoas foram mortas entre 1939-1945 (seis vezes mais do que no conflito do
começo do século), sendo a maioria civis (na 1ª guerra mundial a maioria das vítimas era
militares). Além disto, a segunda guerra mostrou a subjugação de povos considerados
inferiores e o poder que o homem mostrou ter de destruir toda a vida da Terra com o
lançamento da bomba de Hiroshima e Nagasaki (respectivamente em 6 e 9 de agosto de 1945)
(COMPARATO, 2013).
A confusão e destruição causada deixaram milhões de refugiados, incapazes de prever
um futuro no momento em que estavam em campos para pessoas desalojadas. Com o término
da guerra passaram a ser revelados alguns dos horrores deliberadamente praticados pelos
alemães que deixaram os indivíduos em choque. As fotografias tiradas quando da libertação
dos judeus, mostraram as consequências do anti-semitismo e das atrocidades cometidas
(HUNT, 2009).
Deste modo, o anti-semitismo, o imperialismo e o totalitarismo, um após o outro
demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia, somente encontrável em
novos princípios políticos e em uma nova lei na terra, em que tenha vigência e alcance toda a
humanidade (ARENDT, 1989).
O fim da guerra concretizou um velho sonho do continente, relacionado a uma Europa
unida por um “direito comum” a partir de um processo de integração regional. As
Constituições sancionadas com o pós guerra de países como França, Itália e Alemanha
afastaram a visão da soberania estatal absoluta, estando assim, consolidada a abertura para o
direito internacional (PIZZOLO, 2012).
Segundo Fábio Konder Comparato (2013, p. 226): “as consciências se abriram, enfim,
para o fato de que a sobrevivência da humanidade exigia a colaboração de todos os povos, na
32
reorganização das relações internacionais”. Isso porque, a humanidade passou a compreender
mais do que nunca o valor da dignidade humana, aprofundando a afirmação histórica dos
direitos humanos.
A partir deste momento nasceu a terminologia Direito Internacional dos Direitos
Humanos (DIDH), cunhada quando da positivação da Carta das Nações Unidas (1945) com
alusão a direitos e liberdades fundamentais do homem e com o fim precípuo de preservar a
paz mundial (BIDART CAMPOS, 1990).
Até o surgimento do DIDH, os problemas relacionados a direitos humanos eram de
competência reservada de cada Estado, o qual resolveria de acordo com seu critério. Contudo,
hodiernamente não mais se resolve deste modo, porquanto o DIDH assumiu para si a
problemática, celebrou tratados e inclusive pôs este tema para o conhecimento e decisão de
tribunais supraestatais (BIDART CAMPOS, 1990).
Essa internacionalização consistiu em uma mudança vital na essência do direito
internacional, tendo produzido um impacto no campo do domínio reservado dos Estados, ao
introduzir elementos novos e até certo ponto perturbadores no direito interno. O direito
internacional dos direitos humanos corresponde a uma complementação ao direito interno,
não o substitui, mas depende dos órgãos domésticos para que seja cumprido. Também
diferencia-se do direito internacional, pois enquanto este tem como objetivo também atender
os interesses particulares; aquele desperta a consciência idealista, humanitária dos indivíduos
em todos os âmbitos do mundo (SEPÚLVEDA, 1988).
O Direito Internacional deve buscar constituir uma sociedade jurídica que possua
condições de coordenar a política internacional conforme a subsidiariedade normativa dos
ordenamentos estatais. Deste modo, estar-se-á de um lado concedendo um pouco de poder
supranacional a órgãos centralizados, e de outro, permitindo que seja mínimo o recurso a
intervenções coercitivas.
Por este motivo, Danilo Zolo (2010, p. 417) propõe a expressão “direito supranacional
mínimo” às relações de competências normativas dos Estados nacionais e de órgãos
supranacionais. Segundo o autor “este direito deixaria um amplo espaço às funções da
domestic jurisdiction, sem pretender substituí-la ou sufocá-la com organismos normativos ou
judiciários supranacionais”. Assim ocorreria uma “regionalização policêntrica” do Direito
internacional.
Um “direito supranacional mínimo” não deve significar uma inércia da comunidade
internacional diante de inúmeros problemas que hodiernamente assolam o mundo como um
todo, haja vista que isoladamente os Estados nacionais pouco conseguem fazer para resolvê-
33
los. Sendo assim, necessário se faz que exista uma colaboração recíproca entre os agentes
políticos internacionais para estreitar a concentração de poderes em órgãos supranacionais,
como um modo de responder os problemas existentes em decorrência da globalização (ZOLO,
2010).
Com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 os Estados vencedores reuniram-se e
criaram quiçá a Organização Internacional mais conhecida do mundo: a chamada Organização
das Nações Unidas (ONU) com a finalidade de preservar as futuras gerações do “flagelo da
guerra” (GUERRA, 2008).8
O termo “Nações Unidas” foi criado pelo então presidente estadunidense Franklin
Roosevelt e utilizado pela primeira vez em 1942 quando 26 países assumiram o compromisso
de continuar lutando contra as potências do Eixo, no entanto, a Organização passou a existir
oficialmente em 24 de outubro de 1945 após a ratificação da Carta das Nações Unidas pelos
Estados Unidos, França, Reino Unido, China, a antiga União Soviética e os demais países
signatários (ONU, s.d.a).
A criação das Nações Unidas em 1945, bem como de diversos organismos
internacionais passaram a interferir no plano internacional com bastante frequência e
propiciaram o desenvolvimento da internacionalização do comércio, do capital, de empresas
transnacionais e também de mecanismos jurídicos alternativos para a resolução de conflitos
como a arbitragem comercial internacional (MENEZES, 2005).
O fenômeno da globalização foi um dos responsáveis para a abertura deste novo
panorama mundial influenciando as inter-relações de caráter internacional, transnacional e
cosmopolita com um novo desenho de sociedade (MENEZES, 2005).
Para que a ONU pudesse atingir os fins a que foi criada, foram concebidos seis órgãos
principais, quais sejam: 1) Assembleia Geral, 2) Conselho de Segurança, 3) Conselho
Econômico e Social, 4) Conselho de Tutela, 5) Corte Internacional de Justiça e 6)
Secretariado.
8
“Nós, os povos das Nações Unidas, decididos: a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por
duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade; a reafirmar a nossa fé
nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos
homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas; a estabelecer as condições necessárias à
manutenção da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito
internacional; a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais amplo de
liberdade; e para tais fins: a praticar a tolerância e a viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos; a unir
as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais; a garantir, pela aceitação de princípios e a
instituição de métodos, que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum; a empregar
mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social de todos os povos [...]”
34
A Assembleia Geral é composta por todos os Estados-membros da ONU (atualmente
conta com 193 países), os quais têm direito a voz e voto nos assuntos que são tratados em
pauta. O principal objetivo é discutir temáticas relativas à paz, segurança, aprovação de novos
membros, direitos humanos, cooperação internacional, etc. (ONU, s.d.b).
O Conselho de Segurança tem o fim precípuo de manter a paz e segurança
internacionais. Diferentemente da Assembleia Geral, é formado por 15 membros, sendo cinco
deles permanentes (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Rússia e China), os quais têm
poder de veto; os outros dez membros não são permanentes e tampouco tem direito a veto.
Deste modo, se o Conselho de Segurança verificar a existência de qualquer ameaça à paz ou
ato de agressão realizará reuniões com posterior aprovação de resoluções ou decidirá quais
medidas deverão ser tomadas para restabelecer a paz e segurança internacionais.
O poder de veto pode ser explicado pelo seguinte caso concreto. A Síria vive uma
guerra civil desde março de 2011. Devido ao fato de estar ocorrendo inúmeras violações aos
direitos humanos dos indivíduos deste país, o Conselho de Segurança passou a realizar
reuniões com o objetivo de votar uma resolução para julgamento do Estado perante o Tribunal
Penal Internacional pelos crimes de guerra cometidos.
No momento da votação Rússia e China vetaram a resolução, enquanto os demais
países membros do Conselho votaram a favor. Em razão de Rússia e China serem membros
permanentes e possuírem o poder de veto, a resolução não pode ser aprovada.
Neste meio tempo, os EUA passaram a enviar armas e munições para os rebeldes
sírios que estavam lutando contra o Estado, e a Rússia passou a enviar armamento às forças
do ditador sírio Assad, fomentando ainda mais a guerra que tomou proporções extremamente
complicadas.
Em virtude de situações como a narrada o Conselho de Segurança tem sido alvo de
várias críticas, posto que, por vezes não consegue entrar em um consenso (notadamente entre
os membros permanentes) para censurar guerras; não há observância do princípio da
imparcialidade e age por interesses nacionais ou ainda políticos (HÖFFE, 2005).
Segundo Höffe (2005, p. 387):
Aqui se poderia até afirmar que o mundo dos Estados ainda se encontra na “Idade
Média”, quando os senhores feudais normalmente eram mais poderosos que o
próprio poder central. No entanto, os senhores feudais de hoje, os membros do
Conselho de Segurança, são parte integrante do próprio poder central.
35
Verifica-se, portanto, que membros do Conselho de Segurança que deveriam zelar
pelo respeito aos direitos humanos, paz mundial e segurança internacional, em verdade
acabam agindo de modo totalmente contrário a estes preceitos, votando ou vetando resoluções
de acordo com seus próprios interesses, e, por vezes, fomentando ainda mais as guerras já
existentes.
O Conselho Econômico e Social é o terceiro órgão da ONU e é responsável por
coordenar o trabalho econômico e social da Organização e das demais instituições integrantes
do sistema global de proteção dos direitos humanos (ONU, s.d.b).
O Conselho de Tutela, por sua vez, realiza a supervisão dos territórios que buscam
estabelecer um governo próprio e protege a autodeterminação dos povos. O último território
que foi tutelado por este Conselho foi no Palau, localizado no Pacífico. Em razão disto, em 19
de novembro de 1994 o órgão suspendeu suas atividades (ONU, s.d.b).
O principal órgão judiciário da ONU é a Corte Internacional de Justiça criada em
1945 e possui sede em Haia (Holanda). É composta por 15 juízes eleitos pela Assembleia
Geral e pelo Conselho de Segurança. Seu principal objetivo é apresentar soluções para
conflitos impetrados pelos Estados e emitir pareceres que são submetidos pelos órgãos das
Nações Unidas (ONU, s.d.b).
Por fim, o último órgão é o Secretariado, que tem o escopo de administrar as forças de
paz, preparar relatórios, sensibilizar a opinião pública sobre o trabalho das Nações Unidas,
realizar conferências, etc. O seu atual chefe é o Secretário Geral sul-coreano Ban-Ki moon
nomeado pela Assembleia Geral (ONU, s.d.b).
Embora a criação da ONU tenha sido de extrema importância para sociedade
internacional, a qual se deparou com graves violações a direitos humanos a partir das
barbáries cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, não está isenta a críticas. Höffe segue
afirmando que tendo as Nações Unidas o fim precípuo de promover o respeito aos direitos
humanos, sua eficiência não se mostra muito grande:
Há muito tempo, desde o primeiro terço do século XX, existem tratados
internacionais contra o tráfico de mulheres e contra o trabalho forçado, de forma
que, atualmente, não seria o caso de nos sentirmos orgulhosos destes tratados, mas
sim de sua execução. Entretanto, as Nações Unidas não tomam providências eficazes
nem contra as violações destes tratados, tampouco contra os desrespeitos a seus
próprios acordos na área de direitos humanos. (...) Não se pode afirmar que as
Nações Unidas sejam um fracasso. Um olhar justo identificará pelo menos três
serviços – aqui mais, ali menos – prestados pela ONU. Não se pode deixar de
mencionar a contribuição prestada ao aprimoramento do Direito Internacional, bem
como à sua codificação. [...] Além disto, ocasionalmente, as Nações Unidas prestam
seu contributo como um fórum global de negociações, visando a civilização das
36
relações internacional. Sobretudo seu objetivo principal, o repúdio a guerra, não é
atingido nem de longe. (HÖFFE, 2005, p. 387-389)
Ainda quanto à crítica às Nações Unidas, José Querino Tavares Neto (2008, p. 72)
afirma:
Ao menos merece reservas a pretensa representação universal das Nações Unidas,
quer pela sua composição, quer pela projeção excessiva, para não dizer autoritária,
do Conselho de Segurança da ONU e sua famigerada composição e regimento. Da
importância das Nações Unidas e dos Estados para a efetivação dos direitos
humanos não há qualquer equívoco, mas projetar-lhes condição sine qua non, no
campo da construção teórica e proteção dos direitos humanos, não passa de uma
sublevação de expectativas. De um lado, enquanto não houver uma alteração nos
estatutos, e, portanto, da ontologia e teleologia das Nações Unidas, e conseqüentes
alterações de ordem estrutural, inclusive sua localização geográfica, padeceremos de
efetividade e legitimidade dos direitos humanos universais; de outro, a urgência de o
Ocidente (re) considerar sua superioridade e prepotência cultural. Não se trata de
concorrência pelo monopólio mas de concorrência para finalidade em face do
esgotamento, hoje observado, das metanarrativas e da ausência de referencial
emancipatório, decorrentes principalmente da pulverização do poder e do processo
de globalização.
Três anos após a criação da ONU, a Assembleia Geral aprovou a Declaração Universal
de Direitos Humanos (1948). Para a elaboração do documento, as Nações Unidas criaram uma
comissão de pensadores e escritores, os quais representavam diferentes correntes de
pensamentos
para buscar
estabelecer uma
fundamentação
dos
direitos
humanos
(BARRETTO, 2010).
Basicamente, os argumentos que foram analisados pela comissão podem ser divididos
em dois grupos: 1) sustentavam que a fundamentação dos direitos humanos deveria basear-se
em uma concepção historicista, pois o indivíduo vive em um processo histórico sujeito a
mudanças; 2) aduziam que os direitos humanos seriam direitos naturais, isto é, anteriores e
superiores à sociedade (BARRETTO, 2010).
Devido as divergências para chegar a uma fundamentação, o processo de aprovação da
declaração foi bastante complexo. John Humphrey, professor da Universidade Canadense de
McGill preparou uma minuta, sendo que somente após 83 reuniões e 170 emendas o rascunho
foi sancionado para ser votado. Em 10 de dezembro de 1948 a Assembleia Geral aprovou a
chamada “Declaração Universal dos Direitos Humanos” com 48 votos a favor e oito
abstenções (HUNT, 2009).
Sobre referida Declaração, José Querino Tavares Neto (2008, p. 72) afirma:
37
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da ONU, é o grande
documento político-ideológico, mas não elucidatório, da discussão contemporânea
dos direitos humanos. Mesmo assim podemos afirmar sua contribuição, juntamente
com o avanço do processo integratório europeu (relativizado atualmente), para a
institucionalização e internacionalização dos direitos humanos como elemento-chave
de interpretação das sociedades do pós-Guerra.
Com o processo de internacionalização dos direitos humanos, dezenas de convenções
foram criadas pelas Nações Unidas ou por organizações regionais, sendo que mais de uma
centena foi aprovada pela Organização Internacional do Trabalho (COMPARATO, 2013).
Neste sentido, a proteção internacional dos direitos humanos no sistema onusiano
concedeu ao indivíduo um status diferenciado, sobretudo concretizado na possibilidade de
adotar medidas para conter os abusos perpetrados pelos Estados (GUERRA, 2008).
Com a presença da ONU e anos após com o advento das organizações regionais,
gradualmente iniciou-se a elevação dos direitos humanos a nível internacional com o escopo
de criar ações para vigiar o status destes direitos no âmbito interno dos Estados e ainda com a
possibilidade de condenar os países violadores (SEPÚLVEDA, 1988).
No plano internacional prevalece o entendimento de que existe a supremacia da norma
imperativa de direito internacional geral (jus cogens), tanto é que a Convenção de Viena sobre
os Direitos dos Tratados de 1969 declara em seu artigo 53 serem nulos os tratados que
estejam em conflito com alguma norma imperativa de direito internacional geral. Por
consenso, normas internacionais de direitos humanos são consideradas jus cogens
(COMPARATO, 2013).
Em razão disto, Constituições que foram criadas após a 2ª Guerra Mundial possuem
normas que declaram que normas de direitos humanos possuem status de norma
constitucional, entretanto, o Brasil veio de encontro a esta tendência, tendo em vista que após
a promulgação da Emenda Constitucional n. 45/2004 que introduziu o §3º no artigo 5º da
Constituição, trouxe a redação de que (COMPARATO, 2013, p. 74), somente “os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais” (BRASIL, 1988).
Para Fábio Konder Comparato (2013, p. 75) esta situação trata-se de um “retrocesso
[...] imposto pelo grupo oligárquico dominante, o qual, submetido à crescente pressão
internacional, não quis abrir mão do seu tradicional privilégio de impunidade ao desrespeitar
os direitos humanos dos mais fracos e pobres”.
38
Nesta senda, vislumbra-se ser mais fácil subscrever tratados de direitos humanos do
que efetivá-los. Esta situação é demonstrada no fato de que há constantes conferências
internacionais com temáticas relativas, por exemplo, à escravidão. Inclusive a ONU chegou a
adotar uma Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos
e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura em 1956, no entanto, estima-se que exista
cerca de 27 milhões de escravos no mundo atualmente. No mesmo sentido foi aprovada a
Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes em 1984 porque em verdade a tortura não desapareceu mesmo quando sua forma
judicial foi abolida ainda no século XVIII e hoje é empregada dentro das forças militares dos
Estados Modernos (HUNT, 2009).
1.2.3 O indivíduo como sujeito de direito internacional
Para o direito internacional clássico, nunca o homem foi considerado sujeito
internacional, tendo em vista que esta qualidade era reservada aos Estados, às Organizações
Internacionais ou às entidades sui generis, como o Vaticano (BIDART CAMPOS, 1990).
A concepção clássica sustentava que os indivíduos eram considerados somente objeto
do direito internacional, em outras palavras, a teoria negava a subjetividade jurídica
internacional do indivíduo, porquanto o considerava somente como sujeito de direito interno
(LEÓN, 2008).
Entretanto, no início do século XX surgiu a doutrina jusinternacionalista que
sustentava a personalidade do indivíduo como sujeito de direito internacional, resgatando as
reflexões e a visão dos fundadores do Direito Internacional (notadamente os escritos de F. de
Vitoria, F. Suárez, H. Grotius, A. Gentili, S. Puferdorf, C. Wolff), que o concebiam como um
ordenamento universal (CANÇADO TRINDADE, 2003).
Esta doutrina jurídica refletia o processo histórico da emancipação dos indivíduos da
tutela exclusiva do Estado, contradizendo categoricamente a teoria positivista clássica que
sustentava que os indivíduos eram simples objetos do ordenamento jurídico internacional
(CANÇADO TRINDADE, 2003).
Ainda no século XX, duas situações foram extremamente relevantes para haver a
mudança da situação da subjetividade jurídica internacional do indivíduo. A primeira referese à sentença do Tribunal Militar Internacional de Nüremberg e a segunda foi a opinião
39
consultiva da Corte Internacional de Justiça (CIJ) sobre a reparação de danos sofridos ao
serviço da Organização das Nações Unidas (ONU) (LEÓN, 2008).
O Tribunal de Nüremberg fora criado com o fim específico de julgar os indivíduos que
cometeram crimes internacionais durante a segunda guerra mundial (membros do Eixo).
Neste momento, viu-se necessário reconhecer a subjetividade e responsabilidade jurídica
internacional do indivíduo. A sentença do Tribunal refutou o positivismo extremo e
demonstrou que os indivíduos podiam ser sancionados por crimes sob a égide do direito
internacional.
Contudo, mister ressaltar que o reconhecimento dos direitos individuais não abrange
somente a possibilidade de o indivíduo ser responsabilizado internacionalmente, mas também
de poder reivindicá-los, tornando possível a consolidação de sua plena capacidade
postulatória (CANÇADO TRINDADE, 2002).
Dentro deste panorama é que se passou a vincular a subjetividade internacional dos
indivíduos. Logo, em caso de violação de direitos humanos tornou-se plenamente justificado o
acesso do indivíduo à jurisdição internacional para fazer valer seus direitos, inclusive contra
o próprio Estado (CANÇADO TRINDADE, 2003).
1.2.4 Direitos humanos e justiça internacional: o sistema global e os sistemas regionais de
proteção
O Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos Manuel Ventura Robles (2005),
entende por acesso à justiça a possibilidade de toda pessoa, independente de sua condição
econômica, acessar um sistema para a resolução de conflitos visando reivindicar seus direitos.
Desta forma, para se esclarecer um fato, é possível auxiliar-se dos meios previstos pelo
ordenamento jurídico nacional e internacional para sua respectiva resolução.
No âmbito universal e interamericano, adotaram-se uma série de tratados
internacionais que além de estabelecer os direitos humanos com base na dignidade humana,
fixaram a necessidade de proteção de tais direitos de modo que quem se veja afetado possa
reclamar a violação judicialmente (IIDH, 2009).
É sabido que os direitos humanos podem ser protegidos tanto em âmbito interno
quanto internacional, contudo, quando tais direitos não são protegidos no âmbito doméstico, o
sistema internacional entra em atuação por meio do sistema global ou regional de proteção
dos direitos humanos (HEYNS, 2006).
40
No que se refere ao sistema global de proteção dos direitos humanos, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos constitui o texto básico para analisar os mecanismos de
proteção da ONU e de todos os demais textos que por ela foram inspirados. A partir deste
momento, de maneira progressiva foi reconhecida a capacidade do indivíduo de recorrer às
Nações Unidas e registrar suas queixas, em caso de violação de seus direitos com a criação de
mecanismos de supervisão à margem da vontade do Estado transgressor (LEÓN, 2008).
O Protocolo Facultativo I do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
(PIDCP), permite que os indivíduos que aleguem ter sido vítimas de alguma violação dos
direitos garantidos no Pacto, documentem as comunicações ou queixas individuais perante o
Comitê de Direitos Humanos. É exigido que o demandante seja a própria vítima da violação
(pessoa física) ou seu representante legal, razão pela qual não é permitida a actio popularis. A
vítima tem de ser exclusivamente uma pessoa física, pois caso exista alguma queixa com
fundamento em algum dos direitos encontrados no PIDCP proveniente de pessoas jurídicas o
Comitê de Direitos Humanos não irá receber a queixa. Uma vez aprovada a admissibilidade
da comunicação realizada, passa-se à segunda fase dos procedimentos, na qual é analisado o
mérito da comunicação (LEÓN, 2008).
Após a criação no sistema global, aos poucos foi amadurecendo a ideia de criação de
sistemas regionais de proteção aos direitos humanos para facilitar o acesso do indivíduo.
Quando foi instaurado o primeiro sistema regional (europeu), as Nações Unidas questionaram
sua implementação, no entanto, os benefícios obtidos são amplamente aceitos atualmente,
pois permitem que sejam adotados mecanismos de cumprimento que se coadunam melhor
com as condições locais do que o sistema de proteção global (universal) (HEYNS, 2006).
Os sistemas regionais de proteção estão ao lado do sistema global, os quais possuem
como desiderato internacionalizar os direitos humanos particularmente na Europa, América e
África (PIOVESAN, 2011).
Cada um destes sistemas possui aparato jurídico próprio. A necessidade de proteção
dos direitos humanos na Europa surgiu em decorrência das atrocidades cometidas durante a
Segunda Guerra Mundial. Após todos os abusos perpetrados durante este período o continente
europeu experimentou um momento de reconstrução, e, na esteira da Declaração de 1948 da
ONU é que se pretendeu tomar medidas para assegurar os direitos ali previstos no âmbito
humanitário (GUERRA, 2011).
Uma das consequências do processo de integração europeia foi a criação de uma
Convenção, contudo, diferentemente do que ocorre nos sistemas regionais interamericano e
africano, o sistema europeu abrange uma região relativamente homogênea no que diz respeito
41
a instituição do regime democrático e de Estado de Direito. Porém, com a inclusão dos países
do Leste Europeu os quais possuem maior diversidade e heterogeneidade comparando com a
Europa Ocidental, o sistema europeu passou a abarcar o desafio de enfrentar situações de
graves e sistemáticas violações aos direitos humanos nos incipientes regimes democráticos
ainda em construção (PIOVESAN, 2011).
Entre os sistemas regionais, a Corte Europeia é a que traduz maior experiência de
justicialização de direitos humanos e por ser o sistema mais consolidado exerce forte
influência sobre os demais (PIOVESAN, 2011).
A chamada “Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das
Liberdades Fundamentais” é o tratado que rege o sistema regional europeu, a qual fora
concluída em Roma no ano de 1950 (MAZZUOLI, 2010).
Esta Convenção é composta por três partes. Na primeira são elencados os direitos e
liberdades fundamentais – civis e políticos – (Titulo I, artigos 2º a 18); na segunda parte a
Convenção regulamenta a estrutura e funcionamento da Corte Europeia (Título II, artigos 19 a
51); e, por fim, na terceira parte são estabelecidas disposições diversas, tais como: os poderes
do Comitê de Ministros, requisições ao Secretário-Geral do Conselho da Europa, entre outros
(Título III, artigos 52-59) (GUERRA, 2011).
Há quem afirme que a Convenção Europeia foi e continua sendo o mais importante
documento europeu de direitos, pois o texto vigora há mais de 50 anos e ao realizar sua
análise, verifica-se o grande interesse e preocupação com os direitos humanos (GUERRA,
2011).
Desde sua primeira decisão em 1960, a Corte Europeia proferiu mais de 1.600
sentenças, acabando por influenciar tribunais do mundo todo e modificado a vida de inúmeros
cidadãos (MAZZUOLI, 2010).
Após o Protocolo n. 11 foi conferido aos indivíduos, grupos de indivíduos e ONGs
acesso direto a Corte Europeia, momento em que podem apresentar uma petição caso ocorra
violação a direito constante na Convenção Europeia. Salienta-se que antes do Protocolo n. 11,
somente os Estados-Partes e a Comissão podiam submeter casos à Corte Europeia, contudo,
eventualmente as denúncias chegavam à Corte (PIOVESAN, 2011).
Muito embora esta inovação tenha trazido um grande avanço, acabou por constituir
um desafio em razão do excessivo aumento de demandas submetidas à Corte. A título
exemplificativo, Flávia Piovesan (2011) cita que na década de 60, apenas 10 decisões foram
proferidas pela Corte Europeia; na década de 70 foram 26 decisões; na década de 80 foram
proferidas 169 decisões, e nos anos 90, mais de 800 decisões foram proferidas.
42
Nos termos do artigo 20 da Convenção Europeia, a Corte é composta de um número
de juízes igual ao número de Estados-partes na Convenção, com mandato de seis anos. De
acordo com informações do próprio site da Corte, esta atualmente conta com 48 juízes.9
No que concerne aos requisitos de admissibilidade de um caso perante a Corte
Europeia o artigo 35 da Convenção regente dispõe o seguinte (EUROPEAN COURT OF
HUMAN RIGHTS):
1. O Tribunal só pode ser solicitado a conhecer de um assunto depois de esgotadas
todas as vias de recurso internas, em conformidade com os princípios de direito
internacional geralmente reconhecidos e num prazo de seis meses a contar da data
da decisão interna definitiva.
2. O Tribunal não conhecerá de qualquer petição individual formulada em aplicação
do disposto no artigo 34° se tal petição:
a) For anónima; b) For, no essencial, idêntica a uma petição anteriormente
examinada pelo Tribunal ou já submetida a outra instância internacional de inquérito
ou de decisão e não contiver factos novos.
3. O Tribunal declarará a inadmissibilidade de qualquer petição individual
formulada nos termos do artigo 34° sempre que considerar que:
a) A petição é incompatível com o disposto na Convenção ou nos seus Protocolos, é
manifestamente mal fundada ou tem caráter abusivo; ou
b) O autor da petição não sofreu qualquer prejuízo significativo, salvo se o respeito
pelos direitos do homem garantidos na Convenção e nos respetivos Protocolos exigir
uma apreciação da petição quanto ao fundo e contanto que não se rejeite, por esse
motivo, qualquer questão que não tenha sido devidamente apreciada por um tribunal
interno.
4. O Tribunal rejeitará qualquer petição que considere inadmissível nos termos do
presente artigo. O Tribunal poderá decidir nestes termos em qualquer momento do
processo.
Se a petição for declarada inadmissível não pode ser objeto de apelação, a decisão da
Corte será definitiva. Por outro lado, caso a petição seja declarada admissível, as partes serão
cientificadas e a Corte buscará uma solução amistosa; caso seja inexitosa, são fixados prazos
para apresentação de memoriais e a Corte decidirá a necessidade de ser realizada uma
audiência. Por fim, se a Corte decidir que há violação a um ou mais artigos da Convenção,
poderá determinar a compensação pecuniária à vítima. A decisão final da Corte é transmitida
ao Comitê de Ministros que serão responsáveis na supervisão da execução da sentença
(PIOVESAN, 2011).
Se, como dito anteriormente, o sistema regional europeu apresenta-se como o mais
consolidado dos sistemas regionais, o sistema africano é o mais recente e incipiente. A
história deste sistema revela a complexidade do continente devido às peculiaridades culturais
advindas após o processo de descolonização (PIOVESAN, 2011).
9
Sobre
a
atual
composição
da
Corte,
http://www.echr.coe.int/ECHR/EN/Header/The+Court/The+Court/Judges+of+the+Court/>.
acessar:
<
43
A Carta Africana entrou em vigência em 21 de outubro de 1986 após atingir o número
mínimo de ratificações necessárias (PEREIRA, 2007), O documento é constituído de três
partes: a primeira trata dos direitos e dos deveres; a segunda discorre acerca das medidas de
salvaguarda (composição e organização da Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos
Povos; competências; do processo perante a Comissão e dos princípios); por fim, a terceira
parte explicita as disposições diversas (GUERRA, 2011).
Consoante o disposto no artigo 30 da Carta, a Comissão Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos é "encarregada de promover os direitos humanos e dos povos e de
assegurar a respectiva proteção na África” (AFRICAN COMMISSION ON HUMAN AND
PEOPLES’ RIGHTS).
Embora não tenha caráter jurisdicional, posto que suas decisões não possuem caráter
obrigatório, a Comissão possui grande importância na estrutura da União Africana, pois
exerce funções diversificadas (GUERRA, 2011).
Compete-lhe apreciar comunicações interestatais, bem como petições submetidas por
indivíduos ou ONGs que denunciem violação aos direitos humanos enunciados na Carta.
Quanto à petição, esta deve preencher os requisitos de admissibilidade, entre eles destaca-se o
prévio esgotamento dos recursos internos, exceto nos casos de demora injustificada
(PIOVESAN, 2011).
Diferentemente da Convenção Europeia e da Convenção Americana, a Carta Africana
não estabeleceu em sua redação original uma Corte Africana, mas somente a Comissão, que
não tem o poder de adotar decisões juridicamente vinculantes (PIOVESAN, 2011).
No entanto, algumas ONGs, em particular a Anistia Internacional defenderam a
criação de uma Corte para complementar as funções da Comissão. Então, em 1998 foi
adotado o Protocolo à Carta Africana, objetivando a criação da Corte Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos, localizada na Etiópia. O Protocolo entrou em vigor em 2004, contudo,
até o ano de 2010, dos 53 Estados partes da Carta Africana, somente 24 haviam ratificado o
Protocolo. Por conseguinte, o reconhecimento da jurisdição da Corte Africana pelos Estados
da região é um dos desafios empreendidos pelo sistema africano (PIOVESAN, 2011).
A Corte é composta por 11 juízes, nacionais dos Estados que compõe a União
Africana, os quais deverão ter conduta ilibada e preencher os critérios de qualificação no
campo de direitos humanos (GUERRA, 2011).
Possui competência para apreciar casos submetidos pela Comissão Africana, pelos
Estados ou pela Organização Intergovernamental Africana, não olvidando que indivíduos e
ONGs também poderão submeter casos diretamente à Corte, desde que haja declaração
44
formulada pelo Estado para esse fim, consoante previsão dos artigos 5º, §3º, e 34, §6º do
Protocolo.
Como um dos objetos da pesquisa é a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ela
será estudada de modo mais aprofundado no segundo capítulo.
1.2.5 A necessidade de efetivação do direito humano fundamental ao acesso à justiça no
âmbito internacional
A atual concepção dos direitos humanos surgiu como produto do cristianismo, do
direito natural, bem como dos pensamentos filosóficos. As ideias de tais pensamentos
possuíam como ponto em comum, a necessidade de limitação e controle dos abusos de poder
perpetrados pelo Estado (MORAES, 2011).
No momento em que foi abordada a temática relativa à internacionalização dos
direitos humanos, verificou-se que após a Segunda Guerra Mundial o indivíduo passou a ter
subjetividade internacional, isto é, surgiu a possibilidade dele ser responsabilizado por seus
atos internacionalmente e ainda adquiriu o direito de acessar –
ter acesso à justiça
- Cortes
Internacionais com a finalidade de fazer valer seus direitos contra os atos cometidos pelo
Estado.
Pois bem, no vernáculo, a expressão justiça apresenta dois sentidos: o primeiro dá a
noção de “ideal”, “valor ético”; e o segundo faz referência ao conjunto de órgãos estatais que
compõem o Poder Judiciário. Nesse passo, pode ocorrer confusão quando se propõe tratar da
questão do acesso à justiça, pois há risco de haver ambiguidade da expressão (SANTOS,
2005).
Importante destacar que a expressão acesso à justiça é de difícil definição e determina
dois objetivos básicos do sistema jurídico: 1º) o sistema pelo qual as pessoas podem resolver
seus litígios sob a proteção do Estado, e 2º) devem produzir resultados que sejam não
somente individual, mas também socialmente justos (CAPELETTI; GARTH, 2002).
Entretanto, nem sempre o acesso à justiça teve estas finalidades. Mauro Cappelletti e
Garth (2002) lembram que nos estados liberais burgueses dos séculos XVIII e XIX, as formas
usadas para solução dos litígios civis refletiam uma filosofia individualista dos direitos, e o
acesso à proteção judicial significava tão somente o direito de propor ou contestar uma ação.
Em que pese tradicionalmente o acesso à justiça tenha sido entendido mais como uma
prerrogativa do Estado do que um direito fundamental dos indivíduos, tal entendimento
alterou-se nas últimas décadas e vem tomando força a ideia do acesso à justiça como um
45
direito fundamental. A importância do acesso à justiça com esta característica é devido ao fato
de dar conteúdo material à igualdade formal mediante a exigibilidade de outros direitos, bem
como a resolução de conflitos entre particulares, ou entre particulares e o Estado. Por esta
razão, o acesso à justiça permite dar efetividade a direitos civis, políticos, econômicos, sociais
e culturais, abrindo o caminho para reclamar pelo seu cumprimento e assim garantir a
igualdade e a não discriminação (COMJIBD, 2010).
Malgrado o significado da expressão acesso à justiça tenha variado no tempo devido a
influências de natureza política, religiosa, sociológica e filosófica (CARNEIRO, 1999) acabou
por adquirir grande importância nas últimas décadas, passando a ser reconhecido como o mais
fundamental dos direitos humanos, no sentido de que torna possível sua materialização
(ANNONI, 2008).
Assim, o acesso à justiça não é somente um direito humano, mas também uma forma
de se efetivar os demais direitos, em razão de ser por meio dele que se podem reclamar
eventuais violações, de acordo com o reconhecimento dos direitos pela Constituição de um
Estado, pelo direito internacional dos direitos humanos ou pelos direitos de caráter privado
(IIDH, 2009).
O acesso à justiça é um direito humano fundamental em um sistema democrático que
tenha por objeto garantir os direitos de todos igualmente, posto que quando outros direitos são
violados, o acesso à justiça constitui a via para reclamar seu cumprimento ante os tribunais e
garantir a igualdade perante a lei (KOHEN; HAYDÉE, 2006).
O direito em estudo possui caráter instrumental que se traduz em uma função social,
pois conta com mecanismo de solução de conflitos que visa alcançar a paz social evitando a
autotutela ou a busca da justiça com as próprias mãos (IIDH, 2011).
Nesta senda, é de grande importância destacar que tal direito não pode ser visto como
mero direito de acesso ao Poder Judiciário, pois ao se falar em acesso à justiça está-se a falar
em acesso à ordem jurídica justa; desta forma, somente haverá o pleno acesso à justiça
quando toda a sociedade alcançar uma situação de justiça. Por conseguinte, este direito deve
ser encarado como a realização do direito material, do acesso à efetiva satisfação da pretensão
dos cidadãos e como garantia real de acesso ao bem da vida que irá satisfazer suas
necessidades (CÂMARA, 2002).
Não somente se deve postular um acesso à justiça, mas sim que este acesso seja
efetivo, pois de nada valeria proclamar que as pessoas possuem tal direito, se na realidade dos
fatos essa possibilidade é reduzida. Logo, os indivíduos devem ter uma verdadeira e real
possibilidade de acessar à jurisdição (LUGARO, 2003).
46
Os magistrados são agentes da concretização multidimensional dos direitos humanos,
incumbindo-lhes satisfazer o direito natural correspondente à dignidade da pessoa humana,
porquanto esta é a tarefa a ser realizada diante dos conflitos que lhes são submetidos, devendo
atender a expectativa da sociedade quanto à efetivação da justiça (SAYEG; BALERA, 2011).
Por outro lado, a justiça indiferente e alienada que desconsidera a pessoa humana,
deixando de satisfazer a dignidade do indivíduo é inaceitável, pois afronta a lei universal da
fraternidade quando os direitos humanos não são concretizados (SAYEG; BALERA, 2011).
Torna-se incontestável a relevância da tarefa do Poder Judiciário na aplicação dos
direitos humanos, isto porque, a partir do momento em que a decisão judicial contrariar
referidos direitos, tornar-se-á repulsiva, sórdida e corresponderá materialmente ao nada
jurídico por impor obstáculo à satisfação da dignidade da pessoa humana (SAYEG;
BALERA, 2011).
Desta forma, não existe controvérsia em torno da obrigação do Estado para promover
políticas públicas orientadas a facilitar o acesso à justiça (PNUD, 2005).
Um dos princípios que operam o acesso à justiça é a acessibilidade que pressupõe a
existência de pessoas capazes de estarem em juízo, sem impedimento de ordem financeira,
utilizando de forma adequada os instrumentos legais judiciais e extrajudiciais existentes com
o fim de possibilitar a efetivação dos direitos individuais e coletivos que organizam uma
sociedade (CARNEIRO, 1999).
É evidente que um dos componentes a tornar algo acessível é o conhecimento dos
direitos existentes e da maneira pela qual deverão ser utilizados. É neste momento que surge o
direito à informação, o qual é considerado ponto de partida e de chegada para que o acesso à
justiça, tal como é preconizado, seja real e alcance a todos. É ponto de partida porque sem ele
uma série de direitos não seriam sequer reclamados (campo individual), e ponto de chegada,
na medida em que eventuais direitos reclamados e obtidos fossem realidade para poucos
(campo coletivo) (CARNEIRO, 1999).
No Brasil são evidentes os obstáculos que devem ser ultrapassados para que o acesso à
justiça seja efetivado em sua totalidade, destacam-se aqui somente os que dizem respeito ao
fator tempo, formalismo exacerbado e os de natureza econômica.
Deste modo, se há dificuldades para efetivação do acesso à justiça no âmbito estatal,
quiçá o acesso à justiça no âmbito internacional encontre maiores percalços, muito embora
exista o reconhecimento da subjetividade do indivíduo internacionalmente.
Neste sentido, faz-se mister sustentar a necessidade de ampliar o direito à informação
dos indivíduos de que quando há uma violação a um direito humano seu, positivado no Pacto
47
de San José da Costa Rica, o qual o Brasil é signatário, surge então a possibilidade de poder
acessar à instância internacional para fazer valer seus direitos.
A ideia de acesso à justiça está intimamente relacionada com o conceito de
desenvolvimento, senão vejamos.
Antigamente a avaliação do progresso de uma população levava em consideração
apenas a dimensão econômica – Produto Interno Bruto (PIB) per capita - enquanto hoje, leva
em conta três dimensões básicas do desenvolvimento humano: 1) renda, 2) saúde e 3)
educação, visando oferecer um contraponto e desvencilhando-se do viés puramente
econômico (PNUD, s.d.a).
Por meio das ideias lançadas por um dos mais influentes economistas da atualidade, o
indiano Amartya Sen (Prêmio Nobel de Economia em 1998), o conceito de desenvolvimento
passou a abranger inúmeros elementos, dentre eles, o direito humano ao acesso à justiça, o
qual deve envolver a proteção regulamentar dos direitos dos cidadãos, à informação dos
indivíduos sobre os direitos que possuem, no aconselhamento jurídico, nos mecanismos legais
de resolução de litígios acessíveis e eficazes, sejam ou não de titularidade estatal, etc. (PNUD,
2005).
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) criado pelo paquistanês Mahbub ul Haq
teve a colaboração do economista indiano Amartya Sen. O IDH avalia que o desenvolvimento
de uma população deve ser aferido não somente pela dimensão econômica, mas também pelas
características sociais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida humana.10
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)11 lançou o Relatório
de Desenvolvimento Humano (RDH) em 1990 no seguinte contexto mundial: na Alemanha o
Muro de Berlim estava prestes a cair. No leste europeu, a União Soviética estava em vias de
se dissolver. Na África do Sul, o regime do apartheid acabara de libertar Nelson Mandela. No
Chile, Augusto Pinochet abandonara o poder. No Oriente Médio, o Iraque estava prestes a
10
DESENVOLVIMENTO HUMANO E IDH. Pnud. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/idh/>. Acesso
em: 28 abr. 2012.
11
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) é a rede global de desenvolvimento da
Organização das Nações Unidas, presente em 177 países e territórios. Seu mandato central é o combate à
pobreza. Trabalhando ao lado de governos, iniciativa privada e sociedade civil, o PNUD conecta países a
conhecimentos, experiências e recursos, ajudando pessoas a construir uma vida digna e trabalhando
conjuntamente nas soluções traçadas pelos países-membros para fortalecer capacidades locais e proporcionar
acesso a seus recursos humanos, técnicos e financeiros, à cooperação externa e à sua ampla rede de parceiros [...]
Em 1990, o PNUD introduziu em todo o mundo o conceito de desenvolvimento humano sustentável, que
promove a adoção de políticas públicas cujo foco está voltado às pessoas – e não a acumulação de riquezas –
como propósito do desenvolvimento. Para aferir o grau de desenvolvimento humano sustentável de uma
sociedade, o PNUD utiliza o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), criado pelo professor Amartya Sen,
ganhador
do
Prêmio
Nobel
de
Economia
em
1998.
Disponível
em:
<
http://www.pnud.org.br/SobrePNUD.aspx>. Acesso em: 27 abr. 2012.
48
invadir o Kuwait. Em Pequim, os estudantes manifestavam-se a favor de reformas políticas.
As bolsas de valores de Xangai e Shenzhen foram abertas e a expressão “Consenso de
Washington” acabara de ser cunhada (RELATÓRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO
2010).
Fora nestas circunstâncias que o primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano
apelou com eloquência e humanidade uma abordagem diferente acerca da economia e do
desenvolvimento.
No RDH de 1999, Amartya Sen discorreu o seguinte em seu prefácio:
Devo reconhecer que não via no início muito mérito no IDH em si, embora
tivesse tido o privilégio de ajudar a idealizá-lo. A princípio, demonstrei
bastante ceticismo ao criador do Relatório de Desenvolvimento Humano,
Mahbub ul Haq, sobre a tentativa de focalizar, em um índice bruto deste tipo
– apenas um número -, a realidade complexa do desenvolvimento e da
privação humanos. [...] Mas, após a primeira hesitação, Mahbub convenceuse de que a hegemonia do PIB (índice demasiadamente utilizado e valorizado
que ele queria suplantar) não seria quebrada por nenhum conjunto de tabelas.
As pessoas olhariam para elas com respeito, disse ele, mas quando chegasse a
hora de utilizar uma medida sucinta de desenvolvimento, recorreriam ao
pouco atraente PIB, pois apesar de bruto era conveniente. [...] Devo admitir
que Mahbub entendeu isso muito bem. E estou muito contente por não
termos conseguido desviá-lo de sua busca por uma medida crua. Mediante a
utilização habilidosa do poder de atração do IDH, Mahbub conseguiu que os
leitores se interessassem pela grande categoria de tabelas sistemáticas e pelas
análises críticas detalhadas que fazem parte do Relatório de Desenvolvimento
Humano. (RELATÓRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO 2010)
Em um primeiro momento o IDH foi considerado radical para a época, no entanto,
hoje é quase que universalmente aceito que o bem-estar de um indivíduo não pode ser
avaliado somente pelo dinheiro. Logicamente que o rendimento é sim fator deveras
importante, haja vista que sem recursos econômicos o progresso é difícil de ser alcançado,
contudo, também deve ser avaliado se as pessoas conseguem ter vidas longas e saudáveis, se
têm oportunidades para receber educação e se são livres para utilizarem os seus conhecimentos (DESENVOLVIMENTO HUMANO E IDH).
O conceito de Desenvolvimento Humano criado por Haq e Sen além de computar o
PIB per capita leva em consideração a longevidade e a educação. A renda é medida pelo PIB
per capita; a educação é mensurada pelo índice de analfabetismo, bem como pela taxa de
matrícula; e a longevidade utiliza números de expectativa de vida ao nascer. Todas estas três
dimensões variam de zero a um (DESENVOLVIMENTO HUMANO E IDH).
49
Com o passar dos anos o IDH tornou-se referência mundial e é um dos objetivos de
Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas.12 O conceito de desenvolvimento humano
do PNUD afetou drasticamente uma geração de responsáveis por políticas e especialistas da
área concernente ao desenvolvimento de todo o mundo, pois constituiu uma oportunidade
para rever as realizações e os desafios do desenvolvimento humano aos níveis global e
nacional, como também para fazer análise das suas implicações nas políticas e investigações
futuras (RELATÓRIOS DE DESENVOLVIMENTO HUMANO, s.d.a).
Na questão relacionada ao acesso à justiça, o PNUD parte do princípio de que este é
um
direito
humano
fundamental
para
garantir
o
direito
ao
desenvolvimento.
Tradicionalmente, o conceito de acesso à justiça tem sido limitado a considerar formas,
materiais logísticos e instrumentos que são disponibilizados às pessoas que frequentam o
sistema de justiça como "usuários" (computador, local, comunicações, transporte, etc.).
Entretanto, hoje o acesso à justiça possui um conceito muito mais amplo e envolve, entre
outros aspectos, a obrigação do Estado de proteger e garantir o exercício dos direitos das
pessoas como “titulares de direitos” em condições de igualdade e sem discriminação, baseada
no sexo, raça, etnia, idade, política, ideologia e crenças religiosas, bem como a aplicação da
justiça rápida e completa, situação esta que implica que os detentores de direitos obtenham
uma resolução justa de suas pretensões em um prazo razoável, de maneira imparcial e em
conformidade com os critérios e procedimentos estipulados pela lei (WAGNER, 2007).
A partir do reconhecimento e exigência de direitos, as pessoas gozarão de melhores
possibilidades de acesso à justiça, especialmente os setores mais vulneráveis como mulheres,
crianças, adolescentes, indígenas e famílias de baixa renda (PNUD PARAGUAY, 2007).
Os magistrados são agentes da concretização multidimensional dos direitos humanos,
incumbindo-lhes satisfazer o direito natural correspondente à dignidade da pessoa humana,
porquanto esta é a tarefa a ser realizada diante dos conflitos que lhes são submetidos, devendo
atender a expectativa da sociedade quanto à efetivação da justiça (SAYEG; BALERA, 2011).
Por outro lado, a justiça indiferente e alienada que desconsidera a pessoa humana,
deixando de satisfazer a dignidade do indivíduo é inaceitável, pois afronta a lei universal da
fraternidade quando os direitos humanos não são concretizados (SAYEG; BALERA, 2011).
Torna-se incontestável a relevância da tarefa do Poder Judiciário na aplicação dos
direitos humanos, isto porque, a partir do momento em que a decisão judicial contrariar
referidos direitos, tornar-se-á repulsiva e sórdida e corresponderá materialmente ao nada
12
DESENVOLVIMENTO HUMANO E IDH. Pnud. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/idh/>. Acesso
em: 28 abr. 2012.
50
jurídico por impor obstáculo à satisfação da dignidade da pessoa humana (SAYEG;
BALERA, 2011).
Desta forma, não existe controvérsia em torno da obrigatoriedade do Estado para
promover políticas públicas orientadas a facilitar o acesso à justiça (PNUD, 2005).
Para Amartya Sen, a teoria do desenvolvimento tem como pressupostos as notáveis
mudanças da esfera econômica, mormente quando fora estabelecido o regime democrático
durante o século XX, quando conceitos concernentes aos direitos humanos e liberdade política
fizeram parte da retórica prevalecente (SEN, 2010).
Hodiernamente, as pessoas vivem em média muito mais tempo do que do passado, o
comércio e as comunicações estão mais interligados do que jamais estiveram. Em
contrapartida, o mundo atual também possui inúmeras privações, destituições e opressões,
exemplo disto é a persistência da pobreza, das necessidades mínimas não satisfeitas, da
violação de liberdades básicas, omissão da condição das mulheres, ameaças ao meio
ambiente, problemas na vida econômica e social, etc. Muitas dessas privações podem ser
encontradas tanto em países ricos como em países pobres (SEN, 2010).
Para o economista indiano, o ponto central de todo o processo de desenvolvimento
envolve a superação dos problemas citados alhures, tanto que defende a teoria de que o meio
para combater estes males é por meio do reconhecimento das diferentes formas de liberdade
como um comprometimento social (SEN, 2010).
Destarte, a expansão da liberdade é vista como o principal fim e o principal meio do
desenvolvimento, consistente na eliminação das privações das liberdades. Para Amartya Sen o
objetivo do desenvolvimento se dá pela eficácia de liberdades específicas e na promoção de
outras liberdades, exemplo disto é o fato de que as liberdades econômicas e políticas se
reforçam reciprocamente (SEN, 2010).
Mister salientar que o economista analisa de uma maneira sistemática as atividades
econômicas, sociais e políticas, demonstrando a inter-relação entre as liberdades
instrumentais, quais sejam: oportunidades econômicas, liberdades políticas, facilidades
sociais, garantias de transparência e segurança protetora, conforme será visto a seguir:
(1) As liberdades políticas incluem os direitos civis consistentes nas oportunidades
que os indivíduos têm de escolher quem deve governar; abrange também a possibilidade de
fiscalizar as autoridades, de ter expressão política, de ter uma imprensa sem censura, entre
outros. (2) As facilidades econômicas fundam-se nas oportunidades que os sujeitos têm para
utilizar os recursos econômicos com propósitos de produção, troca ou consumo. (3) As
oportunidades sociais baseiam-se nas disposições nas áreas de educação e saúde. (4) As
51
garantias de transparência envolvem as necessidades de sinceridade que as pessoas podem
esperar umas das outras, e possuem um papel de inibidor da corrupção, da irresponsabilidade
financeira e de transações ilícitas. E por fim, (5) a segurança protetora visa impedir que a
população seja reduzida à miséria, incluindo benefícios aos desempregados, distribuição de
alimentos em casos de crises de fome coletiva ou em casos emergência para os necessitados
(SEN, 2010).
De relevância destacar que dentre as liberdades instrumentais citadas acima, o acesso
à justiça está contido nas liberdades políticas, pois esta possui importância direta para a vida
humana associada às capacidades básicas dos indivíduos de participação social (SEN, 2010).
Nesta senda, a liberdade envolve tanto os processos que permitem as ações/decisões,
como também as oportunidades reais que as pessoas têm, observando sempre suas
circunstâncias pessoais e sociais. Conseguintemente, a privação de liberdade pode surgir tanto
por processos inadequados – como, por exemplo, violação do direito ao voto - ou de
oportunidades impróprias que algumas pessoas têm para realizar o mínimo do que gostariam
(SEN, 2010).
As liberdades citadas anteriormente tendem a contribuir para que uma pessoa possa
viver mais livremente, no entanto, também possui efeito de complementar umas às outras.
Logo, a afirmação de que a liberdade não é apenas o objetivo principal do desenvolvimento,
mas também seu principal meio - relaciona-se aos encadeamentos entre os mais diversos tipos
de liberdades, pois ao apresentar inter-relação entre si contribuem para a promoção de outros
tipos de liberdade (SEN, 2010).
O direito ao desenvolvimento foi discutido pela primeira vez nas Nações Unidas como
um direito humano na 33ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos em 1977. No entanto,
somente na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1986 que fora lançada a “Declaração
sobre o Direito ao Desenvolvimento”, que assevera o seguinte em seu preâmbulo:13
Tendo em mente os propósitos e os princípios da Carta das Nações Unidas relativos
à realização da cooperação internacional para resolver os problemas internacionais
de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e encorajar o
respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção
de raça, sexo, língua ou religião;
Reconhecendo que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e
político abrangente, que visa o constante incremento do bem-estar de toda a
população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e
significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí
resultantes;
13
DECLARAÇÃO SOBRE O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO 1985. Dhnet. Disponível em: <
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/spovos/lex170a.htm>. Acesso em: 17 mai. 2012.
52
Considerando que sob as disposições da Declaração Universal dos Direitos
Humanos todos têm direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e
as liberdades consagrados nesta Declaração possam ser plenamente realizados [...]
[Grifo nosso]
O texto da Declaração trata-se de um reflexo da relação conjunta das políticas
internacionais da época em que as Nações Unidas procuravam neutralizar as polaridades
Norte/Sul e Leste/Oeste. Esta Declaração pode ser considerada pouco eficaz na perspectiva de
apresentar compromissos internacionais exigíveis, por não haver previsão de sanção em caso
de descumprimento de determinada disposição. Em contrapartida, a Declaração é sim
importante, no sentido de tratar o direito ao desenvolvimento como um direito humano; por
estabelecer sua dimensão coletiva, individual, internacional e interna; e por prever princípios
para a implementação do processo de desenvolvimento (SOUZA, 2010).
Ao passo que a Declaração citada acima visa promover a aproximação do direito ao
desenvolvimento com os direitos humanos, também considera o desenvolvimento como um
sistema em que os direitos humanos devem ser integralizados, se possível, em um único
processo (SOUZA, 2010).
No mesmo norte, a “Declaração e Programa de Ação de Viena da Conferência
Mundial de Direitos Humanos” de 1993 expõe o seguinte acerca do desenvolvimento e
liberdades:14
A democracia, o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos e liberdades
fundamentais são conceitos interdependentes que se reforçam mutuamente. A
democracia se baseia na vontade livremente expressa pelo povo de determinar seus
próprios sistemas políticos, econômicos, sociais e culturais e em sua plena
participação em todos os aspectos de suas vidas. Nesse contexto, a promoção e a
proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais, em níveis nacional e
internacional, devem ser universais e incondicionais. A comunidade internacional
deve apoiar o fortalecimento e a promoção da democracia e o desenvolvimento e
respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais no mundo inteiro. [grifo
nosso]
Tais documentos confirmam o direito ao desenvolvimento como um direito humano,
fazendo com que este se torne um paradigma ético capaz de orientar a ordem internacional
(SOUZA, 2010).
Muito embora a prosperidade econômica contribua para que as pessoas levem uma
vida mais livre e realizada, também o fazem uma maior educação, melhores serviços de
14
DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA 1993. Dhnet. Disponível em: <
http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/declaracao_viena.htm>. Acesso em: 17 mai. 2012.
53
saúde, atenção médica e outros fatores que influenciam casualmente nas liberdades efetivas
das que realmente gozam as pessoas. Estes “desenvolvimentos sociais” devem ser
considerados diretamente como “avanços do desenvolvimento”, haja vista que contribuem
para que as pessoas tenham uma vida mais longa, mais livre e mais proveitosa (SEN, 1998).
Diante do exposto, pode-se entender o direito ao desenvolvimento como um direito
dos indivíduos, da humanidade e dos Estados, o qual possui caráter multidimensional, onde os
aspectos civis, econômicos, sociais, culturais e políticos são indivisíveis e complementares
entre si. O desenvolvimento ainda deve ser considerado um direito humano exigível, por meio
de uma convergência de interesses sob diferentes aspectos. Sua promoção deve ser vista como
dever dos Estados no âmbito interno e internacional, em um contexto de interdependência e
globalização (SOUZA, 2010).
A análise do desenvolvimento deve ser compreendida sistematicamente de acordo com
os papéis das diferentes instituições e suas interações. Amartya Sen busca em sua obra
compreender e investigar a estrutura inter-relacionada, para posteriormente extrair lições para
o desenvolvimento, porquanto a liberdade nada mais é que um conceito inerentemente
multiforme, que envolve considerações sobre processos e oportunidades (SEN, 2010).
Para que haja uma efetividade dos mais diversos tipos de liberdades, não há
necessidade de haver somente a atuação estatal, ou então de organizações, instituições
governamentais, comunitárias, meio de comunicações, mas também é necessário que os
indivíduos utilizem de sua capacidade participativa. Trata-se de uma relação de mão dupla,
pois “ter mais liberdade melhora o potencial das pessoas para cuidar de si mesmas e para
influenciar o mundo”, questões estas - consideradas por Amartya Sen - centrais para o
processo de desenvolvimento (SEN, 2010).
Inúmeros desafios terão de ser enfrentados, mas não de maneira individual (somente
no âmbito doméstico ou internacional), pois um depende da efetiva atuação do outro, e
infelizmente o maior prejudicado das deficiências existentes no sistema judiciário como um
todo é o indivíduo, que fica a mercê de toda a delonga existente, e que mesmo após muito
tempo e custo consegue lograr que o Estado seja condenado, sofrerá por mais um período para
o cumprimento ou descumprimento da sentença proferida no âmbito internacional.
Ressalte-se que tanto o sistema global quanto os sistemas regionais de proteção de
direitos humanos nunca possuirão eficácia por completo, se os países não solucionarem as
deficiências existentes na legislação interna, tais como a ineficácia do poder judiciário e a
inoperância do aparato estatal.
54
Ademais, partindo do requisito que para acessar –
por exemplo
- a Corte Interamericana
de Direitos Humanos é necessário que o indivíduo tenha esgotado todos os recursos no âmbito
doméstico, é possível afirmar, desde logo, que caso o sistema nacional não garanta um efetivo
acesso à justiça - entendido não somente como o direito de petição, mas sim que a tutela jurisdicional seja prestada de forma
efetiva, rápida e sem dilações indevidas
- o direito humano fundamental de acesso à justiça ficará
prejudicado perante a Corte de San José.
Deste modo, se existir uma ineficácia do direito humano ao acesso à justiça no âmbito
interno, por consequência tal direito será afetado também na esfera internacional, não
ocorrendo somente a violação de um direito do indivíduo, mas também de todos os demais
bens da vida que ele pode vir a pleitear, bem como o desenvolvimento da sociedade será
prejudicado pela privação desta liberdade individual chamada acesso à justiça.
1.3 O Transconstitucionalismo (Marcelo Neves)
Estabelecidas as premissas relacionadas à evolução histórica dos direitos humanos; a
forma como ocorreu a modificação do conceito de soberania estatal por influência destes
direitos; o modo pelo qual o processo de globalização propiciou um novo olhar sobre o
mundo hodierno; a importância da internacionalização dos direitos humanos e de como o
acesso à justiça no âmbito internacional pode promover o desenvolvimento de uma nação, o
presente tópico visa discorrer acerca do marco teórico escolhido para dar desenvolvimento ao
estudo.
A tese de Marcelo Neves denominada transconstitucionalismo foi publicada em 2009
e aos poucos vem ganhando destaque no cenário constitucional brasileiro. Para tanto o autor
utiliza-se de fundamentos luhmannianos para definir pressupostos teóricos, tal qual de uma
constituição transversal.
Com o processo de globalização, atividades relacionadas à preservação do meio
ambiente, seguridade social, bem-estar econômico e proteção aos direitos humanos passaram
a ter influência dentro do contexto mundial. Esta situação fez com que formas jurídicas,
políticas e organizações humanas transcendessem os limites estatais (HÖFFE, 2005),
possibilitando um olhar para o “outro”, por vezes, baseado na alteridade.
Acerca da alteridade, assim leciona José Querino Tavares Neto:
55
A temática da alteridade sempre ocupou lugar privilegiado na problemática do
conhecimento. Trata-se da relação que transcende a perspectiva de sujeito
cognoscente, que apreende a realidade como objeto cognoscível visto o
conhecimento ser, de um lado, condicionado pelo sistema de valores de referência
daquele que conhece e sua capacidade cognitiva pelos sentidos; de outro, pela
complexidade do objeto que se conhece ou se dá a conhecer [...] O liame passa pela
necessidade de considerarmos a alteridade como elemento cimentar para a
(re)construção de uma sociedade mais humana (NETO, 2008, p. 67-71)
Os estados nacionais possuem problemas de tal magnitude que surge a exigência de
uma cooperação internacional com o fim de coordenar políticas a nível regional e global
combinadas mutuamente (HABERMAS , 2008).
Este processo de maior interdependência entre os Estados acabou por ocasionar
reflexos no âmbito jurídico, pois a partir do século passado constitucionalistas de diferentes
países começaram a preocupar-se com os novos desafios de um direito constitucional que
transcendeu as fronteiras dos Estados para diversas ordens jurídicas, inclusive aquelas que
não possuem natureza estatal (NEVES, 2009).
Para que houvesse o surgimento da Constituição em sentido moderno, dois problemas
de fundamental importância tiveram de ocorrer: i) as exigências de direitos fundamentais ou
humanos em uma sociedade de ampla heterogeneidade social e ii) controle interno e externo
do poder (NEVES, 2009).
Com a maior integração da sociedade mundial, os dois problemas citados acima
tornaram-se impossíveis de serem tratados por somente uma ordem jurídica, devido ao fato de
serem relevantes para mais de um Estado e ainda para órgãos não estatais que são instados a
oferecer respostas para a sua solução. Tal fato implica na realização de uma relação
transversal entre diversas ordens jurídicas sobre problemas constitucionais comuns (NEVES,
2009).
É a partir deste panorama que é criado o conceito de transconstitucionalismo, o qual
pode ser entendido como uma forma de solução de problemas jurídicos que ocorrem em
diversas ordens jurídicas. Nas palavras de Marcelo Neves (2009, p. XXII): “um problema
transconstitucional implica uma questão que poderá envolver tribunais estatais, internacionais,
supranacionais e transnacionais (arbitrais), assim como instituições jurídicas locais nativas, na
busca de sua solução”.
Referido autor ao tratar acerca desta teoria leva em consideração não somente a
exigência funcional e pretensão normativa de uma racionalidade transversal entre ordens
jurídicas, mas discorre também os aspectos negativos dos ditos “entrelaçamentos
56
transconstitucionais”, por exemplo, quando um problema envolver práticas anticonstitucionais
presentes em ordens de Estados tipicamente constitucionais.
À guisa de introdução, ressalte-se que o transconstitucionalismo rejeita o estatalismo,
o internacionalismo, o supranacionalismo, o transnacionalismo, bem como o localismo como
solução dos problemas constitucionais, haja vista a necessidade de existência de “pontes de
transição” para que ocorra de maneira efetiva “conversações constitucionais” entre as diversas
ordens jurídicas, com o consequente rompimento do dilema “monismo/pluralismo.
Nesta senda, destaca-se que a existência de uma pluralidade de ordens jurídicas sob a
égide do transconstitucionalismo implica na relação complementar entre identidade e
alteridade, porquanto as ordens envolvidas na solução do respectivo problema constitucional
acabam por reconstruir sua identidade por meio do entrelaçamento transconstitucional, com
observações recíprocas entre elas (NEVES, 2009).
O intercâmbio e aprendizado recíproco com racionalidades diversas dá-se com os
entrelaçamentos promotores da racionalidade transversal.A devida compreensão desses
pressupostos teóricos é imprescindível para a conceituação de Constituição transversal e
transconstitucionalismo, que supõe não somente acoplamentos estruturais, mas também
entrelaçamentos como “pontes de transição”, pois, caso contrário, permanecerá existente o
constitucionalismo provinciano e autossuficiente (NEVES, 2009).
1.3.1 A constituição transversal do estado constitucional
A Constituição transversal pressupõe que a política e o direito estejam vinculados no
plano reflexivo para que sejam realizadas observações recíprocas. Tem-se de um lado a
Constituição jurídica como uma estrutura de normatização e de outro a Constituição política
como estrutura decisória sobre processos de tomada de decisão coletivamente vinculante. Esta
transversalidade possibilita maior aprendizado para um ou ambos ou sistemas (NEVES,
2009).
Deste modo, a Constituição não deve ser entendida somente como um filtro de
influências recíprocas entre sistemas autônomos, mas sim, como “instância da relação
recíproca e duradoura de aprendizado e intercâmbio de experiências com as racionalidades
particulares já processadas, respectivamente, na política e no direito”. (NEVES, 2009, p. 62).
Por tal motivo, é necessária a ocorrência de entrelaçamentos como “pontes de transição” entre
os sistemas para que possa ser desenvolvida uma racionalidade transversal.
57
A comparação constitucional, ou de maneira mais precisa, a comparação dos textos
constitucionais é um meio para o desenvolvimento do Estado constitucional. A comparação
constitucional não deve esgotar no texto, mas sim o constitutional law in the books deve
avançar a um law in public action (NEVES, 2009).
Na sociedade mundial o sistema jurídico é multicêntrico, ou seja, no centro estão os
juízes e tribunais de uma determinada ordem jurídica; deste modo outras ordens jurídicas
acabam por constituir uma periferia. Exemplificando: para o judiciário brasileiro, juízes e
tribunais de outros Estados ou ordens jurídicas internacionais, supranacionais e transnacionais
apresentam-se como periferia e vice-versa. No entanto, esta situação deve importar em
observação mútua, buscando aprendizado recíproco sem definir o primado de uma das ordens
como ultima ratio jurídica (NEVES, 2009).
Mesmo com tais disputas existe a incorporação de normas de outra ordem jurídica sem
a ocorrência de qualquer intermediação de diálogos entre tribunais, somente com a
incorporação de sentidos normativos extraídos de outras ordens jurídicas e muito embora
exista uma multiplicidade de ordens diferenciadas – cada qual com suas próprias normas
jurídicas, atos jurídicos, procedimentos e dogmática – tal situação não implica isolamento
recíproco (NEVES, 2009).
É a partir deste momento que se fala em conversação ou diálogo entre Cortes que
podem ocorrer em vários níveis, tais quais: entre o Tribunal de Justiça das Comunidades
Europeias (supranacional) e os tribunais dos Estados-membros; entre o Tribunal Europeu de
Direitos Humanos (internacional) e as Cortes nacionais, etc. (NEVES, 2009).
Apesar de os chamados “empréstimos constitucionais” não serem novos, todavia é um
assunto bastante debatido. A expressão já demonstra sua significância no sentido de tratar-se
da importação de regras da Constituição de determinado país para a Constituição de outro, no
entanto, o “empréstimo” também pode ocorrer no âmbito jurisprudencial ou ainda na
importação de ideias e teorias constitucionais de modo horizontal (entre ordens nacionais) ou
vertical (ordem jurídica nacional e internacional) (SILVA, 2010).
Segundo Gozaíni, (1998) a jurisdição local deve acompanhar o direito internacional
dos direitos humanos com as disposições internas existentes. Para Flávia Piovesan (2012),
este fortalecimento mútuo entre os sistemas é de extrema importância, haja vista ser possível
identificar quais são as potencialidades e debilidades de cada sistema, para que juntos pensem
em estratégias de aprimoramento constitucional dos Estados e regional dos Sistemas de
Proteção de Direitos Humanos.
58
Para Peter Häberle (2003) é necessário que exista uma "sociedade aberta" em que os
direitos fundamentais e humanos remetam não somente ao Estado e seus respectivos cidadãos,
mas também a outros. A concepção de “sociedade” está estritamente vinculada à exegese da
Constituição.
A grande quantidade de número de tratados internacionais e a adesão pelos Estados
demonstra que a realidade nacional busca cada vez mais acompanhar a sociedade em uma
perspectiva internacional. A internacionalização do Direito Constitucional juntamente com a
Constitucionalização do Direito Internacional elucida a necessidade de harmonia normativa e
as novas perspectivas vivenciadas pela sociedade hodierna.
A comunidade internacional tem apoiado o singular fenômeno da generalização do
raciocínio judicial, posto que tende a ser frequente que os tribunais de um país invoquem
considerações de tribunais estrangeiros para fundamentar suas próprias decisões (VALADÉS,
2003).
O trabalho da jurisprudência constitucional implica que onde o texto constitucional de
seu país não alcance, observe comparativamente ao seu redor. Trata-se de um progresso do
Estado por meio do encadeamento de dar e receber de outro país como uma forma de
desenvolvimento (HÄBERLE, 2003).
O método comparativo no tempo e no espaço possui a seguinte tríade: i) textos, ii)
teorias e iii) sentenças constitucionais. A evolução do Estado constitucional forma uma
síntese variável entre a referida tríade, haja vista que, por vezes basta o simples texto de uma
Constituição recente para elucidar certa situação, em outro caso a ajuda pode partir de teorias
e assim sucessivamente (HÄBERLE, 2003).
A forma mais relevante de transversalidade entre ordens jurídicas é a que perpassa os
juízes e tribunais, seja interjudicialmente ou não. Essa dita conversação que perpassa
fronteiras e ordens jurídicas possui como ideia principal a cooperação, no entanto, são
inevitáveis certos conflitos e o próprio potencial de disputa. O maior impasse é encontrado na
forma pela qual se dará a respectiva solução sem que exista a imposição top down na relação
entre ordens, pois não cabe falar de uma estrutura hierárquica entre elas (NEVES, 2009).
Em uma sociedade transnacional, esta interação normativa possibilita maior
comunicação jurídica entre o internacional – global – e o local; esta situação pode ser
entendida como uma relação transnormativa entre o Direito Internacional e Direito Interno
(MENEZES, 2005).
Acerca da transnormatividade Wagner Menezes (2005, p. 203) assevera:
59
As regras internacionais passam ora por um processo de transnacionalização,
atravessando fronteiras e emergindo nos ordenamentos nacionais, ora por um
processo de modelação em foros internacionais, onde essas normas são reproduzidas
pelos Estados, alterando, com isso, substancialmente, a relação do Direito
Internacional com o Direito Interno. A relação deixa, portanto, de ser dualista ou
distante para adquirir cada vez mais uma dimensão transnormativa.
Referido autor aduz que o conceito de transnormatividade, bem como da elaboração
de um Direito Transnacional transforma o cenário atual em razão de ampliar as formas de
interação entre o Direito Internacional e o Direito Interno.
Para que seja possível definir quais as questões constitucionais ensejam o
transconstitucionalismo, é necessário que a visão do direito constitucional estritamente ligado
ao constitucionalismo clássico, isto é, Constituição associada tão somente a determinado
Estado, seja afastada. Isso porque, certos problemas normativos geraram a abertura do
constitucionalismo para além do Estado, exemplo disto, são os problemas relacionados a
direitos humanos ou fundamentais que ultrapassaram fronteiras, tornando o direito
constitucional estatal uma instituição limitada para enfrentá-los e solucioná-los (NEVES,
2009).
A questão primordial do transconstitucionalismo refere-se em precisar quais são os
problemas constitucionais existentes nas diversas ordens jurídicas, e a forma pela qual se dará
soluções fundadas a partir do entrelaçamento entre elas (NEVES, 2009).
Assim, um mesmo problema de direitos fundamentais, por exemplo, pode apresentarse perante uma ordem estatal, local, internacional, supranacional e transnacional ou perante
mais de uma dessas ordens, o que implica cooperações e conflitos, exigindo aprendizado
recíproco (NEVES, 2009).
A intenção de enfrentar os problemas constitucionais isoladamente permaneceria
desestruturada, fazendo-se necessário um diálogo transconstitucional de forma eficaz para
estruturar respostas adequadas para problemas constitucionais que surgem na sociedade
mundial hodierna (NEVES, 2009).
Entre os dias 07 a 11 de outubro de 2013 a Corte Interamericana desenvolveu um
painel de discussão no 48 Período Extraordinario de Sesiones15 com o tema Diálogo
jurisprudencial y control de convencionalidad. Una mirada comparada, demonstrando a
pertinência e atualidade da temática acerca do diálogo.
Durante a abertura da discussão o Juiz da Corte Interamericana Eduardo Ferrer MacGregor aduziu que este é um tema de enorme transcendência tanto para a região latino15
Os vídeos da íntegra dos painéis de discussão podem ser encontrados no seguinte link:
<http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/al-dia/galeria-multimedia>.
60
americana quanto para as demais. Ressaltou que o diálogo não se deve reduzir ao diálogo
jurisprudencial16 (transjudicialismo), mas sim nos casos em que as decisões de cortes
constitucionais de outros Estados são invocadas não só como obter dicta, mas como
elementos construtores da ratio decidendi (NEVES, 2009, p. 167).
O resultado das prestações recíprocas a partir da relação transconstitucional impõe o
fechamento da cadeia interna de validação para a construção de norma para cada ordem
jurídica. Assim, a abertura normativa não irá quebrar a consistência interna jurídica, mas sim
como concretização jurídica adequada à pluralidade de ordens envolvidas. A pretensão
“imperialista” de uma das ordens envolvidas em face das outras torna avesso o aprendizado
normativo recíproco para a solução de casos semelhantes (NEVES, 2009).
Danos ambientais, violações a direitos humanos e fundamentais, os efeitos do
comércio, das finanças internacionais e a criminalidade transnacional são apenas alguns
exemplos de casos cotidianos comuns que atingem o nível reflexivo de diversas ordens
constitucionais. Contudo, o problema encontrado está na resposta a ser dada nas ordens
jurídicas envolvidas, a qual deve ser dada conforme o código binário (lícito/ilícito) (NEVES,
2009).
Em outras palavras, a conformidade ou desconformidade ao direito (licitude ou
ilicitude) em relação a um mesmo caso, apresenta-se diferentemente perante uma pluralidade
de ordens jurídicas. Por isto cada qual irá invocar seus critérios para a resolução dos casos e a
tendência é o surgimento de colisões, daí por que a busca de “pontes de transição” é
fundamental. Certamente, essas “pontes” como modelos de entrelaçamentos para uma
racionalidade transversal entre ordens jurídicas não são construídas permanentemente e de
modo estático, pois o transconstitucionalismo possui como característica o dinamismo
(NEVES, 2009).
O relacionamento entre critérios normativos e atos jurídicos para aprendizados
recíprocos é intensamente circular no contexto do transconstitucionalismo da sociedade
mundial, pois a cada novo caso as estruturas das respectivas ordens precisam rearticular-se
consistentemente para possibilitar uma solução complexamente adequada à sociedade, sem
atuar destruindo a ordem concorrente ou cooperadora, mas antes contribuindo para estimulála a estar disposta ao intercâmbio em futuros “encontros” para enfrentamento de casos
comuns (NEVES, 2009).
16
Disponível em: < http://vimeo.com/album/2565106/video/76720365>.
61
Logo, a característica maior do transconstitucionalismo entre ordens jurídicas é ser um
constitucionalismo relativo à (soluções de) problemas jurídico-constitucionais que se
apresentam simultaneamente em diversas ordens, por meio da “conversação” constitucional.
Com o entrecruzamento entre ordens jurídicas impera-se a construção de “pontes de
transição” que levem seriamente os problemas constitucionais básicos enfrentados (NEVES,
2009).
Tenha-se em mira, no entanto, que nem sempre as diversas ordens jurídicas estarão
dispostas a colaborar com o transconstitucionalismo, muitas vezes por desconhecer questões
que ultrapassam as fronteiras estatais e por não admitirem que a Constituição em sentido
moderno possui a racionalidade transversal entre direito e política (NEVES, 2009).
Malgrado siga existindo ordens jurídicas que não abrangem o transconstitucionalismo,
seu desenvolvimento não pode ser simplesmente excluído, o importante é que se possa criar
aos poucos uma relação de aprendizado com essas ordens dentro dos limites existentes na
assimetria vivenciada pela sociedade mundial (NEVES, 2009).
Isoladamente, as ordens estatais, internacionais, supranacionais, transnacionais e
locais, são incapazes de oferecer respostas adequadas para os problemas normativos da
sociedade mundial, por isso o transconstitucionalismo parece ser a alternativa mais
promissora para a fortificação de sua dimensão normativa (NEVES, 2009).
O
transconstitucionalismo
serve
de
alternativa
ao
modelo
clássico
de
constitucionalismo com suas fragilidades para enfrentar aos problemas mundiais não com
perspectivas unilaterais, mas sim com soluções adequadas para os problemas enfrentados
atualmente. É deste modo que se conseguirá, diante de um problema constitucional, abrir
maiores pluralidades de perspectivas para sua solução, adequando-as ao respectivo sistema
jurídico (NEVES, 2009).
Embora o transconstitucionalismo ainda se encontre em um plano ainda limitado da
sociedade mundial, tem-se desenvolvido rapidamente em alguns sistemas jurídicos. Esta
limitação ocorre, mormente pela persistência do provincianismo constitucional do direito
estatal. Não se objetiva aqui sustentar a eliminação de toda a dogmática de determinada
ordem jurídica estatal, mas sim frisar que existem problemas intraestatais de suma relevância
para a sociedade mundial e que a abertura dos problemas às diversas ordens incrementa a
teoria do direito transconstitucional (NEVES, 2009).
Tendo em vista que contemporaneamente a sociedade internacional possibilita uma
maior inter-relação do Direito Internacional com o Direito Interno, ocorre uma transposição
62
das normas internacionais a serem aplicadas no âmbito doméstico, fazendo com que o Direito
passe a ter caráter mais universal (MENEZES, 2005).
O Direito do âmbito doméstico ajusta-se às regras internacionais, influenciando o
próprio sistema e ideologia do Estado. Esta situação fica evidente, pois ao passo que antes os
problemas estatais eram discutidos dentro de seu território, hodiernamente estes mesmos
problemas acabam quebrando fronteiras e barreiras e passam a ser discutidos
internacionalmente através de organizações e “também por instrumentos jurídicos de
transposição normativa e acabam sendo absorvidos pelos ordenamentos jurídicos internos
como um direito estatal” (MENEZES, 2005).
1.3.2 Transconstitucionalismo entre direito internacional público e direito estatal
Importante reportar que na relação entre ordens jurídicas internacionais e ordens
jurídicas estatais, frequentemente ocorrem “casos-problemas jurídico-constitucionais cuja
solução interessa, simultaneamente, às diversas ordens envolvidas” (NEVES, 2009, p. 131).
Para buscar uma maior concretude e visualização de situações que envolvam o
transconstitucionalismo não somente no plano teórico, mas sim prático, abaixo serão citados
alguns exemplos de como ocorre este novo modelo constitucional.
Já que os problemas constitucionais passaram a ter relevância simultânea para duas ou
mais ordens jurídicas, afastando-se do modelo provinciano estatalista é que o Tribunal
Constitucional Federal alemão leva em conta as decisões do Tribunal Europeu de Direitos
Humanos (TEDH), porém não está vinculado a elas. Isto significa que a jurisprudência do
TEDH serve como um meio auxiliar para interpretar e delimitar a amplitude dos direitos
fundamentais, desde que não levem à redução ou limitação da proteção dos direitos
fundamentais prescritos na Lei Fundamental. Por tal motivo, caso exista algum tipo de
negação às decisões ou normas do TEDH por parte dos tribunais estatais, estar-se-ia ferindo o
grau de integração europeu. Em razão de a unilateralidade possuir efeitos destrutivos é que a
jurisprudência constitucional alemã invoca o artigo 53 da Convenção Europeia dos Direitos
do Homem (CEDH)17 (NEVES, 2009).
17
Nenhuma das disposições da presente Convenção será interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os
direitos do homem e as liberdades fundamentais que tiverem sido reconhecidos de acordo com as leis de
qualquer Alta Parte Contratante ou de qualquer outra Convenção em que aquela seja parte. In:
ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção europeia de direitos humanos.
Disponível em: < http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4>. Acesso em: 24 jan.
2013.
63
Diferentemente do Tribunal Constitucional alemão – que busca utilizar a jurisprudência da CEDH
somente como meio auxiliar de interpretação
- o Tribunal Constitucional da Áustria entende que as normas
da CEDH têm aplicação imediata no âmbito interno, sustentando que a Convenção integra o
texto constitucional austríaco. Esta posição do Tribunal Austríaco demonstra uma maior
disposição para o diálogo transconstitucional, a qual remonta à Constituição austríaca de
1920. Ainda no âmbito europeu, salienta-se que o Conselho Constitucional francês também
aponta para uma abertura de “conversação” com o Tribunal Europeu de Direitos Humanos
(NEVES, 2009).
De grande relevância destacar que o transconstitucionalismo entre ordem internacional
ou estatal ocorre também no Sistema Interamericano de Direitos Humanos – instituído pela
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) - e as Constituições dos Estadosmembros que a ratificaram. A relevância neste caso não envolve simplesmente a imposição
das decisões da Corte aos tribunais nacionais, mas pelo fato de que os Estados reveem sua
jurisprudência à luz das decisões da Corte Interamericana demonstrando o diálogo para as
questões que envolvem a proteção dos direitos humanos (NEVES, 2009).
Na relação entre o Estado Brasileiro e a Corte de San José, destaca-se a colisão entre o
artigo 7º, nº 7 da Convenção Americana18 com o artigo 5º, inciso LXVII19 da Constituição
brasileira. Referida norma brasileira permitia a prisão civil do depositário infiel,20 estando de
encontro com o disposto na Convenção (NEVES, 2009).
Quando o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos em 1992, iniciou-se o debate sobre a possibilidade
de revogação da parte final - “depositário infiel” - do inciso LXVII do artigo 5º da
Constituição Federal, bem como de toda a legislação infraconstitucional que possuía
18
“Artículo 7. Derecho a la Libertad Personal
[...]
7. Nadie será detenido por deudas. Este principio no limita los mandatos de autoridad judicial competente
dictados por incumplimientos de deberes alimentarios”.
19
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e
inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
20
Ressalte-se que as legislações mais avançadas em matéria de direitos humanos fazem proibição expressa de
qualquer tipo de prisão civil que decorra de descumprimento de obrigações contratual, exceto o caso do
alimentante inadimplente. (MENDES, Gilmar Ferreira. A evolução da jurisprudência do STF envolvendo prisão
civil do depositário infiel no Brasil: a supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos. In:
BAEZ, Narciso Leandro Xavier, CASSEL, Douglas (org.). A Realização e a Proteção Internacional dos
Direitos Humanos Fundamentais. Joaçaba: Editora Unoesc, 2011, p. 56).
64
fundamento direto ou indireto sobre a temática. A discussão abrangeu também sobre qual
status constitucional teria os tratados de direitos humanos (MENDES, 2011).
O impasse foi solucionado a partir do julgamento do Recurso Especial (RE)
466.343/SP, do RE 349.703/RS e do Habeas Corpus (HC) 87.585/TO, em que o Supremo
Tribunal Federal decidiu em 3 de dezembro de 2008, por maioria, que os tratados e
convenções sobre direitos humanos, quando não aprovados nos termos procedimentais do art.
5º, §3º, da Constituição Federal, têm hierarquia supralegal (NEVES, 2009), ou seja, não
teriam natureza infraconstitucional diante de seu caráter especial em relação aos demais atos
normativos, e também não poderiam afrontar a Constituição, portanto, teria lugar especial no
ordenamento jurídico para que seu valor não seja subestimado no contexto do sistema de
proteção dos direitos humanos (MENDES, 2011).
Em outra situação, no caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
Yatama vs. Nicarágua, o assunto da lide abrangia à participação democrática de membros da
comunidade indígena que eram filiados ao partido Yatama que acabaram sendo proibidos de
candidatar-se à eleição municipal de 5 de novembro de 2000 pela decisão do Conselho
Supremo Eleitoral da Nicarágua. Em sua sentença, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos além de condenar o Estado da Nicarágua a indenizações por danos materiais e
imateriais, determinou que o Estado realizasse reforma de sua lei eleitoral (NEVES, 2009).
Ressalte-se que ainda existem experiências em sentido inverso dos exemplos descritos
acima, como em situações em que a norma internacional de proteção dos direitos humanos
apresenta-se como restrição a direitos fundamentais da Constituição estatal (NEVES, 2009).
Esta colisão ocorre entre a Constituição brasileira e o Estatuto de Roma do Tribunal
Penal Internacional (TPI),21 ratificado pelo Brasil pelo Decreto Legislativo nº 112, de 2002.
Ao passo que o artigo 77, nº 1, alínea b,22 do Estatuto de Roma, prevê a prisão perpétua, esta
pena é proibida conforme o art. 5º, inciso XLVII, alínea b da Constituição Federal brasileira.
Muito embora o Brasil esteja submetido à jurisdição do Tribunal Penal Internacional após a
introdução da Emenda Constitucional nº 45/2004, o diploma brasileiro prevê que a vedação
21
“A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no
seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes: a) O
crime de genocídio; b) Crimes contra a humanidade; c) Crimes de guerra;
d) O crime de agressão”. In:
BRASIL. Estatuto de Roma. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm>.
Acesso em: 13 out. 2014.
22
Artigo 77 - 1. Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos
crimes previstos no artigo 5o do presente Estatuto uma das seguintes penas: b) Pena de prisão perpétua, se o
elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem.
65
de penas de caráter perpétuo trata-se de cláusula pétrea, portanto, não pode ser abolida
(NEVES, 2009).
Diante deste impasse, caso seja imposta uma solução unilateral, certamente não será a
maneira mais adequada para a solução do caso. Por este motivo, a jurisdição constitucional
brasileira realiza a “entrega” do criminoso já condenado pelo Tribunal Penal Internacional ou
do suposto criminoso a ser processado, somente se a pena de prisão perpétua estatuída pelo
Estatuto de Roma seja comutada a uma pena de no máximo 30 anos – pena máxima privativa
de liberdade admitida no Brasil (NEVES, 2009).
Trata-se de uma solução que leva em conta a mediania, sem admitir extremos que
conduz a um aprendizado recíproco entre o TPI e o Estado brasileiro.
Estes
exemplos
demonstram
claramente
a
necessidade
de
se
superar
o
constitucionalismo provinciano para resolução dos problemas constitucionais existentes nos
Estados, pois não somente estes podem equivocar-se com questões constitucionais, mas
também os órgãos internacionais (NEVES, 2009).
Ademais, o diálogo e aprendizado recíprocos podem ser vistos como a melhor saída
para a resolução dos problemas que são apresentados com o desenvolvimento de cada
sociedade.
1.3.3 Transconstitucionalismo entre ordens jurídicas estatais
De maneira mais usual a “conversação” constitucional ocorre entre as Cortes de
diversos Estados no momento em que fazem referência a decisões de Tribunais de outros
Estados. Estas situações fazem com que ideias constitucionais migrem de uma ordem jurídica
para outra, na forma de entrecruzamento de problemas no nível jurisdicional (NEVES, 2009).
A harmonização dos tribunais - mesmo que expressada de modo invisível - é
considerada um modelo eficaz, em razão da troca de informações mútuas e de reuniões
comuns para análise de graus de convergência ou divergência de uma jurisprudência para com
a outra (DELMAS-MARTY , 2004).
A migração de ideias não se refere simplesmente ao “transjudicialismo”, ou seja,
referências recíprocas de decisões entre Tribunais diversos, mas sim, nos casos em que as
66
decisões de cortes constitucionais de outros Estados são invocadas não só como obter dicta,23
mas como elementos construtores da ratio decidendi24 (NEVES, 2009).
Os exemplos citados a seguir dão conta da importância de decisões de outras Cortes
por influenciarem concretamente o aprendizado por parte dos Estados.
No ano de 1997 no julgamento do caso Printz v. United States, o Justice Stephen
Breyer, sustentou que a experiência das cortes e dos sistemas jurídicos estrangeiros pode
“lançar uma luz empírica nas consequências de diferentes soluções para um problema jurídico
comum” (NEVES, 2009, p. 168).
Dois anos após, novamente o Justice Breyer no caso Knight v. Florida embora não
tenha admitido o caráter vinculante do direito estrangeiro, citou várias cortes no julgamento
de dois prisioneiros que estavam no corredor da morte por mais de vinte anos (NEVES,
2009).
Por sua vez, a Justice Ruth Bader Ginsburg afirmou durante uma palestra que havia
certa tendência de considerar as decisões estrangeiras como ratio decidendi, mas recentia a
disposição da Suprema Corte dos Estados Unidos para o intercâmbio constitucional (NEVES,
2009).
Neves afirma (2009) que o diálogo entre jurisdições está ocorrendo de forma crescente
em toda parte do mundo e ao invés de alguns serem “doadores” e outros “receptores” do
direito, esta situação transformou-se em diálogo.
Quiçá a Corte Constitucional que está mais aberta ao diálogo transconstitucional seja
Corte sul-africana, posto que o art. 39, nº 1, alíneas b e c, da Constituição da África do Sul
estabelece que qualquer corte ou tribunal africano, ao interpretar a declaração constitucional
de direitos (artigo. 7º a 39), não só “deve considerar o direito internacional” (alínea b), mas
também “pode considerar o direito estrangeiro” (alínea c) (NEVES, 2009).
A Corte sul africana no caso State v. Makwanyane fez referência às decisões do
Tribunal Europeu de Direitos Humanos, Suprema Corte dos Estados Unidos, Suprema Corte
do Canadá, Tribunal Constitucional alemão, Suprema Corte indiana, Tribunal Constitucional
húngaro e do Tribunal de Apelação da Tanzânia, assim como levou em consideração
julgamentos de duas cortes de Estados-membros dos Estados Unidos (Corte da Califórnia e de
Massachussetts). Agiu, portanto, de forma aberta para outras ordens jurídicas e cortes
constitucionais, devendo ser considerada um modelo do transconstitucionalismo (NEVES,
2009).
23
24
Obter dicta corresponde aos argumentos expostos na decisão como forma de juízos acessórios.
Ratio decidendi são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão.
67
No entanto, a conversação constitucional não se limita de forma abrangente à África
do Sul, pois entre os anos de 1950 e 2004, 3.629 julgamentos proferidos pela Suprema da
Corte da Índia foram baseados em direito estrangeiro, perfazendo 24,6% do total de suas
decisões. Tribunais também de outros países como Zimbábue, Israel, Nova Zelândia e Irlanda
não utilizam somente o direito estrangeiro como também precedentes de tribunais de outros
países com força de convencimento (NEVES, 2009).
A experiência alemã, bem como de outros tribunais supremos europeus ocidentais
também invocam precedentes de outros Estados em suas decisões, mesmo sendo conhecidos
por terem tradições jurídicas bastante arraigadas (NEVES, 2009).
O Brasil ganhou certo destaque no julgamento do HC 82.424/RS em que o STF
caracterizou como crime de racismo a publicação de livro com conteúdo antissemítico
(negação da existência do holocausto). Durante os votos dos ministros, precedentes,
jurisprudências, bem como dispositivos constitucionais e legislação de estados estrangeiros
foram realizados de maneira mais ampla que a jurisprudência nacional (NEVES, 2009),
conforme pode ser verificado na ementa a seguir colacionada:25
EMENTA: HABEAS CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTISEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO.
ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO.
LIMITES. ORDEM DENEGADA.
1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias
preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89,
artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às
cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII)
[...]
4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de
conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que,
por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.
[...]
6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam
quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens
por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem
nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade um povo sobre o outro, de
que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo.
[...]
9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob
a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu
ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação
racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da
Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagram
entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa
convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo.
(Grifo nosso)
25
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
Habeas Corpus n. 82.424/RS. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79052>. Acesso em: 23 jan. 2013.
<
68
O transconstitucionalismo no âmbito brasileiro pende para um diálogo com o
constitucionalismo alemão e estadunidense, contudo, é necessário que a invocação frequente
de jurisprudência destes países e de outras ordens jurídicas não acabe por constituir um
“colonialismo” na cultura jurídica brasileira (NEVES, 2009).
Para André de Carvalho Ramos (2011) o Supremo Tribunal Federal raramente abre as
portas para o diálogo especialmente com a Corte Interamericana de Direitos Humanos. O
autor sustenta a necessidade de se realizar um giro copernicano sobre a aplicação dos tratados
internacionais na matéria de direitos humanos, bem como a interpretação que é realizada a
eles na jurisdição internacional. O próximo passo do STF, portanto, deve ser na maior
valorização do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
O julgamento da Arguição de descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153
trata-se do mais recente exemplo de como a interpretação das normas nacionais estão
desconectadas das normas internacionais (RAMOS, 2011). Tal situação será vista mais
detalhadamente no segundo capítulo.
Por conseguinte, importante restar claro que o transconstitucionalismo não envolve
somente à invocação de precedentes jurídico-constitucionais de outras ordens jurídicas, mas
também a avaliação da prática dos juízes e tribunais de outros Estados, tendo como ponto de
partida a abertura do constitucionalismo estatal para outras ordens jurídicas e não a negação
(NEVES, 2009).
1.3.5 Transconstitucionalismo pluridimensional dos direitos humanos
Violações a direitos humanos são problemas que perpassaram todos os tipos de ordens
no sistema jurídico mundial de níveis múltiplos: ordens estatais, internacionais,
supranacionais, transnacionais e locais (NEVES, 2009).
Um dos pontos centrais do constitucionalismo refere-se às diversas interpretações que
podem ser dadas a uma norma jurídica para a resolução de um caso em concreto. Esta
situação faz com que surjam inúmeras controvérsias, sobretudo quando muitas das ordens
normativas do sistema jurídico mundial são avessas à ideia de direitos humanos como direitos
válidos para toda e qualquer pessoa (NEVES, 2009).
69
Em meio a este contexto, o transconstitucionalismo pluridimensional dos direitos
humanos corta transversalmente ordens jurídicas diversas, instigando colisões e cooperações
recíprocas (NEVES, 2009).
Em situações que envolvem direitos humanos nem o “modelo de resistência”,
tampouco
o
de
“convergência”
mostram-se
apropriados
para
um
efetivo
transconstitucionalismo, mas sim o modelo de “articulação”, ou, em outras palavras, o
“entrelaçamento transversal entre ordens jurídicas”, de modo que elas sejam capazes de
aprender com as experiências recíprocas visando a solução dos problemas jurídico
constitucionais A alternativa de “convergência” ou “resistência” carrega elementos potenciais
de autodestruição da própria ordem constitucional ou de heterodestruição de outras ordens
jurídicas (NEVES, 2009).
O transconstitucionalismo na matéria concernente a direitos humanos vai além da
invocação de precedentes e normas de outras ordens jurídicas, pois há casos em que decisões
de tribunais cortam transversalmente ordens jurídicas diversas, com força vinculante
(NEVES, 2009).
Nesta senda, de relevância é a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
no julgamento do caso Yanke Axa vs. Paraguai, em que a questão travada era sobre o direito
de propriedade sobre territórios das comunidades indígenas Yakye Axa e Sawhoyamaxa. A
CIDH acabou por desvincular-se do conceito jurídico de propriedade privada, levando em
conta a noção cultural de “propriedade ancestral” das comunidades indígenas sobre os
respectivos territórios, sedimentada historicamente em suas tradições (NEVES, 2009).
A Corte de San José deixou em segundo plano um direito fundamental assegurado
constitucionalmente no plano estatal, e decidiu favoravelmente aos direitos de comunidade
local extraestatal sobre o seu território, para assegurar direitos humanos garantidos no nível
internacional (NEVES, 2009).
Ressalte-se que este entrelaçamento (conforme descrito no exemplo acima) não seria
possível se as diversas ordens jurídicas não estivessem dispostas a ceder para determinadas
questões existentes em outras ordens normativas. No âmbito de um transconstitucionalismo
positivo é necessário o aprendizado recíproco com a experiência do outro, o nativo em sua
autocompreensão (NEVES, 2009).
O transconstitucionalismo, portanto, mostra-se como direito constitucional do futuro
com um grande grau de interdisciplinaridade (NEVES, 2009).
70
2.
O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A JUSTIÇA
DE TRANSIÇÃO NOS ESTADOS LATINO AMERICANOS
“[…] con su esperanza dura el sur también existe […]”
-- Mauro Benedetti
2.1 A necessidade de (re) pensar a América Latina
Os países da América Latina como um todo construíram suas histórias em uma
dualidade interessante: de um lado, todos possuem colonizações espanholas ou portuguesas, o
que lhes dá certa identidade, e de outro, seus processos históricos de inserção autônoma no
cenário internacional e regional foram o maior motivo para o acirramento de grandes
diferenças (COSTA, 2010).
Com a viagem de Colombo à América, o contato entre dois mundos completamente
distintos alcançou proporções jamais imaginadas. Esta situação pode ser exemplificada na
reação de Colombo ao pisar em terras americanas (12/10/1492), pois ora considerou os
indígenas como “iguais”, mas somente no plano divino (enquanto filhos de Deus); e ora os
considerou como seres inferiores, no momento em que impôs sua vontade por meio da
violência e da autoridade quando os nativos se opunham em dar suas riquezas para os
colonizadores. Com as sucessivas negativas dos indígenas, os seus “descobridores” passaram
a escravizá-los e a utilizar o sistema de encomiendas (envio de um grupo de índios para
trabalhar gratuitamente para os colonos). Segundo José Carlos Moreira da Silva Filho (2012,
p. 347-348) Cristóvão Colombo “pretendeu-se impor ao índio um ‘outro ser’, ou
simplesmente desconsiderá-lo. A propagação da fé e a escravidão: duas faces da mesma
moeda”.
Para demonstrar esta situação e também o extermínio perpetrado pelos europeus, basta
verificar que às vésperas da conquista a população mexicana26 era de aproximadamente 25
milhões, já no ano 1600 a população passou a ser de apenas um milhão. Os números
demonstram o genocídio ocorrido dos povos americanos, não somente físico, mas também
cultural (FILHO, 2012).
26
Os astecas, em que pese toda a sua índole violenta e dominadora, quando subjugavam uma outra cultura, antes
de destruir seus livros, estudavam-os e os incorporavam, como se viu no mito e Quetzalcóatl. Não foi o que
aconteceu em relação aos europeus com a tradição asteca, que lhes havia sido oferecida como uma homenagem
e, em troca, o povo náhuatl foi chacinado e humilhado culturalmente. (FILHO, 2012, p. 371)
71
Para buscar uma “libertação” da cultura colonizadora, por volta do século XIX
iniciou-se na América um processo de integração apresentada por Simón Bolívar –
político venezuelano, conhecido como “El Libertador 27
”
militar e
- o qual pregava a necessidade de independência da
América Espanhola do então Império Espanhol. O movimento foi marcado pela luta pela
liberdade da América Latina iniciado em 1809 com a rebelião de Chuquisaca, na Bolívia, até
1824 com a batalha de Ayacucho, no Peru (GUMUCIO, 2008).
Em razão de a América Latina possuir profundas similaridades históricas e culturais,
existiu a ideia de criação de uma Pátria Grande integrada, sendo que muitos projetos foram
realizados para integrar o continente latino no sentido físico, logístico e culturalmente
(GUMUCIO, 2008).
Bolívar justificava sua luta em 1815 sob o argumento de que os crioulos eram vítimas
da discriminação espanhola e que, portanto, os europeus monopolizaram os principais cargos
da administração colonial. Tal argumento pode ser comprovado no fato de que de 170
virreyes -
pessoa que governava um território no lugar do rei, com a mesma autoridade e poderes
- tão somente quatro
haviam nascido na América (POZO, 2009).
El libertador propunha a integração da América mirando a seguinte estrutura e
características: 1) existência de um órgão de consulta entre os Estados-membros que deveria
definir uma política externa comum; 2) criação de órgão com poderes para interpretar tratados
para elucidar dúvidas dos Estados-membros; 3) criação de um Juízo Conciliador e Arbitral
para solucionar os litígios existentes entre os Estados; 4) criação de órgão mantenedor,
administrador e controlador que teria de dispor de força armada confederada (OLIVEIRA,
2009).
Vê-se, portanto, que o modelo proposto por Bolívar visava a integração dos territórios
após a independência, além da aproximação política e econômica com a criação de uma zona
de livre comércio (OLIVEIRA, 2009).
Ao ser cessada a possibilidade de recolonização dos Estados latino-americanos e uma
vez enfraquecido o perigo de intervenção por parte das potências europeias, as ideias do
Confederalismo Bolivariano começaram a declinar. A tentativa de integração política dos
Estados passou a ser substituída por ideais mais pragmáticos centrados em uma política de
aproximação gradual e de colaboração entre os Estados para a materialização de certos
objetivos comuns (SANTOS, 2008).
27
Por tal motivo, tornou-se mundialmente respeitado como gênio político, líder e figura mítica dessa época.
Além de Simón Bolívar, José de San Martín teve proeminente atuação nas revoluções, outros três patriotas
merecem destaque por imaginarem uma pátria americana para os hispanoamericanos, são eles: Miranda, Sucre,
O’Higgins e Artigas.
72
Exemplo da manifestação deste novo rumo foi a primeira Conferência Internacional
Americana, realizada em Washington entre outubro de 1889 e abril de 189028. Segundo o
Instituto Interamericano de Estudos Jurídicos Internacionais, a Conferência de Washington foi
precursora da OEA:
En esta reunión, a la cual concurrieron delegaciones de todas las repúblicas entonces
existentes en América, con excepción de la República Dominicana, nace el Sistema
Interamericano y con él la primera expresión de la moderna organización
internacional regional. En efecto, por resolución adoptada en la Conferencia el 14 de
abril de 1890, se creó la ‘Unión Internacional de las Repúblicas Americanas’,
teniendo como órgano permanente la ‘Oficina Comercial de las Repúblicas
Americanas’ [...].29
Entre os objetivos da integração sul-americana, destacam-se: a inclusão social,
desenvolvimento humano, sustentável, integral e fortalecimento da governabilidade
democrática (GUMUCIO, 2008). Em que pese exista vários objetivos, alguns problemas
fazem com que a integração tarde a se concretizar, entre eles destacam-se os relativos à
pobreza e à desigualdade.
Diferentemente da Europa, a América Latina não possui tantos problemas culturais
como os lá existentes, tais como: nacionalismo exacerbado, regionalismos e incorporações de
nações muçulmanas a um grupo de tradição cristã.
A cultura latina aliou-se à cultura
indígena, africana, sendo que tais situações contribuem demasiadamente para o processo de
integração (GUMUCIO, 2008).
A época colonial da América do Sul marcou o início dos intercâmbios culturais,
comerciais muito embora as conjunturas estivessem sob o domínio do Império inglês. No
entanto, com os recentes processos de globalização, os intercâmbios passaram a ocorrer de
forma mais intensa não somente intracontinentais como com outras regiões do mundo
(GUMUCIO, 2008).
A partir destas premissas, é possível de pronto afirmar que o contexto latino americano
-
se examinado sob o viés da colonização
– é marcado pela dominação interna e submissão externa de
seus indivíduos (WOLKMER; FAGUNDES, 2013a).
28
As conferências que se seguiram à primeira Conferência procuraram aperfeiçoar as modalidades de
cooperação dos Estados participantes, assim como estabelecer mecanismos econômicos que facilitassem o
intercâmbio comercial. Foram elas: a) a Conferência do México, em 1901; b) a Conferência do Rio de Janeiro,
em 1903; c) a Conferência de Buenos Aires, em 1910; d) a Conferência de Santiago, em 1923; e) a Conferência
de Havana, em 1928; f) a Conferência de Montevidéu, em 1933; g) a Conferência de Lima, em 1938; h) a
Conferência de Bogotá, em 1948; e i) a Conferência de Caracas, em 1954.
29
INSTITUTO INTERAMERICANO DE ESTUDIOS JURÍDICOS INTERNACIONALES, 1969, p. 433-434.
73
Esta situação queda-se evidente desde a superioridade espanhola sobre as culturas
astecas, maias e incas, até a utilização dos europeus da “conquista” da América Latina como
trampolim para obter uma “vantagem comparativa” (DUSSEL, 2003).
O fato é que a América Latina é a região das veias abertas, pois desde seu
“descobrimento” tudo foi transformado em capital europeu, acumulando-se hoje nos centros
de poder (GALEANO, 2002).
Atualmente a América Latina vive uma difícil realidade: problemas relacionados à
pobreza, à marginalização social no sentido de fome, desemprego, déficits educacionais,
carências sanitárias, temor, entre tantos outros.
O responsável de grande parte destas
problemáticas é o saque colonialista que ocorre desde explorações econômicas até a violação
das soberanias institucionais (NEUMAN, 1995).
Não é necessário fazer maiores digressões quanto aos perfis localistas, já que a
concepção divide os países centrais e periféricos. Os Estados Unidos, por exemplo, exercem a
liderança de uma “Nova Ordem Internacional” que implica em um regime mundial de
assimetria e interdependência. A perseguição à soberania tanto institucional quanto territorial
é exercida pelo País Central em colaboração com certas instituições, tais como, a ONU e a
OEA (NEUMAN, 1995).
Com o passar dos séculos, os latinos acabaram se acostumando com a herança do
reciclado colonialismo na exploração de matéria prima e importação de produtos elaborados
de todo o tipo. O mesmo ocorreu com as tecnologias, leis e teorias, tendo-se assumido
acriticamente que elas serão úteis para a realidade latino americana (FAJARDO, 2010).
Neste sentido José Carlos Moreira da Silva Filho afirma (2012, p. 341-342):
É certo que as matrizes teóricas utilizadas pelos nossos juristas e operadores provêm
do pensamento primeiro-mundista, inclusive o núcleo dos apontamentos críticos
para a superação de discursos obsoletos nesta área. Mas também é certo que só aqui,
no mundo periférico, estes saberes adquiriram um caráter extremamente peculiar e
cruel, implicando uma prática de extermínio em massa e de segregação social em
escalas sem precedentes.
A não valorização da América Latina pelos próprios latinos é demonstrada por
Virgílio Afonso da Silva (2010), por exemplo, na maior propensão dos brasileiros a estudos
que vem dos Estados Unidos e da Europa do que dos vizinhos latinos, sendo que esta situação
não ocorre somente no âmbito jurídico, mas também político, social e cultural.
74
Este quadro pode ser aferido ainda que empiricamente por meio da mídia,30 pois se
encontram nos jornais brasileiros mais informações sobre o continente europeu do que da
América do Sul. A mesma situação ocorre no meio acadêmico, pois é disponibilizado e
estudado mais autores estadunidenses e europeus do que latinos. Além disto, o número de
publicações a respeito da Corte Europeia é mais expressivo do que publicações sobre a Corte
Interamericana (SILVA, 2010).31
Não se pretende aqui afirmar que seja de todo negativo o estudo de temas,
“importação” de teses, ideias, doutrinas e julgados do norte, pois o diálogo com tais países é
sim de extrema relevância.
No entanto, as teorias elaboradas no Norte foram criadas justamente para analisar as
realidades do Norte e não necessariamente servem para analisar as realidades do Sul. A
sociologia que é estudada e importada pela América Latina por meio das Universidades tem
como centro a Europa, porém estas teorias ignoraram as experiências e saberes que se
produzem no Sul em seus múltiplos contextos, povos e culturas. Esteriotipou-se então como
"inferiores" determinados povos a partir de uma suposta superioridade construída para
legitimar o colonialismo (FAJARDO, 2010).
É dentro deste contexto que Eduardo Galeano (2002, p. 13-14) afirma que inclusive
“perdemos o direito de chamarmo-nos americanos. Agora, a América é, para o mundo, nada
mais do que os Estados Unidos: nós habitamos, no máximo, numa sub-América, numa
América de segunda classe, de nebulosa identificação”.
30
“Na primeira semana de junho de 2009, o maior jornal do país - a Folha de São Paulo - publicou apenas 6
textos sobre a América do Sul, totalizando 1968 palavras. Nessa primeira semana, em 4 dias não houve notícia
alguma da região. Apenas para se ter uma idéia do que isso significa, o mesmo jornal publicou, no mesmo
período, 10 textos sobre a Inglaterra, totalizando 3818 palavras. Ou seja: sobre um único país europeu, houve
praticamente o dobro de conteúdo informativo. Sobre a Coréia do Norte, foram publicados 5 textos, totalizando
1751 palavras, quase o mesmo espaço dedicado, no mesmo período, a todos os países da América do Sul. Dentre
as notícias sobre a América do Sul, não havia nenhuma notícia sobre o Chile, o Uruguai, o Paraguai e o
Equador”. In: SILVA, Virgilio Afonso da. Integração e diálogo constitucional na América do Sul. In
BOGDANDY, Armin Von; PIOVESAN, Flávia; ANTONIAZZI, Mariela Morales (Orgs.). Direitos humanos,
democracia e integração jurídica na América do Sul, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 524.
31
“[...] não há pretensões estatísticas. O intuito é apenas apresentar alguns indícios da situação atual da produção
acadêmica brasileira. Foram feitas duas pesquisas, ambas na base de dados de periódicos publicados em
português (excluídos os artigos publicados em jornais não acadêmicos): a primeira usou como termo de busca
"corte interamericana"; a segunda, os termos "tribunal europeu" e "corte européia". Em ambos os casos, a
pesquisa não se limitava ao título dos trabalhos, ou seja, abrangia também campos como "assunto". O resultado
foi o seguinte: Corte Interamericana – 43 artigos; Tribunal Europeu/Corte Europeia - 54 artigos [...]A produção
em nível de pós-graduação de uma das principais faculdades de direito do país - a Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo - também é sintomática. Uma pesquisa por "Corte Interamericana" no banco de dados
de teses dessa faculdade retorna apenas 3 obras”. In: SILVA, Virgilio Afonso da. Integração e diálogo
constitucional na América do Sul. In BOGDANDY, Armin Von; PIOVESAN, Flávia; ANTONIAZZI, Mariela
Morales (Orgs.) Direitos humanos, democracia e integração jurídica na América do Sul, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2010, p. 526-527.
75
Enrique Dussel (1966) acredita que os pensadores comprometidos com a realidade
latino americana devem indagar sobre a relevância da região na história mundial e
compreender o problema nada recente acerca da identidade cultural. Se os pensadores sobretudo os latinos
– estiverem alheios a esta problemática, seja por ignorância ou por indiferença,
acabarão por manifestar sua alienação ideológica ou europeia.
É necessário, portanto, que exista um reencontro do latino americano com seu próprio
solo cultural, contudo, isto pressupõe o desmascaramento do eurocentrismo na filosofia e
também a desconstrução da história da filosofia desde a perspectiva eurocêntrica
(BEORLEGUI, 2004).
A enfermidade eurocêntrica é aquela que leva a pensar que sua particularidade
demonstra o universal, por onde deverão passar, de um modo ou de outro, todos os povos da
terra. Logo, faz-se necessário ampliar os horizontes e não temer tratar sobre os problemas
próprios da América Latina (DUSSEL, 2007).
Distanciar-se do pensamento eurocêntrico não significa descartar ou ignorar as
possibilidades de emancipação social da modernidade ocidental, denota assumir o nosso
tempo, da América Latina, como um tempo que revela uma característica transicional inédita,
porquanto temos problemas modernos para os quais não há soluções modernas. E muito
embora os problemas modernos referentes à igualdade, liberdade e fraternidade persistam, as
soluções modernas propostas pelo liberalismo e pelo marxismo já não servem mais
(SANTOS, 2010).
Quanto mais tardar para que os indivíduos abram os olhos para este panorama, aos
poucos ocorrerá a extinção da personalidade cultural e os valores humanos constitutivos para
as gerações vindouras (DUSSEL, 1966).
Com base nisto é que se faz necessário realizar um giro descolonizador, insistindo-se
na necessidade de partir de novas bases de reflexão que não sejam meramente imitativas ou
com comentários à filosofia política europeia-americana (DUSSEL, 2007).
Os países latinoamericanos têm o dever de demonstrar que o seu chamado
“subdesenvolvimento” não é mental e que devem integrar-se de modo homogêneo, buscando
defender a idiossincrasia e os interesses da região (NEUMAN, 1995).
Wolkmer e Melo (2013b, 2013c, p. 10) sustentam: “há que se priorizar construções
teóricas e opções metodológicas que reflitam os anseios de nossas próprias experiências
histórico-jurídicas, e que sejam aptas para revelar a originalidade e a identidade do “ser”
latino-americano”. Por conseguinte, o atual desafio para a América Latina está em buscar
76
pontos hermenêuticos de complementaridade com o “sistema-mundo”, sem, entretanto, perder
sua identidade.
No âmbito constitucional da América Latina começaram a ocorrer mudanças rumo a
um novo paradigma com a queda dos regimes militares durante a segunda metade da década
de 80. Destaca-se, pois, quatro características formais deste novo constitucionalismo: i) seu
conteúdo inovador <<originalidade>>; ii) amplitude das normas; iii) capacidade de conjugar
elementos tecnicamente complexos com uma linguagem acessível; e iv) o despertar do poder
constituinte perante as mudanças constitucionais (VICIANO PASTOR; MARÍNEZ
DALMAU, 2011).
Entretanto, foi no fim da década de 90 e no transcorrer dos anos 2000 que o
constitucionalismo latino distanciou-se ainda mais do constitucionalismo clássico europeu,
com a criação de facetas na Constituição da Venezuela (1999); Equador (2008) e Bolívia
(2009), ao formarem as bases do Novo Constitucionalismo Latino Americano (NCL) (MELO,
2011).
O constitucionalismo transformador da Bolívia e do Equador foi impulsionado,
sobretudo pelos movimentos indígenas, pelo nacionalismo dos recursos naturais e pela
construção de Estados Plurinacionais (SANTOS, 2010).
O NCL tem como fim priorizar construções teóricas que contemplem as pretensões
histórico-jurídicas da região e não meramente buscar a reprodução da cultura eurocêntrica
repleta de ambiguidades. Esta nova visão do constitucionalismo deriva da identidade sul
americana caracterizada pelas comunidades indígenas e dos povos originários dos Andes, os
quais fazem com que o estereótipo de “inferioridade” dos povos colonizados seja
definitivamente substituído (WOLKMER; MELO, 2013b).
O NCL assumiu sua pluralidade (MELO, 2011) com a apropriação criativa das classes
populares de instrumentos para avançar o marco do Estado liberal e da economia capitalista.
Buscou reconhecer os direitos coletivos das mulheres; dos indígenas e dos afro-descendentes;
a promoção da democracia participativa; reformas legais orientadas para o fim da
discriminação sexual e étnica; o controle nacional dos recursos naturais, entre tantos outros
exemplos que configuram o uso contra hegemônico de instrumentos e instituições
hegemônicas (SANTOS, 2010).
77
Exemplificando. As Constituições do Equador e da Bolívia consagram o princípio do
buen vivir32 (Su mak Kawsay ou Suma Qamaña) como paradigma normativo da ordem social
e econômica. A Constituição equatoriana também consagra os direitos da natureza entendida
segundo a cosmovisão andina da Pachamama.33 Tais exemplos definem que o projeto de país
deve orientar-se por caminhos muito distintos dos que conduziram as economias capitalistas
do mundo hodierno (SANTOS, 2010).
Também é possível encontrar o enriquecimento do “patrimônio comum do Direito
Constitucional”, o qual avança exatamente onde o constitucionalismo europeu estagnou (na
proteção ambiental/valorização das diversidades étnicas e culturais) (MELO, 2011).
A refundação do Estado pressupõe um constitucionalismo de novo tipo, distinto do
constitucionalismo moderno que foi concebido pelas elites políticas com o objetivo de
constituir um Estado com características onde as diferenças étnicas, culturais, religiosas ou
regionais não são suprimidas (SANTOS, 2010).
Essa cultura “libertadora” demonstra a real identidade da América Latina com
ideologia pluralista e bolivariana, a qual aos poucos vem desvencilhando-se dos valores
antropocêntricos para fundar-se nas cosmovisões dos povos indígenas (WOLKMER; MELO,
2013b, 2013c). Preocupa-se também com a recepção das convenções internacionais de
direitos humanos e busca critérios de interpretação mais favoráveis para os indivíduos
(VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2011).
32
Constituição do Equador: “Decidimos construir una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y
armonía con
la naturaleza, para alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay”. Disponível em: <
http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf>. Acesso em 15 jan. 2014.
Constituição da Bolívia: “Artículo 8. I. El Estado asume y promueve como principios ético-morales de la
sociedad plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (no seas flojo, no seas mentiroso ni seas ladrón), suma qamaña
(vivir bien), ñandereko (vida armoniosa), teko kavi (vida buena), ivi maraei (tierra sin mal) y qhapaj ñan (camino
o vida noble)”. Disponível em: < http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Bolivia/bolivia09.html>. Acesso em:
15 jan. 2014.
33
Constituição do Equador: “Capítulo séptimo Derechos de la naturaleza: Art. 71.- La naturaleza o Pacha
Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el
mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos. Toda persona,
comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la
naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observaran los principios establecidos en la Constitución,
en lo que proceda. El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para que
protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos
los
elementos
que
forman
un
ecosistema.
Disponível
em:
<
http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf>. Acesso em 15 jan. 2014.
Constituição da Bolívia: “Preámbulo: Cumpliendo el mandato de nuestros pueblos, con la fortaleza de nuestra
Pachamama
y
gracias
a
Dios,
refundamos
Bolivia.”.
Disponível
em:
<http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Bolivia/bolivia09.html>. Acesso em: 15 jan. 2014.
78
Logo, é necessário, respeitar não somente nossas estruturas político-democráticas,
econômicas, mas principalmente a consciência do nosso povo (DUSSEL, 1973).
Faz-se necessário recomendar ao trabalhador intelectual em ter consigo instrumentos
necessários para o exercício de sua ação, tais como: os idiomas estrangeiros; os métodos
europeus-estadunidenses; o hábito científico respectivo exigente de si mesmo, mas, sobretudo,
transformar a pesquisa da América Latina como um todo sociocultural, a fim de discernir uma
antropologia, uma ciência política, um humanismo que permita aos dirigentes e políticos
construir uma sociedade mais justa e adequada às exigências concretas latinas (DUSSEL,
1973).
Por todos os motivos expostos, um dos objetivos específicos da presente pesquisa é
chamar a atenção para a necessidade de volver la mirada para a América Latina e tê-la como
objeto de preocupação nas pesquisas, com a tentativa de demonstrar a necessidade da maior
valorização do “ser latino americano”.
É imprescindível que aos poucos seja ultrapassada a barreira de inferioridade
intrínseca existente no pensamento dos indivíduos e superar a ideia eurocêntrica e
colonizadora que é imposta há séculos. Em razão do exposto é que o objeto do estudo do
transconstitucionalismo é o Sistema Interamericano e não o Sistema Europeu de Direitos
Humanos.
2.1.1 Sistema Interamericano de Direitos Humanos
Antes de adentrar no estudo acerca da forma e organização do Sistema Interamericano
de Direitos Humanos, mister demonstrar brevemente o contexto histórico da região que
abrange este sistema regional.
Flávia Piovesan (2011) destaca a existência de dois períodos que marcaram o contexto
latinoamericano: i) os regimes ditatoriais e ii) a transição política de tais regimes à
democracia.
O primeiro período que assolara os Estados da região fora marcado por inúmeras
violações de direitos e liberdades, bem como por execuções sumárias, desaparecimentos
forçados, torturas, prisões ilegais, perseguições políticas, abolições de certos tipos de
liberdades, entre outros. Em que pese os países latinos tenham abolido o regime ditatorial, a
problemática hodierna consiste em consolidar o regime democrático com o efetivo respeito
aos direitos humanos, porquanto a região é caracterizada tanto pelo elevado grau de
79
desigualdade social, quanto pela cultura de violência e impunidade no âmbito doméstico
(PIOVESAN, 2011).
Os Estados Americanos, em exercício de sua soberania e no âmbito da Organização
dos Estados Americanos (OEA), adotaram uma série de instrumentos internacionais que se
converteram na base de um sistema regional de promoção e proteção dos direitos humanos,
conhecido como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). Este sistema
reconhece e define estes direitos e estabelece obrigações tendentes a sua promoção e
proteção, criando órgãos destinados a velar por sua observância (CORTE IDH, s.d.a).
Os Estados que reconheceram a competência da Corte são:34 Argentina, Barbados,
Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti,
Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname,
Uruguai e Venezuela35 (CORTE IDH, s.d.a).
Este sistema regional é composto por quatro principais instrumentos: 1) Carta da
Organização dos Estados Americanos (1948); 2) Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem (1948); 3) Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) e 4)
Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, conhecido como Protocolo de San Salvador (1988) (MAZZUOLI, 2011).
Possui dois órgãos internacionais de supervisão dos Estados: a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (sede em Washington, D.C.) e a Corte Interamericana de
Direitos Humanos (sede em San José, Costa Rica), os quais serão vistos separadamente a
seguir.
Ressalte-se, no entanto, a importância de explanar acerca da Convenção Americana
de Direitos Humanos, instrumento de maior importância neste sistema.
34
Não obstante a sua importância na consolidação do regime de liberdade individual e de justiça social no
Continente Americano, alguns países como os Estados Unidos (que apenas assinou) e o Canadá, ainda não
ratificaram a Convenção Americana e, ao que parece, não estão dispostos a fazê-lo. (MAZZUOLI, 2011, p. 21)
35
Cumpre informar que no mês de setembro de 2012 a Venezuela anunciou que deixou a Convenção Americana
de Direitos Humanos. A alta comissária da ONU, Navi Pillay, advertiu que esta decisão pode trazer sérios
problemas para a proteção dos direitos humanos no país e na região. Pillay considera ainda que esta ação vai de
encontro a todas as resoluções adotadas pelo Conselho de Direitos Humanos. Alfredo Romero, diretor da ONG
Foro Penal Venezolano, considera que a decisão de Hugo Chávez viola a Constituição Venezuelana, pois nela
estão contemplados os direitos inerentes ao ser humano. Desta forma, Chávez acabou por bloquear o acesso das
vítimas à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para mais informações acessar:
<http://www.conectas.org/midia/conectas-na-midia-ebc>; <http://www.amnesty.org/es/news/ruptura-venezuelacorte-regional-ddhh-afrenta-victimas-2012-09-12>.
80
2.1.2 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos
No mês de novembro de 1969 foi celebrado em San José na Costa Rica a Conferência
Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos. Nela, os delegados dos Estados
Membros da OEA redigiram a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual entrou
em vigor em 18 de julho de 1978, com o desiderato de salvaguardar os direitos essenciais do
homem no continente americano (CORTE IDH, s.d.b).
As proteções existentes na Convenção Americana são um complemento do direito
interno dos Estados membros, isso significa que os Estados têm competência originária
(primária) para proteger os direitos humanos fundamentais dos indivíduos que estão dentro do
seu território e que, somente na hipótese de falta de amparo ou de proteção muito aquém é
que o SIDH irá atuar no caso em concreto (MAZUOLLI, 2011).
Para atingir sua finalidade no sentido de conhecer as violações aos direitos humanos, a
Convenção implantou dois órgãos competentes para: 1) a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos e 2) a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CORTE IDH, s.d.b), as
quais serão estudadas separadamente a seguir.
Entre os direitos encontrados na Convenção destacam-se: direito à vida, direito à
liberdade, direito à liberdade de consciência, religião, pensamento e expressão, direito à
nacionalidade, direito à igualdade perante a lei, direito à proteção judicial, entre outros. Por
conseguinte, o Estado-parte da Convenção possui a obrigação de adotar as medidas legais
para conferir efetividade a estes e outros enunciados alhures (PIOVESAN, 2011).
2.1.2 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos
A Comissão Interamericana foi criada na Resolução III da Quinta Reunião de
Consultas de Ministros de Relações Exteriores celebrada em Santiago no Chile em 1959, com
o fim de sanar a carência de órgãos especificamente encarregados de velar pela observância
dos direitos humanos no SIDH. Segundo o artigo 112 da Carta da Organização dos Estados
Americanos, a função primordial da Comissão é a de “promover a observância e a defesa dos
direitos humanos e servir como órgão consultivo da organização nesta matéria” (CORTE
IDH, s.d.a).
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é constituída por sete membros de
alta autoridade moral e reconhecido saber em direitos humanos; possui como fim precípuo a
81
promoção, observância e proteção dos direitos da pessoa humana no continente americano.
(GUERRA, 2011) Os membros são eleitos por um período de quatro anos, podendo ser
reeleitos apenas uma vez. (PIOVESAN, 2011)
Para atingir o fim a que foi criada, cabe à Comissão fazer recomendações aos
governos dos Estados-partes; prever adoção de medidas à proteção dos direitos humanos;
preparar estudos e relatórios; solicitar informações aos governos acerca da efetiva aplicação
da Convenção e ainda submeter um relatório anual à Assembleia Geral da Organização dos
Estados Americanos (PIOVESAN, 2011).
No entanto, uma das principais competências da Comissão é receber e examinar as
petições encaminhadas por indivíduos ou entidade não governamental legalmente conhecida
em um ou mais Estados membros com relatos de violações a direitos humanos previstos na
Convenção Americana, nos termos do artigo 44.36 (MAZZUOLI, 2011).
Cabe aqui ressaltar que diferentemente do que ocorre no sistema europeu, é vedada no
sistema interamericano a possibilidade de a pessoa litigar diretamente à Corte por seus
direitos que foram violados no âmbito doméstico, posto que primeiramente deve-se provocar
a Comissão (GUERRA, 2011).
Deste modo, a Comissão realiza funções de dimensão “quase judicial”, pois recebe
denúncias de particulares ou organizações e examina se estão presentes os requisitos de
admissibilidade da petição, consoante dispõe o artigo 46 da Convenção Americana (CORTE
IDH, s.d.a).
Para que a petição seja admitida pela Comissão, alguns pressupostos devem ser
observados, entre eles: a) devem ter sido esgotados ou interpostos recursos na jurisdição
interna; b) a denúncia deve ser apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em
que a suposta vítima tenha sido notificada da decisão definitiva no âmbito doméstico; c) a
matéria da petição não pode estar pendente em outro processo de solução internacional; d) a
petição deve conter o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio, bem como a assinatura
da(s) pessoa(s) ou do representante legal da entidade que submeter a petição (GUERRA,
2011).
A admissibilidade está vinculada a obrigatoriedade de a parte denunciante relatar se
houve efetivamente o esgotamento dos recursos na jurisdição interna ou alguma das suas
exceções. Esta regra é justificada pelo fato de que o Direito Internacional é subsidiário ao
36
Artigo 44 - Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em
um ou mais Estados-membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias
ou queixas de violação desta Convenção por um Estado-parte.
82
direito interno dos Estados, por isso é conferido aos Estados a oportunidade de reparar a
violação de determinado direito causada à vítima, antes de tornar-se parte passiva nas Cortes
Internacionais. Com isto objetiva-se fortalecer o direito interno como um instrumento de
proteção e garantia (GALLI, 2000).
Neste sentido, afirmam Maria Carolina Florentino Lascala e Riva Sobrado de Freitas
(2012, p.100):
Ressalta-se ainda que a proteção internacional dos direitos humanos é complementar
e subsidiária, com o principal propósito de suprir lacunas, pois já cabe ao sistema
jurídico-normativo nacional a tarefa de promover esta proteção no plano interno.
Por vezes sustenta-se que a regra dos recursos internos tem favorecido certo equilíbrio
entre o direito internacional e a soberania do Estado, contudo, tal regra não é absoluta, haja
vista que em um teste da eficácia dos recursos internos na aplicação da regra em análise das
circunstâncias, tem levado a dispensar a regra do esgotamento – ou a abrandá-la – em
diversos casos. A título exemplificativo, em um caso relativo à República Dominicana no ano
de 1989, a Comissão ressaltou que o Estado-parte deveria fornecer “recursos judiciais
eficazes”. No mesmo ano no Suriname, a Comissão demonstrou que os recursos internos no
país eram inteiramente ineficazes (CANÇADO TRINDADE, 1997).
A partir do momento em que a Comissão recebe a petição ou comunicação, na qual
são apontadas violações aos direitos humanos deverá proceder da seguinte forma:
a)
Solicitar informações ao governo do Estado ao qual pertence a autoridade
apontada como responsável pela violação alegada, caso seja reconhecida sua
admissibilidade;
b)
Prestadas as informações ou transcorrido o prazo fixado sem que sejam
recebidas, verificar se existem motivos da petição;
c)
Poderá declarar a inadmissibilidade ou improcedência da petição ou
comunicação, com base em informações ou provas supervenientes;
d)
Poderá com o conhecimento das partes e se o expediente não tiver sido
arquivado, proceder exame do assunto exposto na petição ou comunicação;
e)
Poderá pedir aos Estados interessados qualquer informação pertinente e
colocar-se à disposição das partes interessadas para se chegar a uma solução
amistosa sobre o assunto. (GUERRA, 2011, p. 186)
A Comissão deverá, de maneira amistosa, buscar uma solução para o caso e se lograr
êxito, redigirá um relatório que será encaminhado ao peticionário e ao Estado para depois ser
transmitido para publicação. O relatório deve conter a exposição dos fatos de forma concisa e
da solução que fora alcançada (GUERRA, 2011).
83
O trâmite da denúncia perante a Comissão possui em regra menos formalismo jurídico
que os sistemas de justiça nacionais; um exemplo para demonstrar tal fato é que a parte
peticionária não necessita constituir advogado para apresentar uma denúncia de um caso
individual perante a Comissão. Tanto pode ser apresentada pela vítima quanto por algum
familiar ou alguém que a represente (GALLI, 2000).
Se o Estado não solucionar o caso de maneira amistosa, compete à Comissão dirigir
uma petição para a Corte de San José para que seja processado e julgado.
2.1.3 A Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sede em San José na Costa Rica. É
uma instituição judicial autônoma da Organização dos Estados Americanos, cujo objetivo é a
interpretação e aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (conhecida
também como Pacto de San José) e de outros tratados concernentes ao mesmo assunto. A
Corte é um dos três Tribunais regionais de proteção dos direitos humanos juntamente com a
Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos
(CORTE IDH, s.d.a).
A Corte Interamericana foi criada pela Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, adotada na conferência especializada reunida em San José - Costa Rica em 1969. A
Convenção entrou em vigor em 1978 e a Corte iniciou suas funções em 1979. (CORTE IDH,
s.d.a) A primeira opinião consultiva foi realizada em 1980 e somente sete anos mais tarde foi
emitida a primeira sentença (MAZZUOLI, 2011).
É composta por sete juízes37 nacionais de Estados membros da OEA eleitos pelos
Estados partes da Convenção e possui essencialmente duas funções: consultiva e contenciosa
(PIOVESAN, 2011).
A função consultiva retrata que qualquer membro da OEA, seja parte ou não da
Convenção, pode solicitar o parecer da Corte a situações de interpretação da Convenção ou de
outro tratado com tema concernente à proteção dos direitos humanos que seja aplicável aos
Estados americanos38 (PIOVESAN, 2011).
37
Roberto F. Caldas; Humberto Antonio Sierra Porto; Manuel E. Ventura Robles; Eduardo Vio Grossi; Diego
García-Sayán; Alberto Pérez Pérez e Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot.
Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/acerca-de/composicion>. Acesso em: 05 set. 2014.
38
Dentre os pareceres emitidos pela Corte, destaca-se um que fora realizado pelo México, em que a Corte
considerou que quando um Estado não notifica o preso estrangeiro de seu direito à assistência consular, há uma
84
A função contenciosa trata do mecanismo pelo qual a Corte determina se um Estado
incorreu em responsabilidade internacional por ter violado algum dos direitos consagrados ou
estipulados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CORTE IDH, s.d.a).
Na hipótese de a Corte reconhecer a ocorrência da violação, determinará quais
medidas serão tomadas para a restauração do direito violado e ainda pode condenar o Estado a
uma justa compensação à vítima (PIOVESAN, 2011).
As decisões são definitivas, inapeláveis e obrigatórias para os Estados que
reconheceram a competência contenciosa da Corte de San José por se tratar de um tribunal
internacional supranacional (MAZZUOLI, 2011).
Cabe também à Corte realizar o controle de convencionalidade39 (RAMOS, 2011). De
acordo com Humberto Nogueira Alcalá (2012) o controle de convencionalidade concentrado
constitui um mecanismo utilizado pela Corte Interamericana em sede contenciosa ou
consultiva, por meio do qual determina a compatibilidade ou incompatibilidade do direito
interno ou dos atos de agentes de um Estado parte com o direito e jurisprudência
internacional. A sentença da Corte ordena o Estado a modificar, suprimir ou derrogar normas
de direito interno e práticas contrárias aos direitos e garantias existentes na Convenção
Americana sobre Direitos Humanos e os tratados complementares do sistema (corpus iuris
interamericano).
A necessidade do controle de convencionalidade nacional é afirmado pela Corte
Interamericana em grande número de casos, por exemplo: La Cantuta (2006), Boyce vs.
Barbados (2007); Fermín Ramírez e Raxcacó Reyes (2008), Heliodoro Portugal (2008),
Manuel Cepeda Vargas (2010); Comunidad Indígena Xákmok Kásek (2010), Rosendo Cantú
(2010), Ibsen Cárdenas y otro (2010), Gomes Lund (2010); Cabrera Garcia-Montiel Flores
(2010). Esta multiplicidade de sentenças permite aferir a existência de um direito processual
transnacional consuetudinário, afirmativo do controle de convencionalidade no Sistema
Interamericano (SAGUËS, 2011).
Em rigor, a obrigação dos juízes locais de não aplicar o direito doméstico oposto ao
Pacto de San José ou à jurisprudência da Corte IDH não emerge de nenhum artigo da
Convenção. Os Estados, segundo o Pacto, somente se comprometeram a cumprir as sentenças
proferidas pela Corte nos processos em que sejam parte (artigo 69), no entanto, trata-se de
violação do direito ao devido processo legal. O Estado mexicano embasou seu pedido devido aos vários casos de
presos mexicanos condenados à pena de morte nos Estados Unidos. (PIOVESAN, 2011, p. 137-138 e 140)
39
Já internamente, o STF e os juízos locais devem também zelar pelo cumprimento dos dispositivos
convencionais e expurgar as normas internas que conflitem com as normas internacionais de direitos humanos.
(In RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar: a ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, p. 177).
85
uma interpretação mutativa por adição feita pela Corte com o objetivo de fortalecer o Sistema
Interamericano, incluindo a autoridade da própria Corte (SAGUËS, 2011).
Para o direito internacional, os atos internos são expressões da vontade do Estado, no
entanto, tais atos têm de ser compatíveis com a ordem internacional, sob pena de o Estado ser
responsabilizado internacionalmente. Deste modo, não pode o Estado descumprir determinada
obrigação internacional utilizando a justificativa de que o ordenamento jurídico doméstico
não permite. Caso assim o faça, pode ser coagido a reparar os danos causados (RAMOS,
2011).
Exemplificando, se o Brasil sofrer uma condenação perante a Corte Interamericana de
Direitos Humanos e, após a sentença, não cumprir suas obrigações sustentando que a norma
constitucional ou o entendimento jurisprudencial brasileiro assim não permite; para o direito
internacional tal justificativa é inócua e o Estado será responsabilizado novamente no âmbito
internacional pela violação da obrigação de cumprir em boa-fé seus compromissos, de acordo
com o disposto no artigo 63 da Convenção Americana de Direitos Humanos40 (RAMOS,
2011).
Por fim, necessário ressaltar que quando Corte de San José profere sentença
condenatória em face do Estado brasileiro, não há necessidade de a sentença internacional ser
homologada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), isso porque, a necessidade de
homologação refere-se às sentenças estrangeiras oriundas de Estado estrangeiro e não de
organização internacional – como é o caso da Corte Interamericana.
2.2 O reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos e o
status dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro
O Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992 com o
processo de redemocratização do país, no entanto, o pedido de aprovação do reconhecimento
da jurisdição obrigatória da Corte de San José fora encaminhada ao Congresso somente em
08.09.1998. Neste mesmo ano o Brasil enviou nota ao Secretário-Geral da OEA reconhecendo
a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana (RAMOS, 2011).
40
Artigo 63 - 1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a
Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará
também, se isso for procedente, que sejam reparadas as consequências da medida ou situação que haja
configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.
86
No que concerne ao status dos tratados internacionais no ordenamento jurídico
brasileiro, faz-se necessário salientar que no julgamento do HC 79.785/RJ o STF decidiu que
os tratados de direitos humanos que não forem aprovados pelo Congresso Nacional no rito
especial ditado pelo artigo 5º, §3º da Constituição Federal41 possui natureza supralegal, ou
seja, estão abaixo da Constituição, mas acima de toda e qualquer lei. De modo contrário, caso
o tratado tenha sido aprovado segundo o rito especial, ele será equivalente à emenda
constitucional.
2.2.1 Conflito entre as decisões da Corte de San José e o Supremo Tribunal Federal
É cediço que o STF é guardião da Constituição brasileira e, consequentemente dos
direitos fundamentais nela positivados. Já a Corte Interamericana é guardiã da Convenção
Americana (Pacto de San José) no âmbito no Sistema Interamericano e, consequentemente
dos direitos humanos nela positivados. Portanto, ambos têm o dever de proteção dos direitos
humanos fundamentais.
Deste modo, indaga-se: quando não há uma harmonia de entendimentos entre a Corte
nacional e a internacional, como o conflito pode ser resolvido?
Para André de Carvalho Ramos (2011) não há conflito insolúvel, posto que ambos os
tribunais têm a incumbência de proteger os direitos humanos, os conflitos seriam meramente
aparentes.
Referido autor (2011) propõe dois instrumentos para combater este conflito. O
primeiro trata-se exatamente do diálogo que deve existir entre as cortes, de modo a existir
uma fertilização cruzada entre os tribunais. No entanto, caso este diálogo seja ausente ou
insuficiente, propõe a aplicação da teoria do “duplo controle” ou “crivo de direitos humanos”:
Reconhece a atuação em separado do controle de constitucionalidade (STF e juízos
nacionais) e do controle de convencionalidade (Corte de San José e outros órgãos de
direitos humanos no plano internacional). Os direitos humanos, então, no Brasil
possuem uma dupla garantia: o controle de constitucionalidade nacional e o controle
de convencionalidade internacional. [...] Esse duplo controle parte da constatação de
uma verdadeira separação de atuações, na qual inexistiria conflito real entre as
decisões porque cada Tribunal age em esferas distintas e com fundamentos diversos.
[...] De um lado o STF, que é o guardião da Constituição e exerce o controle de
constitucionalidade. Por exemplo, na ADPF 153 (controle abstrato de
41
Artigo 5º, §3º: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.
87
constitucionalidade), a maioria dos votos decidiu que a anistia aos agentes da
ditadura militar é a interpretação adequada da Lei da Anistia e esse formato amplo
de anistia é que foi recepcionado pela nova ordem constitucional. De outro lado, a
Corte de San José é a guardião da Convenção Americana de Direitos Humanos e dos
tratados de direitos humanos que possam ser conexos. Exerce, então, o controle de
convencionalidade. Para a Corte Interamericana, a Lei da Anistia não é passível de
ser invocada pelos agentes da ditadura. [...] Com base nessa separação, vê-se que é
possível dirimir o conflito aparente entre uma decisão do STF e da Corte de Santa
José. No caso da ADPF 153 houve o controle de constitucionalidade. No caso
Gomes Lund, houve o controle de convencionalidade. A anistia aos agentes da
ditadura, para subsistir, deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas só
passou [...] por um, o controle de constitucionalidade. Foi destroçada no controle de
convencionalidade. [...] teses defensivas não convenceram o controle de
convencionalidade e dada a aceitação constitucional da internacionalização dos
direitos humanos, não podem ser aplicadas internamente. (RAMOS, 2011, p. 217218)
Ademais, retorna-se ao que foi dito no tópico sobre o transconstitucionalismo acerca
da necessidade da interpretação não ser nacionalista e alheia aos parâmetros internacionais,
pois assim, estar-se-ia negando a fundamentalidade dos direitos humanos e tornando os
tratados internacionais em documentos meramente retóricos (RAMOS, 2011).
2.3 Perfil dos casos submetidos à Corte Interamericana de Direitos Humanos
Esclarecidas as funções da Comissão e da Corte Interamericana, vislumbrou-se
verificar quais os problemas de violações de direitos humanos mais comuns julgados pela
Corte, com o objetivo de traçar um perfil para, ulteriormente, fazer análise das sentenças.
Prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados, execuções sumárias, torturas,
genocídios, abusos sexuais e censura são apenas alguns exemplos do cenário vivido nos
países latino americanos durante o século XX.
Já fora afirmado alhures que Flávia Piovesan (2011) ressalta dois períodos marcantes
no contexto histórico latino-americano: i) os regimes ditatoriais e ii) a transição política de
tais regimes à democracia. As crises manifestadas na América Latina durante as décadas de
70 e 80 nada mais são do que resquícios de crises vivenciadas em outros continentes, (LEAL,
1997), pois durante este período vários países foram governados por militares, os quais
usurparam o poder e buscaram eliminar a subversão esquerdista com o fim de restabelecer a
“ordem” em seus respectivos territórios (MEZAROBBA, 2010).
Se a história confirma que um dos pontos em comum de violações a direitos humanos
vivenciado nesta região diz respeito ao período ditatorial, tornou-se imperioso saber se o
88
perfil dos casos propostos e julgados pela Corte Interamericana condizem com o que a
história até então demonstra.
Até o dia 10 de outubro de 2013 foi realizada análise de 153 sentenças de mérito
julgadas pela Corte. Verificou-se que há certa variedade temática de casos propostos nos 25
anos de sua existência, aqui destacam-se as principais questões: i) direito de propriedade;42ii)
massacres/conflitos armados;43iii) tortura e detenção arbitrária;44iv)omissão das garantias no
processo
judicial;45v)
fertilização
in
vitro;46vi)
violação
à
liberdade
de
47
pensamento/expressão/consciência/religião; vii) omissão estatal na investigação de crimes;48
viii) discriminação na vida privada e familiar,49 ix) interceptação ilegal de linhas telefônicas;50
x) condições inumanas e degradantes em internação em hospital/falta atenção médica,51xi)
sobre pena de morte52, etc.
Entretanto, de uma forma muito mais expressiva encontrou-se condenações de crimes
que envolvem, sobretudo, o desaparecimento forçado cometido pela polícia/exército durante a
ditadura militar e a transição democrática dos Estados (29 casos – condenações contra
Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Paraguai,
Peru, República Dominicana e Venezuela).
Outra questão relevante dentro desta temática também diz respeito à invalidação das
leis de anistia em detrimento do direito à justiça e à verdade,53
42
Cf Caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador; Caso Salvador Chiriboga vs. Ecuador; Caso de la
Comunidad Mayagna (Sumo) AwasTingni vs. Nicaragua; Caso Comunidad Indígena Yakye Axa vs. Paraguay;
Caso Comunidad Indígena XákmokKásek vs. Paraguay; Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam.
43
Cf Caso Masacres de Río Negro vs. Guatemala; Caso Masacre de las Dos Erres vs. Guatemala; Caso Masacre
Plan de Sánchez vs. Guatemala; Caso de la Comunidad Moiwana vs. Surinam.
44
Cf Caso Tibi vs. Ecuador; Caso Fleury y Otros vs. Haití; Caso YvonNeptune vs. Haití; Caso Juan Humberto
Sánchez vs. Honduras; Caso López Álvarez vs. Honduras; Caso Cabrera García y Montiel Flores vs. México;
Caso Vélez Loor vs. Panamá; entre outros.
45
Cf Caso Acosta Calderón vs. Ecuador; Caso Suárez Rosero vs. Ecuador; Caso Maritza Urrutia vs. Guatemala;
Caso Castillo Petruzzi y Otros vs. Perú; Caso Barreto Leiva vs. Venezuela.
46
Cf Caso Artavia Murillo y otros (Fertilización in vitro) Vs. Costa Rica.
47
Cf Caso La Última Tentación de Cristo (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile; Caso IvcherBronstein vs. Perú;
Caso Palamara Iribarne vs. Chile.
48
Cf Caso López Álvarez vs. Honduras; Caso Kawas Fernández vs. Honduras; Caso González y Otras (Campo
Algodonero) vs. México; Caso Fernández Ortega y Otros vs. México; Caso Radilla Pacheco vs. Estados Unidos
Mexicanos; Caso Rosendo Cantú y Otra vs. México; Caso Genie Lacayo vs. Nicaragua; entre outros.
49
Cf Caso Servellón García y Otros vs. Honduras.
50
Cf Caso Escher y Otros vs. Brasil; Caso Tristán Donoso vs. Panamá.
51
Cf Caso XimenesLopes vs. Brasil; Caso Vera Vera y Otra vs. Ecuador.
52
Cf Caso Boyce y Otros vs. Barbados; Caso Fermín Ramírez vs. Guatemala; Caso Raxcacó Reyes vs.
Guatemala; Caso Hilaire, Constantine y Benjamin y otros Vs. Trinidad y Tobago.
53
Nesta direção, destacam-se: a) sentença da Corte Suprema de Justiça do Chile de 24 de setembro de 2009; b)
sentença do Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela de 10 de agosto de 2007 (sustentando a tese de que o
desaparecimento forçado de pessoas é delito permanente, sendo exceção ao princípio da irretroatividade da lei
penal, merecendo observância as obrigações dos Estados concernentes aos tratados de direitos humanos, ainda
que inexista legislação interna sobre a matéria); c) sentença da Corte Suprema de Justiça do Paraguai de 05 de
maio de 2008; d) sentença da Corte Suprema de Justiça da Argentina de 02 de novembro de 1995 (apontando às
89
Uma vez identificado o perfil dos casos julgados pela Corte de San José, vislumbra-se
analisar se o diálogo pode ser encarado como uma alternativa ao modelo clássico de
constitucionalismo para o enfrentamento e resolução de problemas comuns, bem como
analisar o impacto da jurisprudência da Corte Interamericana no âmbito doméstico dos
Estados.
Para tanto, foram selecionadas oito sentenças da Corte IDH relativas ao julgamento de
fatos ocorridos durante a ditadura militar de diferentes Estados, os quais serão analisados no
terceiro capítulo.
2.3.1 Ponto em comum – Ditadura Militar na América latina e seus períodos históricos
Verificando-se que desde a época da colonização a América Latina possui inúmeras
similitudes históricas e culturais, outro “ponto em comum” vivenciado pela região ocorreu nas
décadas de 1960 e 1980, o qual configurou um terrorismo de grande escala (PADRÓS, 2009).
Segundo Caggiola (2011, p. 09): “as consequências desse período são sentidas até hoje
[...] A principal delas foi a eliminação, pela repressão, de boa parte ou, em alguns países, da
maioria das lideranças políticas de esquerda – ou simplesmente progressistas, sindicais,
estudantis e intelectuais”.
Os interesses dos Estados Unidos (EUA) e dos aliados internos na região, somado à
expansão particular do capitalismo desde o fim da 2ª Guerra Mundial produziram um efeito
desagregador nas estruturas sociais e o esgotamento de algumas economias. A doutrina de
segurança nacional (DSN) implantada na região durante a ditadura militar também estimulou
políticas de privatizações, desnacionalizações, abertura das economias nacionais aos grandes
monopólios internacionais e de endividamento externo (PADRÓS, 2009).
As tensões sociais estiveram presentes dentro no contexto da Guerra Fria pelo impacto
da Revolução Cubana. Este panorama mundial fez com que setores dominantes
desenvolvessem uma percepção de insegurança a partir da ameaça do "comunismo
internacional". Os valores defendidos por estes setores abrangiam a democracia, os cristãos e
os ocidentais, e, do outro lado, existia os valores do ateísmo, marxismo e do totalitarismo
(PADRÓS, 2009).
De modo interessante Caggiola (2011, p. 09-10) descreve parte do contexto:
consequências do “jus cogens” em relação aos crimes contra a humanidade). In PIOVESAN, Flávia. Direitos
humanos e diálogo entre jurisdições. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, n. 19 – jan./jun, p.
67-93, 2012.
90
A história desse período, em geral e em cada país, ainda está para ser feita, embora
já existam sobre ele numerosos livros de denúncia, análises e reportagens
jornalísticas de fôlego, filmes, romances e peças teatrais. Parece que os historiadores
paralisaram diante do que, às vezes, torna-se indescritível. Algo semelhante
aconteceu com o holocausto judeu durante a Segunda Guerra Mundial: as análises
históricas de conjunto, as que realmente revelaram a trama de interesses,
contradições e até cumplicidades existentes estiveram de esperar mais de três
décadas depois do fim dos acontecimentos, quando a maioria dos responsáveis
diretos ou indiretos já estava morta ou praticamente esquecida.
Quiçá seja por esta situação que poucas bibliografias são encontradas sobre a temática.
As rupturas e os enfrentamentos internos que tomaram conta da América Latina
durante as décadas de 1970, 1980 e 1990 deixaram feridas profundas que, todavia não
cicatrizaram. O impacto das ditaduras e os conflitos internos repercutiram negativamente em
vários âmbitos: político, social, econômico e jurídico (CANTON, 2011).
A seguir será analisada brevemente a história ditatorial de alguns países da América
Latina, buscando identificar, por conseguinte, suas similitudes.
2.3.2 Argentina: 1976-1983
“Es porque soy tan testaruda que todavía insisto en cambiar el mundo”
-- Mercedes Sosa
“Yo vengo a ofrecer mi corazon, mi corazón latinoamericano”
-- Mercedes Sosa
Por volta da década de 1970 a Argentina passou por uma violência política
generalizada, no entanto, fora em 24 de março de 1976 que as forças armadas derrubaram o
governo de Isabel Martínez de Perón por meio do documento chamado Acta para el proceso
de reorganización nacional. A partir deste documento o Congresso Nacional, as legislaturas
provinciais e os governos municipais foram dissolvidos; ocorreu a remoção dos membros da
Corte Suprema de Justiça da Nação; suspensas as atividades políticas e as atividades de
trabalhadores e empresários (PARENTI; PELLEGRINI, 2009).
O processo de reorganização nacional fez com que grande parte da população
argentina fosse eliminada, exemplo disto são as estimativas feitas pelo Centro de Estudos
Legais e Sociais (CELS), as quais informam que o número de pessoas assassinadas chegou a
10 mil e cerca de 2,5 milhões de argentinos (10% da população de 1976) foram exilados na
tentativa de fugir das repressões (CAGGIOLA, 2011).
91
O governo militar anunciou entre seus propósitos restituir os valores essenciais que
servem de fundamento para a condução integração do Estado, enfatizando o sentido de
moralidade, idoneidade e eficiência; erradicar a subversão e promover o desenvolvimento
econômico da vida nacional com o objetivo de assegurar a posterior instauração de uma
democracia adequada à realidade e exigências de solução e progresso do povo Argentino
(PARENTI; PELLEGRINI, 2009).
Entre 1976 e 1983 funcionaram na Argentina 362 campos de concentração, locais
onde passaram mais de 30 mil pessoas, entre ativistas, opositores ou simples testemunhas
incômodas dos sequestros que eram realizados diariamente. A grande maioria destas pessoas
nunca mais foi encontrada (CAGGIOLA, 2011).
Nas palavras de Caggiola (2011, p. 59):
A tortura chegou a níveis tão elevados, que o temor a ela era mais forte nos
militantes resistentes do que o medo de morrer: a patológica reação dos
“montoneros” remanescentes, por exemplo, foi viver permanentemente com uma
cápsula de cianureto na boca, para engoli-la e morrer rapidamente caso estivessem
na iminência de ser detidos.
A ditadura militar argentina chegou ao fim em 1983 em meio a um grande desprestígio
social em decorrência das violações aos direitos humanos; pela crise econômica e também por
conta da derrota à Grã Bretanha na guerra pelas ilhas Malvinas em 1982 (PARENTI;
PELLEGRINI, 2009).
Com a queda do regime militar vislumbrou-se uma reação penal aos crimes cometidos
separadas em fases: 1ª fase – “persecução penal limitada”: neste momento foram anuladas as
autoanistias e foi organizada a persecução penal definida pelo governo do presidente Raúl
Alfonsín; 2ª fase – “etapa da impunidade” – tentava impedir o cumprimento das condenações;
3ª fase – “superação da impunidade” – as investigações passaram a tramitar no judiciário
(PARENTI; PELLEGRINI, 2009).
É possível afirmar que o surgimento de normas de direito penal internacional e o
advento do direito internacional dos direitos humanos fizeram com que as normas de
invalidação de impunidade tomassem o cenário para a afirmação da imprescritibilidade das
ações penais dos delitos cometidos durante a ditadura (PARENTI; PELLEGRINI, 2009).
Também foi criada uma comissão com o desiderato de investigar os crimes cometidos.
Enquanto alguns setores sustentavam a necessidade de uma comissão parlamentária, o então
92
Presidente Alfonsín argumentava que deveria ser criada uma Comissão Nacional sobre o
Desaparecimento de Pessoas (CONADEP)54 (PARENTI; PELLEGRINI, 2009).
A luta contra as atrocidades cometidas durante o período ditatorial argentino fez surgir
algumas associações, no princípio, 14 mulheres tornaram a público o desaparecimento de seus
filhos pelo terrorismo cometido pelo Estado argentino. A associação ficou conhecida como
Madres de la Plaza de Mayo e posteriormente surgiram as Abuelas de Plaza de Mayo e a
associação Hijos por la identidad, por la justicia contra el olvido y el silencio de Argentina.
Tais associações realizam denúncias dos governos militares; visam a reconstrução da
verdade; a reparação das violações e o fim da impunidade. Os movimentos são realizados em
espaços públicos justamente para ganhar maior visibilidade das autoridades (CAGGIOLA,
2011).
2.3.3 Bolívia: 1964-1982
O golpe de Estado ocorrido na Bolívia foi encabeçado pelo General René Barrientos
(Vice Presidente da República do Dr. Víctor Paz Estensoro) em 04 de novembro de 1964.
Este golpe de Estado marcou não somente um período de submissão da economia boliviana
aos interesses do capital estrangeiro, mas também pela repressão ao movimento trabalhista e
democrático (CAGGIOLA, 2011).
No governo no General René Barrientos os serviços de inteligência foram
assessorados pelo criminoso de guerra nazista Klaus Barbie que atuava sob o nome Klaus
Altmann. Em 1967 iniciou uma grande operação militar repressiva do exército boliviano com
o apoio ativo dos Estados Unidos mediante a CIA e a coordenação de inteligência dos os
demais países sul americanos que utilizaram as táticas de contrainsurgência desenvolvidas no
Vietnã (ASOFAMD, 2007).
A situação da Bolívia nesta época foi bastante crítica, sobretudo com o grande número
de violações a direitos humanos. Entre 19 de julho e 01 de novembro de 1970, foi realizada
ordem de execuções sumárias; o exército utilizou mais de mil efetivos apoiados pelos Estados
Unidos com helicópteros, bombas de napalm e aviões para enfrentar 67 jovens combatentes,
dos quais somente oito sobreviveram, entre eles três chilenos que receberam asilo, sob o
governo de Salvador Allende (ASOFAMD, 2007).
54
Foi criada pelo presidente Alfonsín mediante o decreto 187/83 de 15 de dezembro de 1983.
93
A partir de 1970, os familiares das pessoas executadas e desaparecidas criaram uma
organização pioneira na América Latina, cujas ações em defesa da liberdade e da vida de seus
entes queridos foi intensamente perseguida (ASOFAMD, 2007).
Por volta dos anos 80 quando o processo democrático vinha ocorrendo na Bolívia,
ocorreu um novo golpe de Estado liderado pelo General Luis García Meza. O Palácio
Presidencial foi tomado pelas forças militares e a Presidente interina Constitucional - senhora
Lidia Gueiler - foi obrigada a renunciar. A sede da Central Obrera Boliviana, na qual o
Comitê Nacional de Defesa da Democracia (CONADE) se reunia foi assaltada e seus
dirigentes foram presos. O candidato a presidente pelo Partido Socialista Marcelo Quiroga
Sata Cruz foi executado, os meios de comunicação foram ocupados, alguns foram destruídos e
outros totalmente controlados. Neste contexto, milhares de pessoas foram detidas sem o
cumprimento dos requisitos constitucionais (CORTE IDH, 2008).
Em 1982 com a finalidade de recuperar a democracia, foi acordada a investigação dos
crimes cometidos pelo governo do General Luis Cargía Meza (CORTE IDH, 2008).
Em dezembro de 2013 o Plenário da Câmara boliviana aprovou pela primeira vez na
história da democracia do país, um projeto de lei para a criação de uma Comissão da Verdade,
encarregada de identificar os responsáveis das violações a direitos humanos, esclarecimento e
determinação das desaparições forçadas de pessoas ocorridas durante a ditadura desde 03 de
novembro de 1964 a 10 de outubro de 1982 (BOLIVIA, 2013).
Em 2014 não há maiores informações sobre instauração de Comissão da Verdade.
2.3.4 Brasil: 1964-1985
Auge da Guerra Fria. Década de 60. O mundo dividido em dois blocos – Estados
Unidos (capitalismo ocidental) e União Soviética (socialismo). O mundo transforma-se e vêse ameaçado pela competição armamentista que se instalara (COUTO, 2003).
1962: mísseis nucleares soviéticos são encontradas na ilha socialista vizinha dos
Estados Unidos – Cuba. Tal situação dá início a chamada Crise dos Mísseis que quase
desencadeia a 3ª Guerra Mundial (COUTO, 2003).
A bipolarização do mundo não deixa dúvidas de que os Estados Unidos não
admitiriam o surgimento de uma nova “Cuba”, sobretudo pelo fato de que várias empresas
estadunidenses tinham grandes investimentos no Brasil, enquanto outras planejavam ter se
isso fosse possível (FICO, 2008).
94
Analisando sob o viés da geopolítica, o Brasil era visto pelo governo dos EUA como
um país continental, com grandes possibilidades de crescimento econômico, mas,
militarmente era pouco importante (FICO, 2008).
1964: Brasil vive uma forte instabilidade política, em março deste ano a esquerda
passa a temer um possível golpe da direita, e a direita teme um autogolpe do então presidente
João Goulart (Jango). Como dito acima, em razão de a América Latina ser uma área de
influência dos EUA, tal governo acompanhou o que estava a ocorrer no Brasil de maneira
próxima, porquanto a instável democracia populista tornaria-se vulnerável ao comunismo
soviético. Se Washington não admitia a existência de outra Cuba, jamais aceitaria o país mais
populoso, economicamente mais importante da América do Sul e com dimensões continentais
tornar-se aliado dos países socialistas (COUTO, 2003).
20 de dezembro de 1963. O então Presidente estadunidense Lyndon Johnson diz ao
senador Mike Mansfield: “preciso sentar e conversar com você sobre o que está acontecendo
no Brasil. Não creio que você saiba como é séria a situação”. A partir deste diálogo
historiadores afirmam que o Presidente soube com antecipação do golpe militar que viria a
ocorrer três meses depois no Brasil (31 de março de 1964) (COUTO, 2003).
30 de março de 1964, 21h30min, hora de Washington. O Presidente John diz para seu
assessor: “Com certeza, se explodir nesta noite, você saberá amanhã de manhã”. Reedy, o
assessor responde-lhe: “É verdade. E então vamos precisar de uma reação. Mas, se não
explodir nesta noite, acho que devemos ficar no já previsto” (COUTO, 2003).
Noite de 30 de março de 1964. O Presidente João Goulart estava em seus aposentos da
residência oficial no Rio de Janeiro, Palácio Laranjeiras. Deveria discursar para cerca de dois
mil sargentos e suboficiais das Forças Armadas que estavam no salão do Automóvel Clube na
Cinelândia. Juntamente com Jango estavam o deputado Tancredo Neves (líder do governo na
Câmara) e Raul Ryff (secretário de imprensa da presidência). Ambos buscavam convencer o
presidente a não comparecer na reunião, pois sua presença iria jogar lenha na crise militar que
assolara o país (GASPARI, 2002).
No entanto, os esforços de Tancredo e Raul não foram suficientes, pois o presidente
decidiu ir à reunião junto às forças armadas. Jango estacionou seu carro em frente ao
Automóvel Clube e quando ingressou no local já estavam no vigésimo discurso da noite.
Neste momento os ouvintes passaram a falar aos gritos: “manda brasa, presidente!”. Mais ou
menos no mesmo horário o telegrama do consulado americano em São Paulo já chegara à
Casa Branca, informando que “duas fontes ativas do movimento contra Goulart dizem que o
golpe contra o governo do Brasil deverá vir nas próximas 48 horas” (GASPARI, 2002).
95
Jango passou a improvisar o discurso, acabou por recorrer ao populismo e aduziu,
apontando para os sargentos, que eles eram o elo entre as Forças Armadas e o povo, além
disto, acusou os opositores de difamação. No meio militar, o fato de o presidente estar no
encontro dos sargentos é visto como um ato contra a hierarquia e a disciplina. Tratava-se,
portanto, da faísca para detonar o golpe (COUTO, 2003).
Ao avaliar as consequências de suas declarações, Goulart afirmou para o jornalista
Antonio Callado que o máximo que poderia acontecer a ele seria a possibilidade de ser
deposto; ele não renunciaria, tampouco se suicidaria. – Referindo-se à renúncia de Jânio
Quadros e ao suicídio de Getúlio Vargas (CHIAVENATO, 1994).
Quando Jango retornou ao Palácio, o Presidente dos EUA Lyndon Johnson recebeu
um telefonema informando sobre a necessidade de organizar navios, tanques e suprimentos,
pois o “assunto” brasileiro poderia “estourar” a qualquer momento (GASPARI, 2002).
31 de março de 1964, Juiz de Fora, Minas Gerais. Olympio Mourão Filho – general
açodado vai à rua com equipamentos e tropas do Exército sob seu comando, tendo como
destino o Rio de Janeiro e o objetivo de derrubar o governo. Não houve resistência, o
presidente constitucional João Goulart deixa o governo e exila-se no Uruguai, assim inicia-se
a era de poder das Forças Armadas (COUTO, 2003) Goulart de pronto percebeu que não
contava com apoio militar, diversamente do que havia garantido o seu chefe do Gabinete
Militar, general Assis Brasil (FICO, 2008).
3 de abril de 1964, Washington (EUA). Thomas Mann, subsecretário de Estado para
Assuntos Interamericanos fala para o presidente Johnson: “Espero que você esteja tão feliz
com o Brasil quanto eu” (COUTO, 2003).
O apoio dos Estados Unidos pode ser verificado também pela operação chamada
Brother Sam iniciada em março de 1964:
consistia em apoio logístico ao golpe. Inclusive um porta-aviões – o Forrestal – seis
destróieres, quatro petroleiros, navio para transporte de helicópteros, esquadrilha de
aviões de caça. Cerca de cem toneladas de armas leves e munições foram reunidas
numa base militar de Nova Jersey para serem trazidas de avião. A historiadora
americana Phyllis Parker descobriu os documentos da operação na Biblioteca
Lyndon Johnson, no Texas. Publicou em 1976. Eles demonstram que os Estados
Unidos se mobilizaram para apoiar a intervenção militar no Brasil, inclusive para
participar diretamente da possível luta interna. (COUTO, 2003, p. 25-26)
Para Fico (2008, p. 101) “a Operação Brother Sam não foi pouca coisa”. Além do
envio de ajuda de armamento, apoio financeiro, material e técnico, acabou por comprometer
seus idealizadores durante todo o período ditatorial. Com a deposição de Goulart, os Estados
96
Unidos passaram a agir de forma com que a comunidade internacional não visse o
afastamento do então presidente brasileiro como mais um rotineiro golpe militar ocorrido na
América Latina.
9 de abril de 1964, Brasília. Os militares publicam o primeiro ato institucional, dando
início formal ao regime autoritário, baseado no binômio segurança nacional/desenvolvimento,
modelo que também passa a ocorrer em vários países latino-americanos. (COUTO, 2003)
11 de abril de 1964, Brasília. Humberto de Alencar Castello Branco, principal líder da
linha militar, é eleito pelo congresso como Presidente da República. Neste momento o poder
civil adormece em longa agonia (COUTO, 2003).
Segundo Chiavenato “entre 1964 e 1984, a ditadura destruiu a economia,
institucionalizou a corrupção e fez da tortura uma prática política. [...] Alienou as novas
gerações, tornando-as incapazes de entender a sociedade em que vivem” (CHIAVENATO,
1994, p. 05).
Após a redemocratização o Brasil assumiu uma postura voltada à promoção do direito
internacional a partir do momento em que reconheceu a jurisdição de mecanismos
internacionais (RAMOS, 2011).
Exemplo disto foi o reconhecimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
Tribunal Penal Internacional, Comitês de tratados internacionais de direitos humanos, Órgão
de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, Tribunal Permanente de
Revisão do Mercosul. Também ocorreu uma mudança no entendimento do STF acerca na
natureza dos tratados internacionais como supralegal ou constitucional (RAMOS, 2011).
O regime militar resistiu por muito tempo até reconhecer a situação jurídica dos
desaparecidos, sendo que somente com a adoção da Lei n. 9.140/9555 é possível afirmar a
existência de um marco para o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelo
assassinato de opositores do governo de outrora.
Por meio desta lei também fora criada uma Comissão Especial que tinha por finalidade
proceder o reconhecimento de pessoas desaparecidas. Sua atribuição foi ampliada pela Lei n.
10.875/2004 por abranger também as pessoas que tenham cometido suicídio na iminência de
serem presas ou em decorrência de sequelas psicológicas resultantes de atos de torturas
praticados por agentes do poder público.
55
Art. 1o São reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou
tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de
outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então,
desaparecidas, sem que delas haja notícias.
97
Em 2001 o Ministério da Justiça criou a Comissão de Anistia por meio da Medida
Provisória n. 2.151, com o desiderato de julgar em caráter administrativo pedidos de
indenização de indivíduos que foram impedidos de exercer suas atividades econômicas por
motivação política (BRASIL).
Em relação à Lei de Anistia, em outubro de 2008 o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil56 interpôs ADPF 153 no STF, requerendo a interpretação do parágrafo
único do artigo 1º da Lei n. 6.683/1979 conforme a Constituição Federal. (RAMOS, 2011)
O Procurador-Geral da República, senhor Roberto Gurgel Monteiro Santos, sustentou
que a argüição deveria ser julgada improcedente, pois caso a tese da ADPF fosse acatada,
seria rompido o compromisso realizado na década de 70 (RAMOS, 2011).
Em 29.04.2010, o STF julgou a ADPF 153, por sete votos a dois57, interpretando pela
constitucionalidade da Lei de Anistia. O “ineditismo” deste caso refere-se ao fato de ser a
primeira vez que uma ação é tramitada no STF concomitantemente a um processo
internacional com objeto semelhante na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Trata-se
do caso “Gomes Lund”, conhecidamente como Guerrilha do Araguaia (RAMOS, 2011) o qual
será estudado no terceiro capítulo.
Para o STF em razão de o Judiciário não deter competência para reescrever leis de
anistia, eventual mudança somente poderia ser feita pelo poder legislativo e se modificações
do tempo e da sociedade assim impuserem (PIOVESAN, 2011).
Ademais, importante ressaltar que os ministros: Eros Grau, Cármen Lúcia, Ellen
Gracie, Marco Aurélio, Gilmar Mendes58e Carlos Britto59, em nenhum momento da decisão
citaram a Convenção Americana sobre Direitos Humanos para auxiliar na reflexão sobre a
extensão da anistia aos agentes da ditadura, tampouco fora mencionado a jurisprudência
56
O Conselho Federal da OAB tinha entre seus advogados o Professor Fábio Konder Comparato, donde
invocaram os preceitos fundamentais constitucionais da isonomia (art. 5º, caput), direito à verdade (art. 5º,
XXXIII) e os princípios republicano, democrático (art. 1º, parágrafo único) e da dignidade humana ( art. 1º, III).
In RAMOS(2011, p. 180).
57
Votos vencedores: Eros Grau (relator), Cármen Lúcia, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de
Mello e Cezar Peluso. Votos vencidos : Ricardo Lewandowski e Ayres Britto.
58
No RE 466. 343/SP Gilmar Mendes foi decisivo para a mudança de orientação do STF quanto ao estatuto dos
tratados de direitos humanos, que, agora, ao menos possuem o estatuto supralegal. No RE 511.961/SP, o Min.
Mendes discorreu, em seu voto, longamente sobre a Opinião Consultiva 05 da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, tendo seguido seu entendimento (derrubando a obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o
exercício essa profissão). Porém, seu voto na ADPF 153 repetiu várias omissões vistas nos votos dos outros
ministros. (RAMOS, 2011)
59
A pesar de não ter existido um “Diálogo de Cortes” a conclusão do voto do Min. Carlos Britto se assemelha ao
que já é precedente consolidado nos órgãos internacionais e na Corte Interamericana de Direitos Humanos: não
cabe anistia aos violadores graves de direitos humanos, ou na linguagem do ministro, aos autores de crimes
hediondos e assemelhados. (RAMOS, 2011).
98
consolidada da Corte Interamericana acerca na inaplicabilidade das leis de anistia aos agentes
da repressão política (RAMOS, 2011).
Por outro lado, o Ministro Celso de Mello reconheceu que tratados internacionais de
direitos humanos poderiam auxiliar no deslinde da ação:
O Brasil, consciente da necessidade de prevenir e de reprimir os atos
caracterizadores da tortura, subscreveu, no plano externo, importantes documentos
internacionais, de que destaco, por sua inquestionável importância, a Convenção
Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou
Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1984; a
Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, concluída em Cartagena
em 1985, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica), adotada no âmbito da OEA em 1969, atos internacionais estes que já se
acham incorporados ao plano do direito positivo interno de nosso País (Decreto nº
40/91, Decreto nº 98.386/89 e Decreto nº 678/92). (STF, 2013)
Ademais, o Ministro mencionou a jurisprudência interamericana dos casos Barrios
Altos, Loayza Tamayo e Almonacid Arellano, todos julgados pela Corte de San José. Em que
pese tenha feito este diálogo, relatou que tais decisões não eram semelhantes ao que estava
sendo julgado, pois aquelas tratavam de leis de autoanistia e que a situação discutida no caso
brasileiro era um acordo político entre a ditadura e a oposição (RAMOS, 2011).
Esta situação demonstra que o diálogo não foi realizado de forma integrada, conforme
será visto a partir da análise do entendimento da Corte Interamericana nos julgamentos dos
crimes da ditadura militar.
De modo muito semelhante foi o voto do Ministro Cezar Peluso, pois fez menção à
jurisprudência da Corte Interamericana, mas interpretou justamente com o objetivo de afastar
sua aplicação (RAMOS, 2011).
Por fim, o Ministro Lewandowski foi o único que mostrou a verdadeira face do
diálogo, pois além de expor a obrigação do Estado em investigar e punir criminalmente os
autores das violações ocorridas durante o regime ditatorial, citou a necessidade de cumprir a
interpretação dos direitos constantes no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e
trouxe a interpretação da Corte de San José dos casos Goiburu e outros, caso Balderón García;
caso Masacre de Pueblo Bello e caso do Masacre de Mapiripán para realizar o diálogo entre
as Cortes (RAMOS, 2011).
Embora tenha sido louvável o diálogo realizado pelo ministro Lewandowski, acabou
por julgar procedente em parte a ADPF e chegou a afirmar que caberia a cada juízo antes de
dar início a persecução penal, interpretar se a conduta do agente foi política e os meios
perpetrados não foram atrozes (RAMOS, 2011).
99
Mesmo o Estado tendo reconhecido sua responsabilidade pela morte dos
desaparecidos, tão somente esta medida não se faz satisfatória, sobretudo no que diz respeito à
reparação dos familiares das vítimas. Fora justamente a ausência de interesse do Estado na
elucidação do passado que ensejou o ajuizamento de uma petição para o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos (BRAGATO, et. al, 2012).
Segundo Flávia Piovesan (2011) houve uma denegação do direito à justiça às vítimas,
demonstrando que a transição brasileira trata-se de um processo aberto e incompleto.
É possível verificar que os avanços do Brasil quanto ao direito internacional dos
direitos humanos ocorreram de forma mais profunda no sentido formal (aprovação dos
tratados), mas não quanto à interpretação dos direitos neles contidos. O que há hoje é um
silêncio sobre a interpretação dada pelo próprio direito internacional, consubstanciado na
observação do intérprete autêntico, por exemplo, da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. O Brasil está, portanto, “manco” nessa área (RAMOS, 2011).
Essa interpretação nacional desconectada da interpretação internacional destrói a
própria essência da internacionalização dos direitos humanos, que consiste em
impedir que as paixões de momento das maiorias – mesmo aquelas entronizadas nos
órgãos judiciais máximos – possam sacrificar os direitos de todos. Por isso, a
proteção de direitos humanos passou a ser tema internacional em especial após a
Carta da Organização das Nações Unidas de 1945 e a Declaração Universal de
Direitos Humanos (1948). (RAMOS, 2011, p. 213)
Exemplo do atraso no reconhecimento por parte do Brasil é possível verificar pelo
próprio ano de ratificação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Enquanto a
maioria dos Estados ratificou entre as décadas de 70 e 80,60 o Brasil, foi o último, porquanto
reconheceu somente em 1992.
Para tentar desenvolver de melhor modo esta transição, cabe salientar que a partir da
Lei n. 12.528/2011 foi criada a Comissão Nacional da Verdade com o objetivo de apurar as
graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1964 e 5 de outubro
de 1988.
A Comissão tem percorrido de norte a sul do Brasil desde julho de 2012; já realizou 71
audiências e colheu dezenas de depoimentos de vítimas (CNV, s.d.a).
60
Argentina 1984, Bolívia 1979, Colômbia 1973, Costa Rica 1970 Chile 1990, El Salvador 1978, Equador
1977, Guatemala 1978, Haiti 1977, Honduras 1977, Jamaica 1978, México 1981, Nicarágua 1977, Panamá 1978
Paraguai 1989, Peru 1978, Uruguai 1985, Venezuela 1977, República Dominicana 1978, Suriname 1987,
Trinidad e Tobago 1991. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/mapa-interactivo>. Acesso
em: 09 set. 2014.
100
Para a Comissão Nacional da Verdade o objetivo de seus trabalhos não é somente "a
afirmação da justiça, mas também preparar a reconciliação nacional [...] como dever
elementar da solidariedade social e imperativo de decência, reclamados pela dignidade de
nosso país" (CNV, 2014a).
Os trabalhos da Comissão da Verdade têm surtido efeitos, tanto é que em 31.08.2014
foi enterrado o corpo do primeiro desaparecido político, Sr. Epaminondas Oliveira, 43 anos
após sua morte. O laudo oficial do Exército informava que a vítima havia falecido por anemia
e insuficiência renal, no entanto, a tortura sofrida pelo Sr. Epaminondas torna pouco crível a
versão oficial de morte natural, isso porque após a identificação dos restos mortais, o médico
legista Aluísio Trindade afirmou que não há como ratificar o laudo do Exército (CNV,
2014c).
2.3.5 Chile: 1973-1990
“Sólo le pido a Dios que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
toda la pobre inocencia de la gente”.
-- Violeta Parra
No início da década de 70 o Chile vivia uma grande polaridade ideológica e com
posturas intransigentes ao enfrentamento armado como solução para a crise existente na
política e na sociedade (DALBORA, 2009).
O regime militar chileno se instalou em 1973 após derrubar o governo democrático de
Salvador Allende (GARRETÓN, s/a). No dia 11 de setembro do referido ano foi declarado
Estado de Sítio em todo o território; o Parlamento foi dissolvido; os chefes das Forças
Armadas e da Polícia assumiram o poder Executivo e Legislativo, tendo o presidente da Junta
Militar (Augusto Pinochet) assumido o posto de Presidente da República (PEREIRA, 2011).
Nas primeiras semanas após o golpe, Pinochet implantou a chamada “caravana da
morte”, que consistia na detenção sistemática de ativistas políticos em campos de
concentração; utilização de tortura e assassinato dos opositores (CAGGIOLA, 2011).
As forças armadas com a denominada doutrina de segurança nacional utilizaram como
justificativa os procedimentos de uma guerra sem limites jurídicos e sem escrúpulos com a
subversão marxista, segundo uma fraseologia que vinha sendo externada pelos oficiais dos
Estados Unidos com o triunfo da Revolução Cubana (DALBORA, 2009).
101
Dezenas de milhares de prisioneiros chegaram aos campos de concentração, sendo que
o regime militar começava a aplicar uma política repressiva de caráter institucional,
sistemática e massiva que perseguia o extermínio da esquerda chilena, qualificada dentro da
doutrina de segurança nacional como o "inimigo interno". (BRINKMANN, 1999)
O estado de sítio em grau de comoção ficou declarado até o dia 10 de setembro de
1975 (porquanto não existiam forças rebeldes organizadas), então a aplicação da legislação
em tempo de guerra prolongou-se até o dia 10 de setembro de 1977. Com esta conjuntura
política muitos indivíduos foram condenados à pena de morte ou à privação de liberdade;
outros foram detidos sem serem julgados por um tribunal, submetidos à tortura ou ainda
expulsos do país (PEREIRA, 2011).
O poder judiciário não somente renunciou sua tarefa de defender os direitos humanos
dos cidadãos como também favoreceu a impunidade dos crimes cometidos ao afirmar que os
tribunais em tempo de guerra não estavam submetidos a sua superintendência, isto é, os
conselhos de guerra estavam sob supervisão exclusiva do Chefe do Exército, o General
Augusto Pinochet (BRINKMANN, 1999).
O regime perseguiu indivíduos opositores inclusive no exterior, exemplo disto, é o
caso do general Prats que foi assassinado em Buenos Aires. Outra situação foi o caso dos
assassinatos de Allende, Orlando Letelier e de sua secretária Ronnie Moffit na capital dos
EUA pelo agente Manuel Contreras (CAGGIOLA, 2011).
Passados os primeiros meses de repressão, em 14 de junho de 1974 Pinochet criou
formalmente a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), a qual se converteu no mais
temido instrumento repressivo da ditadura. As detenções passaram a ser mais seletivas
especialmente dos militantes do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), os quais
foram submetidos a brutais torturas em prisões clandestinas (BRINKMANN, 1999).
Em que pese a existência de inúmeras denúncias, protestos nacionais e internacionais,
a DINA seguiu fazendo desaparecer opositores do regime e o governo manteve sua posição
oficial de negar os fatos (BRINKMANN, 1999).
O rejeição internacional que provocava as múltiplas denúncias sobre os horrendos
métodos de tortura praticados nos centros de detenção clandestinos da DINA, levou o General
Augusto Pinochet a adotar medidas de mudanças: em 1977 decretou a dissolução da DINA,
no entanto, a repressão política não diminuiu substancialmente, haja vista que somente foram
modificados alguns de seus métodos (BRINKMANN, 1999).
102
Diante da evidência de não ser possível ocultar os crimes e, deste modo, garantir a
impunidade dos responsáveis, o governo tomou uma decisão que marcou fundamentalmente a
problemática dos direitos humanos (BRINKMANN, 1999).
Em 19 de abril de 1978 foi publicado no Diário Oficial o Decreto Lei n. 2.191,
conhecido como Ley de Amnistía do Governo militar. Referido decreto concede:
amnistía a todas las personas que, en calidad de autores, cómplices o encubridores
hayan incurrido en hechos delictuosos, durante la vigencia del Estado de Sitio,
comprendida entre el 11 de septiembre de 1973 y el 10 de marzo de 1978, siempre
que no se encuentren actualmente sometidas a proceso o condenadas. (CHILE,
1978)
Com o controle dos meios de comunicação, o regime militar chamou a população para
pronunciar-se por meio de um plebiscito sobre uma nova proposta de Constituição Política.
Ela foi aprovada em 11 de setembro de 1980 com 67% de votos a favor, em um processo que
a oposição definiu como "farsa democrática", pois as autoridades tinham como objetivo dar
um manto de legitimidade a seu regime repressivo e assegurar o exercício do poder durante os
próximos oito anos (BRINKMANN, 1999).
Embora a Carta Constitucional declarasse que os homens nascem livres e iguais em
dignidade e direitos foram legalizados diversos mecanismos de repressão. A certeza de que
Pinochet objetivava permanecer no poder, contribuiu para que as forças de oposição se
organizassem para por fim à ditadura. Primeiro de modo bastante incipiente, mas cada vez
com maior vigor foi gerando uma mobilização social que abarcaria setores sindicais e
estudantis. Em várias populações de Santiago a partir de 1978 começaram a ser criados
"comitês de base" de direitos humanos. Os objetivos eram lutar pelo direito à vida, à
liberdade, ao trabalho e à saúde, denunciar as violações destes direitos e defender os
indivíduos (BRINKMANN, 1999).
A partir de 1983 passaram a surgir estratégias para colocar fim à ditadura, entretanto,
fora somente em 5 de outubro de 1988, após a realização de um plebiscito, que o povo
chileno majoritariamente decidiu que o general Pinochet não deveria continuar sendo o
governante do país (BRINKMANN, 1999).
A derrota do ditador no plebiscito trouxe como consequência uma radicalização dos
tribunais de justiça em favor da cessação definitiva de todos os processos relacionados à
violação a direitos humanos tendo sido aberto caminho para as eleições presidenciais e
parlamentárias no dia 14 de dezembro de 1989 (BRINKMANN, 1999).
103
Em 21 de agosto de 1990 o governo chileno ratificou a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos que em seu artigo 25 consagra o direito à justiça em relação aos atos que
violem os direitos fundamentais das pessoas. Também foi reconhecida a competência da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas com a reserva de que o reconhecimento
referia-se aos fatos posteriores à data de ratificação (BRINKMANN, 1999).
Patricio Aylwin Azocar foi o primeiro presidente chileno a assumir o governo após o
restabelecimento da democracia no país no ano de 1990. Em uma publicação feita para o
Instituto Interamericano de Derechos Humanos afirmou que teve a honra de encabeçar uma
das tarefas que a sociedade chilena tinha pendente: esclarecer a verdade sobre o que havia
passado nas décadas anteriores em fazer justiça na matéria de direitos humanos (AZOCAR,
1995).
Afirmou que por um lado, havia as famílias das vítimas, as organizações de direitos
humanos e os partidos políticos que haviam ganhado a eleição, os quais afirmavam ser
condição fundamental da reconciliação nacional conhecer a verdade e fazer justiça. Por outro
lado, setores vinculados ao antigo regime, especialmente as forças armadas, não ocultavam
seu descontentamento, alegando que voltar ao passado seria criar um conflito na sociedade
chilena que poderia ter consequências sem precedentes (AZOCAR, 1995).
Nestas circunstâncias, o Governo tinha de tomar uma decisão política: levar adiante
uma investigação ou aceitar colocar um ponto final ao debate. Para o então presidente, o
Governo não poderia deixar de esclarecer a verdade, pois esta era a base necessária e
indispensável para lograr um reencontro dos chilenos em uma sociedade pacífica, sem estar
baseada em uma mentira ou com uma desconfiança recíproca do que outrora fora cometido
(AZOCAR, 1995).
O primeiro passo seria encontrar pessoas de suficiente prestígio nacional para
constituir uma comissão, no entanto, surgira um problema adicional: no ano de 1988 havia
sido promulgado no país uma lei de anistia que perdoava praticamente todas as violações a
direitos humanos cometidas anteriormente à esta data. Esta lei estava vigente e impugnava a
possibilidade de construir uma comissão e fazer uma investigação que fosse contrária ao
disposto pela lei (AZOCAR, 1995).
Em 25 de abril foi então realizado o Decreto n. 255 que criou a Comisión Nacional de
Verdad y Reconciliación no Chile, cujo objetivo principal era contribuir com o esclarecimento
global da verdade sobre as mais graves violações a direitos humanos cometidas no período de
11 de setembro de 1973 e 11 de março de 1990. (DDHH) Ou seja, a comissão foi criada para
104
esclarecer a verdade e não para julgar os culpados, porquanto não poderia assumir funções
jurisdicionais (AZOCAR, 1995).
Após ser decidido quais pessoas fariam parte da Comissão, iniciaram-se os trabalhos.
Nos relatórios a Comissão conta com os organismos do Estado, sobretudo as instituições das
forças armadas, pois responderam aos requerimentos e informações. Ulteriormente, a
Comissão passou a estudar casos individuais (cerca de 3.400 casos), nos quais formou-se a
convicção de que realmente haviam violações a direitos humanos. A Comissão achou
necessário fazer um novo informe, relatando a verdade de cada caso com nome e sobrenome
das vítimas que foram mortas ou desaparecidas como consequência da violação e uma breve
relação das circunstâncias em que ocorreram (AZOCAR, 1995).
Em março de 1991 o Presidente dirigiu uma mensagem ao país destacando que em
torno de 2000 casos havia existido violação a direitos humanos, dos quais, cerca de 1000
correspondiam a pessoas desaparecidas. Em virtude de tais dados, foi enviado ao Congresso
um projeto de lei para criar uma Corporación Nacional de Reparación y Reconciliación que
teria como desiderato outorgar indenizações às famílias das vítimas, consistentes em pensões
para os familiares diretos (viúvas, filhos pais) e conceder bolsas de estudo para os filhos das
vítimas. Referida Lei fora devidamente aprovada pelo Congresso.
Nas palavras do Presidente (1995, p. 116):
Por eso yo me atrevo, en calidad de Presidente de la República, a asumir la
representación de la nación entera para, en su nombre, pedir perdón a los familiares
de las víctimas. Por eso también pido solemnemente a las fuerzas armadas y de
orden y a todo los que hayan tenido participación en los excesos cometidos que
hagan gestos de reconocimiento del dolor causado y colaboren para aminorarla.
A Comissão da Verdade vem possuindo um papel determinante e demonstra
claramente o compromisso do governo chileno em esclarecer a verdade para a população.
Atualmente, mantém página no seguinte sítio: <http://www.ddhh.gov.cl/index.html>, onde
são realizadas atualizações sobre o trabalho desenvolvido.
2.3.6 El Salvador: 1979-1991
El Salvador sofreu uma das guerras civis mais cruentas e atrozes da América
Latina (VENTURA, 2009), pois durou doze e anos e vitimou cerca de 75 mil pessoas, número
105
bastante alto se considerar que o país à época tinha uma população de apenas cinco milhões
de habitantes (BUERGENTHAL, 1996).
A guerra ocorreu dentro do contexto da Guerra Fria com o apoio dos Estados Unidos
ao governo salvadorenho, o qual dava grande assistência militar e econômica, chegando a
superar seis milhões de dólares (BUERGENTHAL, 1996).
Por outro lado uma aliança de cinco grupos insurgentes de esquerda Frente Farabundo
Martí para la Liberación Nacional (FMLN) recebeu importante ajuda de Cuba, Nicarágua,
União Soviética e outros países do bloco soviético, sobretudo em armamento e treinamento
militar (BUERGENTHAL, 1996)
As causas da guerra civil são próprias do desenvolvimento histórico, social e político
do país: a extrema concentração da riqueza em grupos oligárquicos; a distribuição injusta da
terra; os altos índices de pobreza; desemprego; exclusão social e falta de políticas públicas
para a satisfação dos direitos econômicos e sociais das grandes maiorias e as fraudes eleitorais
de 1972 e 1977 (VENTURA, 2009).
Nos anos 70 o contexto de polaridade política fez com que surgisse no Estado uma
situação de ingovernabilidade e emergisse a opção revolucionária. O golpe de Estado ocorreu
em 15 de outubro de 1979. Em janeiro de 1981 instalou-se uma guerra civil aberta quando o
Comando Central do FMLN anunciou a Ofensiva Geral Militar contra o regime. As
transformações sofridas pelo conjunto da estrutura social salvadorenha foram muito
profundas, tendo a economia se transformado rapidamente em uma "economia de guerra" e
"para a guerra" (BENÍTEZ-MANAUT, 1990).
A violência avançou pelos campos do país, invadiu as aldeias, destruiu estradas e
pontes, arrasou as fontes de energia, chegou às cidades, destruiu famílias e recintos sagrados;
golpeou a justiça e a administração pública. A violência converteu-se em destruição e morte
(COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR, 1993).
O conflito bélico que se instalou neste pequeno país foi marcado pelos magnicídios do
arcebispo monsenhor Óscar Arnulfo Romero e de seis sacerdotes jesuítas; massacres de
milhares de campesinos indefesos nas zonas rurais; assassinatos seletivos de sindicalistas,
professores, estudantes, sacerdotes, religiosos e catequistas; execuções sumárias com
requintes de barbárie perpetradas pelas forças militares dos bandos enfrentados ou pelos
temíveis esquadrões da morte; o encarceramento e a tortura de milhares de indivíduos em
centros clandestinos de detenção e os desaparecimentos forçados de pessoas especialmente de
meninos e meninas que foram sequestrados durante as operações militares (VENTURA,
2009).
106
Quando a Guerra Fria começou a perder a força, ficou evidente que o governo não
seria capaz de derrotar o FMLN; tampouco o FMLN conseguiria derrotar o governo,
notadamente pelo fato de que seus respectivos patrocinadores não mais teriam interesse
político e recursos econômicos para apoiá-los (BUERGENTHAL, 1996).
Ninguém ganhava a guerra, todos perdiam, até o momento em que governos de países
amigos, organizações internacionais que acompanhavam os acontecimentos no pequeno país
da América Central contribuíram em algumas reflexões. Javier Pérez de Cuéllar, então
Secretário Geral das Nações Unidas, juntamente com os presidentes da Colômbia, Espanha,
México e Venezuela ajudaram na resolução do conflito (COMISIÓN DE LA VERDAD
PARA EL SALVADOR, 1993).
Após doze anos de conflito armado, em 16 de janeiro de 1992 foi firmado um Acordo
de Paz que pôs fim às hostilidades. Pouco antes, em 27 de abril de 1991 foi decidida a criação
de uma Comissão da Verdade com o escopo de investigar os graves fatos de violência
ocorridos (CORTE IDH, 2011).
A Comissão da Verdade registrou mais de 22 mil denúncias durante o período de
janeiro de 1980 a julho de 1991. Mais de sete mil denúncias foram recebidas diretamente nos
escritórios da Comissão e as demais chegaram por intermédio de instituições governamentais
e não governamentais. 60% do total correspondem a execuções extrajudiciais (COMISIÓN
DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR, 1993).
As denúncias de forma coincidentes indicam que ela se originou em uma concepção
política onde consideravam algumas pessoas como opositor político, subversivo e inimigo. As
pessoas que postulavam ideias contrárias às oficiais corriam risco de serem eliminadas
(COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR, 1993).
As testemunhas atribuíram quase 85% dos casos aos agentes do Estado, a grupos
paramilitares e a esquadrões da morte. Os efetivos das Forças Armadas foram acusadas em
quase 60% das denúncias (COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR, 1993).
2.3.7 Honduras :1963-1990
Desde sua independência em 1821, Honduras vive em um permanente estado de
instabilidade política, marcada por fatores incidentais como a ausência de domínio sobre seu
território (COMISIÓN DE VERDAD, 2012).
107
Uma rápida revisão da história hondurenha permite identificar oito derrubadas de
governo pelas forças armadas no século XIX. Os governos de Dionisio de Herrera em 1827;
José Trinidad Cabañas em 1855; Santos Guardiola em 1862; Francisco Montes em 1963; José
María Medina em 1872; Céleo Arias em 1874; Ponciano Leiva em 1876 e Domingo Cásquez
em 1893 (COMISIÓN DE VERDAD, 2012).
Entre os anos de 1981 e 1984 produziram no Estado vários casos de pessoas que foram
sequestradas e posteriormente desapareceram com ações que eram imputadas às Forças
Armadas de Honduras (CORTE IDH, 1988).
O golpe de Estado como instrumento de controle social e político por parte das elites
empresariais repete-se ao reeditar as conspirações com a cúpula contra o Governo do
Presidente José Manuel Zelaya Rosales (COMISIÓN DE VERDAD, 2012).
2.3.8 Uruguai: 1973-1985
O fim da década de 1960 marcou o Uruguai pela superação de ideias e valores
progressistas/humanistas enraizados nas décadas anteriores de tradições políticas liberais. O
mítico Uruguai, outrora visto e chamado como a “Suíça da América” tornou-se vítima da pior
experiência de sua história (PADRÓS, 2009).
O período compreendido de 13 de junho de 1968 até 26 de junho de 1973 foi marcado
pela aplicação sistemática de Medidas Prontas de Seguridad, inspirado no marco ideológico
da Doutrina de Segurança Nacional, quando o Presidente eleito Juan María Bordaberry
assumiu o poder com o apoio das Forças Armadas, dando início a um período de ditadura
cívico-militar que se prolongou até 1985 (CORTE IDH, 2013).
Na década de 70 foram estabelecidas operações transnacionais na região com o
objetivo de eliminar grupos de guerrilheiros no contexto de uma campanha contrainsurgente
que justificava expandir o campo de ação além dos limites territoriais (CORTE IDH, 2013).
Em 1960, havia sido criada a Conferência dos Exércitos Americanos - uma
organização de segurança hemisférica inspirada na doutrina da segurança nacional, os quais se
reuniam em sessões secretas para discutir possíveis estratégias e acordos de atividades
conjuntas (CORTE IDH, 2013).
Em fevereiro de 1974 foi realizada uma reunião em Buenos Aires com a participação
de oficiais da segurança policial da Argentina, Chie, Uruguai, Paraguai e Bolívia para o
108
estabelecimento de um plano de cooperação. No mesmo ano, também passaram a discutir a
ideia de criar uma rede continental de informação anti-comunista (CORTE IDH, 2013).
Em 1975 a cooperação de inteligência militar formalizou a denominada Operación
Cóndor, que facilitou a criação de estruturas paralelas que atuavam de forma secreta e com
grande autonomia. Esta operação foi muito sofisticada e organizada, pois contava com
treinamentos constantes, sistemas de comunicação avançado, centros de inteligência e
planejamento estratégico com a finalidade de aperfeiçoar e receber os prisioneiros
estrangeiros (CORTE IDH, 2013).
Em 1977 ocorreram operações de colaboração entre Paraguai, Argentina e Uruguai
momento em que foi dado início a uma segunda onda de repressão dirigida contra grupos de
esquerda que tinham vínculos nestes países, fazendo traslado de prisioneiros em aviões
militares para o intercâmbio de detentos (CORTE IDH, 2013).
Ademais, as operações clandestinas incluíram em muitos casos a apropriação de
crianças, muitas delas recém nascidas em cativeiro onde seus pais eram executados. As
mulheres grávidas que estavam presas eram mantidas vivas até o momento em que dessem à
luz para depois entregar as crianças para famílias de militares ou polícias (CORTE IDH,
2013).
Com o término da ditadura militar em 1984, no ano subsequente o Dr. Julio María
Sanguinetti assumiu o primeiro governo democrático em uma eleição com severas restrições,
em razão de alguns candidatos terem sido impedidos de participar (ADRIASOLA, 2011).
Em 08 de maio de 1985, o Parlamento democraticamente eleito criou a Lei n. 15.737
que anistiou todos os delitos políticos, comuns e militares conexos, cometidos a partir de 1 de
janeiro de 1962. No entanto, alguns crimes foram excluídos da anistia de acordo com o artigo
5º da Lei supra:
Quedan excluidos de la amnistía los delitos cometidos por funcionarios policiales o
militares, equiparados o asimilados, que fueran autores, coautores o cómplices de
tratamientos inhumanos, crueles o degradantes o de la detención de personas luego
desaparecidas, y por quienes hubieren encubierto cualquiera de dichas conductas.
(URUGUAY, 1985)
A partir do momento em que foi decidido não incluir os membros da ditadura dentro
da Lei de Anistia, quando fora reinstaurada a democracia começaram a ser realizadas as
primeiras denúncias penais por parte das vítimas da tortura e por familiares de desaparecidos
(ADRIASOLA, 2011).
109
Entretanto, quando as Forças Armadas passaram a receber as primeiras intimações
judiciais, adotaram uma posição de desacato institucional. O Comandante Chefe do Exército
manifestou que nenhum militar iria se apresentar perante o Poder Judiciário. Neste contexto, o
Parlamento aprovou a Lei 15.848, denominada de Caducidad de la Pretensión Punitiva del
Estado. Segundo o artigo 1º
61
desta lei foi reconhecido como prescrita a pretensão punitiva
do Estado devido a lógica de los hechos. Pela redação ficou extinta a pretensão penal do
Estado contra funcionários policiais e militares e equiparados pelos delitos cometidos até o
dia 1 de março de 1985 (ADRIASOLA, 2011).
Contra esta lei foi interposto um primeiro recurso de inconstitucionalidade, nesta
ocasião por maioria de três votos a Corte entendeu que a lei se tratava de uma amnistía
encubierta, sendo então declarada inconstitucional. Em poucos meses e simultaneamente com
as eleições nacionais de 2009 foi proposta mediante plebiscito a nulidade da Lei n. 15.848,
situação esta que foi rechaçada pelo corpo eleitoral (ADRIASOLA, 2011).
A Lei n. 15.848 passou de uma primeira etapa de anistia absoluta até uma etapa de
inaplicabilidade em virtude da declaração de inconstitucionalidade. Nesta última etapa foram
respeitados os princípios da irretroatividade da lei penal, como a matéria de prescrição da
ação penal. A maioria das sentenças não sustentou a regra ius cogens para aplicar nos delitos
de lesa humanidade e, por este motivo, referida lei foi objeto de diversas críticas negativas
vindas de organização internacionais62 (ADRIASOLA, 2011).
Em 09 de agosto de 2000 foi criada por uma Resolução do Presidente da República a
Comisión para la Paz atendendo a necessidade de dar os passos necessários para determinar a
situação dos detidos/desaparecidos durante o regime de fato, por se tratar de uma obrigação
ética do Estado e uma tarefa imprescindível para preservar a memória histórica do Estado
(COMISIÓN PARA LA PAZ, 2003).
61
Artículo 1º.- Reconócese que, como consecuencia de la lógica de los hechos originados por el acuerdo
celebrado entre partidos políticos y las Fuerzas Armadas en agosto de 1984 y a efecto de concluir la transición
hacia la plena vigencia del orden constitucional, ha caducado el ejercicio de la pretensión punitiva del Estado
respecto de los delitos cometidos hasta el 1º de marzo de 1985 por funcionarios militares y policiales,
equiparados y asimilados por móviles políticos o en ocasión del cumplimiento de sus funciones y en ocasión de
acciones ordenadas por los mandos que actuaron durante el período de facto.
62
Informe 29/92 de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH), por el cual se declaró que la Ley
de Caducidad es incompatible con el artículo XVIII (derecho de justicia) de la Declaración Americana de Los
Derechos y Deberes del Hombre, y los artículos 1, 8 y 25 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos. Así mismo, el Comité de DDHH de Naciones Unidas dispuso la condena del Estado Uruguayo
durante su 51º período de sesiones. Allí adoptó la comunicación 322/88, del 9 de agosto de 1994, en la que
manifiesta que “el Comité reafirma su posición de que amnistías por violaciones graves de los DDHH y las leyes
tales como la Ley de Caducidad son incompatibles con las obrigaciones de todo Estado parte, en virtud del Pacto
de Derechos Civiles y Políticos. (ADRIASOLA, 2011, p. 333-334)
110
Os integrantes trabalharam como uma Comissão da Verdade, tal qual aquelas
existentes em outros Estados latino americanos. Trabalha com a recopilação de antecedentes e
colheitas de provas; entrevistas com testemunhas, militares, etc., e já obteve conclusões que
demonstram a detenção clandestina de vários cidadãos uruguaios em território estrangeiro,
bem como o desaparecimento de indivíduos e a morte em decorrência das torturas ou
execuções.
Em 27 de outubro de 2011 foi promulgada a Lei n. 18.831 intitulada Pretensión
Punitiva del Estado: Restablecimiento para los delitos cometidos en aplicación del
terrorismo de Estado hasta el 1º de marzo de 1985. Em 2011 o Poder Executivo aprovou a
resolução n. 323/2011 por meio da qual revogaram a aplicação do artigo 3º da Ley de
Caducidad.
2.3.9 Paraguai: 1954-1989
Assim como os outros países latinos o Paraguai também passou por décadas difíceis
durante o período ditatorial representado pelo governo do general Alfredo Stressner. Em que
pese exista muitas similitudes com a experiência vivenciada pelos países vizinhos, o Paraguai
possui algumas singularidades (PA, 2008).
A primeira característica que o difere refere-se ao fato de que o general Stroessner
chegou ao poder em maio de 1954, ou seja, muitos anos antes que nos demais países. A
segunda diferença é que esta ditadura não pode ser considerada uma interrupção abrupta tal
como ocorreu no Uruguai e no Chile, por exemplo. A ditadura de Stroessner sucedeu a outros
regimes autoritários que o precederam (PA, 2008).
Uma terceira característica do governo de Stroessner é que, malgrado tenha sido um
regime militar, houve uma grande tentativa de aparentar e conservar todas as formalidades de
uma democracia. Essa aparência incluía convocar pontualmente eleições (muito embora
fossem fraudulentas) (PA, 2008).
A ditadura do General Alfredo Stroessner no Paraguai começou com um golpe de
Estado em 1954 e se prolongou por 35 anos, até o golpe militar encabeçado pelo General
Andrés Rodríguez. Pouco tempo depois, Stroessner fugiu até o Brasil. Tal ditadura se
caracterizou pela vigência de um permanente estado de sítio, pois a Constituição Nacional
facultava o Poder Executivo a renová-lo a cada noventa dias. Este estado de sítio criou um
111
clima de insegurança e de temor que lesionava ostensivamente a observância dos direitos
humanos (CORTE IDH, 2006).
Uma das características mais graves do regime stronista foi seu caráter totalitário que
controlou o comportamento da maioria da população paraguaia em todo o território nacional e
em menor medida sobre os cidadãos paraguaios no exterior. O regime foi totalitário porque
exerceu seu domínio sobre o conjunto da sociedade paraguaia abrangendo os âmbitos público
e privado (COMISIÓN).
O regime stronista elevou o terrorismo de Estado a uma forma de governo com uma
política de Estado permanente. As ações empreendidas e planificadas previamente revelam a
existência de modus operandi ordenados e cumpridos de forma sistemática, revelando que
seus agentes tinham treinamento e experiência na perpetração de violações a direitos humanos
(COMISIÓN).
A participação do Estado paraguaio é uma aliança continental anticomunista durante a
guerra fria e permitiu o regime a receber apoio de seus aliados para a estruturação do aparato
repressivo e para a implementação a nível nacional da Doctrina de la Seguridad Nacional,
que estendeu desde os Estados Unidos como modelo hegemônico (COMISIÓN).
O aparato repressivo recebeu assessoria permanente estadunidense que começou com
a criação da Direção Nacional de Assuntos Técnicos (DNAT) em 1956 (COMISIÓN).
Durante a ditadura existiu uma prática sistemática de detenções arbitrárias, torturas e
tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e assassinato de indivíduos considerados
"subversivos" ou contrários ao regime (CORTE IDH, 2006).
Os Tribunais de Justiça negavam receber ou tramitar recursos de habeas corpus, com
o objetivo de não investigar e sancionar as violações de direitos humanos durante a ditadura
paraguaia. A meados da década de 70 iniciou um processo repressivo bastante duro por um
espaço de tempo de três anos. Em abril de 1976, a polícia revelou a existência de um suposto
movimento político-militar subversivo e clandestino chamado Organización Política Militar
(O.P.M.) operando em Asunción (CORTE IDH, 2006).
A partir deste momento desencadeou o mais vasto operativo policial anti subversivo
documentado, porquanto em pouco tempo milhares de pessoas foram privadas de sua
liberdade para averiguações realizadas pela O.P.M. (CORTE IDH, 2006).
Nas décadas de 70 e 80 ocorreram várias modalidades de desaparições: a) as vítimas
eram detidas por pessoas vestidas de civil e os familiares não mais as viam; b) as pessoas
eram detidas nas ruas e posteriormente levadas a prisões; c) muitos cidadãos paraguaios
também desapareciam na Argentina (CORTE IDH, 2006).
112
Uma das características do fim da ditadura do Paraguai é que se tratou de um golpe
dado contra um regime ditatorial cívico-militar pelos próprios militares, isto significa que se
tratou de um auto golpe liderado pelo general Andrés Rodríguez, braço direito do ditador
durante todo o regime. (COMISIÓN) Neste momento iniciou um inédito período de abertura
política e de liberdades públicas irrestritas (PA, 2008).
A Comissão da Verdade e Justiça teve início com uma petição da sociedade civil ao
Parlamento Nacional, especialmente das associações de vítimas da ditadura e das
organizações de direitos humanos quando a ditadura de Stroessner cessou. A Comissão
buscou estabelecer a verdade e a justiça sobre os fatos ocorridos no país basicamente durante
a ditadura stronista (1954-1989) (COMISIÓN).
Foi realizada a colheita de declarações e entrevistas com 2.059 pessoas. Sob o lema
quien olvida, repite, a Comissão organizou várias audiências públicas nacionais e
internacionais com espaços para a recuperação da memória coletiva (COMISIÓN).
Em matéria de educação, as atividades da Comissão foram diversas, entre elas a
matéria Autoritarismo en la historia reciente del Paraguay, como parte do programa de
estudos do Ministério da Educação e Cultura para os alunos do terceiro ciclo da educação
escolar básica, cátedra desenhada e elaborada pela Comissão (COMISIÓN).
A Comissão da Verdade e Justiça ainda segue trabalhando para desentranhar as
violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura (PA, 2008).
2.3.10 Peru: 1980-2000
A maior porcentagem de violações a direitos humanos cometidas no Peru ocorreu no
final do conflito interno que se iniciou em 1980 e se prolongou até a primeira metade dos anos
90. Este conflito baseou-se em um enfrentamento entre os grupos subversivos Sendero
Luminoso e do Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) contra o Estado peruano
(CORIA, 2009).
O conflito foi caracterizado por ter sido um dos mais longos, generalizados e
sangrentos que ocorreram no Peru e também porque o número de mortos superou amplamente
o de qualquer outro conflito interno em que se tenha visto no país (CORIA, 2009).
Os anos que precederam o conflito interno estiveram caracterizados por instabilidades
políticas/sociais e com o enfraquecimento da ainda jovem democracia peruana. Após as
profundas transformações das décadas anteriores ao terremoto político que significou o
113
reformismo militar (1968-1975), o país parecia estar encaminhado a consolidar um Estado
nacional moderno e democrático. Tal situação quedou-se verificada com a convocação em
1979 de uma assembleia constituinte que elaborou a Constituição que foi aprovada neste
mesmo ano (CORIA, 2009).
Após a realização das investigações da Comisión de la Verdad y Reconciliación
Nacional, pode-se constatar que o conflito interno iniciou em pleno reinado de um regime
democrático, com liberdade de imprensa e política inclusiva.
Neste contexto, o dia 17 de maio de 1980, na véspera das eleições presidenciais, um
grupo terrorista chamado Sendero Luminoso, também conhecido como Partido Comunista del
Perú – Sendero Luminoso (PCP-SL) dirigiu-se à localidade de Chuschi onde roubou e
queimou objetos que seriam utilizados na eleições presidenciais do dia seguinte. Este seria o
primeiro ato de guerra realizado por Sendero Luminoso e a partir dele desencadeou uma onda
de violência cada vez maior (CORIA, 2009).
A partir de 1983 foi intensificada a resposta estatal contra a violência de Sendero
Luminoso, o qual demonstrou de maneira brutal as exclusões e discriminações sociais e
políticas. Já em 1985 o Sr. Alan García assumiu a Presidência da República e identificou
algumas das causas sociais que possibilitaram e alimentaram o conflito armado interno, entre
eles, a extrema desigualdade. Em razão disto, foram adotadas algumas medidas para frear a
estratégia da luta, mas não conseguiram lograr o objetivo (CORIA, 2009).
O grande marco do combate das forças armadas e policiais incorreu em graves
violações aos direitos humanos, tais como: a tortura nos interrogatórios, maus tratos e
tratamentos desumanos. Produziu-se um distanciamento entre o Estado e a população,
ocasionando uma má imagem das autoridades policiais e militares (CORIA, 2009).
Em 1990 em meio a uma crise econômica gerada por uma grande inflação, Alberto
Fujimori assumiu a Presidência da República Peruana. Desde o começo advertiu que carecia
de uma estratégia distinta para lutar contra a subversão, por tal motivo, o Estado seguiu
recorrendo a métodos inconstitucionais e violadores dos direitos humanos (CORIA, 2009).
No entanto, no dia 05 de abril de 1992, Alberto Fujimori deu um golpe de Estado, o
chamado autogolpe para instaurar um “governo de emergência e restauração nacional” com
fundamento no Decreto Lei nº 25418 (CORIA, 2009).
Com as derrotas progressivas dos movimentos terroristas, foi promulgada uma nova
Constituição em 1993, cuja aprovação popular se viu assegurada com a captura dos principais
lideres terroristas, fato que contribuiu para a pacificação do país. (CORIA, 2009)
114
Foi deste modo que se constituiu um governo autoritário cuja política contrasubversiva
possibilitou a limitação das forças policiais e militares na luta interna (CORIA, 2009).
Os crimes cometidos foram de diversas naturezas: detenções arbitrárias, genocídio,
desaparecimentos forçados, torturas, assassinatos, sequestros e execuções extrajudiciais,
cometidos em sua maioria como parte de uma estratégia de luta contra a subversão (CORIA,
2009).
Exemplos como estes demonstram como a então nova democracia peruana não soube
utilizar recursos legítimos para fazer frente à subversão, mas sim, submeteu a leis que não
condizem com um Estado respeitoso aos direitos humanos de seus cidadãos, e, ao mesmo
tempo, demonstram a incapacidade do Estado para fazer frente ao terrorismo (CORIA, 2009).
Após a renúncia de Alberto Fujimori da presidência no ano 2000, foi instalado no Peru
um governo de transição (de novembro de 2000 a julho de 2001), liderado por Valentin
Paniagua, com o escopo de organizar eleições transparentes, garantir o devido processo legal
nas ações judiciais que haviam sido instauradas por denúncias de corrupção contra agentes
políticos do fujimorismo, bem como devolver o poder a um novo governo democraticamente
eleito (ARCE, 2010).
115
3.
ANÁLISE DE CASOS: A (IN) EXISTÊNCIA DE DIÁLOGO E AS
PERSPECTIVAS
PARA
O
FORTALECIMENTO
DO
SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
“El miedo seca la boca, moja las manos y mutila.
El miedo de saber nos condena a la ignorancia;
el miedo de hacer nos reduce a la impotencia.
La dictadura militar, miedo de escuchar,
miedo de decir, nos convirtió en sordomudos.
Ahora la democracia, que tiene miedo de recordar,
nos enferma de amnesia; pero no se necesita
ser Sigmund Freud para saber que no hay alfombra
que pueda ocultar la basura de la memoria”.
-- Eduardo Galeano, La Desmemoria.
3.1 Caso 1. Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil
No dia 07 de agosto de 1995 o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e
a Human Rights Watch/Americas apresentaram uma petição à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos em nome das pessoas desaparecidas durante a Guerrilha do Araguaia no
Brasil (CORTE IDH, 2010).
Em março de 2001, no uso das atribuições conferidas pelo Pacto de San José, a
Comissão Interamericana expediu relatório com recomendações para o Brasil. No dia 21 de
novembro de 2008 o Estado foi notificado para que apresentasse informações sobre as ações
executadas com a finalidade de provar a implementação do que outrora fora recomendado
pela Comissão (CORTE IDH, 2010).
O Estado brasileiro solicitou duas prorrogações de prazos para apresentar informações,
no entanto, os prazos findaram sem que o Estado demonstrasse uma “implementação
satisfatória” (CORTE IDH, 2010).
Em razão disto, a Comissão submeteu o caso à jurisdição da Corte Interamericana,
cujo objeto tratava-se da verificação da responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção
arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 indivíduos membros do grupo denominado
“Guerrilha do Araguaia” entre os anos de 1972 e 1975 (CORTE IDH, 2010).
A Guerrilha do Araguaia era um movimento de resistência ao regime militar que
buscava a construção de um exército popular de libertação, sendo integrado em 1972 por
cerca de 70 pessoas (em sua maioria jovens) membros do Partido Comunista do Brasil
(CORTE IDH, 2010).
Pelo levantamento histórico realizado, a Corte assim informou:
116
Entre abril de 1972 e janeiro de 1975, um contingente de entre três mil e dez mil
integrantes do Exército, da Marinha, da Força Aérea e das Polícias Federal e Militar
empreendeu repetidas campanhas de informação e repressão contra os membros da
Guerrilha do Araguaia. Nas primeiras campanhas, os guerrilheiros detidos não foram
privados da vida, nem desapareceram. Os integrantes do Exército receberam ordem
de deter os prisioneiros e de sepultar os mortos inimigos na selva, depois de sua
identificação; para isso, eram “fotografados e identificados por oficiais de
informação e depois enterrados em lugares diferentes na selva”. No entanto, após
uma “ampla e profunda operação de inteligência, planejada como preparativo da
terceira e última investida de contra-insurgência”, houve uma mudança de estratégia
das forças armadas. Em 1973, a “Presidência da República, encabeçada pelo general
Médici, assumiu diretamente o controle sobre as operações repressivas [e] a ordem
oficial passou a ser de eliminação” dos capturados.
No final de 1974, não havia mais guerrilheiros no Araguaia, e há informação de que
seus corpos foram desenterrados e queimados ou atirados nos rios da região. Por
outro lado, “[o] governo militar impôs silêncio absoluto sobre os acontecimentos do
Araguaia [e p]roibiu a imprensa de divulgar notícias sobre o tema, enquanto o
Exército negava a existência do movimento” (CORTE IDH, 2010, p. 33).
Em outubro de 1980, abril de 1991 e janeiro de 1993, os familiares das vítimas
fizeram várias campanhas com o objetivo de conseguir informações, sendo então encontrados
indícios de corpos enterrados em cemitérios clandestinos (CORTE IDH, 2010).
A Comissão Interamericana alegou em sua inicial que a prática de desaparecimento
forçado é um crime contra a humanidade e que a Guerrilha do Araguaia possui uma particular
transcendência histórica pelos seguintes motivos (CORTE IDH, 2010, p. 30):
os fatos ocorreram em um contexto de prática sistemática de detenções arbitrárias,
torturas, execuções e desaparecimentos forçados perpetrado[s] pelas forças de
segurança do governo militar, nos quais os agentes estatais […] utilizaram a
investidura oficial e recursos outorgados pelo Estado para [fazer] desaparecer a
todos os membros da Guerrilha do Araguaia.
Os autores dos crimes ocultaram as provas dos delitos; quando solicitados davam
informações contraditórias sobre os paradeiros das vítimas e agiram deliberadamente com o
intuito de fazer com que os familiares não tivessem informações das vítimas, escapando
assim, de toda a punição (CORTE IDH, 2010).
Em que pese a Comissão Interamericana tenha reconhecido o fato de o Estado ter
pagado indenizações aos familiares, entendeu que estes ainda não tinham informações
mínimas sobre o acontecido (40 anos após o início dos fatos) (CORTE IDH, 2010).
Os representantes da Comissão afirmaram que o extermínio da guerrilha constituiu um
dos episódios mais sangrentos do regime ditatorial, porquanto grande número de indivíduos
ficou sob custódia do Estado antes de desaparecerem. Alegaram que as supostas vítimas
117
ficaram isoladas por tempo prolongado, sem comunicação, sendo tratadas de modo cruel e
desumano (CORTE IDH, 2010).
Salientaram que o modus operandi permite deduzir que as supostas vítimas sofreram
torturas e que em razão de os restos mortais não terem sido localizados, pugnaram para que a
Corte declarasse a responsabilidade agravada do Estado brasileiro pela “violação dos direitos
ao reconhecimento da personalidade, à vida, à integridade e à liberdade pessoal, consagrados,
respectivamente, nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1
63
do mesmo tratado” (CORTE IDH, 2010, p. 31).
Durante a audiência pública, o Brasil afirmou que por meio da Lei n. 9.140/95
reconheceu sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos forçados da Guerrilha. Em
decorrência desta afirmação a Corte concluiu que não há controvérsia de que entre os anos
1972 e 1974 agentes estatais foram responsáveis pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas
e que passadas décadas somente foram identificados os restos mortais de duas vítimas
(CORTE IDH, 2010).
Muito embora o Estado tenha reconhecido a culpa pelo ocorrido, afirmou que está
impossibilitado de investigar e punir os responsáveis pelos desaparecimentos forçados diante
da existência da Lei de Anistia (n. 6.683/79) e que, devido a isto, juridicamente não há
possibilidade de os familiares e a sociedade brasileira conhecer a verdade sobre o ocorrido
(CORTE IDH, 2010).
Em 2010, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela improcedência da ADPF nº 153 e
confirmou a validade interna da referida lei por sete votos contra dois, ao entender pela
constitucionalidade da interpretação do parágrafo 1º do artigo 1º.64 (CORTE IDH, 2010).
Em razão da existência desta lei é que o Brasil não investigou ou sancionou os
responsáveis pelas violações cometidas durante a ditadura militar. Para o Ministro Relator, a
lei de anistia deve ser interpretada em conjunto com a realidade e momento histórico
vivenciado à época e não à realidade atual (CORTE IDH, 2010).
63
Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos
1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a
garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma,
por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional
ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.
64
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de
agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos
políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder
público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes
sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes
políticos ou praticados por motivação política.
118
Contudo, para a Corte Interamericana a interpretação que foi conferida à Lei de
Anistia trata-se de um obstáculo à garantia do direito de acesso à justiça e do direito à
verdade, sendo que tal situação acaba por criar uma concretização da impunidade por conta
dos efeitos vinculantes e eficácia erga omnes da decisão (CORTE IDH, 2010).
Não obstante a interpretação feita pela mais alta Corte do Estado brasileiro, a Corte de
San José entende que a aplicação de leis de anistia é contrária às obrigações contidas na
Convenção e na jurisprudência da Corte Interamericana, isso porque em casos de execução e
desaparecimento forçado, os artigos 8 e 2565 da Convenção estabelecem que os familiares das
vítimas têm o direito de que as mortes ou desaparecimentos sejam investigados pelo Estado.
Além disto, nenhuma norma de direito interno pode impedir que o Estado cumpra esta
obrigação, pois tais violações a direitos humanos tratam-se de crimes contra a humanidade e,
por serem imprescritíveis, não pode ser concedida anistia (CORTE IDH, 2010).
Reiterados foram os pronunciamentos do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos acerca da incompatibilidade das leis de anistia com as obrigações convencionais
dos Estados, exemplo disto são as decisões em face da Argentina,66 Chile67 El Salvador,68
Haiti,69 Peru70 e Uruguai71 (CORTE IDH, 2010).
A Comissão (2010, p. 55) recordou que:
se pronunciou em um número de casos-chave, nos quais teve a oportunidade de
expressar seu ponto de vista e cristalizar sua doutrina em matéria de aplicação de
leis de anistia, estabelecendo que essas leis violam diversas disposições, tanto da
Declaração Americana como da Convenção. Essas decisões, coincidentes com o
critério de outros órgãos internacionais de direitos humanos a respeito das anistias,
declararam, de maneira uniforme, que tanto as leis de anistia como as medidas
65
Artigo 8º - Garantias judiciais
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz
ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer
acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil,
trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Artigo 25 - Proteção judicial
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes
ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela
Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que
estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
66
Cf. CIDH. Relatório nº 28/92, Casos 10.147; 10.181; 10.240; 10.262; 10.309, e 10.311. Argentina, de 2 de
outubro de 1992, pars. 40 e 41.
67
Cf. CIDH. Relatório nº 34/96, Casos 11.228; 11.229; 11.231, e 11.282. Chile, 15 de outubro de 1996, par. 70,
e CIDH. Relatório nº 36/96. Chile, 15 de outubro de 1996, par. 71.
68
Cf. CIDH. Relatório nº 1/99, Caso 10.480. El Salvador, de 27 de janeiro de 1999, pars. 107 e 121.
69
Cf. CIDH. Relatório nº 8/00, Caso 11.378. Haiti, de 24 de fevereiro de 2000, pars. 35 e 36.
70
Cf. CIDH. Relatório nº 20/99, Caso 11.317. Peru, de 23 de fevereiro de 1999, pars. 159 e 160; CIDH.
Relatório nº 55/99, Casos 10.815; 10.905; 10.981; 10.995; 11.042 e 11.136. Peru, 13 de abril de 1999, par. 140;
CIDH. Relatório nº 44/00, Caso 10.820. Peru, 13 de abril de 2000, par. 68, e CIDH. Relatório nº 47/00, Caso
10.908. Peru, 13 de abril de 2000, par. 76.
71
Cf. CIDH. Relatório nº 29/92. Casos 10.029, 10.036 e 10.145. Uruguai. 2 de outubro de 1992, pars. 50 e 51.
119
legislativas comparáveis, que impedem ou dão por concluída a investigação e o
julgamento de agentes de [um] Estado, que possam ser responsáveis por sérias
violações da Convenção ou da Declaração Americana, violam múltiplas disposições
desses instrumentos.
A Corte reiterou que “o desaparecimento forçado tem caráter permanente e persiste
enquanto não se conheça o paradeiro da vítima ou se encontrem seus restos, de modo que se
determine com certeza sua identidade” (CORTE IDH, 2010, p. 45).
Desde a primeira sentença proferida pela Corte fora destacada a importância em punir
as violações de direitos humanos, sobretudo quando se fala no crime de desaparecimento
forçado de pessoas que há muito alcançou o caráter de jus cogens (CORTE IDH, 2010).
A interpretação feita à Lei de Anistia afetou o direito dos familiares de serem ouvidos
por um magistrado tal como estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana.72 Ademais, ao
aplicar a Lei de Anistia o Estado descumpriu sua obrigação de adequar o direito interno,
conforme dispõe o artigo 2 da Convenção Americana.73 (CORTE IDH, 2010).
A Corte entende que as autoridades internas estão sujeitas ao império da lei e,
portanto, devem aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico interno, contudo, a
partir do momento em que um Estado é parte de um tratado internacional, todos seus órgãos
estão obrigados a zelar para que a Convenção não seja enfraquecida pela aplicação de normas
internas contrárias ao seu desiderato (CORTE IDH, 2010).
Partindo desta ideia, tem-se que o Poder Judiciário, em todas suas instâncias, tem a
obrigação internacional de exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as
normas internas e a Convenção Americana. Importante destacar que o judiciário não deve
estar atento somente ao tratado, mas também à interpretação que a Corte Interamericana
conferiu a ele na qualidade de último intérprete (CORTE IDH, 2010).
No caso “Guerrilha do Araguaia” a Corte entendeu que o controle de
convencionalidade não foi exercido pelo judiciário brasileiro e que o Supremo Tribunal
Federal não considerou suas obrigações derivadas do Direito Internacional estabelecidas nos
artigo 8 e 25 da Convenção Americana (CORTE IDH, 2010).
72
Artigo 8. Garantias judiciais
1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou
tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação
penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista,
fiscal ou de qualquer outra natureza.
73
Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno
Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições
legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas
constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem
necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.
120
A Corte declarou ainda que as disposições da Lei de Anistia são incompatíveis com o
conteúdo do Pacto de San José por impedir a investigação e sanção das violações de direitos
humanos. Afirmou que tal lei carece de efeito jurídico e não pode seguir representando “um
obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição
dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros
casos de graves violações” (CORTE IDH, 2010, p. 113).
A Corte reconheceu a responsabilidade do Estado pelos fatos descritos na denúncia
oferecida pela Comissão e decidiu por unanimidade que o Brasil deve: 1) conduzir
investigação penal dos fatos para determinar as responsabilidades penais e aplicar as sanções
correspondentes; 2) determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso,
identificar e entregar os restos mortais aos familiares; 3) oferecer tratamento médico,
psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e pagar o montante em dinheiro; 4)
realizar ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional dos fatos; 5)
continuar as ações de capacitação e implementação de programa ou curso permanente e
obrigatório sobre direitos humanos para as Forças Armadas; 6) adotar medidas para tipificar o
crime de desaparecimento forçado; 7) continuar desenvolvendo iniciativas de informações
sobre a Guerrilha do Araguaia e de outras violações de direitos humanos perpetradas durante
o regime militar; 8) pagar indenização por dano material, imaterial e restituição de custas e
gastos e 9) realizar uma convocatória em jornal de circulação nacional e um da região onde
ocorreram os fatos por um período de 24 meses (CORTE IDH, 2010).
Na parte final da sentença a Corte dispôs que dentro do prazo de um ano, a partir da
notificação, o Estado deverá apresentar ao Tribunal um informe sobre as medidas adotadas
para o seu cumprimento (CORTE IDH, 2010).
Para o juiz ad hoc Roberto Figueiredo Caldas, o julgamento do caso Guerrilha do
Araguaia possuiu importância transcendental para o Brasil, sobretudo para o Poder Judiciário,
pois trata-se de caso inédito de decisão de tribunal internacional oposta à jurisprudência
nacional pacificada (CORTE IDH, 2010).
Nas palavras do Juiz Roberto Figueiredo Caldas:
se aos tribunais supremos ou aos constitucionais nacionais incumbe o controle de
constitucionalidade e a última palavra judicial no âmbito interno dos Estados, à
Corte Interamericana de Direitos Humanos cabe o controle de convencionalidade e a
última palavra quando o tema encerre debate sobre direitos humanos. É o que
decorre do reconhecimento formal da competência jurisdicional da Corte por um
Estado, como o fez o Brasil Para todos os Estados do continente americano que
livremente a adotaram, a Convenção equivale a uma Constituição supranacional
atinente a Direitos Humanos. Todos os poderes públicos e esferas nacionais, bem
121
como as respectivas legislações federais, estaduais e municipais de todos os Estados
aderentes estão obrigados a respeitá-la e a ela se adequar. Mesmo as Constituições
nacionais hão de ser interpretadas ou, se necessário, até emendadas para manter
harmonia com a Convenção e com a jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. De acordo com o artigo 2º da Convenção, os Estados
comprometem-se a adotar medidas pala eliminar normas legais e práticas de
quaisquer espécies que signifiquem violação a ela e, também ao contrário,
comprometem-se a editar legislação e desenvolver ações que conduzam ao respeito
mais amplo e efetivo da Convenção
No entendimento do referido juiz, é necessário desvencilhar-se do positivismo
exacerbado com a finalidade de conceder maior respeito aos direitos dos indivíduos e findar o
círculo de impunidade que circunda o Brasil. Para tanto, faz-se necessário que o Direito e a
Justiça mostrem que práticas desumanas não mais podem ser repetidas e que não serão
esquecidas (CORTE IDH, 2010).
Em razão de ainda não ter sido realizada a Supervisão do Cumprimento de Sentença
pela Corte Interamericana, buscar-se-á analisar por meio de informações colhidas em sítios
oficiais e bibliografias quais as medidas que o Brasil está tomando para cumprir a decisão
proferida pela Corte Interamericana.
Quando foi anunciada a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca
do caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), alguns ministros do Supremo Tribunal Federal
refutaram veementemente a sentença internacional (GOMES; MAZZUOLI, 2011).
Para o Ministro Marco Aurélio:
O governo está submetido ao julgamento do STF e não pode afrontá-lo para seguir a
Corte da OEA. É uma decisão que pode surtir efeito ao leigo no campo moral, mas
não implica cassação da decisão do STF. Quando não prevalecer a decisão do
Supremo, estaremos muito mal. É uma decisão tomada no âmbito internacional, não
no interno. Na prática [a decisão da Corte] não terá efeito nenhum. (ESTADÃO,
2010) (Grifo nosso)
Para o Ministro Cezar Peluso: “A decisão da Corte só gera efeitos no campo da
Convenção Americana de Direitos Humanos (...) caso as pessoas anistiadas sejam
processadas, é só recorrer ao STF. O Supremo vai conceder habeas corpus na hora”.
(ESTADÃO, 2010)
No mesmo sentido o ex-ministro do STF Nelson Jobim afirmou que a decisão da Corte
Interamericana “é meramente política e sem efeito jurídico. O processo de transição no Brasil
é pacífico, com histórico de superação de regimes, não de conflito” (O GLOBO, 2010).
Para Luiz Flávio Gomes e Valério Mazzuoli (2011) as declarações dos ministros
acima citadas, do ponto de vista jurídico são equivocadas, porquanto estão partindo da
premissa de um ordenamento jurídico dualista, no qual o direito interno não tem relação com
122
a ordem internacional, sendo que esta posição já fora superada há décadas pela doutrina
internacionalista.
Tendo o STF assumido esta postura, está a destoar das atitudes dos países vizinhos
(Argentina e Chile) que cumprem há vários anos as decisões da Corte Interamericana e vem
harmonizando sua jurisprudência com a do âmbito internacional (GOMES; MAZZUOLI,
2011).
É necessário desvencilhar da ideia de que a jurisdição internacional e nacional são
independentes, pois o que deve existir é uma relação de interdependência com o objetivo de
dar força e vida à proteção dos direitos humanos. É possível afirmar, portanto, que as relações
entre o direito interno e internacional são relações dialógicas (GOMES; MAZZUOLI, 2011).
Importa observar que nessa fase internacionalista do Estado, do Direito e da Justiça,
o princípio do domestic affair (ou da não ingerência), que limitava o direito
internacional à relação entre Estados no contexto de uma sociedade internacional
formal, evoluiu para o do international concern, que significa que o gozo efetivo,
pelos cidadãos de todos os Estados, dos direitos e liberdades fundamentais, passa a
ser verdadeira questão de direito internacional. [...] tal significa que agora temos
também juízes internacionais para tutelar nossos direitos violados, e não mais apenas
juízes internos a exercer esse tipo de proteção. (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 5657)
As relações dialógicas tratam-se exatamente da articulação da legislação nacional com
a internacional. (GORDILLO, et al. 2007) O operador do direito não pode estar alheio a este
novo modelo de interação do conjunto internacional, constitucional e infraconstitucional, bem
como a jurisprudência interna e internacional (GOMES; MAZZUOLI, 2011).
Apesar do posicionamento do STF que desrespeitou a força obrigatória das decisões
da Corte IDH, em 2011 foi criada a Lei n. 12.528 que criou a Comissão Nacional da Verdade
com o objetivo de apurar as violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de
1946 e 5 de outubro de 1988. A Comissão é composta por sete membros74 designados pelo
Presidente da República dentre brasileiros que tenham reconhecida idoneidade, conduta ética
e que estejam dispostos a atuar na defesa da democracia, da institucionalidade constitucional e
com o respeito aos direitos humanos (BRASIL, 2011).
74
1) Gilson Dipp (Vice presidente do Superior Tribunal de Justiça); 2) José Carlos Dias (Advogado criminalista,
durante a ditadura advogou em defesa de presos políticos, atuando diretamente na Justiça Militar); 3) José Paulo
Cavalcanti Filho (advogado, foi secretário-geral do Ministério da Justiça e Ministro (interino) da Justiça, no
governo José Sarney; 4) Maria Rita Kehl (Doutora em psicanálise, foi editora do Jornal Movimento, um dos
mais importantes veículos da imprensa alternativa durante a Ditadura); 5) Paulo Sérgio Pinheiro (doutor em
Ciência Política, foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso ; 6)
Pedro Dallari (Advogado, Doutor e Livre-Docente em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP);
7) Rosa Maria Cardoso da Cunha (advogada, doutora em ciência política e professora universitária).
123
A
Comissão
Nacional
da
Verdade
possui
um
sítio
na
internet
(http://www.cnv.gov.br/index.php) onde atualiza as informações descobertas sobre o período
ditatorial, disponibilizam depoimentos colhidos nas audiências públicas; quase que
diariamente lançam notícias sobre os trabalhos realizados; divulgam a agenda de trabalhos;
disponibilizam transmissões ao vivo; emitem relatórios, etc.
Deste modo, embora não tenha sido realizada a supervisão do cumprimento de
sentença, tem-se que o Brasil já editou lei sobre a Comissão Nacional da Verdade (Lei
12.528/11) e a Lei sobre acesso à informação (Lei 12.527/11); também iniciou a busca de
localização dos restos mortais dos desaparecidos por meio do Grupo de Trabalho do Araguaia
(GTA) (RAMOS, 2011) e também publicou a sentença da Corte Interamericana.75
No que se refere ao diálogo, por ora a análise irá se restringir na análise das
“conversações” realizadas na sentença de mérito proferida pela Corte de San José.
No Direito Internacional a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos foi precursora do entendimento sobre a gravidade e do caráter continuado do
desaparecimento forçado de pessoas. Tal ato é caracterizado pela privação da liberdade do
indivíduo, seguido da falta de informação sobre seu (CORTE IDH, 2010).
A Corte entende que o desaparecimento forçado trata-se de uma violação de múltiplos
direitos existentes na Convenção Americana, pois a vítima queda-se em estado de desproteção
tendo alcançado o caráter de jus cogens (CORTE IDH, 2010).
O diálogo feito pela Corte inicia ao afirmar que a obrigação de investigar e punir as
graves violações a direitos humanos é afirmada pelos sistemas internacionais de direitos
humanos. No sistema universal – o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas
estabeleceu que os Estados têm o dever de investigar as violações ao Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos.76 Considerou em sua jurisprudência ulteriormente que a
investigação e julgamento tratam-se de medidas de extrema necessidade quando há violações
a direitos humanos.77 Especificamente nos casos de desaparecimentos forçados entendeu o
Comitê que os Estados devem elucidar o que ocorreu com as vítimas e fazer justiça (CORTE
IDH, 2010).
75
Cf http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2011/06/brasil-publica-sentenca-da-oea-sobre-guerrilha-doaraguaia
76
Cf. C.D.H., Caso Larrosa versus Uruguai. Comunicação 88/1981, Decisão de 25 de março de 1983, par. 11.5,
e C.D.H., Caso Gilboa versus Uruguai. Comunicação 147/1983, Decisão de 1 de novembro de 1985, par. 7.2.
77
Cf. C.D.H., Caso Sathasivam versus Sri Lanka. Comunicação nº 1436/2005, Decisão de 8 de julho de 2008,
par. 6.4; C.D.H., Caso Amirov versus Federação Russa. Comunicação nº 1447/2006, Decisão de 2 de abril de
2009, par. 11.2, e C.D.H., Caso Felipe e Evelyn Pestaño versus Filipinas. Comunicação No.1619/2007, Decisão
de 23 de março de 2010, par. 7.2.
124
Já a Corte Europeia de Direitos Humanos considera que violações ao direito à vida ou
a integridade pessoal implica na obrigação do Estado em realizar uma investigação eficaz78
(CORTE IDH, 2010).
Menciona também o Sistema Africano quando a Comissão Africana sustentou que a
falta de adoção de medidas que garantam que os autores dessas violações sejam punidos
constitui uma violação das obrigações internacionais dos Estados79 (CORTE IDH, 2010).
No sistema universal, o Secretário-Geral das Nações Unidas no Relatório do Conselho
de Segurança intitulado “O Estado de Direito e a justiça de transição nas sociedades que
sofrem ou sofreram conflitos”, afirmou o seguinte: “os acordos de paz aprovados pelas
Nações Unidas nunca pod[e]m prometer anistias por crimes de genocídio, de guerra, ou de
lesa-humanidade, ou por infrações graves dos direitos humanos” (CORTE IDH, 2010).
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos já ressaltou que as
anistias ou medidas análogas fazem com que se perpetrem a impunidade, constituindo um
obstáculo para o direito à verdade, sendo incompatível com as obrigações dos Estados
(CORTE IDH, 2010).
No entanto, cumpre ressaltar que o diálogo não se resume somente no
transjudicialismo entre os sistemas global e regionais de proteção a direitos humanos, pois a
Corte também cita que vários estados da Organização dos Estados Americanos (OEA) por
meio de seus tribunais de justiça declararam sem efeito as leis de anistia.
É o caso, por exemplo, da Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina que no “Caso
Simón” declarou que a lei de anistia constituía um obstáculo normativo para a investigação e
condenação de fatos de violações aos direitos humanos (CORTE IDH, 2010).
No Chile, a Corte Suprema de Justiça anulou no caso “Lecaros Carrasco” a “sentença
absolutória anterior e invalidou a aplicação da anistia chilena prevista no Decreto-Lei nº
2.191, de 1978, por meio de uma sentença de substituição” (CORTE IDH, 2010).
A Suprema Corte de Justiça do Uruguai ao julgar a Lei de Caducidade da Pretensão
Punitiva do Estado afirmou o seguinte (CORTE IDH, 2010):
[ninguém] nega que, mediante uma lei promulgada com uma maioria especial e para
casos extraordinários, o Estado pode renunciar a penalizar atos delitivos. […] No
78
Cf. E.C.H.R., Case of Aksoy v. Turkey. Application nº 21987/93, Judgment of 18 December 1996, para 98;
E.C.H.R., Case of Aydin v. Turkey. Application nº 23178/94, Judgment of 25 September 1997, para 103;
E.C.H.R., Case of Selçuk and Asker v. Turkey. Applications Nos. 23184/94 and 23185/94, Judgment of 24 April
1998, para 96, e E.C.H.R., Case of Keenan v. United Kingdom. Application nº 27229/95, Judgment of 3 April
2001, para 123.
79
Cf. A.C.H.P.R., Case of Mouvement Ivoirien des Droits Humains (MIDH) v. Côte d’Ivoire, Communication nº
246/2002, Decision of July 2008, paras. 97 and 98.
125
entanto, a lei é inconstitucional porque, no caso, o Poder Legislativo excedeu o
marco constitucional para acordar anistias [porque] declarar a caducidade das ações
penais, em qualquer hipótese, excede as faculdades dos legisladores e invade o
âmbito de uma função constitucionalmente atribuída aos juízes, pelo que,
independentemente dos motivos, o legislador não podia atribuir-se a faculdade de
resolver que havia operado a caducidade das ações penais em relação a certos
delitos.80
Por fim, a Corte Constitucional da Colômbia em julgamento ressaltou que é necessário
evitar a aplicação de disposições internas de anistia pelos seguintes motivos:
Figuras como as leis de ponto final, que impedem o acesso à justiça, as anistias em
branco para qualquer delito, as autoanistias (ou seja, os benefícios penais que os
detentores legítimos ou ilegítimos do poder concedem a si mesmos e aos que foram
cúmplices dos delitos cometidos), ou qualquer outra modalidade que tenha como
propósito impedir às vítimas um recurso judicial efetivo para fazer valer seus
direitos, foram consideradas violadoras do dever internacional dos Estados de prover
recursos judiciais para a proteção dos direitos humanos.81
Visualiza-se, portanto, que órgãos internacionais de proteção de direitos humanos e
várias cortes nacionais de países latino americanos pronunciaram a incompatibilidade das leis
de anistia com as obrigações internacionais dos Estados (CORTE IDH, 2010).
A partir do exposto e atentando-se – sobretudo - na postura do STF após a condenação
do Brasil no âmbito do sistema interamericano, é possível perceber que a tradição do direito
brasileiro de abrir-se ao diálogo é deveras complicada. Quiçá seja em razão do próprio
problema cultural que assola o país no fato de estar verdadeiramente de costas para a América
Latina e por não ter a tradição de estudar bibliografias e decisões dos países vizinhos além dos
instrumentos internacionais que subscreveu há muito tempo.
Em suma, a Corte IDH rememorou o primeiro caso contencioso sentenciado há mais
de 20 anos sobre o desaparecimento forçado e ressaltou que a caracterização deste delito pode
ser aferida em alguns instrumentos internacionais, como decisões das Nações Unidas82, pela
jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos83 e de outros tribunais nacionais dos
Estados americanos84 (CORTE IDH, 2010).
80
Suprema Corte de Justiça do Uruguai, Caso de Nibia Sabalsagaray Curutchet, nota 242 supra, Considerando
III.2, par. 13 (tradução da Secretaria da Corte Interamericana).
81
Corte Constitucional da Colômbia, Revisão da Lei 742 de 5 de junho de 2002, Expediente nº LAT-223,
Sentença C-578/02, de 30 de julho de 2002, seção 4.3.2.1.7 (tradução da Secretaria da Corte Interamericana).
82
Cf. C.D.H., Caso de Ivan Somers versus Hungria, Comunicação nº 566/1993, Decisão de 23 de julho de 1996,
par. 6.3; . C.D.H., Caso de E. e A.K. versus Hungria, Comunicação nº 520/1992, Decisão de 5 de maio de 1994,
par. 6.4, e C.D.H., Caso de Solorzano versus Venezuela, Comunicação nº 156/1983, Decisão de 26 de março de
1986, par. 5.6.
83
Cf. E.C.H.R., Case of Kurt v. Turkey, Application nº 15/1997/799/1002, Judgment of 25 May 1998, paras. 124
a 128; E.C.H.R., Case of Çakici v. Turkey, Application nº 23657/94, Judgment of 8 July 1999, paras. 104 a 106;
E.C.H.R., Case of Timurtas v. Turkey, Application nº 23531/94, Judgment of 13 June 2000, paras. 102 a 105;
E.C.H.R., Case of Tas v. Turkey, Application nº 24396/94, Judgment of 14 November 2000, paras. 84 a 87, e
126
A Corte demonstrou fazer um profundo diálogo com o sistema global e regional de
proteção a direitos humanos, mantendo uma postura aberta para o aprendizado recíproco.
3.1.1 Caso 2.Ticona Estrada y Otros vs. Bolivia
No dia 09 de agosto de 2004, o Defensor do Povo da Bolívia apresentou uma petição à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o desaparecimento forçado de Renato
Ticona Estrada.
Em outubro de 2006 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no uso de suas
atribuições aprovou relatório, no qual apresentou recomendações para o Estado realizar, no
entanto, a Bolívia não demonstrou de modo satisfatório seu cumprimento. Em razão disto, a
Comissão no dia 27 de julho de 2007 decidiu submeter o caso à jurisdição da Corte
Interamericana (CORTE IDH, 2008).
A demanda refere-se ao desaparecimento forçado de Renato Ticona Estrada no dia 22
de julho de 1980 quando foi detido por uma patrulha do exército próximo a um posto de
fiscalização de Cala-Cala em Oruro (Bolívia) juntamente com seu irmão, quando estavam
indo a visitar o avô enfermo (CORTE IDH, 2008).
Posteriormente, agentes estatais tiraram seus pertences, golpearam e os torturaram.
Após os transladaram para a guarnição onde os deixaram nos escritórios do Serviço Especial
de Segurança (SES), também conhecido como Dirección de Orden Público (DOP), sendo
entregues ao chefe do órgão. Esta fora a última vez que Hugo Ticona ou qualquer outro
familiar teve conhecimento do paradeiro de Renato Ticona (CORTE IDH, 2008).
E.C.H.R., Case of Cyprus v. Turkey, Application nº 25781/94, Judgment of 10 May 2001, paras. 132 a 134 e 147
a 148.
84
Cf. Superior Tribunal de Justiça da República Bolivariana da Venezuela, Caso Marco Antonio Monasterios
Pérez, sentença de 10 de agosto de 2007 (declarando a natureza pluriofensiva e permanente do delito de
desaparecimento forçado); Suprema Corte de Justiça da Nação do México, Tesis: P./J. 87/2004,
“Desaparecimento forçado de pessoas. O prazo para que opere a prescrição não se inicia até que apareça a vítima
ou se determine seu destino” (afirmando que os desaparecimentos forçados são delitos permanentes e que se
deve começar a calcular a prescrição a partir do momento em que cessa sua consumação); Câmara Penal da
Corte Suprema do Chile, Caso Caravana, sentença de 20 de julho de 1999; Plenário da Corte Suprema do Chile,
Caso de desaforamento de Pinochet, sentença de 8 de agosto de 2000; Tribunal de Apelações de Santiago, Chile,
Caso Sandoval, sentença de 4 de janeiro de 2004 (todos declarando que o delito de desaparecimento forçado é
contínuo, de lesa-humanidade, imprescritível e não anistiável); Câmara Federal de Apelações do Tribunal Penal
e Correcional da Argentina, Caso Videla e outros, sentença de 9 de setembro de 1999 (declarando que os
desaparecimentos forçados são delitos contínuos e de lesa-humanidade); Tribunal Constitucional da Bolívia,
Caso José Carlos Trujillo, sentença de 12 de novembro de 2001; Tribunal Constitucional do Peru, Caso Castillo
Páez, sentença de 18 de março de 2004 (declarando, em virtude do ordenado pela Corte Interamericana, no
mesmo caso, que o desaparecimento forçado é um delito permanente até que se determine o paradeiro da vítima),
e Corte Suprema do Uruguai, Caso Juan Carlos Blanco e Caso Gavasso e outros, sentenças de 18 de outubro de
2002 e de 17 de abril de 2002, respectivamente.
127
Quando os pais dos irmãos Ticona Estrada tiveram conhecimento da detenção,
buscaram diversas autoridades e instituições estatais para saber algo sobre o paradeiro, mas
não lograram nenhuma resposta (CORTE IDH, 2008).
Fora somente com a informação dada por uma assistente social que os pais souberam
que Hugo Ticona estava muito ferido e que agentes estatais o haviam transferido para uma
clínica em estado físico deplorável como consequência da tortura que havia sofrido. Após 28
anos dos fatos, Renato Ticona segue desaparecido sem que se tenha conhecimento de seu
paradeiro ou da localização de seus restos (CORTE IDH, 2008).
A alegada impunidade destes fatos deriva dos 27 anos transcorridos pela denegação da
justiça que os familiares de Renato Ticona têm vivido e pela falta de reparação pelos danos
produzidos como consequência da perda de um ente querido (CORTE IDH, 2008).
O Estado reconheceu que em 1980 o processo democrático que estava sendo
promovido na Bolívia foi interrompido por um golpe de Estado liderado pelo General Luis
García Meza. Foi instaurado um regime de repressão, no qual forças militares e grupos
paramilitares efetuaram graves violações aos direitos humanos, sendo que o ambiente de
impunidade favoreceu a prática sistemática de detenções ilegais, torturas e desaparecimentos
forçados (CORTE IDH, 2008).
Renato Ticona no momento do desaparecimento tinha 25 anos, era bacharel em
humanidades e trabalhava como professor de música na Escola Mariano Baptista. Para a
Corte o desaparecimento forçado é caracterizado pela privação da liberdade de uma ou mais
pessoas, qualquer que seja sua forma, cometida por agentes do Estado ou por pessoas ou
grupos de pessoas que atuem com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado (CORTE
IDH, 2008).
A Corte destaca e passa a dialogar no momento em que cita que existem instrumentos
internacionais85 que trazem outros elementos que constituem o desaparecimento forçado, tais
como: a) a privação da liberdade; b) a intervenção direta de agentes estatais; c) a negativa de
reconhecer a detenção e de revelar o paradeiro da pessoa interessada (CORTE IDH, 2008).
Contudo, não há diálogo com eventuais sentenças proferidas pelos outros sistemas
regionais de proteção de direitos humanos (sistema europeu ou africano), porém há referência
a estudos feitos pela Organização das Nações Unidas - Conselho Econômico e Social das
85
Cfr. Consejo Económico y Social de las Naciones Unidas, Informe del Grupo de Trabajo sobre la
Desaparición Forzada o Involuntaria de Personas, Observación General al artículo 4 de la Declaración
sobre la Protección de Todas las Personas contra las Desapariciones Forzadas de 15 de enero de 1996. (E/CN.
4/1996/38), párr. 55; y Convención Internacional para la Protección de Todas las Personas contra
las Desapariciones Forzadas. Organización de las Naciones Unidas. Art 2.
128
Nações Unidas sobre o Informe del Grupo de Trabajo sobre la Desaparición Forzada o
Involuntaria de Personas e à sentenças já proferidas pela Corte Interamericana em casos
análogos, tais como: Caso Myrna Chang Vs. Guatemala; Caso Trujillo Oroza Vs. Bolivia;
Caso Carpio Nicolle y otros Vs. Guatemala; Caso Masacre de Mapiripán Vs. Colombia; Caso
Blake Vs. Guatemala; Caso Baena Ricardo y otros Vs. Pananá; Caso Velásquez Rodríguez
Vs. Honduras. Fondo; Caso Loayza Tamayo Vs. Perú, entre outros.
No entanto, há que se destacar –
conforme exposto no primeiro capítulo
- que o diálogo não se
resume no simples fato de um Tribunal citar entendimentos de outras Cortes, mas também em
verificar se o Estado condenado cumpriu com as determinações impostas na sentença.
Por unanimidade a Corte de San José dispôs que: 1) o Estado deve continuar com a
tramitação do processo penal seguido pelo desaparecimento forçado de Renato Ticona Estrada
e que seja concluído de modo breve; 2) investigar os fatos ocorridos a Hugo Ticona Estrada,
além de identificar, julgar e sancionar os responsáveis com brevidade; 3) proceder a busca de
Renato Ticona Estrada de maneira efetiva; 4) publicar no Diário Oficial e em outro Diário de
ampla circulação nacional parágrafos da sentença e os pontos resolutivos; 5) implementar de
modo efetivo convênios de prestação de tratamento médico e psicológico para os familiares
dos irmãos Ticona Estrada; 6) adotar dentro de um prazo razoável, recursos humanos e
materiais necessário para o Conselho Interinstitucional para o Esclarecimento de
Desaparecimentos Forçados e 7) efetuar pagamento de indenização por danos materiais e
imateriais para os familiares (CORTE IDH, 2008).
Na supervisão de cumprimento de sentença feito em 23 de fevereiro de 2011 (três
anos após a sentença), em relação à primeira obrigação86 o Estado informou que o Ministério
Público implementou ações para concluir o processo judicial após a localização do envolvidos
no desaparecimento das vítimas, inclusive já tendo ocorrido a condenação dos envolvidos
Roberto Melean Rendón, René Veizaga Vargas, Willy Valdivia Gumucio, Eduardo García
Alba e Alfredo Sanabria o Saravia, em 8 de janeiro de 2008 (no mesmo ano da publicação da
sentença da Corte Interamericana) (CORTE IDH, 2011).
Os familiares informaram que muito embora tenham os réus sido condenados, a
sentença proferida contra Willy Valdivia Gumucio e Alfredo Sanabria o Saravia ainda não foi
executada, diante da fuga dos condenados (CORTE IDH, 2011).
Em que pese tal situação, a Corte valorou as atitudes tomadas pelo Estado para
cumprir sua obrigação internacional de investigar e sancionar os responsáveis. Ressaltou que
86
1) o Estado deve continuar com a tramitação do processo penal seguido pelo desaparecimento forçado de
Renato Ticona Estrada e que seja concluído de modo breve.
129
até o momento da supervisão do cumprimento, a sentença do tribunal boliviano não havia
adquirido caráter de coisa julgada, motivo pelo qual a Corte Interamericana estima que o
Estado obteve avanços significativos no cumprimento desta medida de reparação. Como
houve uma sentença condenatória, a Corte entendeu que a obrigação de investigar os fatos do
desaparecimento de Renato Ticona Estrada foi concluída (CORTE IDH, 2011).
Quanto à segunda obrigação87o Estado informou que no dia 7 de setembro de 2009 foi
realizada uma representação formal contra René Veizaga Vargas pelo cometimento do delito
de tortura contra a vítima e que está sendo realizado o reconhecimento do lugar onde
ocorreram os fatos em Cala Cala (Oruro), local onde os irmãos foram torturados (CORTE
IDH, 2011).
A Corte sustentou que o Estado deve intensificar esforços e realizar todas as ações
pertinentes para avançar nas investigações sobre os fatos ocorridos a Hugo Ticona (CORTE
IDH, 2011).
Quanto à terceira obrigação88 o Estado informou que a comissão de fiscais
encarregados do caso abriram investigação do delito de desaparecimento forçado de pessoas,
sendo o objetivo principal da investigação dar cumprimento a sentença internacional (CORTE
IDH, 2011).
A Corte observou que embora o Estado tenha realizado diligências para cumprir o que
fora disposto na sentença, as medidas tomadas ainda não são suficientes para concluir a busca
de Renato Ticona. Salientou que o Estado deve realizar uma busca efetiva para que os
familiares possam conhecer o destino da vítima desaparecida, com a finalidade de ser aliviada
a angústia e o sofrimento causados (CORTE IDH, 2011).
A respeito da quarta obrigação89 o Estado informou que as publicações foram
realizadas nos dias 07 e 08 de junho de 2009, na Gaceta Oficial e também no periódico de
circulação nacional La Razón. A Corte entendeu que o Estado deu cumprimento total a este
ponto resolutivo (CORTE IDH, 2011).
Sobre a quinta obrigação90 o Estado informou que o Ministério das Relações
Exteriores realizou atos para implementar os convênios de saúde. Ressaltou que fez um
87
2) deve investigar os fatos ocorridos a Hugo Ticona Estrada, além de identificar, julgar e sancionar os
responsáveis com brevidade.
88
3) deve proceder a busca de Renato Ticona Estrada de maneira efetiva.
89
4) publicar no Diário Oficial e em outro Diário de ampla circulação nacional parágrafos da sentença e os
pontos resolutivos.
90
5) implementar de modo efetivo convênios de prestação de tratamento médico e psicológico para os familiares
dos irmãos Ticona Estrada.
130
requerimento para o Ministério para dar conta do trabalho realizado e que oportunamente será
entregue (CORTE IDH, 2011).
A Corte destaca que o Estado não informou concretamente sobre as ações que tem
realizado para dar cumprimento a esta medida e cobrou do Estado uma postura mais efetiva
para a satisfação desta obrigação (CORTE IDH, 2011).
Em relação à sexta obrigação91 o Estado indicou que o Ministério Justiça passou a
desenvolver o Proyecto Constibución al ejercicio Pleno de los Derechos Humanos y el
Fortalecimiento de la Democracia, que tem por fim contribuir para a reparação dos Direitos
humanos e fortalecimento da democracia na Bolívia, por meio do esclarecimento de casos de
desaparecimentos forçados pela violência política no período de 1964 a 1982 (CORTE IDH,
2011).
A Corte valorou os progressos dados pelo Estado e considera que são suficientes as
ações realizadas para dar cumprimento a este ponto resolutivo da sentença (CORTE IDH,
2011).
Por fim, a sétima obrigação que consistia no dever do Estado pagar indenização por
danos materiais e imateriais para os familiares das vítimas, o Estado afirmou que procedeu a
transferência da quantia determinada pela Corte para as contas pessoais dos familiares, na
quantia integral e sem reduções de cargas fiscais. A Corte concluiu que o Estado cumpriu
integralmente o pagamento de indenização (CORTE IDH, 2011).
Portanto, de sete obrigações estabelecidas na sentença, a Corte entendeu que o
Estado deu cumprimento total as obrigações dos pontos resolutivos n. 1, 4, 6 e 7 (CORTE
IDH, 2011).
3.1.2 Caso 3.Almonacid Arellano y otros vs. Chile
Em 1998 Mario Márquez Maldonado e Elvira del Rosario Gómez Olivares
apresentaram uma petição para a Comissão Interamericana, tendo como objeto os fatos que
ocasionaram a execução do senhor Almonacid Arellano por militares. Em 2002, a Comissão
declarou admissível a petição e em 2005 apresentou uma denúncia perante a Corte
Interamericana (CORTE IDH, 2006).
Os fatos remontam o ano de 1976 quando o Chile vivia sob o regime militar que
derrocou o governo do Presidente Salvador Allende. A repressão generalizada dirigida às
91
6) adotar dentro de um prazo razoável, recursos humanos e materiais necessário para o Conselho
Interinstitucional para o Esclarecimento de Desaparecimentos Forçados.
131
pessoas que o regime considerava como opositoras operou-se deste dia até o fim do governo
militar em 10 de março de 1990. Esta repressão esteve caracterizada por uma prática massiva
e sistemática de fuzilamentos, execuções sumárias, torturas, privações arbitrárias da liberdade,
desaparecimentos forçados e outras violações a direitos humanos cometidas por agentes do
Estado (CORTE IDH, 2006).
A época mais violenta de todo o período repressivo corresponde aos primeiros meses
do governo de fato. Das 3.197 vítimas identificadas de execuções e desaparecimentos
forçados que ocorreram em todo o governo militar, 1.823 foram produzidas no ano 1973
(CORTE IDH, 2006).
No dia 16 de setembro do referido ano o senhor Almonacid Arellano foi detido em seu
domicílio por militares, os quais dispararam um tiro na vítima. O senhor Arellano acabou
falecendo no Hospital Regional de Rancagua no dia 17 de setembro de 1973 (CORTE IDH,
2006).
A Corte considera que existem evidências suficientes para sustentar que a execução
extrajudicial cometida por agentes estatais em prejuízo do senhor Almonacid Arellano
(militante do Partido Comunista) era considerado uma ameaça e faleceu mediante a utilização
de um padrão sistemático e generalizado contra a população civil, constituindo assim, um
crime de lesa humanidade (CORTE IDH, 2006).
A ausência de punição dos autores deriva da promulgação do Decreto Lei n.
2.191/1978, mediante o qual concedeu anistia nos seguintes termos (CORTE IDH, 2006):
Considerando:
1°- La tranquilidad general, la paz y el orden de que disfruta actualmente todo el
país, em términos tales, que la conmoción interna ha sido superada, haciendo posible
poner fin al Estado de Sitio y al toque de queda en todo el territorio nacional;
2°- El imperativo ético que ordena llevar a cabo todos los esfuerzos conducentes a
fortalecer los vínculos que unen a la nación chilena, dejando atrás odiosidades hoy
carentes de sentido, y fomentando todas las iniciativas que consoliden la
reunificación de los chilenos;
3°- La necesidad de una férrea unidad nacional que respalde el avance hacia la
nueva institucionalidad que debe regir los destinos de Chile. La Junta de Gobierno
ha acordado dictar el siguiente Decreto ley:
Artículo 1°- Concédese amnistía a todas las personas que, en calidad de autores,
cómplices o encubridores hayan incurrido en hechos delictuosos, durante la vigencia
de la situación de Estado de Sitio, comprendida entre el 11 de Septiembre de 1973 y
el 10 de Marzo de 1978, siempre que no se encuentren actualmente sometidas a
proceso o condenadas.
Artículo 2°- Amnistíase, asimismo, a las personas que a la fecha de vigencia del
presente decreto ley se encuentren condenadas por tribunales militares, con
posterioridad al 11 de septiembre de 1973.
Artículo 3°- No quedarán comprendidas en la amnistía a que se refiere el artículo 1°,
las personas respecto de las cuales hubiere acción penal vigente en su contra por los
delitos de parricidio, infanticidio, robo con fuerza en las cosas, o con violencia o
intimidación en las personas, elaboración o tráfico de estupefacientes, sustracción de
132
menores de edad, corrupción de menores, incendios y otros estragos; violación,
estupro, incesto, manejo em estado de ebriedad, malversación de caudales o efectos
públicos, fraudes y exacciones
ilegales, estafas y otros engaños, abusos deshonestos, delitos contemplados en el
decreto ley número 280, de 1974, y sus posteriores modificaciones; cohecho, fraude
y contrabando aduanero y delitos previstos en el Código Tributario.,
Artículo 4°- Tampoco serán favorecidas con la aplicación del artículo 1°, las
personas que aparecieren responsables, sea en calidad de autores, cómplices o
encubridores, de los hechos que se investigan en proceso rol N° 192-78 del Juzgado
Militar de Santiago, Fiscalía Ad Hoc.
A denegação da justiça em prejuízo da família do senhor Almonacid Arellano deriva
da aplicação do Decreto Lei de autoanistia expedido pela ditadura militar como auto perdão
em benefício de seus membros. O Estado manteve em vigor esta lei mesmo após a ratificação
da Convenção Americana, sendo que os Tribunais chilenos a declararam constitucional sendo
até então aplicada (CORTE IDH, 2006).
O diálogo realizado pela Corte é aferido ao citar o caso “Kolk y Kislyiy v. Estonia”
julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos. Neste caso os senhores Kolk e Kislyiy
cometeram crimes em 1949, tendo a Corte Europeia entendido que se tratava de crimes de
lesa humanidade à luz do direito internacional (CORTE IDH, 2006).
Segundo o corpus iuris do Direito Internacional, um crime de lesa humanidade é em si
mesmo uma grave violação aos direitos humanos e afeta toda a humanidade. No caso
“Prosecutor v. Erdemovic” o Tribunal Internacional para a ex Yuguslavia indicou que:
[l]os crímenes de lesa humanidad son serios actos de violencia que dañan a los seres
humanos al golpear lo más esencial para ellos: su vida, su libertad, su bienestar
físico, su salud y/o su dignidad. Son actos inhumanos que por su extensión y
gravedad van más allá de los límites de lo tolerable para la comunidad internacional,
la que debe necesariamente exigir su castigo. Pero los crímenes de lesa humanidad
también trascienden al individuo, porque cuando el individuo es agredido, se ataca y
se niega a la humanidad toda. Por eso lo que caracteriza esencialmente al crimen de
lesa humanidad es el concepto de la humanidad como víctima.92
Em razão de o indivíduo e a humanidade serem vítimas desta espécie de crime, a
Assembleia Geral das Nações Unidas desde 1946 tem sustentado que os responsáveis de tais
atos devem ser sancionados para que sejam protegidos os direitos humanos e as liberdades
fundamentais. Ademais, com a condenação dos responsáveis é possível fomentar a confiança,
92
Cfr. Tribunal Penal Internacional para la ex Yugoslavia, Prosecutor v. Erdemovic, Case No. IT-96-22T, Sentencing Judgment, November 29, 1996, at para. 28. “Os crimes de lesa humanidade são graves atos de
violência que atingem os seres humanos no que há de mais essencial: sua vida, sua liberdade, seu bem estar
físico, sua saúde e/ou sua dignidade. São atos desumanos que devido a sua extensão e gravidade vão além dos
limites do tolerável para a comunidade internacional, a qual deve exigir punições. Os crimes de lesa humanidade
também transcendem ao indivíduo, pois quando este é agredido, ataca-se e nega-se toda a humanidade. Por isto é
que é caracterizado como crime de lesa humanidade o conceito da humanidade como vítima”. (Tradução livre)
133
estimular a cooperação entre os povos e contribuir para a paz e segurança internacionais
(CORTE IDH, 2006).
Na Resolução n. 3074 (XXVIII) de 1973 das Nações Unidas a Assembleia Geral assim
afirmou:
Los crímenes de guerra y los crímenes de lesa humanidad, dondequiera y cualquiera
que sea la fecha en que se hayan cometido, serán objeto de una investigación, y las
personas contra las que existan pruebas de culpabilidad en la comisión de tales
crímenes serán buscadas, detenidas, enjuiciadas y, en caso de ser declaradas
culpables, castigadas. […] Los Estados no adoptarán medidas legislativas ni tomarán
medidas de otra índole que puedan menoscabar las obligaciones internacionales que
hayan contraído con respecto a la identificación, la detención, la extradición y el
castigo de los culpables de crímenes de guerra o de crímenes de lesa humanidad.93
As Resoluções 827 e 955 do Conselho de Segurança da ONU, juntamente com os
Estatutos dos Tribunais para a ex Yuguslavia (artigo 29) e Ruanda (artigo 28), impõem uma
obrigação a todos os Estados membros das Nações Unidas de cooperar plenamente com os
Tribunais na investigação e persecução de pessoas acusadas de ter cometido sérias violações
ao Direito Internacional, incluídos os crimes contra a humanidade (CORTE IDH, 2006).
A adoção e aplicação de leis que outorgam anistia por crimes de lesa humanidade
impede o cumprimento das obrigações aceitas. O Secretário Geral das Nações Unidas, em seu
relatório sobre o estabelecimento do Tribunal Especial para Serra Leoa afirmou o seguinte:
[a]unque reconocen que la amnistía es un concepto jurídico aceptado y una muestra
de paz y reconciliación al final de una guerra civil o de un conflicto armado interno,
las Naciones Unidas mantienen sistemáticamente la posición de que la amnistía no
puede concederse respecto de crímenes internacionales como el genocidio, los
crímenes de lesa humanidad o las infracciones graves del derecho internacional
humanitário.94
No caso ora analisado a Corte IDH entendeu que foi cometido contra o Sr. Almonacid
Arellano um crime de lesa humanidade. Partindo desta certeza, caberia a Corte analisar a
aplicabilidade do Decreto Lei n. 2.191 que anistia este crime e se o Estado deixou de cumprir
com sua obrigação derivada do artigo 2 da Convenção por manter vigente essa normativa
(CORTE IDH, 2006).
93
Cfr. O.N.U., Principios de cooperación internacional en la identificación, detención, extradición y
castigo de los culpables de crímenes de guerra, o de crímenes de lesa humanidad adoptados por la Asamblea
General de las Naciones Unidas en su resolución 3074 (XXVIII) 3 de diciembre de 1973.
94
Cfr. O.N.U., Informe del Secretario General sobre el establecimiento de un Tribunal para Sierra
Leona, S/2000/915 de 4 de octubre de 2000, párr. 22.
134
O artigo 1 do Decreto Lei n. 2.191 concede uma anistia geral a todos os responsáveis
de "fatos delituosos" cometidos desde o dia 11 de setembro de 1973 ao dia 10 de março de
1978. Embora o artigo 3 deste Decreto Lei exclua da anistia uma série de delitos, a Corte
verificou que o crime de lesa humanidade de assassinato não figura na lista existente no artigo
3 do referido Decreto95 (CORTE IDH, 2006).
A Corte Interamericana afirmou em várias oportunidades que:
[e]n el derecho de gentes, una norma consuetudinaria prescribe que un Estado que
ha celebrado un convenio internacional, debe introducir en su derecho interno las
modificaciones necesarias para asegurar la ejecución de las obligaciones asumidas.
Esta norma aparece como válida universalmente y ha sido calificada por la
jurisprudencia como un principio evidente (“principe allant de soi”; Echange des
populations grecques et turques, avis consultatif, 1925, C.P.J.I., série B, no. 10, p.
20). En este orden de ideas, la Convención
Americana establece la obligación de cada Estado Parte de adecuar su derecho
interno a las disposiciones de dicha Convención, para garantizar los derechos en ella
consagrados.96
Leis de anistia conduzem a perpetuação da impunidade dos crimes de lesa humanidade
e são manifestamente incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção Americana. Por se
tratar de uma violação da Convenção, gera responsabilidade internacional do Estado (CORTE
IDH, 2006).
Segundo o entendimento da Corte Interamericana, o Decreto Lei n. 2.191 carece de
efeitos jurídicos e não pode seguir representando um obstáculo para a investigação e sanção
dos autores dos fatos que constituem o caso (CORTE IDH, 2006)
Desde que o Chile ratificou a Convenção Americana em 21 de agosto de 1990,
manteve vigente o Decreto Lei n. 2.191 (por 16 anos), sem observar as obrigações
consagradas na Convenção. O artigo 2 da Convenção impõe uma obrigação legislativa de
95
Decreto Lei n. 2.191
Atículo 1º. Concédese amnistía a todas las personas que, en calidad de autores, cómplices o encubridores hayan
incurrido en hechos delictuosos, durante la vigencia de la situación de Estado de Sitio, comprendida entre el 11
de Septiembre de 1973 y el 10 de marzo de 1978, siempre qu eno se encuentren actualmente sometidas a proceso
o condenadas.
[...]
Artículo 3º. No quedarán comprendidas en la amnistía a que se refiere el artículo 1º, las personas respecto de las
cuales hubiere acción penal vigente en su contra por los delitos de parricidio, infanticidio, robo con fuerza en las
cosas, o con violencia o intimidación en las personas, elaboración o tráfico de estupefacientes, sustracción de
menores de edad, corrupción de menores, incendios y otros estragos; violación, estupro, encesto, manejo en
estado de ebriedad, malversación de caudales o efectos públicos, fraudes y exacciones ilegales, estafas y otros
engaños, abusos deshonestos, delitos contemplados en el decreto ley número 280, de 1974, y sus posteriores
modificaciones; cohecho, fraude y contrabando aduanero y delitos previstos en el Código Tributário.
96
Cfr. Caso Garrido y Baigorria. Reparaciones (art. 63.1 Convención Americana sobre Derechos
Humanos). Sentencia de 27 de agosto de 1998. Serie C No. 39, párr. 68; Caso Baena Ricardo y otros.
Sentencia del 2 de febrero de 2001. Serie C Nº 72, párr. 179.
135
suprimir toda violação à Convenção. Por tais razões, a Corte entende que o Estado não
cumpriu com os deveres impostos pelo artigo 2 da Convenção Americana, por manter
formalmente dentro de seu ordenamento um Decreto Lei contrário à sua letra e espírito
(CORTE IDH, 2006).
Quando um Estado ratifica um tratado internacional o Poder Judiciário deve exercer
uma espécie de “controle de convencionalidade” entre as normas jurídicas internas que
aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CORTE
IDH, 2006).
O poder judiciário chileno aplicou o Decreto Lei n. 2.191 e, deste modo, deixou
impunes os responsáveis da morte do Senhor Almonacid Arellano e impediram que os
familiares exercessem o direito de serem ouvidos por um Tribunal competente, independente
e imparcial (CORTE IDH, 2006).
A Corte dispôs por unanimidade que: 1) o Estado deve assegurar que o Decreto Lei n.
2.191 não siga representando um obstáculo para as investigações da execução extrajudicial do
senhor Almonacid Arellano e para a identificação e sanção dos responsáveis; 2) assegurar que
o Decreto Lei n. 2.191 não siga representando um obstáculo para a investigação, julgamento e
sanção dos responsáveis de outras violações similares ocorridas no Chile; 3) efetuar o
pagamento das custas e gastos no prazo de um ano; e 4) realizar publicação da sentença em
um prazo de seis meses.
Na supervisão de cumprimento de sentença em relação à primeira obrigação, o
Estado informou que em outubro de 2007 foi reaberta a investigação judicial pela morte do
senhor Almonacid e juntou cópia do projeto de lei de reforma ao Código de Justiça Militar, no
entanto, o Estado não juntou cópia das decisões e atuações levadas a cabo com relação à
investigação (CORTE IDH, 2010).
Para a Corte, o Estado deveria apresentar a documentação completa para ser realizada
a verificação do cumprimento das obrigações dispostas da sentença. A Corte considera que a
informação apresentada demonstra um princípio de cumprimento por parte do Chile de suas
obrigações internacionais, mas o Tribunal aguarda a informação completa e atualizada
(CORTE IDH, 2010).
Sobre a segunda obrigação97 o Estado indicou que havia estudado diversas vias para
dar cumprimento a este ponto da sentença e informou que em maio de 2008 estava em
tramitação um projeto de lei destinado a interpretar o artigo 93 do Código Penal, com o
97
2) O Estado deve assegurar que o Decreto Lei n. 2.191 não siga representando um obstáculo para a
investigação, julgamento e sanção dos responsáveis de outras violações similares ocorridas no Chile.
136
objetivo de que a anistia, o indulto e a prescrição não fossem aplicados nos casos de crimes de
guerra, genocídio e lesa humanidade. Alegou que com este projeto pretende ditar uma norma
interpretativa para precisar o verdadeiro sentido e alcance das atuais normas internas
relacionadas com a responsabilidade penal à luz do Direito Internacional dos Direitos
Humanos (CORTE IDH, 2010).
A Corte ressaltou que o Estado deu o primeiro passo para cumprir com seu dever de
assegurar que o Decreto Lei não continue representando um obstáculo para proteger o direito
à garantia e proteção judicial no Chile, no entanto, a Corte observou que o projeto de lei
passou a tramitar em maio de 2008, sendo que mais de dois anos depois tal projeto ainda se
encontra em tramitação no Senado. Tendo em vista que esta medida de reparação deveria ser
cumprida dentro de um prazo razoável, a Corte insta o Estado a adotar medidas necessárias
para dar efetivo cumprimento a esta obrigação (CORTE IDH, 2010).
Com relação à terceira obrigação98, o Estado informou que em 30 de maio de 2007
efetuou pagamento da quantidade ordenada pela Corte. Em razão de não existir nenhuma
objeção do representante das vítimas, a Corte concluiu que o Chile cumpriu com o disposto
neste ponto resolutivo.
Por fim, em relação à quarta obrigação99 o Estado comunicou a realização da
publicação no Diário Oficial do Chile e no Diário "La Nación" nos dias 14 e 13 de maio de
2007. A Corte concluiu que o Chile cumpriu com o disposto neste ponto.
No fim do cumprimento de sentença a Corte entendeu que o Estado deu cumprimento
aos pontos 3, 4, deixando em aberto as obrigações sob n. 1 e 2.
3.1.3 Caso 4. Caso Contreras y otros Vs. El Salvador
Nos dias 16 de novembro de 2001 e 4 de setembro de 2003 a Comissão Interamericana
recebeu petições ajuizadas pela Asociación Pro-Búsqueda de Niños y Niñas Desaparecidos e
pelo Centro por la Justicia y el Derecho Internacional (CEJIL) relatando o desaparecimento
de Gregoria Herminia, Serapio Cristian, José Rubén Rivera Rivera, Gregoria Herminia,
Serapio Cristian e Julia Inés Contreras (CORTE IDH, 2011).
A Comissão declarou admissíveis as petições e emitiu resolução concedendo ao
Estado de El Salvador um prazo de dois meses para que informasse sobre as medidas adotadas
para dar cumprimento às recomendações (CORTE IDH, 2011).
98
99
3) efetuar o pagamento das custas e gastos no prazo de um ano.
4) realizar publicação da sentença em um prazo de seis meses.
137
Diante da falta de apresentação de informação por parte do Estado, no dia 28 de junho
de 2010 a Comissão apresentou para a Corte Interamericana uma demanda contra El Salvador
(CORTE IDH, 2011).
A demanda versa sobre os desaparecimentos forçados ocorridos entre os anos de 1981
e 1983 das crianças Gregoria Herminia, Serapio Cristian e Julia Inés Contreras, Ana Julia e
Carmelina Mejía Ramírez e José Rubén Rivera Rivera por parte de membros de diferentes
organizações militares no contexto de "Operativos de Contrainsurgência" durante o conflito
armado ocorrido em El Salvador (CORTE IDH, 2011).
O Estado reconheceu durante uma audiência celebrada pela Comissão Interamericana
que no contexto do conflito armado que ocorreu no país entre os anos de 1980 e 1991 foram
produzidos padrões sistemáticos de desaparecimentos forçados de crianças e jovens em
diferentes regiões, mas especialmente aquelas afetadas em maior medida por enfrentamentos
armados e operativos militares (CORTE IDH, 2011).
Alguns soldados declararam que desde 1982 recebiam ordens de levar qualquer
criança que encontrassem durante o ataque a posições inimigas. (CORTE IDH, 2011)
Segundo a prova recebida nos autos, os possíveis destinos das crianças depois da
separação de sua família podem ser classificados da seguinte forma: 1) adoções por meio de
um processo formal dentro do sistema judicial, sendo que a maioria foi adotada por famílias
estrangeiras, principalmente dos Estados Unidos, França e Itália; 2) adoções de fato por
famílias salvadorenhas sem nenhuma formalização; 3) casos de adoção de fato por parte de
militares que incluíram estas crianças em suas famílias como filhos; 4) crianças que cresceram
em orfanatos, nos quais os encarregados não tentaram encontrar os parentes dos menores; 5)
crianças que cresceram em instalações militares; 6) vítimas de tráfico ilegal (CORTE IDH,
2011).
Segundo a Asociación Pro-Búsqueda havia 881 denúncias de crianças desaparecidas
durante o conflito armado, das quais 363 foram localizadas com ou sem vida. Destes casos foi
possível produzir o reencontro dos familiares de 224 jovens (CORTE IDH, 2011).
Comprovou-se também que muitas crianças desaparecidas eram registradas com
informação falsa ou com os dados alterados, sendo que esta situação irradia efeitos em dois
sentidos: 1) para a criança lhe é impossibilitado buscar sua família e conhecer sua identidade e
2) à família de origem é obstaculizado o exercício dos recursos legais para restabelecer a
identidade biológica, o vínculo familiar e fazer cessar a privação de liberdade (CORTE IDH,
2011).
138
A Corte já estabeleceu em sua jurisprudência que a separação de crianças de sua
família constitui, sob determinadas condições, uma violação de seu direito à família
reconhecido no artigo 17 da Convenção Americana (CORTE IDH, 2011).
Nos casos de desaparecimento forçado é imprescindível que as autoridades fiscais e
judiciais atuem de forma pronta e imediata, ordenando medidas oportunas e necessárias
dirigidas à determinação do paradeiro da criança. No presente caso a obrigação é reforçada
pelo fato de que as vítimas eram crianças no momento dos fatos, motivo pelo qual o Estado
tinha o dever de assegurar que fossem encontradas de forma mais breve possível (CORTE
IDH, 2011).
Segundo a Corte, transcorreram aproximadamente 30 anos desde os desaparecimentos
forçados das vítimas sem que nenhum de seus autores materiais ou intelectuais tenham sido
identificados e processados (CORTE IDH, 2011).
Desde o momento em que iniciaram as investigações foi verificada a falta de
diligência e seriedade. O não cumprimento do dever de iniciar uma investigação ex officio; a
ausência de linhas claras e lógicas; a negativa de proporcionar informação relacionada com as
operações militares e a falta de diligência no desenvolvimento das investigações por parte das
autoridades permite a Corte concluir que os processos internos em sua integralidade não
constituíram recursos efetivos para determinar ou localizar o paradeiro das vítimas, tampouco
para garantir os direitos de acesso à justiça e de conhecer a verdade, mediante a investigação e
eventual sanção dos responsáveis (CORTE IDH, 2011).
Segundo a Comissão, até a data da sentença somente foi estabelecido o paradeiro de
Gregoria Herminia Contreras. Quanto às circunstâncias do desaparecimento das demais
vítimas ainda não foram esclarecidas e os responsáveis não foram identificados e sancionados
(CORTE IDH, 2011).
Ao final a Corte de San José dispôs por unanimidade as seguintes obrigações para o
Estado de El Salvador cumprir: 1) continuar de modo eficaz as investigações e abrir as que
forem necessárias com a finalidade de identificar, julgar e sancionar todos os responsáveis dos
desaparecimentos forçados das vítimas, bem como de outros delitos conexos; 2) efetuar a
busca de maneira breve e eficaz para determinar o paradeiro das vítimas; 3) adotar todas as
medidas adequadas e necessárias para a restituição da identidade de Gregoria Herminia
Contreras, incluindo seu nome e sobrenome, bem como demais dados pessoais; 4) conceder
tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico às vítimas que solicitarem; 5) realizar a
publicação da sentença; 6) realizar ato público de reconhecimento de sua responsabilidade
internacional dos fatos julgados; 7) dar nome a três escolas; uma com o nome de Gregoria
139
Herminia, Serapio Cristian e Julia Inés Contreras; outra com o nome de Ana Julia e Carmelina
Mejía Ramírez e uma terceira com o nome de José Rubén Rivera Rivera; 8) realizar
documentário sobre o desaparecimento forçado de crianças durante o conflito armado em El
Salvador com menção específica a este caso; 9) adotar medidas pertinentes e adequadas para
garantir que a sociedade salvadorenha tenha acesso público, técnico e sistematizado aos
arquivos que contenham informações úteis e relevantes para a investigação das violações aos
direitos humanos cometidas durante o conflito armado; 10) efetuar pagamento de indenização
por dano material, imaterial para as vítimas e pagar valor relativo as custas e gastos
processuais.
A Corte também dispôs que dentro do prazo de um ano contado da notificação da
sentença, o Estado deve informar as medidas adotadas para dar cumprimento às obrigações
acima determinadas.
Em relação a primeira obrigação100 o Estado informou que enviou a sentença para a
Fiscalía General de la República que é o órgão responsável para investigar os fatos, no
entanto, tal órgão não relatou a existência de resultados recentes sobre o caso. Deste modo, o
Estado não tinha elementos específicos sobre a investigação ou uma mudança da situação dos
processos em aberto.
A Corte demonstra preocupação com o fato de o Estado ter se limitado a informar que
não tinha elementos sobre as investigações mesmo quase dois anos após a sentença ter sido
proferida. Trata-se de uma situação de total impunidade das violações apuradas no caso.
Quanto à segunda obrigação101o Estado informou que havia localizado duas vítimas
do caso: os jovens José Rubén Rivera Rivera e Serapio Cristian Contreras. Já em relação à
vítima Julia Inés Contrerás a Comissão Nacional de Busca realizou entrevistas com
familiares, informantes, sendo então localizada uma pessoa que acreditavam ser Julia Inés
Conteras, no entanto, a prova de DNA descartou esta possibilidade. Com relação às irmãs Ana
Julia e Carmelina Mejía, tem sido realizadas entrevistas para buscar um início de prova sobre
sua localização.
A Corte valorou os esforços realizados pelo Estado no sentido de buscar as vítimas e
pelo fato de ter encontrado José Rubén Rivera Rivera, mas solicita o cumprimento completo
desta obrigação.
100
1) continuar de modo eficaz as investigações e abrir as que forem necessárias com a finalidade de identificar,
julgar e sancionar todos os responsáveis dos desaparecimentos forçados das vítimas, bem como de outros delitos
conexos.
101
2) efetuar a busca de maneira breve e eficaz para determinar o paradeiro das vítimas.
140
Quanto à terceira obrigação102 o Estado informou que foi promovido um processo
judicial para a modificação da identidade de Gregoria Herminia Recinos Contreras. Deste
modo, a Corte considera que o Estado cumpriu totalmente com sua obrigação.
Sobre a quarta obrigação103o Estado informou que em março de 2011 deu início as
medidas de atenção à saúde em benefício dos familiares das vítimas por meio do atendimento
em três hospitais da rede pública localizados em regiões do país que correspondem aos
lugares de residência das famílias.
Os representantes dos familiares das vítimas reconheceram os avanços na atenção
médica, no entanto, expressaram que continuam enfrentando obstáculos para receber atenção
prioritária. Algumas pessoas informaram que tiveram problemas em relação a entrega dos
medicamentos receitados pelos especialistas, pois tiveram de adquirir com os próprios
recursos. Em razão do exposto, a Corte continuará supervisionando o cumprimento desta
medida de reparação.
Acerca da quinta obrigação104 o Estado informou que em março de 2012 publicou em
diário de circulação nacional e no Diário Oficial o resumo da sentença.
Pela informação disponível a Corte entende que o Estado cumpriu totalmente a
obrigação, mas manterá em aberta a obrigação de publicar o resumo oficial da sentença em
um meio informativo de circulação interna das Forças Armadas de El Salvador.
Sobre a sexta obrigação105o Estado informou que reconheceu a responsabilidade pelos
atos no dia 29 de outubro de 2012 no parque "Antonio José Cañas" na cidade de San Vicente,
realizado em uma cerimônia pública com a presença de altos funcionários públicos e pelas
vítimas do caso. Tal ato foi televisionado e transmitido em tempo real por meio do Canal 10
da Televisão Nacional.
A Corte considerou que o ato realizado pelo governo salvadorenho foi apropriado e
proporcional à gravidade das violações e tem efeito na recuperação da memória das vítimas e
no reconhecimento de sua dignidade. Portanto, considerou este ponto resolutivo como
cumprido.
102
3) adotar todas as medidas adequadas e necessárias para a restituição da identidade de Gregoria Herminia
Contreras, incluindo seu nome e sobrenome, bem como demais dados pessoais.
103
4) conceder tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico às vítimas que solicitarem.
104
5) realizar a publicação da sentença.
105
6) realizar ato público de reconhecimento de sua responsabilidade internacional dos fatos julgados.
141
Para a sétima obrigação106 o Estado informou que foram realizadas reuniões com os
representantes das escolas com propostas iniciais. A Corte valorou o fato de o Estado estar
realizando ações para dar cumprimento a presente medida de reparação, mas adverte que a
obrigação permanece em aberto.
Sobre a oitava obrigação107 o Estado informou que iniciou o planejamento para a
produção do documentário e que irá garantir a participação das vítimas e seus representantes
nele.
A Corte valorou as ações até então tomadas pelo Estado, mas alertou para que tome
todas as medidas para efetivar o cumprimento da medida.
Quanto à nona obrigação108o Estado sustentou que a aprovação da Lei de Acesso à
Informação Pública que entrou em vigência em 8 de abril de 2011 garante o acesso à
informações úteis sobre os fatos. No entanto, a Corte entendeu que a informação concedida
pelo Estado é insuficiente para analisar se esta obrigação foi efetivamente cumprida, sendo
mantido, portanto, a supervisão desta medida.
Em relação à décima obrigação109o Estado informou que os valores foram pagos no
ano de 2013. Os representantes das vítimas, por sua vez, afirmaram que o Estado não cumpriu
o prazo determinado pela Corte, sendo necessário que pague os valores correspondentes pelo
período que ficou em mora. A Corte acatou a fundamentação dos representantes determinando
que o Estado indique em que mês irá realizar o pagamento dos valores.
Por fim, a Corte declarou que de 10 obrigações o Estado deu cumprimento total
somente as obrigações 2, 3, 5 e 6. Determinou, por fim, que El Salvador adote as medidas
necessárias para dar efetividade aos pontos pendentes de cumprimento.
3.1.4 Caso 5. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras
A secretaria da Corte de San José recebeu uma denúncia contra o Estado de Honduras
no dia 7 de outubro de 1981 com o relato do desaparecimento de Velásquez Rodrigues. Em
106
7) dar nome a três escolas; uma com o nome de Gregoria Herminia, Serapio Cristian e Julia Inés Contreras;
outra com o nome de Ana Julia e Carmelina Mejía Ramírez e uma terceira com o nome de José Rubén Rivera
Rivera.
107
8) realizar documentário sobre o desaparecimento forçado de crianças durante o conflito armado em El
Salvador com menção específica a este caso.
108
9) adotar medidas pertinentes e adequadas para garantir que a sociedade salvadorenha tenha acesso público,
técnico e sistematizado aos arquivos que contenham informações úteis e relevantes para a investigação das
violações aos direitos humanos cometidas durante o conflito armado.
109
10) efetuar pagamento de indenização por dano material, imaterial para as vítimas e pagar valor relativo às
custas e gastos processuais.
142
várias oportunidades a Comissão solicitou informações sobre os fatos denunciados, no
entanto, diante da falta de resposta do Governo, a Comissão, por força do artigo 42 de seu
regramento, presumiu como verdadeiros os fatos denunciados (CORTE IDH, 1988).
Em 1983 o governo pediu reconsideração, argumentando que estava fazendo todas as
diligências para esclarecer o paradeiro de Velásquez. Muito embora o governo tenha
apresentado informações, a Comissão entendeu que elas não eram suficientes para elucidar o
caso e submeteu a demanda para a Corte IDH no dia 24 de abril de 1986 (CORTE IDH,
1988).
Segundo a denúncia apresentada à Comissão, Manfredo Velásquez era estudante da
Universidade Nacional Autônoma de Honduras, tendo sido preso de forma violenta e sem
ordem judicial por indivíduos da Dirección Nacional de Investigación e do G-2 (Inteligência)
das Forças Armadas e Honduras. Sua prisão ocorreu em Tegucigalpa em 12 de setembro de
1981 durante a tarde (CORTE IDH, 1988).
A Comissão declara que várias testemunhas manifestaram que Ángel Manfredo foi
levado com outras pessoas para a II Estação da Força de Segurança Pública localizadas no
Bairro El Manchén de Tegucigalpa, onde foi submetido a duros interrogatórios sob tortura e
acusado de supostos delitos políticos (CORTE IDH, 1988).
De acordo com o depoimento testemunhal, a prática de desaparições forçadas era
realizada a partir de sequestros que seguiam um mesmo padrão: eram utilizados automóveis
sem placas ou com placas falsas. Os sequestradores utilizavam perucas, bigodes falsos ou
então rostos cobertos. Eram seletivos, pois as pessoas inicialmente eram vigiadas e
posteriormente era planejado o sequestro utilizando micro ônibus. Algumas vezes as vítimas
eram sequestradas em seu domicílio ou então nas ruas.
Um ex integrante das Forças Armadas afirmou a existência de prisões clandestinas e
de lugares selecionados para enterrar os indivíduos que eram executados. Também referiu que
dentro de sua unidade havia um grupo torturador e outro que fazia os interrogatórios.
O depoimento testemunhal e os documentos apresentados no processo demonstram
três pontos principais: 1) a existência em Honduras durante os anos 1981 a 1984 de uma
prática sistemática e seletiva de desaparições, com amparo ou com a tolerância do poder
público; 2) que Manfredo Velásquez foi vítima desta prática, tendo sido sequestrado,
torturado, executado e sepultado de forma clandestina por agentes das Forças Armadas de
Honduras; 3) que nesta época os recursos legais disponíveis em Honduras não foram idôneos,
nem eficazes para garantir os direitos à vida, liberdade e integridade pessoal.
143
Na história da violação aos direitos humanos, os desaparecimentos não são uma
novidade. Seu caráter sistemático e reiterado não era utilizado somente para fazer com que o
indivíduo desaparecesse momentânea ou permanentemente, mas também gerava um estado de
angústia, insegurança e temor. Embora esta prática possua caráter mais ou menos universal,
na América Latina apresentou-se nos últimos anos com uma intensidade excepcional.
(CORTE IDH, 1988)
A preocupação com a prática do desaparecimento de pessoas é demonstrada pela
criação de um Grupo de Trabalho da comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas,
mediante resolução 20 (XXXVI) de 29 de fevereiro de 1980; e constitui uma atitude concreta
de censura e repúdio generalizados por uma prática que já havia sido objeto de atenção no
âmbito universal pela Assembleia Geral, pelo Conselho Econômico e Social, bem como pela
Subcomissão de Prevenção de Discriminações e Proteção às minorias. Os relatórios realizados
por estes órgãos mostram preocupação para que esta prática seja cessada e sejam aplicadas
sanções aos responsáveis (CORTE IDH, 1988).
Segundo a Corte o desaparecimento forçado de seres humanos constitui uma violação
múltipla e continuada de vários direitos reconhecidos na Convenção que os Estados estão
obrigados a respeitar e garantir (CORTE IDH, 1988).
A Corte IDH declarou que Honduras está obrigada a pagar uma justa indenização aos
familiares da vítima e que a quantia desta indenização será fixada no caso de o Estado
hondurenho e a Comissão não encontrem um acordo em um período de seis meses contados
da data da sentença (CORTE IDH, 1988).
Embora não tenha sido encontrado no sítio da Corte IDH o cumprimento da sentença,
foi localizada resolução feita no dia 15 de janeiro de 1988 de que o Sargento José Isaías
Vilorio que iria prestar declaração como testemunha foi assassinado no dia 05 de janeiro de
1988. Também foi recebida informação de que o senhor Miguel Angel Pavón Salazar que
compareceu em setembro de 1987 na Corte de San José para prestar depoimento nos casos
Velásquez Rodríguez, Fairén Garbi e Solís Corrales e Godínez Cruz também fora assassinado.
Segundo informações, outras testemunhas que prestaram declarações à Comissão
Interamericana também sofreram ameaças de morte.
Devido a esta situação, a Corte considerou que o assassinato de testemunhas constitui
uma primitiva e desumana expressão dos mais repudiáveis métodos que ofende a consciência
americana e os valores do Sistema Interamericano.
Dispôs ainda que segundo o artigo 63.2 da Convenção, em casos de extrema gravidade
e urgência no sentido de evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte poderá tomar medidas
144
que considere pertinentes. Deste modo, diante dos assassinatos ocorridos a Corte entende que
o governo de Honduras adote as medidas necessárias para prevenir novos atentados contra as
testemunhas que já compareceram ou tenham sido citadas para comparecem à Corte em
relação aos casos contenciosos de Velásquez Rodriguez, Fairén Garbi e Solís Corrales, bem
como no caso Godínez Cruz. Também obrigou o Estado hondurenho a utilizar de todos os
meios necessários para investigar estes crimes, identificar os culpados e aplicar as sanções
previstas no direito interno.
3.1.5 Caso 6. Caso Goiburú y Otros vs. Paraguay
No dia 06 de dezembro de 1995 e 31 de julho de 1996 a Secretaria da Comissão
Interamericana recebeu denúncias da Global Rights e CIPAE (Comité de Iglesias para
Ayudas de Emergencia) sob o n. 11.560, 11.665 e 1.667, por violações supostamente
cometidas por agentes estatais entre os anos de 1974 e 1977 no Paraguai (CORTE IDH,
2006).
Em 19 de outubro de 2004 no 121º período ordinário de sessões a Comissão aprovou o
relatório de "Admisibilidad y fondo" nº 75/04, mediante o qual recomendou ao Estado a
adoção de uma série de medidas para sanar as violações cometidas (CORTE IDH, 2006).
Em dezembro do mesmo ano a Comissão enviou o relatório para o Estado e concedeu
um prazo de dois meses para que informasse as medidas adotadas para dar cumprimento às
recomendações formuladas. Em 8 de fevereiro de 2005 o Estado requereu uma prorrogação de
prazo para informar sobre as medidas adotadas. Concedida a protelação, o Paraguai
apresentou somente um relatório e solicitou um novo adiamento de três meses (CORTE IDH,
2006).
Novamente a Comissão concedeu prazo, no entanto, em 7 de junho de 2005 após
escutar o parecer dos peticionários, decidiu submeter o caso à jurisdição da Corte diante da
falta de cumprimento por parte do Estado das recomendações (CORTE IDH, 2006).
O processo versa sobre a detenção ilegal, arbitrária, tortura e desaparecimento forçado
dos senhores Agustín Goiburú Giménez, Carlos José Mancuello Bareiro e dos irmãos Rodolfo
Feliciano e Benjamín de Jesús Ramírez Villalba, supostamente cometidas por agentes estatais
(CORTE IDH, 2006).
Segundo a demanda, o senhor Augustín Goiburú Giménez era um médico paraguaio,
filiado ao Partido Colorado e fundador de um grupo político opositor ao ditador Stroessner
Matiauda. No dia 09 de fevereiro de 1977 o senhor Giménez foi detido arbitrariamente na
145
Argentina possivelmente por agentes estatais paraguaios ou por pessoas que atuavam com sua
aquiescência. Após ser capturado, foi levado ao Departamento de Investigação da Polícia de
Assunção, sendo torturado e mantido incomunicável (CORTE IDH, 2006).
Para a Corte Interamericana o desaparecimento de Goiburú Giménez é um caso que
mostra uma ação coordenada entre as forças de segurança paraguaia e argentina dentro da
Operación Cóndor, pois seu desaparecimento marca o modus operandi nos quais paraguaios
desapareciam na Argentina durante a ditadura militar (CORTE IDH, 2006).
Já o senhor Carlos José Mancuello Bareiro era um cidadão paraguaio que estudava
engenharia na Argentina e trabalhava na empresa representante da marca Mercedes Benz no
Paraguai. Foi detido no dia 25 de novembro de 1974 na aduana paraguaia quando iria
ingressar para Argentina com sua esposa Gladis Ester Ríos de Mancuello e sua filha de oito
meses (CORTE IDH, 2006).
O senhor Carlos José Mancuello Bareiro esteve detido em uma pequena cela do
Departamento de Investigações da Polícia, sendo posteriormente levado para a Guardia de
Seguridad onde esteve detido em 1975. O senhor Carlos foi submetido a intensos
interrogatórios e torturas, especialmente nos primeiros meses de sua detenção ilegal, tal como
a prática denominada pileteada (consistente na imersão do preso em uma bacia com água,
sangue e dejetos humanos até o afogamento, em muitas ocasiões) (CORTE IDH, 2006).
Em relação aos irmãos Benjamín e Rodolfo Ramírez Villalba foi apurado no processo
que no dia 23 de novembro de 1974 eles foram detidos. Benjamín na fronteira paraguaia e o
Rodolfo na cidade de Asunción.
O senhor Rodolfo Ramírez Villalba trabalhava no Paraguai em um mercado de
produtos naturais, mas, posteriormente, viajou para a Argentina com o objetivo de estudar e
trabalhar, momento em que conseguiu emprego em uma companhia de perfurações de
petróleo e tornou-se técnico em instalação de poços petrolíferos. Já o senhor Benjamín
Ramírez Villalba era contador público (CORTE IDH, 2006).
Os irmãos eram acusados de pertencer a um grupo terrorista que preparava um
atentado contra Stroessner supostamente liderado pelo médico Goiburú, sendo que estiveram
detidos no Departamento de Investigações (CORTE IDH, 2006).
No dia 25 de novembro de 1974 os irmãos Benjamín e Rodolfo foram detidos e
permaneceram assim durante vinte e dois meses, durante os quais foram submetidos a torturas
e desapareceram de forma similar ao senhor Carlos José Mancuello Bareiro (CORTE IDH,
2006).
146
Para a Corte este caso tem uma particular transcendência histórica, porquanto os fatos
ocorreram em um contexto de prática sistemática de detenções arbitrárias, torturas, execuções
e desaparecimentos perpetrados pelas forças de segurança e inteligência da ditadura de
Alfredo Stroessner, no marco da Operação Cóndor. Os graves fatos marcam o caráter
flagrante, massivo e sistemático da repressão que a população foi submetida em escala
interestatal, pois as estruturas de segurança foram coordenadamente desatadas contra as
nações a nível transfronteiriço pelos governos ditatoriais envolvidos (CORTE IDH, 2006).
Os tribunais nacionais da Argentina, Chile e Espanha que abriram processos penais
contra pessoas envolvidas na Operación Cóndor caracterizaram o seu desenvolvimento como
uma relação ilegítima estabelecida entre governos e serviços de inteligência de diferentes
países (CORTE IDH, 2006).
Foi considerado que a Operación Cóndor era uma espécie de "terror internacional" por
se tratar de uma ação criminosa terrorista organizada e coordenada no interior e exterior.
Inclusive a organização estava dirigida contra a ordem constitucional de cada um dos Estados
membros, ao coordenar ações com o objetivo de fazer ações para suprimir e/ou manter a
supressão das instituições representativas sustentada pelo poder exercido por autoridades
hierárquicas militares, civis e policiais (CORTE IDH, 2006).
Reiteradamente a Corte tem afirmado que o desaparecimento forçado de pessoas
constitui um ato ilícito que gera uma violação múltipla e continuada de vários direitos
protegidos pela Convenção Americana, pois coloca a vítima em um estado sem defesa,
acarretando outros delitos conexos (CORTE IDH, 2006).
A responsabilidade internacional do Estado é agravada quando o desaparecimento
forma parte de um padrão sistemático ou prática aplicada ou tolerada pelo Estado. Trata-se de
um delito de lesa humanidade que implica em um crasso abandono dos princípios essenciais
que se fundamenta o Sistema Interamericano (CORTE IDH, 2006).
Após analisar os fatos e provas constantes nos autos a Corte dispôs, por unanimidade,
que o Estado deve: 1) realizar imediatamente diligências para ativar e completar efetivamente
em um prazo razoável a investigação para determinar as responsabilidades intelectuais e
materiais dos autores dos fatos cometidos em prejuízo dos senhores Agustín Goiburú
Giménez, Carlos José Mancuello Bareiro, Rodolfo Ramírez Villalba e Benjamín Ramírez
Villalba; 2) proceder de imediato a busca e localização das vítimas e se encontrarem seus
restos, deverá entregá-los com a maior brevidade possível aos familiares; 3) em um prazo de
seis meses deve fazer um ato público de reconhecimento de responsabilidade; 4) publicar em
um prazo de seis meses no Diário Oficial e em outros diários de ampla circulação nacional os
147
fatos provados na sentença; 5) promover tratamento adequado para os familiares das vítimas;
6) construir em um prazo de um ano um monumento em memória das vítimas; 7)
implementar em um prazo razoável programas permanentes de educação em direitos humanos
dentro das forças policiais paraguaias, em todos os níveis hierárquicos; 8) adequar a
tipificação dos delitos de tortura e de desaparecimento forçado de pessoas contidas nos artigos
236 e 309 do Código Penal e as disposições aplicáveis ao Direito Internacional dos Direitos
Humanos; 9) pagar os familiares das vítimas no prazo de um ano indenização por dano
material, moral, além de custas e gastos gerados no âmbito interno e no processo internacional
perante o SIDH (CORTE IDH, 2006).
Na supervisão de cumprimento da sentença feito em 19 de novembro de 2009 (três
anos após a sentença), em relação à primeira obrigação110 o Estado alegou que os processos
penais estão tramitando no judiciário. Destacou ainda que não se faz necessária a adoção de
nenhuma medida de caráter diplomático para a resolução do caso (CORTE IDH, 2009).
Quanto à segunda obrigação111, o Estado informou que a Comissão da Verdade e
Justiça investigou diversos lugares onde eram praticadas detenções ilegais, torturas e
execuções extrajudiciais e que em virtude de algumas denúncias feitas em 2009 foram
realizadas investigações para a busca e localização das vítimas desaparecidas pela Equipe de
Trabalho para Medicina Forense, pelo Ministério Público e pela Fiscalização do Meio
Ambiente, os quais resgataram dois restos humanos completos, de sexo masculino, mas que
ainda não foram identificados totalmente, pois a tecnologia para identificação dos ossos
ósseos e a tomada de mostras comparativas dos descendentes deve ter um nível de tecnologia
que hoje o Estado não possui (CORTE IDH, 2009).
Em que pese as alegações do Estado, os peticionários manifestaram durante a
audiência que o Estado paraguaio jamais iniciou alguma busca e localização dos
desaparecidos, posto que os restos ósseos encontrados recentemente foram concretizados
somente por meio do esforço da família Goiburú (CORTE IDH, 2009).
A Comissão valorou o relatório prestado pelo Estado, mas considerou que eram
necessárias mais informações sobre a forma como estão sendo realizadas as identificações dos
restos mortais das supostas vítimas (CORTE IDH, 2009).
110
1) Realizar imediatamente diligências para ativar e completar efetivamente em um prazo razoável a
investigação para determinar as responsabilidades intelectuais e materiais dos autores dos fatos cometidos em
prejuízo dos senhores Agustín Goiburú Giménez, Carlos José Mancuello Bareiro, Rodolfo Ramírez Villalba y
Benjamín Ramírez Villalba.
111
2) Proceder de imediato à busca e localização dos senhores Agustín Goiburú Giménez, Carlos José
Mancuello, Rodolfo Ramírez Villalba y Benjamín Ramírez Villalba e se encontrarem seus restos, deverá
entregá-los com a maior brevidade possível aos familiares
148
A Corte considerou que tendo transcorrido mais de três anos desde a sentença, o
Estado não evidenciou avanços significativos na busca dos restos das vítimas, ficando esta
determinação em aberto (CORTE IDH, 2009).
Quanto à terceira obrigação112 o Estado alegou que a Cancillería Nacional elaborou
uma minuta de texto de reconhecimento de responsabilidade e desagravo, o qual foi aprovado
pelas autoridades do Ministério do Interior, no entanto, a Corte compreendeu que há um
atraso para concretizar esta medida e que após três anos foi realizada apenas uma minuta.
Referida obrigação foi mantida em aberto (CORTE IDH, 2009).
A respeito da quarta obrigação113 a Corte entendeu que a medida foi cumprida
satisfatoriamente.
Sobre a quinta obrigação114, o Estado aduziu que fez carnês por meio dos quais os
familiares das vítimas têm acesso a todos os serviços públicos de saúde e à medicação de
maneira gratuita, no entanto, devido a dificuldade para a entrega dos carnês, a Ministra da
Saúde proferiu comunicado para que os familiares das vítimas retirassem o documento na
sede do ministério.
Sobre esta obrigação os familiares afirmaram durante a audiência que o Estado
ofereceu cartões somente nas últimas semanas de 2009 quando então foi marcada a audiência
pela Corte com o objetivo de demonstrar que estavam cumprindo com o que fora determinado
(CORTE IDH, 2009).
A Comissão congratulou o Estado por ter realizado carnês médicos, porém entendeu
que o atraso para cumprir esta medida é preocupante, pois mais de três anos após a sentença
os familiares todavia não tiveram um tratamento médico e psicológico adequado (CORTE
IDH, 2009).
Em relação à sexta obrigação115 o Estado informou que a municipalidade de Asunción
ofereceu às famílias das vítimas praças públicas para a construção dos monumentos dos
desaparecidos, no entanto, os familiares afirmaram que até o momento da audiência nenhum
monumento havia sido construído e que somente após o Estado ter sido convocado para a
audiência é que passaram a conversar sobre a construção dos monumentos (CORTE IDH,
2009).
112
3) em um prazo de seis meses deve fazer um ato público de reconhecimento de responsabilidade e de
desagravo.
113
4) publicar em um prazo de seis meses no Diário Oficial e em outros diários de ampla circulação nacional os
fatos provados na sentença.
114
5) promover tratamento adequado para os familiares das vítimas.
115
6) construir em um prazo de um ano um monumento em memória das vítimas.
149
A Corte recordou que a sentença dispunha um prazo de um ano para a execução desta
medida de reparação, sendo que transcorridos mais de três anos, não foram verificadas ações
pertinentes e suficientes para a construção do monumento que deve incluir o nome das
vítimas (CORTE IDH, 2009).
Para a sétima obrigação que consistia na necessidade de o Estado implementar
programas permanentes de educação em direitos humanos dentro das forças policiais
paraguaias em todos os níveis hierárquicos, o Estado comunicou que implementou programas
educativos e estabeleceu cursos destinados a oficiais, suboficiais e subcomissários (CORTE
IDH, 2009).
A Corte valorou positivamente os avanços realizados pelo Estado e considerou que foi
dado cumprimento a esta medida de reparação (CORTE IDH, 2009).
Para a oitava obrigação116 o Estado salientou que no dia 20 de maio de 2009 foi
apresentado ao Parlamento um projeto de lei para realizar a reforma normativa. A Corte
valorou a vontade do Estado, mas alertou para que seja dado cumprimento integral a esta
obrigação (CORTE IDH, 2009).
Sobre a nona obrigação117o Estado afirmou que possui a soma da segunda parcela do
pagamento e que foi autorizado a efetuar o pagamento pelo Decreto n. 2.539, somente está
esperando o acordo dos familiares das vítimas acerca da determinação dos valores a cada um
deles. Para a Corte Interamericana o Estado demonstrou o cumprimento da obrigação de
modo satisfatório (CORTE IDH, 2009).
Tem-se, portanto, que o Estado cumpriu integralmente somente três obrigações do
total de sete, demonstrando sua desídia com a sentença da Corte IDH e direitos das vítimas.
Tal situação é confirmada pelo fato de que o Paraguai somente passou cumprir poucas das
determinações somente quando fora marcada a audiência para supervisionar o cumprimento
da sentença. Não houve, portanto, diálogo efetivo (CORTE IDH, 2009).
3.1.6 Caso 7.Caso Loayza-Tamayo vs. Peru
Em 12 de janeiro de 1995 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu
à Corte Interamericana um caso contra a República do Peru, sustentando que no dia 6 de
116
8) adequar a tipificação dos delitos de tortura e de desaparecimento forçado de pessoas contidas nos artigos
236 e 309 do Código Penal e as disposições aplicáveis ao Direito Internacional dos Direitos Humanos.
117
9) pagar os familiares das vítimas no prazo de um ano indenização por dano material, moral, além de custas e
gastos gerados no âmbito interno e no processo internacional perante o sistema interamericano.
150
fevereiro de 1993 a senhora María Elena Loayza Tamayo, professora da Universidad San
Martín de Porres, foi presa junto com o senhor Ladislao Alberto Huamán Loayza, por um
membro da Divisão Nacional contra o Terrorismo da Polícia Nacional do Peru, em um imóvel
localizado na rua Mitobamba, em Lima (CORTE IDH, 1997).
De acordo com a Ley de Arrepentimiento, aprovada pelo Decreto Lei nº 25.499,
Angélica Torres García, conhecida como “Mirtha”, capturada no dia 5 de fevereiro de 1993,
acabou por denunciar a senhora María Elena Loyaza Tamayo. (CORTE IDH, 1997)
Em razão da denúncia o Estado, sem a expedição de ordem da autoridade judicial
prendeu no dia seguinte a senhora Loayza Tamayo por supostamente ser colaboradora do
grupo subversivo Sendero Luminoso (CORTE IDH, 1997).
Durante 10 dias a senhora María Elena ficou proibida de se comunicar com sua família
e advogados, os quais tampouco foram informados do lugar onde estava detida. Sua família
ficou sabendo da detenção somente no dia 8 de fevereiro de 1993 por meio de uma chamada
anônima (CORTE IDH, 1997).
A vítima foi torturada, sofreu ameaças e violentada sexualmente, para que alegasse
formalmente que pertencia ao Partido Comunista do Peru. A princípio negou que pertencia ao
grupo, mas após ser torturada foi levada até à imprensa vestindo um traje de terrorista,
momento em que alegou ter cometido delito de traição à pátria. (CORTE IDH, 1997)
Durante a época da detenção existiu no Peru uma prática generalizada de tratamentos
cruéis, desumanos e degradantes com a finalidade de investigar os delitos de traição à pátria e
terrorismo (CORTE IDH, 1997).
Para Corte IDH a infração do direito à integridade física e psíquica das pessoas é uma
classe de violação que tem diversas conotações de grau e que abarca desde a tortura até outro
tipo de vexames ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, cujas sequelas físicas e
psíquicas variam de intensidade segundo os fatores endógenos e exógenos que deverão ser
demonstrados em cada situação concreta (CORTE IDH, 1997).
O diálogo é verificado quando na sentença a Corte Interamericana cita que a Corte
Europeia de Direitos Humanos manifestou que, ainda que não existam lesões, os sofrimentos
no âmbito moral, acompanhados de turbações psíquicas durante os interrogatórios podem ser
considerados tratamentos desumanos. O caráter degradante se expressa em um sentimento de
medo, ânsia e inferioridade com o fim de humilhar, desagradar e de romper a resistência física
e moral da vítima (Case of Ireland v. the United Kingdom, Judgment of 18 January 1978,
Series A no. 25. párr. 167) (CORTE IDH, 1997).
151
Além disto, esta situação seria agravada pela vulnerabilidade da pessoa ilegalmente
detida (cf. Case Ribitsch v. Austria, Judgment of 4 December 1995, Series A no. 336, párr.
36), pois todo uso da força que não seja estritamente necessário pelo próprio comportamento
da pessoa detida constitui um atentado à dignidade humana em violação ao artigo 5 da
Convenção Americana (CORTE IDH, 1997).
A Corte decidiu que o Estado: 1) tome as medidas necessárias para reincorporar a
senhora María Elena no serviço docente em instituições públicas; 2) assegure à senhora María
o pleno gozo de seu direito à aposentadoria, incluindo o tempo transcorrido desde o momento
de sua detenção; 3) adote todas as medidas de direito interno para assegurar que nenhuma
resolução que tenha sido emitida no processo produza efeito legal perante o foro civil; 4)
obrigação de adotar as medidas de direito interno necessárias para que os Decretos Lei n.
25.475 (Delito de Terrorismo) e nº 25. 659 (delito de traição à pátria) estejam conforme o
disposto na Convenção Americana; 5) investigue os fatos, identifique, sancione seus
responsáveis e adote as disposições necessárias de direito interno para assegurar o
cumprimento desta obrigação (CORTE IDH, 1997).
No dia 16 de junho de 1999 a senhora María Elena Loayaza Tamayo comunicou a
Corte IDH informando que no dia 14 de junho de 1999 a Sala Penal “C” da Corte Suprema de
Justiça da República do Peru proferiu uma resolução declarando “inexecutável” a sentença de
reparações proferida pela Corte Interamericana. Solicitou, portanto, que a Corte de San José
adotasse medidas que assegurassem o cumprimento da sentença. (CORTE IDH, 1999)
A vítima também solicitou à Assembleia Geral da OEA que considere a suspensão do
Peru da Organização até que as obrigações sejam cumpridas, além de ser realizado um
relatório com o objetivo de informar várias Organizações Internacionais sobre a postura do
Estado peruano (CORTE IDH, 1999).
A Comissão informou que é um dever do Estado cumprir com as obrigações
convencionais de boa fé, princípio este disposto no artigo 31 da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados de 1969; que ao ratificar a Convenção Americana, os Estados Partes
contraem obrigações de proteção a todos os indivíduos que estão sob sua jurisdição; que as
sentenças da Corte devem ser acatadas de forma imediata e integral e devem incorporar no
ordenamento jurídico interno dos Estados para serem executáveis (CORTE IDH, 1999).
Em uma nova supervisão de cumprimento da sentença realizada no ano de 2011,118 ou
seja, 14 anos após a decisão, ficou esclarecido o seguinte (CORTE IDH, 2011):
118
Cabe aqui ressaltar que ao longo dos anos 2000 e 2001 algumas resoluções foram feitas pela Corte IDH
solicitando ao Estado o devido cumprimento da sentença.
152
Sobre a primeira obrigação119, o Estado informou que a vítima foi realocada como
docente na Escola Nacional Superior de Arte Dramático a partir do dia 18 de janeiro de 2002,
tendo como jornada de trabalho 15 horas semanais de aulas, no entanto, o contrato foi
rescindido em 01 de agosto de 2006.
A Corte IDH rememorou que a vítima no momento de sua detenção trabalhava em três
instituições educativas, sendo que a senhora Loayza Tamayo somente confirmou que o Estado
cumpriu a reintegração em uma das instituições e ainda está pendente o pagamento de suas
remunerações que deixou de perceber desde o período em que esteve detida. Deste modo, o
Estado cumpriu somente parcialmente esta obrigação (CORTE IDH, 2011).
Quanto à segunda obrigação
120
, o Estado não informou de modo detalhado os
requisitos para que a vítima seja assegurada no pleno gozo de seu direito a aposentadoria pelo
Decreto Lei nº 19990, estando em aberto, portanto, esta obrigação (CORTE IDH, 2011).
Sobre a terceira obrigação121 o Estado juntou cópia da resolução emitida em 28 de
maio de 1999 pela Sala Superior Penal Corporativa Nacional para Casos de Terrorismo, que
declarou inexecutável a sentença proferida pela Sala Especial da Corte Superior de Justiça de
Lima de 10 de outubro de 1994 que condenou a vítima a 20 anos de pena privativa de
liberdade pelo delito de terrorismo; bem como cópia dos ofícios solicitando a anulação dos
antecedentes policiais, judiciais e penais da senhora Loayza Tamayo. Diante das informações
do Estado e do não pronunciamento da vítima de situação contrária, a Corte IDH entendeu por
satisfeita esta determinação (CORTE IDH, 2011).
Acerca da quarta obrigação122 o Estado informou que a reforma legislativa realizada
adequou a legislação interna à Convenção Americana, entretanto, a Corte de San José
entendeu que somente a existência de uma norma não garante por si só sua aplicação de
maneira adequada, sendo necessário que sua interpretação jurisdicional e manifestação estatal
encontrem-se ajustadas com o mesmo fim que objetiva o artigo 2 da Convenção (CORTE
IDH, 2011).
119
1) tome as medidas necessárias para reincorporar a senhora María Elena no serviço docente em instituições
públicas.
120
2) assegure à senhora María o pleno gozo de seu direito à aposentadoria, incluindo o tempo transcorrido
desde o momento de sua detenção.
121
3) adote todas as medidas de direito interno para assegurar que nenhuma resolução que tenha sido emitida no
processo produza efeito legal perante o foro civil.
122
4) adotar as medidas de direito interno necessárias para que os Decretos Lei n. 25.475 (Delito de Terrorismo)
e nº 25. 659 (delito de traição à pátrica) estejam conforme o disposto na Convenção Americana.
153
Na quinta obrigação123 o Estado afirmou que não foi cumprida diante da prescrição
dos crimes. A Corte sustentou que a prescrição somente ocorreu devido as omissões
processuais eivadas de má fé e negligência cometidas. A Corte pugnou, portanto, para que o
Estado informe por quais razões ocorreu a prescrição dos crimes (CORTE IDH, 2011).
Por fim, a Corte IDH entendeu que o Estado somente cumpriu com as obrigações sob
n. 1, 3 e 4 do total de cinco condenações (CORTE IDH, 2011).
3.1.7 Caso 8. Caso Gelman Vs. Uruguay
No dia 21 de janeiro de 2010 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
apresentou uma demanda contra a República Oriental do Uruguai em relação ao caso Juan
Gelman, María Claudia García de Gelman e María Macarena Gelman García (CORTE IDH,
2011).
Os fatos alegados pela Comissão referem-se ao desaparecimento forçado de Maria
Claudia García Iruretagoyena de Gelman em 1976 quando fora detida em Buenos Aires
enquanto estava em avançado estado de gestação (CORTE IDH, 2011).
Presume-se que ela foi transladada ao Uruguai onde teria dado luz a sua filha que fora
entregue a uma família uruguaia. Tais atos a Comissão ressalta que foram cometidos por
agentes estatais uruguaios e argentinos durante a Operación Cóndor (CORTE IDH, 2011).
A Comissão alegou que houve a supressão da identidade e nacionalidade de Maria
Macarena Gelman García Iruretagoyena, filha de María Claudia García e Marcelo Gelman e a
denegação da justiça, consubstanciada na impunidade e o sofrimento causado às famílias
como consequência da falta de investigação dos fatos, julgamento e sanção dos responsáveis
em virtude da Lei n. 15.848, também conhecida como Ley de Caducidad de la Pretensión
Punitiva del Estado promulgada em 1986124 pelo governo democrático do Uruguai (CORTE
IDH, 2011).
A Corte entende que nos casos de desaparecimento forçado de pessoas há violação do
direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, reconhecido no artigo 3 da Convenção
Americana, pois deixa a vítima em uma situação de indeterminação jurídica que impossibilita,
123
5) investigue os fatos, identifique, sancione seus responsáveis e adote as disposições necessárias de direito
interno para assegurar o cumprimento desta obrigação.
124
O Uruguai é Estado parte da Convenção Americana desde o dia 19 de abril de 1985 e reconheceu a
competência contenciosa da Corte nesta mesma data.
154
obstaculiza ou anula a possibilidade da pessoa ser titular ou exercer de forma efetiva seus
direitos em geral (CORTE IDH, 2011).
Os atos cometidos contra María Claudia García podem ser qualificados como uma das mais
graves e reprováveis formas de violência contra a mulher, pois afetaram gravemente sua
integridade pessoal e estiveram claramente baseados em seu gênero (CORTE IDH, 2011).
Os danos lhe causaram sofrimentos físicos e psicológicos, pois teve de permanecer
com sua filha em um centro clandestino de detenção, onde usualmente eram escutadas
torturas infligidas a outros detentos e não sabia qual seria o destino que seria dado a sua filha
quando fossem separadas. Esta situação constitui, pois, uma grave forma de vulneração de sua
integridade psíquica. (CORTE IDH, 2011)
A forma pela qual (pelo menos durante um tempo) foi interpretada e aplicada a Lei de
Caducidade adotada no Uruguai, afetou a obrigação internacional do Estado de investigar e
sancionar os crimes cometidos em face de María Claudia García e de María Macarena
Gelman além do ocultamento de identidade ao impedir que os familiares das vítimas fossem
ouvidos por um juiz, conforme dispõe o artigo 8.1 da Convenção Americana (CORTE IDH,
2011).
Em razão disto, as disposições da Lei de Caducidade que impedem a investigação
e sanção de graves violações de direitos humanos carece de efeitos jurídicos e não pode seguir
representando um obstáculo para a investigação dos fatos que circundam o caso (CORTE
IDH, 2011).
Ademais, o fato de a Ley de Caducidad ter sido aprovada em um regime
democrático não lhe concede automaticamente legitimidade perante o Direito Internacional,
pois a existência de um regime democrático não garante, de per si, o permanente respeito do
Direito Internacional, incluindo o Direito Internacional dos Direitos Humanos (CORTE IDH,
2011).
Deste modo, ao aplicar referida lei (que por seus efeitos constitui uma lei de
anistia) impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção
dos possíveis responsáveis de violações, não cumpre a obrigação de adequar o direito interno
do Estado, conforme dispõe o artigo 2 da Convenção Americana (CORTE IDH, 2011).
As anistias ou figuras análogas tem sido um dos obstáculos alegados por alguns
Estados para investigar e sancionar os responsáveis de violações graves aos direitos humanos.
A Corte Interamericana, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e
regionais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se acerca da incompatibilidade das
155
leis de anistia com o direito internacional e as obrigações internacionais dos Estados (CORTE
IDH, 2011).
A Corte Interamericana já estabeleceu que são incompatíveis as disposições de
anistia, de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade que pretendam
impedir a investigação e sanção dos responsáveis das violações como tortura, execuções
sumárias, extralegais, arbitrárias e os desaparecimentos forçados (CORTE IDH, 2011).
Por fim, a Corte dispôs por unanimidade que: 1) em um prazo razoável o
Estado deve conduzir eficazmente a investigação dos fatos a fim de determinar as
responsabilidades penais e administrativas que a lei prevê; 2) continuar e acelerar a busca e
localização imediata de María Claudia García Iruretagoyena ou de seus restos mortais e, em
seu caso, entregá-los a seus familiares após prévia comprovação genética de filiação; 3)
garantir que a Ley de Caducidad de la Pretención Punitiva del Estado não volte a representar
um obstáculo para a investigação dos fatos; 4) realizar em um prazo de um ano, um ato
público de reconhecimento de responsabilidade internacional pelos fatos do presente caso; 5)
colocar em um espaço do edifício do Sistema de Informação de Defesa (SID) com acesso ao
público, em um prazo de um ano, uma placa com a inscrição do nome das vítimas e de todas
as pessoas que estiveram detidas ilegalmente neste lugar; 6) publicar dentro de um prazo de
seis meses em meio físico e virtual a sentença de mérito e reparações; 7) implementar um
programa permanente de direitos humanos dirigido aos agentes do Ministério Público e Juízes
do Uruguai; 8) adotar em um prazo de dois anos medidas para garantir o acesso técnico e
sistematizado à informação acerca das graves violações de direitos humanos ocorridas durante
a ditadura militar e 9) pagar indenização por dano material e imaterial às vítimas.
Quanto à primeira e terceira obrigações125o Estado informou que em 27 de outubro
de 2011 foi promulgada a Lei n. 18.831 intitulada Pretensión Punitiva del Estado:
Restablecimiento para los delitos cometidos en aplicación del terrorismo de Estado hasta el
1º de marzo de 1985. Também informou que em 2011 o Poder Executivo aprovou a resolução
n. 323/2011 por meio da qual revogaram a aplicação do artigo 3º da Ley de Caducidad.
Além disto, em 27 de outubro de 2011 o juiz penal deu início ao processo pelo
homicídio de María Claudia García de Gelman e que até o momento cinco pessoas estariam
sendo processadas pelos fatos do caso.
125
1) em um prazo razoável o Estado deve conduzir e levar a término eficazmente a investigação dos fatos a fim
de determinar as responsabilidades penais e administrativas que a lei prevê.
156
A Corte observa que na investigação dos fatos do Caso Gelman o Estado iniciou ações
para processar os cinco suspeitos, no entanto, o processo ainda está nas fases iniciais, tendo as
vítimas um acesso restrito ao conteúdo das ações processuais.
Quanto ao decreto feito pelo Estado acerca da Ley de Caducidad, a Corte entendeu
que representa uma vontade clara e concreta de cumprir a sentença e que o Estado adotou
todas as medidas e ações necessárias para que os efeitos que esta Lei produziu durante mais
de duas décadas não representam mais um obstáculo para as investigações dos fatos
constitutivos de graves violações a direitos humanos.
Quanto à segunda obrigação126 o Estado informou que estão sendo realizadas
escavações por uma equipe de antropólogos na busca dos restos das vítimas desaparecidas. A
Corte valorou o esforço do Estado em realizar diligências para identificar as pessoas
desaparecidas, mas continuará supervisionando o cumprimento desta medida.
Com relação à quarta127 e quinta obrigação128 o Estado informou que realizou ato
público no dia 21 de março de 2012 com a participação dos três poderes na presença de María
Macarena Gelman García Iruretagoyena e Juan Gelman. Também afirmou que foi realizada a
colocação no antigo edifício do Servicio de Información de Defensa ("SID") uma placa em
memória das vítimas do processo e todas as outras vítimas do terrorismo do Estado que
estiveram privadas da liberdade. A Corte considerou que os atos realizados satisfazem
plenamente a finalidade imposta na sentença.
Sobre a sexta obrigação129 o Estado informa que publicou a sentença no Diário Oficial
e nas páginas da internet da Presidência da República, Ministério das Relações Exteriores e
no Ministério da Educação e Cultura. Destacou que também foi publicada nos diários de
ampla circulação nacional, como "El país" e “La República" o resumo oficial da sentença. A
Corte valorou positivamente e declarou cumprido este ponto resolutivo.
Quanto à sétima obrigação130o Estado informou que já existem programas de
capacitação em matéria de direitos humanos, sendo que a Comissão interinstitucional dedica-
126
2) o Estado deve continuar e acelerar a busca e localização imediata de María Claudia García Iruretagoyena
ou de seus restos mortais e, em seu caso, entregá-los a seus familiares após prévia comprovação genética de
filiação.
127
4) deve realizar em um prazo de um ano, um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional
pelos fatos do presente caso.
128
5) colocar em um espaço do edifício do Sistema de Informação de Defesa (SID) com acesso ao público, em
um prazo de um ano, uma placa com a inscrição do nome das vítimas e de todas as pessoas que estiveram detidas
ilegalmente neste lugar.
129
6) dentro de um prazo de seis meses o Estado deve publicar em meio físico e virtual a sentença de mérito e
reparações.
130
7) implementar um programa permanente de direitos humanos dirigido aos agentes do Ministério Público e
Juízes do Uruguai.
157
se a incluir tais programas em cursos ou módulos sobre a devida investigação e julgamento
dos fatos do desaparecimento de pessoas, bem como a interpretação do Direito à luz dos
Direitos Humanos.
A Corte constatou que a organização de cursos de direitos humanos destinados a
funcionários do Poder Judiciário e do Ministério Público é insuficiente, posto que não há
informação sobre o caráter permanente do programa, tampouco há o plano de estudos e
conteúdos dos cursos. Portanto, a Corte solicita ao Estado que em seu próximo relatório dê
informações mais precisas e detalhadas com relação ao cumprimento desta medida.
Quanto à oitava obrigação131 informou que está atualizando a investigação histórica
disponível na página eletrônica da Presidência da República do Uruguai, no entanto, a Corte
compreendeu que não há informações precisas e detalhadas sobre o cumprimento desta
medida.
Sobre a nona obrigação132 a Corte constatou que o Estado efetuou os pagamentos da
quantia fixada a título de danos materiais e imateriais, bem como o pagamento das custas e
gastos.
A Corte concluiu, portanto que o Estado deu cumprimento integral às seguintes
obrigações: 4, 5, 6 e 9, ou seja quatro de nove.
A Corte resolveu que a República do Uruguai deve continuar adotando todas as
medidas necessárias para dar efetivo e pronto cumprimento dos pontos pendentes.
3.2 O exemplo da Argentina
Embora o presente capítulo tenha objetivado analisar as decisões proferidas pela
Corte Interamericana e o posterior cumprimento das sentenças por parte dos Estados, faz-se
imperioso relatar a situação peculiar do caso da Argentina.
Referido país sofreu duramente com os crimes cometidos durante a ditadura
militar -
conforme já relatado no segundo capítulo
- entretanto, não foi condenado pela Corte de San José
pelos atos praticados durante este período.
O fato de a Argentina não ter sido condenada internacionalmente deriva dos
grandes avanços legislativos sobre a anistia, pelas investigações e condenações dos militares.
Esta situação é um importante exemplo de como um país pode aos poucos evoluir no processo
131
8) adotar em um prazo de dois anos medidas para garantir o acesso técnico e sistematizado à informação
acerca das graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar.
132
9) pagar indenização por dano material e imaterial às vítimas.
158
de redemocratização sem a necessidade de uma imposição de mudança por meio de sentença
de um Tribunal Internacional. Em razão disto, a Argentina pode ser considerado o país que
mais avançou na matéria referente à justiça de transição na América Latina, no entanto,
destaca-se, que o processo não foi simples de ser conquistado.
Antes de abandonar o poder, os militares promulgaram uma anistia sobre seus próprios
comportamentos, contudo, quando Dr. Alfonsín assumiu o primeiro governo democrático,
criou uma comissão especial chamada CONADEP com a finalidade de recompilar todas as
informações possíveis sobre o destino dos detidos, desaparecidos e de outros crimes
cometidos durante a ditadura. Além disto, mediante a lei 23.040 o Congresso revogou a Lei n.
22.924 (anistia) considerando-a inconstitucional e nula por pretender dar o perdão de crimes
perpetrados pelo governo militar desde 1967 a 1983 (YACOBUCCI, 2011).
De todos os atos do processo de redemocratização o mais significativo foi o
julgamento dos responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura militar. Exemplo
disto foi a condenação de Videla, Massera e Agosti (representantes iniciais de cada uma das
forças armadas no governo de fato). O julgamento pelos juízes da Câmara Federal teve um
valor inigualável tendo em vista que embora as instituições militares ainda tinham um poder
eficaz de reação, avançou democraticamente neste sentido (YACOBUCCI, 2011).
Entretanto, neste meio tempo foram criadas duas leis pelo Congresso argentino
conhecidas como "punto final" (23.492) e "obediencia debida" (23.521) as quais encerravam a
possibilidade de dar prosseguimento ao julgamento penas dos crimes da ditadura. Além disto,
durante o governo do Dr. Menem - representante do Partido Justicialista - foi manifestada a
necessidade de dispor o indulto dos condenados pelos crimes da ditadura. Estes atos fez com
que fossem encerrados os círculos sobre as vias judiciais de progresso para a investigação e
julgamento dos graves delitos ocorridos durante a década de 70 e 80 (YACOBUCCI, 2011).
Para romper com esta situação, a Corte Suprema Argentina causou uma mudança de
paradigma ao pronunciar-se no caso Arancibia Clavel que, a partir do momento em que o país
conferiu hierarquia constitucional aos tratados internacionais sobre direitos humanos (artigo
75, inciso 22 da Constituição) a temática deve ser vista de modo diverso. Já no caso Simon, a
Corte Suprema analisou a validade e eficácia das leis de “obediencia debida” e “punto final”.
O Tribunal entendeu que tais leis apresentavam sérios problemas, pois não seria possível
admitir que as regras de obediência militar pudessem ser utilizadas para eximir a
responsabilidade do conteúdo ilícito das ordens. Sustentou ainda que o direito argentino
sofreu modificações fundamentais que impõem a revisão das leis, com fundamento no artigo
75, inciso 22 da Constituição, o qual não autoriza o Estado a tomar decisões sem observar a
159
possibilidade de persecução penal de crimes de lesa humanidade. Ademais, que o Estado
assumiu em 1994 após a promulgação da nova Constituição uma nova observância ao direito
internacional, sobretudo à ordem jurídica interamericana. Por estas razões, a Corte declarou a
inconstitucionalidade das leis acima citadas para dar efetivo cumprimento aos tratados
internacionais na matéria de direitos humanos (YACOBUCCI, 2011).
Já no caso Mazzeo julgado em 2007, a Corte Argentina declarou inconstitucional o
indulto ao general Riveros que havia cometido crimes de lesa humanidade. (YACOBUCCI,
2011)
De acordo com um artigo publicado por Luiz Flávio Gomes no ano de 2011, a
Suprema Corte da Argentina julgou a invalidade da lei de anistia e quase 500 ex-militares,
policiais e civis estão presos pelos crimes cometidos durante o período ditatorial.
A reabertura de processos por crimes cometidos durante a década de 70 demanda um
grande esforço institucional, notadamente no plano judicial. Foram proferidas importantes
condenações por estes delitos e ainda seguem outras investigações. Desta forma, supera-se
aos poucos a situação de impunidade que haviam sido tomadas contrariando os compromissos
assumidos pela República Argentina. A experiência indica que as respostas institucionais
frente a atos graves de subversão ou terrorismo nunca devem abandonar o caminho do direito
(YACOBUCCI, 2011).
160
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação teve como objetivo analisar se o diálogo entre ordens jurídicas
diversas pode ser considerado um meio para o fortalecimento do Sistema Interamericano e
dos Estados na proteção dos direitos humanos no continente americano.
Para tanto, utilizou-se como teoria base a obra Transconstitucionalismo de Marcelo
Neves, que, em síntese, trata-se de um constitucionalismo relativo à (soluções de) problemas
jurídico-constitucionais que se apresentam simultaneamente em diversas ordens por meio de
conversações (seja por meio da incorporação de sentidos normativos extraídos de outras
ordens jurídicas, pelo interjudicialismo, etc.).
Constatou-se no primeiro capítulo que a maior integração da sociedade mundial
impulsionada –
sobretudo
- pelo advento da globalização, compeliu os sujeitos internacionais a
atentarem-se às várias transformações ocorridas no mundo, tanto a nível global quanto
regional. Tais mudanças foram desde a relativização de conceitos que outrora eram
considerados absolutos até a necessidade de alterações substanciais dos sistemas jurídicos
com o fim precípuo de adequação à nova realidade hodierna.
Com as atrocidades cometidas nas duas grandes guerras mundiais, desencadeou-se um
processo de reflexão dos Estados no sentido de criar mecanismos de proteção aos direitos
humanos, para que barbáries tais como as ocorridas não voltassem mais a sobrevir. É neste
contexto que surge o importante processo de internacionalização dos direitos humanos,
considerado grande marco histórico para a sociedade mundial, devido à afirmação do
indivíduo como sujeito de direito internacional e na criação de sistemas de proteção aos
direitos humanos.
A importância da criação destes sistemas é inegável, sendo que a aceitação das
jurisdições contenciosas por parte dos Estados transforma-se em um grande passo rumo a uma
maior promoção e proteção dos direitos humanos. No entanto, a simples aceitação da
jurisdição de Cortes Internacionais por parte dos Estados não significa dizer que, de pronto,
existirá proteção destes direitos de modo satisfatório.
Por esta razão, é que se objetivou realizar um estudo visando identificar se os Estados
dialogam com os sistemas internacionais, sobretudo após sofrerem condenações.
No segundo capítulo buscou-se realizar um estudo sobre a América Latina, com a
intenção de despertar no leitor a necessidade de ser promovida maior atenção e valorização de
construções teóricas, históricas, culturais e jurisprudenciais da região, bem como de entender,
ainda que de modo breve, os anseios e aspirações aqui existentes.
161
A importância do desenvolvimento deste viés na pesquisa deriva do desconhecimento
que os latinos têm de sua –
nossa
- própria história em seus múltiplos conceitos. Quedar-se
alheio aos nossos problemas resulta na utilização do que é produzido no Norte como
paradigma/modelo, com a consequente legitimação da herança do colonialismo.
Entretanto, para que esta situação seja alterada, faz-se necessário que exista um
reencontro do latino americano com o seu próprio solo cultural e que seja realizada uma
desconstrução do eurocentrismo, porquanto a produção feita no Norte, fora criada para
analisar a realidade nortenha, de acordo com seus problemas e necessidades.
Sabe-se que a realidade histórica e cultural dos países do Norte e do Sul são
consubstancialmente distintas, sobretudo pelo processo de desenvolvimento que tais regiões
tiveram e ainda têm. Não há como comparar um continente que, por exemplo, tem a Grécia
antiga como berço da cultura ocidental e uma América que teve sua cultura dizimada pelo
processo de colonização no século XV.
Deste modo, não há possibilidade de acriticamente aplicar teorias que foram lá
criadas para resolver os problemas aqui existentes, diante de toda uma diferença no processo
de desenvolvimento civilizatório.
Ao realizar tais afirmações, não se pretende ter uma postura absolutamente
negacionista com o que é criado no eixo Europa/Estados Unidos, mas sim, analisar o que é lá
produzido de forma crítica e tendo sempre em mente que vivemos em solo cultural distinto, o
qual possui uma riqueza de conhecimento de la gente que deve ser explorada, mas que se
encontra adormecida diante do esquecimento do latino de que vive em solo latino.
Repise-se, não se pretendeu aqui afirmar que o debate com os europeus não seja
importante. A discussão possui extremo significado, notadamente por serem eles os maiores
contribuintes da dogmática do direito, contudo, é necessário afastar-se do pensamento de que
somente o debate com o Norte é evoluído e desprezar o que é aqui produzido.
Por estes motivos é que o objeto de estudo limitou-se à análise do Sistema
Interamericano (para conhecer a história e realidade aqui existente) e não ao Sistema Europeu
ou Africano, embora se possa aprender muito com tudo o que foi produzido por estes.
Ademais, com a identificação de um ponto comum histórico vivenciado pela região
latina – ditadura militar – foi possível perquirir que, ainda há uma dificuldade de consolidação da
democracia e respeito aos direitos humanos em razão do legado desta época. Diante disto, o
Sistema Interamericano, cujo desenvolvimento ocorreu em meio a este período, possui uma
importância transcendental cujos efeitos são sentidos até hoje.
162
Nesta senda, o terceiro e último capítulo limitou-se a analisar oito sentenças, bem
como a supervisão de cumprimento realizada pela Corte Interamericana de cada uma delas
(exceto do caso Guerrilha do Araguaia, pois a supervisão não se encontra disponível no sítio
oficial). Verificou-se que nenhum dos Estados cumpriu de maneira integral as obrigações
impostas na decisão internacional, mas foi possível identificar um grau médio de
cumprimento dos seguintes países: Bolívia,133 Chile,134 Peru135 e Uruguai,136 e grau mínimo
dos Estados de El Salvador137 e Paraguai.138
Esta ausência de cumprimento foi verificada inclusive em obrigações que seriam
executadas de modo mais fácil -
por exemplo, dar nome a escolas com o nome das vítimas; realizar medidas de atenção à
saúde em benefício dos familiares das vítimas ou efetuar pagamento de indenização tempestivamente
-, isto demonstra que não
está ocorrendo um diálogo de um modo efetivo dos Estados com a Corte Interamericana.
Ressalta-se que tendo em vista a análise ter sido limitada ao estudo de menos de uma
dezena de casos, não é possível afirmar de modo absoluto, que os Estados não dialogam com
a Corte Interamericana. Pelo contrário, a conclusão lograda pela inexistência de diálogo por
parte dos países diz respeito tão somente às decisões relativas às violações cometidas durante
a ditadura militar, porquanto os países insistem em colocar obstáculos para não cumprir o
decisum em sua forma integral.
De outro modo, é possível afirmar que a Corte Interamericana mostra-se aberta ao
diálogo baseado na alteridade, buscando aprender com outros sistemas de proteção aos
direitos humanos e também com as Cortes Constitucionais e legislações dos Estados Latino
Americanos.
Dito de outro modo, após a análise dos casos, é possível dividir a situação
didaticamente do seguinte modo: (1) a Corte Interamericana faz um profundo diálogo com
outras ordens jurídicas, inclusive utilizando precedentes e documentos internacionais como
ratio decidendi e (2) os Estados condenados não demonstram ter uma postura aberta ao
diálogo com a Corte IDH.
Neste momento, torna-se importante fazer uma breve consideração acerca do
comportamento do Brasil neste contexto, haja vista que o diálogo com Cortes Constitucionais
de países latino americanos ou com a Corte de San José é praticamente inexistente.
133
Cumpriu: 4 de 7 obrigações.
Cumpriu: 2 de 4 obrigações.
135
Cumpriu: 3 de 5 obrigações.
136
Cumpriu: 4 de 9 obrigações.
137
Cumpriu: 4 de 10 obrigações.
138
Cumpriu: 3 de 9 obrigações.
134
163
Em verdade, a tradição do direito brasileiro não está pautada no olhar baseado na
alteridade com os países vizinhos. O Brasil está, de fato, de costas para a América Latina no
momento em que venda os olhos para experiências vivenciadas muito parecidas com as suas
nos Estados limítrofes, não somente no que diz respeito às retrações, mas também nos
desenvolvimentos obtidos nas mais diversas áreas.
Agindo assim, o Brasil nega inclusive o preceito constitucional disposto no artigo 4º,
parágrafo único que dispõe: “a República Federativa do Brasil buscará a integração
econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de
uma comunidade latino-americana de nações”.
É possível afirmar que, quiçá o problema seja cultural, no sentido de talvez os
brasileiros não enxergarem que estão na América Latina ou ainda pelo fato de não se
reconhecerem como latinos. A interlocução deve ser realizada inicialmente com seus
semelhantes, sendo que o primeiro passo para realizar tal feito reside na atitude do brasileiro
admitir que é um “ser” latino americano e passar a realizar provocações reflexivas, tais quais:
por que estudar ainda nas matérias iniciais dos cursos de Direito somente a filosofia produzida
por europeus? Por que não há tradição nos cursos de Direito de estudar autores latinos e
julgados das Cortes Constitucionais de países vizinhos? Por que não conhecer a história da
América Latina? Por que não valorizar o conhecimento que é aqui produzido?
A atitude negacionista do Brasil nestes aspectos demonstra que nosso país está de
costas para a América Latina e de frente para o Norte. Ademais, dentro do cotidiano da
técnica jurídica prática é possível verificar que o judiciário brasileiro não realiza o controle de
convencionalidade das leis domésticas que estejam contrárias ao Pacto de San José da Costa
Rica. Esta situação nada mais é do que resultado da inexistência em alguns cursos de
graduação em Direito das disciplinas de direitos humanos e direito internacional.
O estudo desenvolvido pelo professor José Ricardo Cunha139 com magistrados do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro elucida esta situação, pois 84% dos juízes
entrevistados afirmaram que não tiveram qualquer educação formal em direitos humanos e
59% declararam conhecer apenas superficialmente os sistemas da ONU e da OEA. Trata-se,
portanto, de uma invisibilidade dos direitos humanos e do direito internacional.
Portanto, a falta de conhecimento destas matérias, seja devido a uma ausência de
cultura jurídica voltada ao âmbito internacional ou devido a uma postura mais conservadora
139
Cf http://www.surjournal.org/conteudos/artigos3/port/artigo_cunha.htm
164
do direito interno, faz com que as sentenças da Corte Interamericana não sejam cumpridas e
aumente-se em demasia a possibilidade de violações ao Pacto de San José.
O panorama ora relatado pode ser visto com maior concretude após a condenação do
Brasil pela Corte Interamericana no caso Guerrilha do Araguaia, no momento em que alguns
dos ministros do Supremo Tribunal Federal declararam que tal sentença não teria efeitos no
ordenamento jurídico brasileiro.
A postura da Suprema Corte brasileira retrata uma concepção que nega os preceitos do
direito internacional e a obrigação que o país aceitou de cumprir as decisões quando
reconheceu a competência da Corte Interamericana. Por exemplo, o Ministro Marco Aurélio
afirmou que a decisão da Corte da OEA somente surte efeito ao leigo no campo moral, na
prática não tem efeito algum; para o Ministro Cezar Peluso a decisão da Corte IDH somente
gera efeitos no campo do Pacto de San José e não no Supremo Tribunal Federal; já Nelson
Jobim sustentou que a decisão da Corte Interamericana é meramente política e não tem efeito
jurídico.
Ora, não é preciso realizar maiores digressões para se perceber que este
posicionamento é preocupante, sobretudo quando se busca defender a necessidade de
concretização de diálogo.
Neste sentido, ressalta-se que o transconstitucionalismo somente irá ocorrer quando
um Estado passar a admitir que seu ordenamento jurídico possui debilidades e que pode
aprender com a experiência do outro, a partir de uma relação de complementaridade e de
reconstrução de sua identidade, mas sempre de forma crítica para que não seja ocasionada
uma “colonização jurídica”. Entretanto, quando um país não se mostra aberto ao diálogo, a
lógica do transconstitucionalismo queda-se fracassada.
Assim como em 1945 as "consciências" se abriram para uma realidade dos direitos
humanos, faz-se necessário que especificamente no Brasil exista uma abertura também de
consciência ao direito internacional, tanto nos currículos de graduação, especialização e
concursos públicos, para que, aos poucos, esta cultura jurídica que até então está voltada ao
direito interno e ao que é produzido na Europa (posto que, no âmbito do STF é possível
verificar uma maior propensão a estudos de teses e diálogo interjurisdicional com europeus),
realize-se um giro para um olhar mais regionalizado.
Volvendo à discussão acerca das inexecuções das sentenças, mister salientar que a
“culpa” pelo não cumprimento das decisões proferidas pela Corte de San José, não pode ser
atribuída somente aos Estados. Explica-se isto, pois a Corte Interamericana possui
165
mecanismos ineficazes para a cobrança do cumprimento das obrigações impostas no decisum,
ou seja, o poder coercitivo é falho.
Exemplificando. No momento em que um Estado é condenado pela Corte de San José,
esta estipula um prazo para que o país apresente por escrito e documentalmente o
cumprimento das obrigações, sendo aberta a possibilidade para as vítimas ou representantes
realizarem observações nas provas enviadas pelo Estado. Quando a Corte IDH verifica que
houve uma inexecução por parte do Estado, a Convenção Americana prevê a possibilidade de
enviar esta informação para a Assembleia Geral da OEA, onde os Estados membros poderão
utilizar-se de determinados meios para gerar o constrangimento do Estado transgressor para
cumprir suas obrigações, seja por meio de pressão política ou por sanções de caráter
econômico. Em que pese exista essa possibilidade, tal mecanismo ainda não foi empregado.
Deste modo, tem-se, de um lado, que as sentenças da Corte Interamericana são
obrigatórias, mas a própria Corte não possui ou não utiliza os instrumentos existentes para
forçar os Estados a executarem a decisão.
Também não se pretende afirmar que toda e qualquer decisão da Corte Interamericana
seja correta e isenta de críticas, porém, faz-se necessário que exista uma harmonia e
conjugação de esforços dos Estados, organizações internacionais e supranacionais para
garantir os direitos humanos de forma integral e de repará-los quando existir violação. Tratase da interpretação e aplicação do princípio pro homine.
Conclui-se que o diálogo pode ser considerado um meio de fortalecimento do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, no entanto, se em um momento da história os Estados
reuniram-se com o objetivo comum de criar sistemas para a proteção aos direitos humanos - a
partir dos casos estudados no terceiro capítulo
- foi possível aferir que a ausência de comprometimento dos
Estados faz com que não exista a proteção e reparação do que outrora fora idealizado.
É necessário, por conseguinte, desconstruir a ideia de que jurisdição nacional e
internacional são independentes, e sim, concretizar a relação de interdependência para que se
possa efetivar a proteção dos direitos humanos de modo conjunto por meio de uma relação
dialógica.
Torna-se imperioso, portanto, que ocorra uma mudança de paradigmas culturais desde
a base nos cursos jurídicos, porquanto o direito não pode trabalhar somente com a perspectiva
da constitucionalidade. Deve abrir sua cosmovisão para o controle de convencionalidade e
conquistar o habitus de internalização de fontes para buscar mecanismos para a efetivação dos
direitos humanos fundamentais.
166
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