Número 05/06 – Janeiro / Dezembro – 2000 - ISSN 2179 5215 O DESEJO E O SABER Vera Maria de Moura Almeida Resumo O presente artigo trata das relações entre a aquisição do saber escolar e processos inconscientes, ressaltando-se o papel da falta e do desejo, numa perspectiva psicanalítica. Neste contexto, faz-se algumas considerações a respeito da atuação do professor, no sentido de motivar o aluno, através do desejo, na busca do preenchimento da sua falta fundante. Ao longo do tempo, a Psicanálise tem sido considerada um método de tratamento de distúrbios neuróticos e uma teoria explicativa dos processos mentais inconscientes. Ainda que a teoria psicanalítica não se relacione diretamente com a Educação, incessante tem sido a busca de contribuições da Psicanálise para o processo educativo. Desde muito cedo, Freud se preocupava com as relações da Psicanálise com a Educação, apesar de ter deixado poucos escritos que tratem especificamente da Educação. Suas reflexões neste campo encontram-se em íntima conexão com as idéias que compõem a sua teoria e encontram-se diluídas em seus escritos. Reconhecendo a importância dos processos educativos, no entanto, Freud, depois de muita busca, constatou que “educar é impossível”, assim como governar e psicanalisar, uma vez que se sabe previamente que os resultados destas tarefas serão insatisfatórios. Tal impossibilidade não deve, no entanto, levar à idéia de inutilidade da Educação, mas aponta seus limites, indica somente a noção de algo que não pode ser integralmente alcançado. Dirigindo-se a educadores, Freud recomenda que abandonem o discurso tradicional repressor, sem abdicarem da autoridade e reconheçam a função da sexualidade no desenvolvimento da criança. A repressão das pulsões pela coação não conduz ao seu desaparecimento, nem ao seu domínio, mas ao recalque e à predisposição à neurose. Acredita que a Pedagogia, esclarecida pela Psicanálise, possa levar à profilaxia da neurose, compreendendo o efeito nocivo da severidade exagerada e da eliminação do prazer. Livre docente. Doutora em Psicologia da Educação. 47 Número 05/06 – Janeiro / Dezembro – 2000 - ISSN 2179 5215 A educação não poder reforçar a tirania do superego, mas deve permitir a sublimação das pulsões agressivas para objetivos socialmente aceitos. Neste movimento, deixa de ser aliada do recalque e se coloca a serviço da sublimação das pulsões parciais, uma vez que a sublimação também possibilita a satisfação das pulsões sem recalcamento, contribuindo para a prevenção da neurose. É impossível dar à criança liberdade para seguir sem restrições seus impulsos, devendo o educador possibilitar ao educando o equilíbrio entre o prazer individual e as necessidades sociais. A criança deve ser educada para, de acordo com a realidade, poder tanto expressar como dominar a agressividade. Trata-se de encontrar o equilíbrio entre a proibição e a permissão, equilíbrio difícil de ser alcançado, o que levou Betts (in Calligaris, 1994: 53), retomando Freud dizer: “A educação situa-se entre o necessário e o impossível”. A Educação instaura severas inibições que comprometem a relação do sujeito com o aprender e traz restrições às funções do ego, incluindo-se o aprender e de modo especial o aprender escolar. A primeira relação com o saber é de amor, mas na impossibilidade de capturá-lo, a relação passa a ser de ódio, daí gerando dificuldades de aprendizagem. Freud afirma que os processos afetivos e os intelectivos são indissociáveis. A Psicanálise não oferece diretamente nenhuma contribuição para a Educação, no que diz respeito aos métodos pedagógicos e aos conhecimentos formais dos processos de aprendizagem, mas trouxe significativas contribuições para a compreensão das relações entre dificuldades de ajustamento e fracasso escolar. Muitos aspectos da teoria podem se estender à Educação, destacando-se especialmente a noção de desejo, que se situa no centro da teoria e da prática psicanalítica e que é de grande importância para a compreensão do ato de aprender, uma vez que o aprender se dá através do desejo. Nas relações iniciais do bebê com a mãe ocorre a impossibilidade de ela satisfazer plenamente suas pulsões, instaurando-se no bebê uma falta, que se consubstancia na busca de um objeto perdido, designado por Lacan de “objeto a”, que gera o desejo do desejo, o desejo de preencher a falta. O “objeto a” aparece intimamente ligado à falta que nunca se preenche por nenhum objeto real. 48 Número 05/06 – Janeiro / Dezembro – 2000 - ISSN 2179 5215 O desejo estrutura-se como desejo de objetos do mundo, que imaginariamente supririam a falta. Mas, o desejo desliza de um objeto a outro, na busca desse objeto impossível, perdido e nunca mais recuperado. Ao estabelecer a compreensão da falta como o que funda o sujeito e ao conceber o desejo como articulado na dimensão da falta, presentificando a falta e a ruptura dela decorrente, os transtornos da aprendizagem colocam em causa a falta e o desejo, pois a escola trabalha com o sujeito que pensa e ao pensar não deixa de desejar. Tais transtornos apontam para dificuldades maiores, das quais a escolaridade é só uma das manifestações. Fendrik (in Calligaris, 1994) diz que o “impossível de educar” declarado por Freud, provavelmente se liga à impossibilidade de a criança cumprir o “ideal do eu” a ela imposto pelo educador e à dificuldade de lidar com a decepção conseqüente a sua não correspondência. Não é possível passar a vida inteira alienada ao desejo, tentando responder às exigências imaginárias dos ideais, cumprindo todas as aspirações conscientes ou inconscientes de seus educadores, criando-se assim uma condição de absoluto não reconhecimento de seu próprio desejo. Nestas condições, o desejo de saber pode permanecer inibido e a atividade da inteligência limitada talvez para sempre, colocando o sujeito numa posição alienante de submissão. Na busca de um aluno ideal exclui-se a particularidade e a singularidade do sujeito, tanto do aluno quanto do professor. Neste campo, o “desejo não pode aparecer, a não ser de forma deslocada, através da agressividade, da rebeldia ou da apatia” Betts (in Calligaris, 1994: 39). Nestas circunstâncias, a Educação declara um “voto de morte” dirigido à criança. O que falta em geral leva o sujeito à ação, ação que advém do desejo, que quando se fixa num objeto deixa o sujeito inerte. Pereira (in Calligaris, 1994) ressalta que no outro extremo, o nada desejar em relação ao aluno, deixando-o livre de qualquer influência ou coerção não seria menos nocivo, pois inviabilizaria sua estrutura psíquica, impedindo-a de assumir sua condição de desejante, já que a pergunta sobre seu próprio desejo se funda como interrogação sobre o desejo do outro. A Pedagogia autêntica deseja o desejo de aprender do aluno e o desejo do aluno é ser o desejo do professor, ser desejado, reconhecido por ele, de tal forma que aquele que ensina como aquele que aprende sempre serão sujeitos desejantes. 49 Número 05/06 – Janeiro / Dezembro – 2000 - ISSN 2179 5215 Tal reconhecimento só pode ser feito pela palavra, que fazendo laço social, possibilita a constituição de objetos desejantes. O desejo é mediatizado, emerge pela palavra, que funda o desejo, é condição do desejo. O discurso do educador representa para a criança o Outro, universo simbólico, que se constrói a partir de sua inscrição na linguagem. O ensinar se faz na forma discursiva e o falar tem sempre um caráter de poder. Assim compreendida, a Educação implica deveres e débitos com instâncias simbólicas da autoridade, que definem limites para o campo do desejo. O desejo inscreve-se no registro de uma relação simbólica com o Outro, através do desejo do Outro, semelhante no caso do professor. Freud demanda à escola uma sustentação no campo do simbólico, possibilitando ao aluno o interesse pelo mundo da ciência e da cultura, podendo a escola aproximá-lo ou afastá-lo deste mundo, na dependência do professor. O aprender só ocorre quando existe a subjetivação dos significados do Outro, o que implica simultaneamente o incorporar das palavras do Outro e o separar-se delas, tornando próprias as palavras do Outro. Observa-se que cada vez mais a escola vem provocando o desinteresse dos alunos, que não acreditam mais na instituição, o que exige mudanças radicais na relação com o aluno e o saber. Cabe à escola propor conhecimentos significativos para que possa emergir o sujeito desejante, pois o desejo decorre da demanda e leva à ação. Como já foi dito, o “objeto a” enquanto eternamente faltante inscreve a presença de um vazio, que pode ser ocupado por qualquer objeto, sem que nenhum objeto consiga preenchê-lo, não havendo pré-determinação, não tendo um objeto específico que o satisfaça. O desejo é único, indestrutível, inconsciente e escapa ao tempo, jamais podendo ser plenamente satisfeito, sua satisfação será sempre parcial, o que implica um infindável retorno. Este é o espaço do professor, criar situações em sala de aula que possam ativar o desejo do aluno. O professor deve surpreender o saber do aluno, apontar para a falta de saber, e assim levá-lo a interrogar, questionar e provocar a dúvida, que dinamiza o desejo. Fazer deslizar os significantes, possibilitando a descoberta de novos significados, sem fechá-los, permitir o deslizamento de cadeias significantes, que apontam para algo que não se alcança, num eterno recomeçar. 50 Número 05/06 – Janeiro / Dezembro – 2000 - ISSN 2179 5215 Lacan concebe o desejo como sustentado pela fantasia, que o mantém. A realidade organiza-se em função da fantasia, sendo o desejo o elemento articulador do real com o simbólico. O que foi dito até aqui, indica que o professor deve manter a fantasia do aluno com relação ao conhecer, para que o desejo se mobilize, estando intimamente ligado ao prazer. Enfim, a Psicanálise possibilita ao professor aceitar os limites da sua própria ação, quando se reconhece que a frustração é inevitável e reconhece a angústia, a falta e o conflito, onde quer que eles estejam, como inerentes ao ser humano, mas que existem maneiras melhores de se lidar com eles. ABSTRACT The present article talks about the relationship between the acquisition of the scolar knowledge and unconscious processes, emphasizing the role of the lack and the desire, in a psychoanalytical point of view. In this context, some considerations are made about the performance of the te\acher, in order to motivate the pupil, through the disire, in search of filling her lack foundanting. BIBLIOGRAFIA BETTS, Jaime Alberto. Missão impossível? Sexo, educação e ficção científica. In: Calligaris, Contardo et alli. Educase uma criança? Porto Alegre: Artes e ofícios, 1994. p. 47-62. FENDRIK, Sílvia. Clínica de crianças, a aventura da filiação. In: Calligaris, Contardo et alli. 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