Os Labirintos da Traição - Círculo Brasileiro de Psicanálise

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Os Labirintos da Traição: estudo clínico
MARIA BEATRIZ JACQUES RAMOS1
No campo psicanalítico, a escuta do sofrimento e das ansiedades conduz para
diversos tempos, histórias e mitos. O mito antecede e introduz a escrita da clínica, pois
revela a essência do ser humano, conforme expôs Berlinck: “Este sujeito, que não é nem
racional nem agente e senhor de suas ações, encontra sua mais sublime representação na
tragédia grega” (BERLINCK, 1997, p. 124).
Cada sujeito é marcado por conflito e divisão, por um aparelho psíquico permeado
por intensidades e investimentos objetais que produzem sensações de prazer e desprazer,
indicando o que ocorre no mundo interno, sob a ação dos estímulos externos e dos
circuitos pulsionais. Freud, desde os primeiros escritos, baliza a polaridade sujeito e objeto,
atividade e passividade, pulsões do eu e sexual, depois pulsões de vida e de morte.
“Desde o princípio nossa concepção era dualista, e hoje é mais claramente dualista do que
antes, desde que não denominamos as opostas pulsões do eu e pulsões sexuais, mas
pulsões de vida e de morte” (FREUD, 1920, p. 224).
Em 1930, em O mal estar na civilização, Freud afirma a autonomia da pulsão de
morte concebida como “disposição pulsional autônoma, originária do ser humano”. A partir
desse momento, destrutividade e sexualidade passam a ser consideradas com inteira
autonomia uma com respeito à outra. A autonomia da pulsão de morte é consistente e se
situa além da representação, além da ordem, além do princípio do prazer. Ela opera de
forma silenciosa no corpo, não pode ser vista num estado puro, mas quando se funde com
a libido. Esse conceito introduz na teoria psicanalítica a possibilidade de se pensar uma
região concebida como caos pulsional, cuja meta é a agressão, é a desunião, o
desligamento de si mesmo e do objeto, tendo como conseqüência a queda da hegemonia
do princípio do prazer.
A pulsão de morte designa uma categoria fundamental de pulsões que se
contrapõe às pulsões de vida e que tendem para a redução completa das
tensões, isto é, tende a reconduzir o ser vivo ao estado anorgânico.
Voltadas inicialmente para o interior e tendendo à autodestruição, as
pulsões de morte seriam secundariamente dirigidas para o exterior,
manifestando-se então sob a forma da pulsão de agressão ou de
destruição.
As pulsões de vida tendem a constituir unidades cada vez maiores, e a
mantê-las. As pulsões de vida, também designadas pelo termo Eros,
abrangem não apenas as pulsões sexuais propriamente ditas, mas ainda as
pulsões de autoconservação (LAPLANCHE & PONTALIS, 1995, p. 407).
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Psicanalista. Presidente do Círculo Psicanalítico do RGS. Doutora em Psicologia/PUCRS.
1
Para aclarar esses conceitos passa-se ao relato do caso clínico de Ricardo (nome
fictício). Ricardo lembra a tragédia do Minotauro, dos destinos da pulsão, das montagens e
circuitos provocados pela insaciável busca de satisfação e compulsão à repetição, mesmo
diante do risco: quem tudo quer tudo perde.
A tradição ateniense conta que o faraó Minos viu no templo de Creta o deus dos
mares e lhe implorou um grande império, mesmo que tivesse que matar o mais belo animal
encontrado.
Como o touro era um animal idolatrado na ilha, Posseidon fez surgir das águas um
belo touro branco diante dos incrédulos olhos do faraó. Minos, perante tanta beleza e
força, não conseguiu cumprir a promessa e massacrou um touro do próprio rebanho. Em
pouco tempo, a transgressão foi descoberta por Posseidon e o castigo foi implacável. Ele
fez com que a esposa de Minos, Pasifae, se apaixonasse pelo touro branco, tornando-se
sua amante. Desta união nasceu Minotauro, com características de homem e de touro,
destinado a se alimentar de carne humana.
Minos traiu, foi traído e, numa tentativa de salvar os súditos cretenses, construiu um
labirinto nos subterrâneos do palácio para o filho bastardo. Um labirinto no qual ele ficaria
preso para não devorar as pessoas que cruzassem seu caminho, ainda que de tempos em
tempos recebesse jovens, homens e mulheres para se alimentar. Isso aconteceu durante
anos até ser morto pelo jovem Teseu, que se ofereceu para enfrentar o touro, sacrificando o para Zeus.
Teseu era filho de Posseidon e conheceu Ariadne, filha de Minos, a qual
imediatamente se apaixonou por ele e concordou em ajudá-lo a destruir o terrível monstro.
Assim, Ariadne lhe entregou mithos - novelo antigo usado para o preparo da lã - e disse
que se o desenrolasse ao entrar no labirinto conseguiria matar o poderoso e forte
Minotauro, puro impulso devorador, e depois fugir do lugar. Ele seguiu o conselho e
destruiu o monstro, dando fim ao destino dos jovens cretenses submetidos à voracidade
dessa criatura (SALIS, 2003).
O labirinto colocado na vida de Ariadne e Teseu mostra o desafio do
relacionamento marcado por embustes, imprudências e confinamento. Os personagens
transitam em diversos espaços e mostram a profusão do inconsciente, a subjetividade
aportada na ambivalência, já que não pode existir sujeito sem drama (ligação e
desligamento), de modo abstrato ou no vazio.
História clínica
Ricardo, 39 anos, casado, diretor de uma empresa, procura atendimento
psicanalítico, por sugestão da esposa, em 2001. Na época estava abatido e confuso, pois
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enfrentava dificuldades profissionais e sexuais. Na empresa era negligente, não conseguia
manter
as
atividades
de
forma
adequada,
se
dispersava
em relacionamentos
extraconjugais nos horários em que deveria estar trabalhando. Quando saía para almoçar e
visitar clientes, “sempre topava” com uma mulher interessante e bonita para uma relação
sexual. Ele dizia que era viciado em sexo, que qualquer mulher o atraía, via algo bonito ou
interessante para se envolver.
Nunca presenteava as mulheres que encontrava na rua, mas dizia tratá-las com
afeto e sinceridade. Não escondia sua situação familiar e sempre achava uma forma de
retribuir o amor que lhe dedicavam. Descobrindo em cada uma algo especial, procurava
surpreendê-las com flores, cartões, emails, saídas inesperadas. Nos últimos anos
acumulou uma lista de amantes, temeroso que na falta de uma pudesse ficar só. Era uma
forma de se prevenir da angústia de separação e intrusão, por isso encenava o papel de
minotauro sem ressentimento e apreço pelo sofrimento do outro. Ele se afastava, bania as
mulheres que insistiam em tê-lo, recuava de modo agressivo e insensível.
Os pais de Ricardo tiveram quatro filhos. Ele era o mais velho. O único homem e o
primeiro neto por parte de mãe. Sua mãe não trabalhava e o pai era representante
comercial. Estava continuamente longe deles e, mais de uma vez, ao regressar das
viagens, a família descobria que o pai tinha uma amante. Numa das ocasiões ficou noivo e
ia se casar às escondidas, mantinha duas famílias. As brigas do casal eram freqüentes, e
ele assistia a tudo. Foram incontáveis as ocasiões em que a mãe expulsava o pai do quarto
e levava Ricardo para dormir com ela.
Aos catorze anos começou a trabalhar, a se divertir com os amigos, jogar futebol e
sair todos os fins de semana. Iniciou a vida sexual neste período. Com dezesseis anos
começou a dirigir, porque o pai teve um acidente vascular cerebral. Precisou ajudar a mãe
e as irmãs, assumiu a família. Levava as meninas na escola, fazia compras da casa, dividia
as responsabilidades domésticas com a mãe. Com dezoito anos ingressou na faculdade.
Teve muitas namoradas e, quando estava concluindo o curso superior, uma delas
engravidou. Seus pais não queriam o casamento e isso o deixou hesitante. Então foi no
cemitério onde a avó materna estava enterrada e pediu que lhe mostrasse um caminho,
uma saída para a situação. A resposta veio: ele casou.
Antes de concluir a graduação, já trabalhava na área empresarial, progrediu
rapidamente e ajudava financeiramente os pais e as irmãs até elas se casarem.
Após o nascimento da primeira filha, a esposa descobriu que ele tinha uma amante.
Foi uma fase de brigas, ela engravidou novamente, se reconciliaram e, para superar esse
período, a segunda filha nasceu. A partir daí trabalhou muito e construiu um patrimônio
considerável, fez a esposa estudar e exigiu que ficasse em casa cuidando das meninas.
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Seus sintomas tinham um sentido, mostravam anseios neuróticos e não neuróticos,
expressavam conflitos e uma repetição estagnada no campo das representações. A
repetição como um fim no lugar da lembrança, como uma problemática nos campos do
representado, do não representado e do irrepresentável.
A repetição traduz-se, também no social e cultural, como efeito de um
trauma que, ao não encontrar possibilidades de representação e
elaboração, reaparece e atualiza-se na forma de um retorno para o mesmo,
para o idêntico (MARUCCO, 2009, p. 197).
Ricardo se apresentava como um homem que seduzia a todos, que buscava
incessantemente o reconhecimento, mas não se engajava emocionalmente além da
atração. Preocupava-se em receber amor, tinha fome de amor; identificava-se ora com a
mãe, ora com o pai, ora com o casal. Repetia compulsivamente as transgressões
parentais. Não suportava a pressão feminina, não podia usufruir de um relacionamento
estável, sem riscos, e tornou-se vítima das armadilhas que construiu. Ele vivia sob o
domínio da excitação e rejeição e descrevia as façanhas sexuais de forma prazerosa. Para
Christopher Bollas (2000, p. 20):
O perverso é o caráter mais frequentemente comparado ao histérico.
Superficialmente, eles parecem surpreendentemente diferentes em um
ponto: o histérico recalca os conteúdos sexuais, enquanto o perverso os
atua. Ambos operam em uma espécie de estado autoerótico dissociado; o
perverso, remando na direção do objeto de desejo, o histérico,
devaneando-o. Apesar de situados em mundos separados no que tange à
preocupação sexual, podem tombar-se na rua.
No decorrer da análise surgiram manifestações de indecisão, de incapacidade para
lidar com o sucesso, de rancor (não podia ficar satisfeito, nem ser feliz); conflitos
identitários e recusa para assumir outro destino, porque o seu já estava escrito nas falhas
do pai, nas incoerências da mãe e na erotização do sofrimento. Ele vivia entre a violação e
a necessidade de castigo, entre o ter e o não ter.
Durante dois anos, analisamos sentimentos e pensamentos recobertos por
ansiedades e compensados numa sexualidade exagerada e vazia, decorrente das várias
manipulações e artifícios pessoais num infindável retorno ao igual. Vivia iludido e se
deixando iludir, incapaz de aceitar as perdas, negociando o respeito e o afeto com uma
representação distorcida de si mesmo. Alonso (2004) salienta a ambigüidade histérica e
assinala que
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Inseguro, o histérico quer ser amado por todos; em relação às mulheres
ama a todas, e não quer comprometer-se com uma, porque isso implica
aceitar a limitação, renunciando às outras; muitas vezes se vê envolvido
em várias relações amorosas ao mesmo tempo, por não poder escolher
(ALONSO, 2004, p. 181).
Aos poucos as façanhas amorosas diminuíram, concentra-se na atividade
profissional, valorizou um pouco mais a esposa e o relacionamento com as filhas.
Quase no final do segundo ano, falta às sessões (desculpas sobre horários,
atividades em excesso para coordenar) e telefona desmarcando. Mostra resistência ao
tratamento. Ele começa a freqüentar uma casa espírita e mostra a melancolia, a agonia na
falta de um sentido para viver; até a luz do consultório o incomoda. Nega a dor, rivaliza
com as irmãs, com os colegas e repete emoções edípicas sufocadas. Mas insiste em dizer
que está bem e seguro, que não depende do nosso trabalho para compreender seus
conflitos, já sabia lidar com os problemas.
Em janeiro interrompe o tratamento. Em meados de abril, telefona para marcar uma
sessão no mesmo dia. Era início da semana, e combinamos um encontro na quinta-feira.
Quando chega estava abatido. Seu olhar era vazio, parecia “perdido”, pela primeira vez
chora. Seu casamento esta em crise. A esposa quer se divorciar, não suporta viver com
ele. A possibilidade de perder o objeto está na origem de sua dor, assim como a ansiedade
de separação não dominada por ele.
Ricardo descobre que não pode ficar sem ela, tem falhas, não consegue dar o que
ela precisa, suas traições o afastaram da convivência familiar. Sempre manteve uma vida
sexual ativa com a mulher e os cuidados com as filhas, não deixando lhes faltar nada, mas
tinha errado e não suportava a separação. Nesse momento era um ser de expiação, preso
no labirinto. Queria o perdão e para isto não media esforços.
Ele retorna ao tratamento porque se sentia desorientado no trabalho e na vida
amorosa, queria desesperadamente reconquistar os laços familiares. Ficava mais tempo
em casa, levava as filhas à escola. Consegue organizar um horário para atender as
mulheres que ama (esposa e filhas). Conta que a esposa começou a trabalhar numa
academia: um hobbie que ele apóia. Ela queria isso, mesmo gastando mais do que
ganhava (R$ 400,00 por mês), mas dinheiro não é problema. Ele continua sustendo seus
gastos, contas bancárias e cartões de crédito. Todos os esforços valiam para reconquistála.
Numa sessão relata que saíram no fim de semana, levou-a na igreja que casaram,
acendeu uma vela, prometeu ser fiel e companheiro, ficar mais tempo perto dela. Eles
voltam para casa e passam o fim de semana transando. Porém, isso não é suficiente para
a reaproximação do casal. Ela não estava feliz, rejeitava-o.
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Ricardo procura razões para justificar a insatisfação da esposa e encontra motivos
para a separação. Mexe no seu celular, descobre ligações para um mesmo número e
chegou num personal trainer. Fala com ele e obteve a resposta que procurava: indícios de
que a esposa o traía.
Em seguida muda, parecia aliviado, um Fênix ressurgido das cinzas com novas
plumagens e cores. Aluga um apartamento, e a filha mais velha vai morar com ele. Vende
o carro da ex-esposa e fica sustentando as filhas. Sai para Gramado no fim de semana,
com uma mulher da sua lista. Pretende manter esse envolvimento, pois ela se mostra
companheira e compreensiva. Está do seu lado, pronta para atendê-lo. Conta à mãe sobre
a separação e ela o incentiva, dizendo que não precisava viver humilhado por uma mulher
que não sabia valorizá-lo.
Ricardo almeja aprovação. A confusão dos limites o impede de reconhecer a
realidade psíquica e apreender a realidade externa. Dessa forma se mantém na lei de
talião, incapaz de suportar a própria dor e o sofrimento que confere ao outro.
Ele não tolera as interpretações transferenciais (a angústia fomenta a identificação
projetiva e a negação) e interrompe a livre associação. Na transferência aparece o
recalcado, o que não é falado é atuado, ele não consegue viver dentro da própria pele.
Sobre isto, Katz escreve:
A transferência sai do campo dos acontecimentos genéricos da vida para
situar-se na gênese da teoria e da prática psicanalíticas. [...] Assim, ao
mesmo tempo em que está no lugar de criador da teoria de como o
simbólico se historicisa, o psicanalista pode participar dessa nova história
[...] o psicanalista é parte constitutiva necessária da transferência (KATZ,
1992, p. 46-48).
Passado um tempo, vem à sessão com um ar de vencedor, de sossego interior,
portava uma aliança no dedo. Ele e a esposa se reconciliaram. Havia duas noites dormiam
juntos na casa do casal. Ia levá-la num apart hotel. Prepara o ambiente, compra
espumante, flores e encomenda comida chinesa. Ricardo impôs que ela saísse da
academia. Ele se fortalece, volta a ser uma usina dorme duas horas por dia, o resto do
tempo se exercita para tornar-se mais atraente e jovem.
Eles vão morar juntos, mas reavalia o casamento faz muitas críticas e humilha a
esposa. Quer minha opinião, espera respostas. Eu lhe devolvo mostrando a simulação, o
vazio, a aflição. Sem respostas, mas com questionamentos, eu aponto à dissociação, a
onipotência, a identificação projetiva (repudia a mulher, porque representa uma parte que
não suporta em si mesmo). Penso que seu desejo em receber interpretações é parte de um
enigma, uma força que empurra o outro a formular uma idéia e transmiti-la, por vezes sem
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tempo de elaborá-la na própria mente. Ricardo manipula, deseja alterar o tempo e o
espaço no setting. Tempo e espaço sobrepostos na sua história desde pequeno.
Emoções primitivas como raiva, desilusão, inveja, exclusão e ciúme predominam na
vida desse homem. Na meninice dormia com a mãe toda vez que o pai se afastava,
assumia compromissos derivados da fragilidade paterna, mas ela o apartava quando não
tinha mais interesse nele. Desse modo ele vivia, obtinha vantagem e aprendia a mentir
como forma de contar a verdade.
Em novembro de 2004 suspende o tratamento e comunica que um colega vai me
procurar. Após alguns meses o colega de Ricardo telefona, mas essa é outra história...
Alguns apontamentos
A realidade psíquica é a essência da psicanálise. O contato com cada paciente nos
coloca em situações inusitadas. Não existe análise fácil ou simples.
No setting o trabalho feito entre e depois das sessões é tão importante quanto o
trabalho nas sessões. As fantasias inconscientes nos habitam e precisamos conhecer os
limites do nosso ofício para ouvir e responder ao outro que está diante de seus próprios
limites. Com cada paciente nos tornamos um analista que ainda não fomos, porque não há
roteiro, mas rotas que apontam direções.
O analista escuta, vê e sente durante a sessão, se entrega a memória inconsciente
e a atenção flutuante, sem dirigir a observação para nada em particular; litiga com o amor e
o ódio na relação transferencial. O que escuta é uma história cujo significado é
reconhecido quando contem a influência consciente.
A escuta analítica, portanto, não se refere apenas ao conteúdo das palavras
dos pacientes, mas também, e mais importante, à força psíquica do seu
discurso, que expressa o que provém do inconsciente. A temporalidade que
é então introduzida não se manifesta apenas na sequência das sessões,
mas nas camadas múltiplas, sobredeterminadas, do espaço psíquico que se
expressam em cada sessão (PERELBERG, 2009, p.183).
No contexto analítico padrões contrastam e emergem em cada encontro. E, nem
sempre estamos preparados para o inquietante, para a compulsão à repetição, para a
interrupção da atenção flutuante e, por vezes, seu bloqueio. Na psicanálise como na leitura
de um livro cada página pode modificar a compreensão das páginas anteriores, cada linha
pode mudar o sentido da história.
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O mais preocupante nesse ofício é que o analista e o paciente que aparecem em
cada dia não são os mesmos do dia anterior. Em cada sessão se inicia uma exploração do
mundo interno do paciente e do analista.
O tempo é o agora (presente) e o então (passado). A essência psicanalítica repousa
nesse duplo registro. A verdade é atemporal, o inconsciente é atemporal. Com seu método,
Freud inventou a possibilidade de um espaço em que a bitemporalidade pudesse se
desenvolver.
Para Freud “os casos de maior sucesso são aqueles nos quais se procede sem
nenhum propósito em vista, em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova
reviravolta e sempre se defrontar com a mente aberta, livre de quaisquer suposições”
(FREUD, 1912, p. 128).
A técnica freudiana instiga o encontro com o infantil. Um encontro para que o
paciente comunique tudo que lhe vem à mente, do mesmo modo que o analista se rende
ao próprio inconsciente em sua capacidade de ouvir. Na prática se verifica que no
momento seguinte de uma sessão, ou no dia seguinte, ou depois de um tempo algo que se
passa no processo analítico se esclarece. O ofício do psicanalista é árduo, é transferencial,
já que passado e presente se desdobram no aqui e agora numa complexa rede afetiva,
ideativa, de memórias e imagens construídas na experiência entre analista e analisando ao
desenrolar os fios de Ariadne.
Referências:
ALONSO, Silvia; FUKS, Mario. Histeria. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
BERLINCK, Manoel Tosta. O que é psicopatologia fundamental. Psicanálise e
Universidade, São Paulo, 7, (115-131), 1997.
BOLLAS, Christopher. Hysteria. São Paulo: Escuta, 2000.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário de Psicanálise. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1995.
FREUD, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. (1912).
Obras completas volume 10. Tradução: Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). Obras completas volume 14.
Tradução: Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização (1930). Obras completas volume 14.
Tradução: Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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KATZ, Chaim Samuel. Freud, O “caso Dora” e a histeria. In Katz, C. S. (ed.). A histeria, o
caso Dora: Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Imago. 1992, p. 11-99.
MARUCCO, Norberto. Entre a recordação e o destino: a repetição. A repetição entre
recordação e destino. Livro Anual de Psicanálise, XXIII. São Paulo: Escuta, 2009.
PERELBERG, Rosina. Espaço e tempo na escuta analítica. Livro Anual de Psicanálise. A
repetição entre recordação e destino. São Paulo: Escuta, 2009.
SALIS, Viktor. Mitologia viva. São Paulo: Nova Alexandria, 2003.
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