PRÁTICAS, PRECEITOS E PROBLEMAS ASSOCIADOS À

Propaganda
PRÁTICAS, PRECEITOS E PROBLEMAS ASSOCIADOS À ESCASSEZ DA
ÁGUA NO VALE DO JEQUITINHONHA, MINAS GERAIS
Eduardo Magalhães Ribeiro1
Flávia Maria Galizoni2
Lilian Oliveira Daniel3
Eduardo C.Barbosa Ayres4
Luiz Carlos D. Rocha5
George Armando Gomes6
1. Tema, objeto e método
A partir do momento que manifestaram-se os sinais da escassez de águas, a
sociedade brasileira começou a preocupar-se com seu uso, regulação e custo; isto
implicou em debates que tem envolvido, com participação desigual, diversos grupos
sociais. Alguns resultados destes debates já apareceram, entre eles, uma nova legislação
sobre águas em 1997 - a anterior datava de 1934 - e uma certa difusão dos comitês de
bacias hidrográficas, organizações incumbidas de regular uso das águas, construir
acordos locais e disciplinar a utilização dos recursos hídricos. Estes comitês, que são
instâncias localizadas e, por definição, participativas de regulação do uso dos recursos,
tem prosperado rapidamente nalgumas regiões, envolvendo interessados, mobilizado
grupos e sedimentado acordos; em geral, tem originado mais participação nas regiões
onde é maior a escassez de água para usos diretamente econômicos (irrigação,
barragens) e mobilizado mais interesses empresariais que propriamente do conjunto da
sociedade civil; aqueles, organizaram-se mais rapidamente em função da necessidade,
às vezes imediata, de disciplinar o consumo (Agroanalisys, 1998; Ortega, 1998; Hogan
e outros, 1998).
Legislação sobre recursos hídricos e comitês de bacia, no entanto, são
formulações genéricas; são passos iniciais para criação de instâncias normativas para
uma questão que promete ampliar-se, pois existem ainda como regulamentos e
instâncias gerais. Neste ponto, então, é importante destacar dois aspectos associados aos
usos dos recursos hídricos.
1
Economista, professor da Universidade Federal de Lavras, MG, DAE/UFLA, CP 37, CEP 37.200.000.
Antropóloga, doutoranda do IFCH/Unicamp, e-mail: [email protected]
3
Acadêmica da UF de Lavras, MG, Administração.
4
Acadêmico da UF de Lavras, MG, Agronomia.
5
Acadêmico da UF de Lavras, MG, Agronomia.
6
Acadêmico da UF de Lavras, MG, Engenharia Agrícola.
2
12
Primeiro, vigora uma certa tendência a se acreditar que impactos ambientais
podem ser generalizados e comuns a todos os grupos sociais, podendo assim ser objeto
de prescrição normatizadora. Mas ocorre, como observa Sigaud (1992), que um
fenômeno geral - como barragem, seca periódica ou escassez permanente - tem
rebatimentos desiguais sobre agentes diferentes, e a generalização da idéia de impactos
ambientais é arriscada, pois públicos variados tem inserções e relações diversas com um
mesmo ambiente e recursos. Assim, sendo grandes as malhas de filtragem usadas na
legislação e comitês, deixam escapar as situações específicas, os interesses e
negociações particularizadas que envolvem população, território e ambiente. Ambientes
específicos originam sistemas de produção e manejo específicos; por consequência,
produzem também diferentes percepções, sentimentos e efeitos de escassez,
consequências diversos sobre populações localizadas. Por isso, camponeses que
conservam uma relação estreita com o meio, envolvendo consumo e extração, podem
ser atingidos pelos fenômenos coletivos de maneira não apenas mais dura, mas,
também, mais complexa que por exemplo, o efeito do mesmo fenômeno sobre
populações urbanas ou menos umbilicalmente vinculadas ao ambiente.
O segundo aspecto a ser considerado é que esforços e políticas de defesa
ambiental quase sempre foram dirigidos para enfrentar impactos de grandes projetos:
barragens, canalizações, mineração. No entanto, como observam Paula e outros (1997),
tem sido muito mais difícil agir em relação aos pequenos usuários, que operam com
modesta escala de consumo e podem, acumulando-se, produzir ações de grande forte
pressão sobre meio e recursos.
Este artigo procura investigar como pequenos consumidores de água, que
realizam pequeno e específico consumo, percebem e utilizam este recurso. Este objetivo
geral é dividido, nas páginas seguintes, em outras ordens de preocupação. Procura,
primeiro, analisar a maneira como população camponesa do vale do Jequitinhonha usa e
percebe a água; segundo, compreender de que formas a escassez de água reflete sobre
estas populações; terceiro, analisar porque os interesses de camponeses não se
mobilizam em torno do tema água, mesmo sendo eles usuários especiais, cuja vida e
produção estão intimamente associados à disponibilidade do recurso, e, quarto, analisar
em que medida a forma como se apresenta a legislação e agências de água encontram-se
com os interesses de agricultores familiares.
A pesquisa que originou este trabalho foi realizada em janeiro/fevereiro de
2.000, no município de Turmalina, município do alto Jequitinhonha, Minas Gerais,
como parte de um programa de cooperação em educação ambiental desenvolvido em
parceria pela Universidade Federal de Lavras, de Lavras, Sul de Minas Gerais, e Centro
de Agricultura Alternativa Vicente Nica - CAV -, de Turmalina, Nordeste de Minas
12
Gerais7. O centro urbano de Turmalina foi atingido por violento racionamento de água
em 1998/1999 em virtude do secamento do córrego abastecedor; ao mesmo tempo,
várias comunidades desde 1998 tem sido abastecidos na estação seca (maio/outubro)
por caminhões-pipa da prefeitura. A pesquisa envolveu participação de estudantes da
UF de Lavras e lavradores e técnicos do CAV, que realizaram entrevistas orientadas por
um roteiro com famílias de lavradores em cinco comunidades rurais do município. Tal
pesquisa nasceu das discussões que o CAV anima nas comunidades rurais, que muitas
das vezes esbarram no recurso água. O objetivo do roteiro de pesquisa, então, era
coletar informações sobre uso e apropriação da água nas comunidades, perceber a forma
como agricultores constróem a idéia de problema ambiental, analisar a presença de
conflitos associados ao uso de água; estas informações deveriam ser utilizadas para o
CAV formular uma metodologia de educação ambiental relacionada ao tema recursos
hídricos.
Foram selecionadas comunidades situadas nas quatro microbacias do município
(rios Jequitinhonha, Araçuaí, Fanado e Itamarandiba), e, dentro destas, famílias que
apresentassem diferentes relações de consumo, distância e disponibilidade de água.
Estudantes e lavradores reuniram-se, entrosaram-se e capacitaram-se em suas distintas
áreas de conhecimento; em seguida foram formadas duplas de pesquisadores que
entrevistavam 3 a 4 famílias; em cada comunidade. Ao fim de cada dia de entrevistas
individuais e dinâmicas de reuniões com as comunidades, os pesquisadores reuniam-se
para debater as observações realizadas e dados coletados.8
Em relação ao método, duas observações ainda precisam ser realizadas.
Em primeiro lugar, o conceito de microbacia hidrográfica foi importante, mas
não central na realização deste estudo. A microbacia é unidade geográfica relevante,
mas sua operacionalização na pesquisa de campo é complexa, porque envolve outras
interveniências, que muitas vezes podem ser externas a ela - culturais, econômicas -, o
que às vezes converte este conceito em limitante ao estudo. De acordo com Paula
(coord, 1997: 258), é preciso que "as bacias sejam consideradas como sistemas
'multiníveis' que incluam água, solo e compoentes sócio-políticos internos e externos.
Dessa forma, uma 'bacia' característica seria a sobreposição de sistemas naturais e
sociais. O sistema natural estaria definido nas bases aquáticas e terrestres (fauna,
flora, recursos aquáticos e minerais). O sistema social determinará como essas bases
serão utilizadas."
A segunda informação importante diz respeito à apreensão das idéias e
representações associadas à água. Como água é recurso natural primordial, carregado de
7
Este projeto de cooperação foi financiado em 1999/2000 por dois patrocinadores distintos: FENEAD e
Universidade Solidária.
8
Os autores agradecem às preciosas indicações e lições recebidas dos técnicos do CAV - João Antonio
Gonçalves, José Murilo Alves dos Santos, Vicente Ferreira e Stefan Kramer - e dos lavradores-monitores
que participaram da pesquisa: José Maria de Azevedo, José Mateus de Andrade e Valdemar Gomes
12
significados e símbolos sociais, torna-se um conceito muito difuso, as pessoas a
percebem apenas tangencialmente e carregam-na incorporada à cultura e à vida. Neste
sentido, são a uma primeira vista imperceptíveis os aspectos culturais e econômicos a
ela associadas; eles tendem a fazer parte de uma "segunda natureza", que se expressa tão
corriqueiramente que escapa nas entrelinhas da conversa entre o pesquisado e o
pesquisador. Mesmo nas situações de escassez, água dificilmente ganha um recorte
destacado, pois se a escassez torna-se norma, incorpora-se às rotinas do cotidiano, à
vida, à cultura. Por isto na pesquisa buscou-se, mais que analisar a idéia de escassez,
perceber os usos e os usuários; dessa maneira na descrição das rotinas o lugar da água
sobressaia quase naturalmente embutindo, limitando ou recriando perspectivas de
atitudes dos lavradores em relação ao recurso.
2. Águas no alto Jequitinhonha
A paisagem do alto Jequitinhonha é marcada por chapadas, intercaladas por
profundas grotas, onde a terra é partilhada e vivem agricultores familiares. Eles
exploram a terra em sistema de pousio aliado ao extrativismo, produzindo alimentos
básicos, criando animais e, na estação seca, beneficiam produtos como mandioca para
produzir farinha e cana-de-açúcar para produzir cachaça e rapadura.9
Nas comunidades rurais do alto Jequitinhonha a nascente de água e o córrego
são referências importantes para a organização da sociedade e dos sistemas de
produção.
Inicialmente, córregos e nascentes servem como referência na sociabilidade, na
identidade, na delimitação do território e localização da população. Na região os
camponeses se localizam e, às vezes, se denominam, por morarem em certas
comunidades, que por sua vez buscam sua denominação em córregos: Zé do Socorro da
[comunidade do córrego de] Canabrava; Zé Antônio [ da comunidade do córrego] do
Degredo; Valdemar [ do córrego ] da Pindaíba. Além disso, estes lavradores localizam
suas casas em torno dos cursos dágua, buscando no córrego um elemento importante na
definição do local de construção. Neste particular, é importante destacar, como
observou Galizoni (2000) que a distância da água pode ser fator de exclusão de
herdeiros que a família não quer dotar de terra. De outro lado, os "terrenos" das famílias
de agricultores são preferencialmente recortados levando em consideração "as águas
vertentes", isto é, a posição em relação ao córrego; esta área de testada é fundamental
para garantir acesso, reprodução e sobrevivência; indica também uma forma de
distribuir e regularizar o acesso à água (Graziano, 1986; Ribeiro, 1997).
9
Sobre campesinato e sistemas produtivos no alto Jequitinhonha consultar Ribeiro (1996) e Galizoni
(2.000).
12
De outro lado, córregos e nascentes são importantes referências para o sistema
de produção, na medida que influem na condução da horta doméstica, na existência ou
não de regadio e criação de animais. A horta garante a complementação alimentar da
família: produz os carirus (folhas) e os legumes na estação seca, e os lavradores as
localizam perto das águas, para facilitar seu emprego. O regadio também localiza-se à
montante das águas, e os lavradores fazem canalizações - as águas tiradas - que a
conduzem por gravidade até os locais onde são feitos os plantios, as chacrinhas
geralmente de feijão da seca, que são irrigadas por pequenos sulcos intercalados. A
disposição da água no terreno da família também influi na criação de animais, que terão
maior ou menor acesso às mangas de pasto dependendo da posição do córrego ou do
rego dágua. Dessa maneira a condição de agricultores combina-se, em boa parte do ano,
com a condição de irrigantes.
Por consequência, a água é uma referência para a renda da família, pois tanto os
produtos dos animais, quanto da horta e da chacrinha são importantes bens de comércio,
e são levados na feira de sábado, que em Turmalina é exclusiva para agricultores
familiares. A feira representa um espaço de socialização, e, ao mesmo tempo,
oportunidade da família realizar trocas e garantir parte do orçamento monetário que
auxilia a sobre vivência numa economia de pouca liquidez.
Ainda, as nascentes são referências para organização do trabalho, principalmente
o feminino, já que em torno delas ou do curso dágua localizam-se as famílias, e os
sistemas de captação são organizados com vistas a economizar ao máximo os trabalhos
de abastecimento doméstico e fornecimento de água para horta, regadio e animais.
Assim, as famílias procuram dedicar mínimo tempo ao trabalho de captação do recurso,
que consiste maioria das vezes em regos de água tirada, que saem da vertente mais
elevada que a casa, passam nos seus fundos abastecendo cozinha e os outros usos
domésticos, passando sua sobra, a seguir, aos animais de terreiro - galinhas e porcos -,
chegando às hortas ou às chacrinhas de regadio, sobrando enfim para os grandes
animais de trabalho ou criação.
3. A percepção da água e da escassez
No município de Turmalina, principalmente na área urbana, ocorreu uma grande
falta de água em 1998/99, em decorrência do secamento do ribeirão Santo Antônio.
Quando o problema manifestou-se na cidade, porém, já era frequente há muito tempo
em diversas comunidades rurais. Na cidade o problema foi paliado com caminhõespipas, que ofereciam água coletada do rio Araçuaí, num ponto distante 15 quilômetros.
Nas comunidades rurais a situação era mais complicada porque vinha se agravando sob
a forma de desaparição de córregos, secagem de nascentes, o que converteu o Sindicato
12
de Trabalhadores Rurais e o Centro de Agricultura - que atuam em estreita relação com
os lavradores - em primeiros interlocutores das reclamações e, por consequência,
pioneiros no levantamento do que está vindo a ser chamado de problema da água.
Em algumas comunidades a prefeitura municipal colocou carros-pipa para
abastecimento regular e regrado, em outras foram colocadas bombas de captação das
águas de rios; soluções precárias e, conforme se verá, insatisfatórias.
O que se nota em campo é que a população rural tem uma crescente
sensibilidade para o problema de água, que manifesta-se de várias maneiras. A primeira
delas é pela escassez, pois em alguns lugares as nascentes, córregos e ribeirões secos
obrigaram a população a usar a água dos caminhões. Noutros casos, as nascentes
minguaram bastante, a ponto das pessoas fazerem rodízios para coletar água em
nascentes, algumas delas só de 3 em 3 dias, e apenas para consumo doméstico; nestas
casos, não há possibilidade de tomar banho todo dia, e as pessoas acabam sendo
obrigadas a tomar banho todas no mesmo lugar, isto é, próximo à nascente. Noutros
casos, as pessoas das comunidades recebem a água do rio bombeada, mas manifestam
grande repulsa pela sua qualidade; acreditam que ela é suja e imprópria, mas não tem
escolha, "não tem para onde correr", como dizem os lavradores. Nesta situação crítica
que vivem alguns, várias das práticas e sistemas produtivos foram abandonados: o
consumo humano passou a ser regulado, em muitos lugares reduziram o número de
animais de cria e terreiro, muitas famílias foram obrigadas a parar de fazer horta.
Neste ponto, porém, é preciso fazer duas ressalvas: a escassez não é generalizada
e, tampouco, é individualizada. Dadas as diferenças de uso da terra e conservação de
recursos, dadas coberturas vegetais e disponibilidade de nascentes, algumas grotas são
mais privilegiadas em relação aos recursos hídricos, e, embora seus moradores
manifestem preocupação com a crescente redução dos níveis de água, sentem-se mais
ou menos à margem de uma crise que percebem crescer; o que os leva a desenvolver
uma conciência aguda da finitude dos recursos hídricos. De outro lado, boa parte dos
recursos naturais das comunidades rurais do alto Jequitinhonha - terra, plantas, madeira,
lenha, minérios e água - são domínios coletivos (Ribeiro, 1997; Galizoni, 2000), o que
vai resultar numa abundância ou escassez quase sempre partilhada, comunitarizada.
Assim, a população rural tem formuladas uma série de princípios aplicáveis em
relação à água que, curiosamente ou não, são muito próximos àqueles contidos na
legislação de 199710. Segundo os lavradores, "água é comum, ninguém pode tirar o
direito dela; água não tem dono, é do povo, é dos bichos, água é para todo mundo." A
terra, de acordo com eles, até pode ser divisível e dividida, mas água é um recurso
"público", não privativo, sem donos, pois o destino dela é "circular igual", uma vez que
a água presa, barrada, impedida de circular torna-se suja, imprópria, inservível. Dessa
10
Consultar a este respeito Agroanalisys, 1998.
12
maneira, a suposta acumulação de águas em estoque pode reverter em dano para quem a
privatiza, pois parada sua serventia decresce, prejudica a quem a prende.
Vem dessa necessidade imperativa de circulação uma outra percepção cara à
população rural: uma noção de escassez, que, evidencia-se, deixa de ser puramente
quantitativa e converte-se em qualitativa, pois depende fundamentalmente do tipo de
água que as pessoas dispõem e da sua possibilidade ou não de circulação e primazia.
Água suja é água grande, e vice-versa. Os rios, na medida que crescem em
volume crescem em sujeira: do córrego para o ribeirão, do ribeirão ao rio Fanado, do
Fanado ao Araçuaí, do Araçuaí ao Jequitinhonha, assiste-se a um crescente de sujeira e
impropriedade, onde se pode concluir, por fim, que a água do rio Jequitinhonha, o maior
dos rios, é mais suja, e que Dona Antônia, uma senhora da comunidade de Degredo
definiu:"-Aquela água eu não usaria nem para lavar roupa, de tão suja que ela é." A
água grande reúne a sujeira de muitos e a transporta; neste caso, circula para transportar
sujeira, e quanto mais circula mais sujeira transporta; é uma água que nenhum
consumidor pode ter primazia, pode consumi-la impoluta.
Segundo os camponeses, são muitos os usos, e principalmente os humanos, que
sujam a água. Ela é poluída pelo gado, que pisa, urina e defeca dentro dela; o gado pode
ter doenças, principalmente nos cascos, e deixá-la na água, rio abaixo. Criação pode
morrer perto ou dentro dágua, e as pessoas as empurram águas abaixo, vai acumulando
sujeira. Água acima tem chiqueiro, curral, gente tomando banho e - principalmente gente lavando roupa. A lavagem de roupa, em todas as comunidades, aparece como o
principal fator de poluição da água; ela reúne toda a sujeira e usar esta água servida é
mais abjeto que usar água servida por animais. Assim, se as famílias ou a comunidade
prender água do ribeirão para uso doméstico, estará fazendo uma dupla bobagem,
porque além de "cercar" a sujeira produzida por outros águas acima, retém a própria
sujeira que seus detentores produzem.
Isto não significa que as famílias e comunidades recusem-se a usar águas
barradas ou grandes. Apenas, que elas o farão sob severas restrições, considerando a
precariedade do prender água como solução para consegui-la, porque assim somente
disponibiliza um recurso poluído, que está parado, que é, sempre, um quase último
recurso. Às vezes,obrigados, bebem água do rio grande porque não tem alternativa, mas
não gostam; não é uma água que considerem boa, é a única que tem. Um lavrador
quando entrevistado disse que antes passava pelo rio grande e pensava: não bebo desta
água de jeito nenhum; depois, teve que "engolir a água, junto com a soberba".
Neste ponto entra em cena a hierarquia dos consumos, pois a utilização do
recurso vai depender, invariavelmente, da sua ordem de captação.11 Água que serviria
11
Ver sobre prioridades e ordens de uso de água artigos em Agroanalisys, 1998.
12
apenas para consumo animal ou rega é a única que existe para o consumo doméstico; as
utilizações que seriam sequenciadas ou complementares - uso doméstico / consumo
animal - tornam-se competitivas. Neste sentido, o sentimento da escassez é relativo às
necessidades de consumo, e a redução da disponibilidade do recurso força família e
comunidade a redefinições de consumos, a elencar prioridades e a rever, muito a
contragosto, a categorização cultural feita em torno e a partir da água, incluindo aí as
noções de limpeza, sanidade, escassez, conforto e abundância. O problema da água,
portanto, atinge essas comunidades e famílias em pontos vitais.
Dado, então, que a escassez é, parcialmente, qualitativa, o que seria uma boa
água? Esta é o resultado de uma apreciação de qualidade sensível e de uma condição de
captação: água boa é uma água fina, água que se coloca na boca e tem o sentido fino.
Ela é conseguida nas nascentes preservadas, com bastante mato em volta, ou surgir de
debaixo de lapas de pedra com o sentido daquilo que é puro. Se dispõem de boas
nascentes, para consumir água limpa colocam gomeiras (mangueiras) direto nas
nascentes, fazem ou compram caixas dágua com pequena capacidade - suficiente apenas
para um breve rodeiro da água, não para prende-la, estoca-la. Nunca fazem a caixa para
estocar a água na casa inteira, para dispor de água presa, acumulada, capitalizada: água
é dom, como dom, circula.
Assim, existe água para beber, água para consumo de animal, para lavar roupa e
regar; nem todas as águas servem para beber e usar em casa; mesmo se for muito difícil
conseguir uma água fina para beber, vão procura-la; outras águas podem não ser
próprias para beber, mas servem para tomar banho. Por isso, pode até correr um rio
grande dentro ou perto da comunidade e as pessoas vão reclamar de falta de água,
porque aquela água não tem as qualidades que apreciam; querem uma nascente
preservada e uma água que considerem limpa. Dessa maneira não se pode referir a um
genérico problema de água, mas a problema das águas, porque elas são muitas, para
muitos usos, envolvendo muitas situações.
As comunidades, dessa forma, percebem o problema de falta de água de uma
forma diferente daquela feita pelas agências públicas - IBAMA, Emater, IGAM, IEF porque problema de água para eles não se manifesta da mesma forma. As agências, por
pensarem em termos globais, concebem um problema a partir de grandes águas e
principalmente do abastecimento urbano; já as comunidades estruturam um conceito de
qualidade e, a partir dele, um conceito de escassez, que é ao mesmo tempo qualitativo e
quantitativo. Qualidade tem a ver, exatamente, com as condições de captação e, por
isso, na sua perspectiva as prioridades devem ser as pequenas águas e não as grandes,
pois barragem e rio grande é sujo, não adianta se preocupar com ele; milhares de
pessoas sujam a água do rio grande, que quanto maior é, mais sujo, menos prestável. A
12
água grande está, por definição, fora do controle das dimensões que concebem a ação
humana racional.
4. Consequências, motivos, conflitos e regulação
A escassez ou falta de água afeta a vida nas comunidades em muitos aspectos.
Geralmente a primeira atividade prejudicada é o regadio. Tanto a chacrinha quanto a
horta são abandonadas, porque tem que regular água para o consumo humano; deixando
de fazer regadio, o consumo de alimentos é modificado, perdendo os carirus e a lavoura
da seca, produção garantida de feijão de arranco. Mas não fica prejudicada apenas a
dieta, também a renda familiar é afetada, porque desaparecem estes excedentes de
comércio; no limite, os efeitos vão aparecer até no comprometimento da origem do
abastecimento regular do centro urbano; assim os agricultores perdem uma fonte certa e
ajustada de renda, pois estas atividades preenchem o vazio de lavouras das secas.
Além disso modificam-se também as rotinas de trabalho da família, pois os
objetos e a forma de trabalhar transformam-se, uma vez que a mulher vai dedicar grande
parte do seu tempo para buscar água nas nascentes mais distantes. Isto rebate sobre a
distribuição do tempo de trabalho, que é construído a partir de rotinas muito estáveis e
distribuições que as técnicas tornam economiacamente equitativas. Como ocorre muita
migração sazonal masculina neste município - homens durante a estação seca vão para
corte de cana em São Paulo ou colheita de café no Sul de Minas, principalmente - são as
mulheres que mais percebem, sentem e tem sua rotina modificada pela escassez absoluta
ou relativa de água. As mulheres viajam em grupos de 5 ou 6 para a beira do rio duas
vezes por semana para lavar roupa, às vezes distâncias de muitos quilômetros,
comprometendo todas as demais atividades do dia. Assim, mudam as rotinas de seca
e'ságua, e os trabalhos numa e noutra época ficarão mais distintos.
Afetando a dieta, a rotina de trabalho, a renda e subvertendo a noção de
qualidade de água para consumo, estes agricultores elaboram explicações para o
escasseamento da água. Acreditam que a escassez é resultado do desmatamento, e o
desmatamento resulta tanto das destocas feitas nas chapadas quanto dos desmates
periódicos feitos por eles mesmos para fazer suas lavouras. Assim, embora sejam
preocupados com as nascentes, a própria lógica do sistema de produção - com seus
pousios e derrubadas periódicos - limita em parte a oferta de água de qualidade,
principalmente porque eles sabem que é na beira dos córregos que estão as melhores
terras. O plantio, para eles, é mais importante que preservar, porque está em jogo a
sobrevivência a curto prazo. Eucaliptais, de acordo com os camponeses, também
contribuem para secar nascentes; mas estas plantações estão fora do seu controle, pois
pertencem às empresas que nunca estão presentes. Por isto, embora existam as críticas
12
às reflorestadoras, elas raramente transformam-se em conflitos, dada a presença fluida
das empresas
Entre famílias, também, a escassez nem sempre desemboca em conflitos, que é
boa parte das vezes amenizado pelo parentesco: o que acontece é reduzir a oferta de
água para todos, para que possa ser usada, sob restrições, por todos. Mesmo nessas
situações não se cogita em armazenar água em caixas água para consumo humano; não
planejam, enquanto tem água corrente, na necessidade de armazenar água; o grande
desejo das pessoas é te-la corrente, eles não querem prender a água; o uso está associado
à própria idéia de direito sobre as águas que as pessoas tem.
Assim é que ocorre a curiosa situação de, às vezes, a família ter a terra da
nascente e regular o uso da água, para si e para todos; nessa situação não se costuma
prender a água, e por isso às vezes quem tem a nascente é que fica mais prejudicado na
definição da quantidade que pode consumir e área de vegetação em terra fresca que
necessita obrigatoriamente preservar, para garantir o abastecimento e evitar o conflito
na comunidade. Sendo pouca, então, a água da nascente é dividida para todos os
moradores da comunidade que tem direito. Consumo e distribuição de água são
normatizados, havendo critério para usar; a comunidade, que grande parte das vezes é
cimentada pelo parentesco e herança comuns, chega num acordo de uso.
No limite, os acordos comunitários são insuficientes para sanear a escassez, e se
a família mora perto da nascente e ela seca, as pessoas vão carregar água de distâncias
cada vez maiores, ou mudar o lugar das casas para mais perto dos córregos, uma vez
que a rotina de captação interfere fortemente na jornada diária de trabalho,
principalmente feminina. Por fim, se o córrego seca, vão tender a mudar para a vila;
mudando, água deixa de ser um problema de família, grota ou comunidade, e torna-se
uma questão pública, da prefeitura e do governo. No entanto a saída do terreno por falta
de água é último recurso; lavradores preferem mudar o lugar de suas casas buscando
proximidade com água no próprio terreno, antes de ir para o vilarejo. Este é um
movimento lento de centralização de população, que não ocorre movido apenas e nem
sempre pela falta de água, mas pode ter nela uma das suas maiores influências. Na beira
de alguns rios, nas áreas mais densamente exploradas, a configuração do povoamento
foi deixando de ser marcado pelas esparsas casas em grotas da família para se
transformar em espécies de vilas de população rural; no rio Fanado, durante a pesquisa,
observou-se a emergência de um povoado surgido há 6 anos que contava já com 32
famílias; fora do limite do povoado só havia 5 famílias da esparramada comunidade
originária. A vila resolve problemas de educação, transporte, saúde e, sobretudo, de
água, pois a reivindicação por atendimentos passa a ser conjunta.
Esta reespacialização da população constrói uma nova sociabilidade, mediada
mais estreitamente pelo poder público, com novas cadeias de relações pessoais, de
12
produção; com outras atitudes em relação ao que seria problema hídrico. A privação do
recurso familiar - água - que impede a horta da família ou o regadio da chacrinha de
feijão da seca, estimula o uso da horta comunitária, e, em certos lugares, até a viabiliza:
torna viável um método que era desinteressante para o lavrador: o trabalho conjunto.
5. Conclusão
Diante da escassez de água, para estes camponeses o barramento não resolve,
tampouco o armazenanto de água ou caixa dágua; a estratégia principal que eles tentam
buscar é justamente a preservação das cabeceiras; nem tanto a preservação da mata
ciliar, mas a preservação das cabeceiras. Do ponto de vista deles, pouco adianta se
preocupar com rios; a água é suja e o controle da sujeira e escassez de suas águas escapa
ao controle das comunidades.
Neste ponto, as propostas de debater e normatizar uso das águas via comitês de
bacias encontra pouca ou nenhuma acolhida nestas comunidades. Para elas, problemas
de águas que não partam das nascentes e da disponibilidade de água de qualidade
sempre será uma questão distante. Neste sentido, face à diferença de enfoques e
perspectivas, frente ao escasseamento crescente do recurso, a melhor opção é debater
um caminho comum e conciliatório, que incorpore as categorias usadas nas
comunidades à dimensão do público, do estatal e do participativo. Por isto os espaços
públicos das ações comunitárias - escolas, sindicatos, comitês de saúde, ongs, grupos de
mulheres e associações - podem se transformar em vetores de diálogos, onde as diversas
perspectivas possam encontrar-se para equacionar de uma forma coerente o problema da
água. E aqui é bom lembrar que nem sempre comunidade é o melhor critério para
trabalhar com o tema, porque as pessoas servem-se de determinada nascente, e dentro
de uma comunidade pode existir um grupo com problemas de água e outros com
necessidades satisfeitas, dadas localizações, quantidades e quantidades de nascentes, e
outro grupo de famílias pode estar numa situação intermediária, pois a água pode seguir
um determinado curso, ou rego; numa comunidade, um grupo pode brigar por água e os
demais estarem ausentes do conflito, porque uma nascente pode gerar um conflito.
Mas ressalve-se que são comunidades baseadas em normas específicas de
domínio e uso dos recursos - recursos privados, recurso parcialmente privados, recursos
totalmente coletivos -, que ao longo do seu processo de constituição desenvolveram
tecnologias de negociação, definindo quais usos estes ou aqueles espaços e recursos
receberiam. Por isso, frente à escassez de água tendem a dar, enquanto for possível, um
enfoque coletivo na construção do problema, pois as manifestações da escassez passa
também por uma regulação comunitária, mesmo que isto venha a manifestar-se em
sacrifícios, que serão muito certamente sacrifícios coletivos.
12
No limite, ao entregar parte do seu destino nas mãos dos poderes públicos que
gerenciam a água e o carro-pipa, os lavradores são forçados a redefinirem alguns dos
laços da gestão solidária. Passariam então a buscar soluções individuais, mediadas pelo
poder público; certamente soluções mais custosas, mais morosas e menos perfeitas que
outras surgidas de consensos.
6. Bibliografia
AGROANALYSIS. 18(3), mar. 1998
BARBOSA, F.A.R., PAULA, J.A. de, MONTE-MÓR, R.L. de M. "A bacia
hidrográfica como unidade de análise e realidade de integração interdisciplinar." IN
PAULA, J.A. de (coord.) Biodiversidade, população e economia. Belo Horizonte,
UFMG/ECMXC/PADCT/CIAMB, 1997.
GALIZONI, F.M. "A terra construída: família, ambiente, trabalho e migração no alto
Jequitinhonha" Dissertação de mestrado apresentada a FFLCH/USP, 2000.
GRAZIANO, E. "A arte de viver na terra - as condições de reprodução camponesa no
vale do Jequitinhonha." Dissertação de mestrado apresentada ao CPGDA/ UFRRJ,
Itaguaí, 1986.
HOGAN, D.J. "Mobilidade populacional e meio ambiente" Anais / Encontro Nacioal
Sobre Migração. Curitiba, IPARDES/FNUAP, 1998.
HOGAN, D.J.; CARMO, R.L.; RODRIGUES, I.A.; ALVES, H.P.da F. "Conflitos
entre crescimento populacional e uso dos recursos ambientais em bacias hidrográficas
do estado de São Paulo." Anais / XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais da
ABEP. B.H., 1998.
PAULA, J.A. de (coord.) Biodiversidade, população e economia. Belo Horizonte,
UFMG/ECMXC/PADCT/CIAMB, 1997.
RIBEIRO, E.M. Lembranças da terra: histórias do Mucuri e do Jequitinhonha." B.H.
CEDEFES, 1996.
RIBEIRO, E.M. Lavouras, ambientes e migrações no Nordeste mineiro. Travessia revista do migrante. Ano X, número 2, maio/agosto 1997.
SIGAUD, L. "O caso das grandes barragens". Revista Brasileira de Ciências Sociais
18 (7), fev. 1992.
12
Download