SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(3) 1998 OS PAÍSES PÓS-SOCIALISTAS qual capitalismo? LENINA POMERANZ Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP e Coordenadora do Centro de Estudos sobre os Países Socialistas em Transformação O mente do apoio eventual que neles pudesse existir às idéias socialistas. E o desenvolvimento do sistema fez-se em um processo marcado pela resistência a essa imposição, assumindo as feições de um movimento de caráter nacionalista e libertador, anti-soviético. O que significa, naturalmente, maior rapidez na promoção e aceitação das mudanças que tiveram lugar em 1989. Na URSS, a implantação do sistema realizou-se pela via revolucionária, implicando a destruição da ordem econômica anterior, seja pelas nacionalizações que marcaram o início da nova ordem, seja pela emigração de quadros técnicos durante os primeiros anos da década dos 20. Ademais, o sistema econômico soviético, tal como é conhecido, foi implantado num processo de tentativas e erros, que teve como pano de fundo as dissenções internas no partido detentor do poder, e do qual resultaram as feições totalitárias, que finalmente assumiu no final dos anos 20, começos dos anos 30. Seu funcionamento ao longo de décadas foi fortemente marcado, por um lado, pela necessidade de assegurar-se o apoio da população – donde a acentuada ideologização do sistema – e, por outro lado, pelo enfrentamento sistemático de que foi alvo, como bastião de um novo sistema, o qual, independentemente de todos os seus senões, constituía uma alternativa histórico-concreta ao sistema capitalista. Não são alheios a esse enfrentamento, especialmente nos anos da guerra fria, nem os enormes dispêndios militares, nem o controle, inclusive com intervenção militar, exercido ao longo dos anos sobre os demais países da Europa Central e Oriental. Estas diferenças não podem deixar de exercer influência sobre o modo e o ritmo dos processos de transformação em ambos os grupos de países, a despeito dos traços comuns que neles podem ser encontrados. Daí porque serem trazidas à baila, embora não constituam o foco cen- processo de transformação a que estão submetidos os países pós-socialistas, desde a onda que varreu a Europa Centro-Oriental e a URSS no final dos anos 80, coloca uma série de indagações. Tímidas de início, pelas próprias dificuldades de aceitação da adesão explícita dos países do Leste ao capitalismo, essas indagações hoje assumem novo sentido, voltadas menos para se saber se esses países aderiram ou não ao capitalismo e mais para a natureza do sistema que lá se está construindo. Afinal, o capitalismo não é o mesmo em todas as partes e o processo de transformação dos referidos países guarda certas características que, seguramente, deverão conduzir a uma organização social, cuja forma e funcionamento não podem ser entendidos pela sua mera comparação, não raro superficial, com o Terceiro Mundo, mais especificamente com a América Latina, apesar de toda a semelhança dos problemas que enfrentam na sua tentativa de inserção do sistema mundial do capitalismo. Este artigo se propõe trazer algumas considerações a respeito dessas indagações. Inicialmente, parece importante distinguir a Rússia e os países da Comunidade dos Estados Independentes, que com ela configuraram a URSS até sua dissolução, dos demais países da Europa Central e do Leste. Estes últimos, especialmente a Tchecoslováquia e a Alemanha Oriental, já apresentavam razoável nível de desenvolvimento econômico e, portanto, também um funcionamento razoável das instituições de mercado, antes da implantação do sistema socialista após a Segunda Guerra Mundial. Estas instituições não foram totalmente eliminadas, havendo setores que funcionavam com base na pequena propriedade privada, como o comércio e a agricultura. Neles, o sistema socialista, nos moldes em que foi implantado, como cópia mecânica do modelo soviético, foi de certa forma imposto pela URSS, independente- 50 OS PAÍSES PÓS-SOCIALISTAS: QUAL CAPITALISMO? tral deste artigo. Este, como já se disse anteriormente, são as indagações a propósito da natureza do sistema capitalista que está sendo construído nesses países. Salvaguardando essas diferenças, algumas questões comuns são importantes para o exame dessa natureza, ainda não inteiramente definida. A primeira delas refere-se à maneira e às proporções de introdução da propriedade privada, em substituição à propriedade estatal predominante no sistema anterior. Em outras palavras, refere-se à privatização e às condições de sua implementação em cada país. No início do processo de transformação, como reação natural às insuficiências do sistema, atribuídas totalmente e não sem algum equívoco à planificação como método de gestão da economia, houve o que foi justamente chamado por especialistas ocidentais de a grande ilusão do mercado. Era preciso destruir o sistema de planificação e passar rapidamente à economia de mercado. Para isso, e também porque era indispensável eliminar qualquer possibilidade de retorno ao passado político, era necessário promover uma mudança no estatuto da propriedade, então universal ou predominantemente pública, para, através de uma ampla privatização, criar o empresariado privado como agente do mercado. A ajuda para a realização dessa tarefa deveria vir do capital estrangeiro, cujo volume serviria para compensar a ausência e/ou a insuficiência de capital doméstico. Em alguns países, promoveu-se a devolução da propriedade confiscada durante a implantação do sistema anterior; mas, de um modo geral, a privatização seguiu a seguinte trajetória: inicialmente foram vendidos, através de concorrência, os pequenos estabelecimentos do comércio e serviços, de preferência aos seus empregados, aos quais foram oferecidas condições para sua aquisição; em seguida, procedeu-se à chamada privatização de massa ou grande privatização, na qual foram incluídos os maiores objetos industriais anteriormente acionarizados, e na qual, invariavelmente, foram utilizados cheques de privatização, distribuídos gratuitamente ou por preço simbólico à população, a fim de obter o seu apoio ao processo de mudança; esses cheques deveriam servir para a aquisição de ações das empresas submetidas à privatização, nos leilões especialmente criados com esse fim por seus portadores, fossem a população diretamente ou os fundos de investimento, que foram criados como intermediários dessas operações. Finalmente, está se procedendo à última etapa do processo de privatização, que é a venda dos objetos ditos estratégicos, as melhores empresas de cada país, deixadas para essa fase por se tratar de empresas de maior valor e poderem, assim, carrear mais recursos para os cofres públicos, em geral deles necessitados para cobertura dos déficits orçamentários. Os fluxos de investimento direto estrangeiro foram muito menores que o es- perado, e a grande privatização, pela maneira como foi realizada – intencionalmente organizada tendo em vista a concentração da propriedade e/ou através de procedimentos não propriamente éticos –, acabou resultando no que se convencionou chamar a “privatização da nomenclatura”, pela transferência da propriedade aos membros da antiga elite dirigente desses países. O capitalismo de massas, ao qual referiu-se Tchubais, o primeiro-ministro da privatização da Rússia, com base nos milhões de cheques de privatização distribuídos à população, na realidade encoberta o controle dessa propriedade pelos diretores das empresas ou donos dos fundos de investimento, num processo de expropriação da propriedade estatal, não raras vezes interpretado na literatura especializada como um processo de acumulação primitiva de capital, pela sua prática agressiva e espoliativa. Forma-se, assim, uma nova elite econômica no país, num processo que, se de um lado representa uma ruptura com o passado, de outro lado se alimenta desse próprio passado, numa continuidade sui generis de seus membros constituintes. De certa forma, percebe-se que a mão invisível do mercado por si só não funciona e demanda uma ajuda do Estado. A questão que agora se põe é a de como utilizar o poder do Estado em seu benefício, uma vez que as mudanças no plano político formalmente separaram o econômico do político, tornando necessário intermediar suas relações através do processo político estritamente considerado; ou seja, mediante os instrumentos do jogo político. Trata-se, evidentemente, de um processo complexo, que depende, não só do quadro institucional criado em cada país, dos espaços nele reservados ao jogo eleitoral e às intrigas palacianas, como também da intervenção de outros atores políticos, com interesses no mais das vezes contraditórios entre si. Entre a própria elite econômica, se por um lado existem interesses comuns, como por exemplo os associados à luta por maior liberalidade na política monetária, por outro existem interesses contraditórios, relacionados com a disputa pelos novos objetos de propriedade, especialmente os mais lucrativos e atrativos, agora submetidos à privatização. Já a grande massa da população vem experimentando, nos anos de transição, enormes dificuldades. A introdução da economia de mercado processa-se através de modelo que não somente é recomendado pelos assessores estrangeiros e missões dos órgãos internacionais de financiamento, mas tem a sua lógica na necessidade de inserir-se no sistema capitalista internacional e atrair investimentos estrangeiros. Com isso, privilegia-se a estabilidade monetária e, além da liberalização de preços e da restritiva política monetária, pratica-se uma política fiscal de controle do déficit orçamentário, que implica cortes dos gastos públicos, com impactos 51 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(3) 1998 sobre os salários e todos os serviços sociais. Exemplo conspícuo dessa situação é a instabilidade política da Rússia, marcada pelos protestos sociais resultantes da falta de pagamento dos salários e das aposentadorias e pelas promessas de Yeltsin de eliminar o seu atraso, cobrando medidas dos seus ministros e demitindo-os pelo seu não cumprimento. Mas não são somente as dificuldades do cotidiano que orientam a população em sua participação – ou não-participação – no processo político, surpreendendo algumas vezes com a votação nos partidos comunistas ou em seus substitutos. As desilusões com a transformação estão também relacionadas com os resultados do processo de privatização e o sentimento de marginalização a que foi submetida. É nítida a concentração de renda, com acentuação das desigualdades sociais. O abastecimento foi normalizado, inclusive com a importação, mas os bens tornaram-se inacessíveis para extensa camada da população, colocada nas faixas mais baixas da distribuição de renda. A segunda questão, estreitamente relacionada com a primeira, é relativa à modernização empresarial, questão não só dependente do nível de investimento anteriormente referido e da inovação tecnológica que o acompanha, mas também da solução que for dada tanto à questão do desemprego quanto à institucionalização dos serviços sociais, ainda sob grande responsabilidade das empresas. No que diz respeito especificamente à questão do desemprego, o seu nível vem crescendo nos últimos anos, alcançando índices não habituais nessa região do mundo; e não se revela mais perturbador somente em função da relutância dos dirigentes empresariais em promover a dispensa em massa dos trabalhadores, seja por razões de ordem social, seja porque necessitam de seu apoio, como acionistas da empresa, para o exercício de pressão sobre o governo e sua política econômica. Segundo alguns analistas, a questão seria menos séria socialmente, na medida em que o desenvolvimento está sendo retomado e devido à grande expansão da economia informal que, em casos como o da Rússia, por exemplo, responderia por cerca de 25% do produto interno do país. Quanto aos serviços sociais, como se sabe, eram basicamente prestados através das grandes empresas, que encontram dificuldades para liberar-se deles, especialmente nas localidades em que as administrações locais não dispõem dos recursos para mantê-los e onde as empresas centralizam a vida econômica da comunidade. A privatização desses serviços é, de certa forma, impensável como solução, a não ser muito restrita, dada a impossibilidade da grande maioria da população de pagar por eles. Cria-se, assim, no bojo do processo de distribuição da propriedade e da reorganização empresarial, o problema de como conciliar a chamada busca da eficiência com um estado de empobrecimento mais geral da população, flagelada pela insegurança do emprego e ameaçada pela destruição do sistema de bem-estar, a cujos direitos se sentia plenamente habilitada nos anos em que vigia o sistema socialista. A outra questão a se considerar diz respeito às condições de inserção dos países do Leste na economia internacional e ao impacto doméstico daí resultante. O processo de transformação se realiza num quadro de mudanças no modo de funcionamento do sistema capitalista, que, com a modificação das condições de competição internacional e a crescente financeirização do capital, de certa forma ditam as regras e condicionam esse processo. Trata-se, como aliás já foi dito anteriormente, de assegurar a estabilidade econômica e política para atração do volátil capital internacional e, ao mesmo tempo, de modernizar a gestão, de modo a assegurar a competitividade necessária às produções nacionais e preencher os requisitos determinados para o ingresso na Comunidade Européia (é um tanto diferente o caso da Rússia, como se verá mais adiante). Os países mais desenvolvidos do bloco solicitam seu ingresso nos organismos internacionais e se organizam regionalmente – no Grupo de Visegrad – como passo preliminar e acumulativo de forças para basear mais solidamente a sua inserção na Comunidade. No plano interno, ganham projeção os mercados financeiros, impulsionados seja pela privatização, seja pelo lançamento de títulos públicos com os quais se pretende atrair os investimentos de portfólio. Como resultado, esses países passam à condição de “mercados emergentes” promissores, enquanto os investimentos no setor produtivo têm se mostrado pálidos, com exceção da Polônia, na qual se observa um ritmo crescente de investimento nos últimos anos, e na recente “virada” no nível do investimento na Hungria. Um tanto distinta é a situação da Rússia, mas não no que se refere à sua condição de “mercado emergente” para atração de capital estrangeiro de curto prazo. Inspiradora da dissolução da URSS, acabou perdendo o domínio sobre as antigas repúblicas, transformadas em países independentes, e desta forma reduziu o poderio com que se apresenta no Ocidente, na expectativa de ocupar o lugar da antiga URSS. A condução da política externa do país tem lhe permitido algum êxito nessa direção – a recente indicação de Yeltsin para completar, como observador oitavo, o Grupo dos Sete e o papel desempenhado na recente crise internacional, envolvendo o Iraque, por exemplo –, mas é insuficiente para impedir a expansão da Nato pela inclusão dos países da Europa Central e do Leste, não sendo muito claro se conseguirá deter a pretendida inclusão dos países do Báltico. A integração econômica e a restauração da influência russa nos países da antiga 52 OS PAÍSES PÓS-SOCIALISTAS: QUAL CAPITALISMO? URSS passam, então, a ter um sentido geo-estratégico, muito mais significativo que o da restauração do antigo império soviético, razão pela qual o governo russo vem concentrando esforços nessa direção. Não se pode descartar o interesse da Rússia pela integração na Europa, na linha anteriormente defendida por Gorbachev, haja vista o interesse das relações com os países mais desenvolvidos da Comunidade, especialmente a Alemanha, grande investidor no país. Mas cabe ressaltar também os entendimentos com o Oriente, especialmente com a China, numa atuação multidirecionada e mais flexível nos planos político e econômico. O processo de transformação não está ainda concluído. Resolvido, de certa forma, o problema da distribuição da propriedade, resta o grande trabalho de completar a criação das instituições adequadas para o funcionamento da economia de mercado, ou seja, das instituições que permitem assegurar o funcionamento das regras do jogo econômico, particularmente no plano do Judiciário; o que significa a criação de instrumentos que permitam implementar as decisões tomadas, seja no âmbito do Estado ou do setor privado. Mas, sem dúvida nenhuma, a chamada transição para a economia capitalista já se fez pela transformação das bases do sistema. Foram criados os estratos sociais interessados na nova ordem e estabelecidas as regras do jogo político que lhes permitem defendê-la, assim como foram definidos os estratos sociais perdedores, pelo menos no médio prazo. Em muito, essa nova ordem se assemelha à de nosso país: na luta pelo desenvolvimento e pela modernidade que assegurem sua inserção no cenário internacional em condições competitivas, na concen- tração da renda e nas desigualdades sociais; mas existem marcadas diferenças, que resultam das condições em que se realizou a transformação nesses países, da experiência anterior vivida, que não pode ser menosprezada e na qual é marcado o sentimento de justiça social recebido da formação educacional e social do regime socialista. Neste, para o bem e para o mal, viveu durante longos anos a população. 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