Repensando as vogais temáticas nominais a partir da gramática

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Mauro José Rocha do Nascimento
REPENSANDO AS VOGAIS TEMÁTICAS NOMINAIS
A PARTIR DA GRAMÁTICA DAS CONSTRUÇÕES
Rio de Janeiro
2006
2
Mauro José Rocha do Nascimento
REPENSANDO AS VOGAIS TEMÁTICAS NOMINAIS
A PARTIR DA GRAMÁTICA DAS CONSTRUÇÕES
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Vernáculas –
Língua Portuguesa, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Língua Portuguesa
Orientadora: Profa Dra Maria Lúcia Leitão de
Almeida
Co-orientador: Prof. Dr. Carlos Alexandre
Victório Gonçalves
Rio de Janeiro
2006
3
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Título da Tese: Repensando as vogais temáticas nominais a partir da gramática das
construções
Autor: Mauro José Rocha do Nascimento
Defesa em: agosto de 2006
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________________________________
Profa Dra Maria Lúcia Leitão de Almeida – orientadora
Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Alexandre Victório Gonçalves – co-orientador
Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________________________________
Profa Dra Lílian Vieira Ferrari
Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________________________________
Profa Dra Adrete Terezinha Matias Grenfell
Universidade Federal do Espírito Santo
___________________________________________________________________
Profa Dra Sandra Pereira Bernardo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
___________________________________________________________________
Profa Dra Célia Regina dos Santos Lopes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Mario Eduardo Toscano Martelotta
Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________________________________
Profa Dra Maria Aparecida Lino Pauliukonis
Universidade Federal do Rio de Janeiro
4
A Darlene, Rômulo e Leonardo,
minhas três razões de estar aqui.
5
AGRADECIMENTOS
A Darlene, Rômulo e Leonardo, por todos os momentos de ausência e por me
apoiarem
incondicionalmente,
principalmente
em
algumas
difíceis
decisões
profissionais e nos inúmeros momentos de angústia que precederam o ponto final
desta Tese.
A Maria Lúcia e Carlos, meus mui queridos orientadores, que muitas vezes me
fizeram me sentir culpado por se empenharem como orientadores muito mais do que
eu como orientando.
Aos meus companheiros de Lingüística Cognitiva Patrícia, Diogo, Ana Flávia,
Luciano
e
Marina,
por
todos
os
momentos
acadêmicos
e
lúdicos
que
compartilhamos.
Às Profas Célia Lopes e Margarida Basílio, pelas inestimáveis observações no exame
de qualificação, fundamentais para o desenvolvimento da argumentação neste
trabalho.
6
RESUMO
NASCIMENTO, Mauro José Rocha do. Repensando as vogais temáticas
nominais a partir da gramática das construções. Tese de Doutorado em Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
Este trabalho parte dos pressupostos teóricos da Lingüística Cognitiva, mais
especificamente do modelo da Gramática das Construções desenvolvido por
Goldberg (1995), adaptando-o para construções de base morfológica. A primeira
proposta apresentada é de que as classes gramaticais podem ser consideradas em
si construções gramaticais. Centramos foco nos substantivos e nos verbos, mais
particularmente nos processos de formação envolvendo essas duas classes.
Defendemos aqui que o processo no qual um substantivo é formado a partir de um
verbo sem que se usem afixos, chamado tradicionalmente de “derivação regressiva”,
é na verdade um caso do que propomos chamar “reenquadre morfológico”. O
mesmo processo pode acontecer no sentido contrário, em que o verbo é formado a
partir do substantivo, envolvendo apenas os elementos que caracterizam essas
categorias. Com base nessa proposta, sustentamos que nos substantivos acontece
uma variação desse mesmo processo, só que envolvendo subclasses de
substantivos. Essas subclasses são também conjuntos de construções, cuja forma
está relacionada às vogais temáticas e cujo significado está relacionado ao gênero.
Quanto à forma, comprovamos que os falantes relacionam automaticamente as
construções X-o ao gênero masculino e as construções X-a ao gênero feminino.
Quanto ao significado, com base em Lakoff (1980), que afirma que
conceptualizamos o mundo a partir de noções básicas de nossa experiência
corporal, sustentamos que os falantes conceptualizam a noção gramatical de gênero
em termos de diferenças de sexo; tanto que, nas línguas indo-européias de modo
geral, existe essa relação entre gênero e sexo. No conjunto das construções
envolvendo gênero, há um conjunto básico, em que gênero e sexo estão
diretamente ligados (menino / menina, gato / gata). Nesse grupo de construções, há
um reenquadre das construções masculinas com tema em –o, em –e ou em –Ø
(atemáticas) para as construções femininas com tema em –a, ou seja, o feminino é
formado a partir do masculino. Isso se dá por ser o masculino considerado o gênero
prototípico, enquanto o feminino se afasta desse protótipo. A prototipicidade do
masculino é um dado cultural, que se reflete lingüisticamente. Como conseqüência,
o masculino é na língua o gênero básico, mais geral, enquanto o feminino é sempre
usado em casos específicos. Dos três tipos de reenquadre envolvendo seres
animados, o mais produtivo é o que envolve as vogais temáticas -o / -a, como
menino / menina. Desse par mais produtivo, decorre um segundo grupo de
construções, envolvendo seres não-animados. No conjunto decorrente, o gênero
não se relaciona a sexo (são as construções do tipo jarro / jarra). Essas construções
herdam do grupo básico o fato de o masculino ser o protótipo e o feminino ser
7
menos prototípico. Se no primeiro grupo a relação de prototipicidade se manifesta
em relação a um elemento mais concreto, que é o sexo dos referentes, no segundo
conjunto ocorre de forma menos objetiva: as construções de gênero masculino vão
indicar elementos mais gerais e mais denotativos, enquanto as femininas vão indicar
elementos mais específicos e mais conotativos (metafóricos ou metonímicos). Por
fim, a partir da hipótese, proposta por Bybee (1985), de continuum flexão –
derivação, analisamos as construções de vogal temática com base em doze critérios
de diferenciação elencados por Gonçalves (2005). Concluiu-se que a vogal temática
nominal é um elemento envolvido na formação de vocábulos, mas não é
prototipicamente um elemento derivacional nem flexional, ficando aproximadamente
no meio do continuum flexão / derivação.
8
ABSTRACT
NASCIMENTO, Mauro José Rocha do. Repensando as vogais temáticas
nominais a partir da gramática das construções. Tese de Doutorado em Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
This work takes the Cognitive Linguistics as its theoretical basis, more specifically the
Constructions Grammar model developed by Goldberg (1995), adapting it into
morphologic constructions. The first proposal presented here is that word categories
can be considered grammar constructions by itself. We focused nouns and verbs,
particularly the formation processes which have relation with these two categories. It
is argued that the process when a noun is formed from a verb using no affixes,
traditionally called “regressive derivation”, it is in fact a case of a morphological reframe, as it is proposed .to be called. The same process may occur in an opposite
way, i.e. from the noun to the verb, relating just the elements which characterize
these categories. Having this proposal as its basis, it is argued that a variation of this
process occurs inside the noun category, relating noun sub-categories. These subcategories are also sets of constructions. Its form is related to thematic vowels and its
meaning is related to gender. About form, it is proved that speakers relate
automatically X-o constructions to masculine gender and X-a constructions to
feminine gender. About meaning, basing this hypothesis in Lakoff (1980), who claims
that people conceptualize the world from basic notions of the body experience, it is
claimed that speakers conceptualize grammatical notion of gender in basis of sex
differences. Because of this, there is that relation between gender and sex in most of
Indo-European languages. Inside the set of gender constructions, there is a basic
set, where gender and sex are directly linked (menino ‘boy’ / menina ‘girl’, gato ‘male
cat’ / gata ‘female cat’). In this group of constructions, there is a re-frame from -o, -e
and -∅ theme masculine constructions to –a theme feminine constructions, that is,
feminine gender is formed from masculine gender. That is because masculine gender
is the prototypical one, while feminine gender moves away from this prototype. The
prototypicity of masculine gender is a cultural data, which interferes in language. As
its consequence, masculine gender is in language the basic one, the more general
one, while feminine gender is always used just in specific situations. The most
productive re-frame related to livened up beings is the one which links –o and –a
constructions, like menino ‘boy’ / menina ‘girl’. A second group of constructions is
derived from this most productive pair, related to non-livened up beings. In this set of
constructions, gender is not related to sex (they are the constructions like jarro ‘jar’ /
jarra ‘specific kind of jar’). These constructions inherit from the basic group masculine
gender being the prototypical one and feminine gender being the less prototypical
one. In the first group the relation of prototypicity is about a more concrete
characteristic, i.e., the sex of the referent. On the other hand, in the second set the
prototypicity occurs in a less objective way. In that group, masculine gender
9
expresses more general and more denotative elements, while feminine gender
expresses more specific and more connotative (metaphoric and metonymic)
elements. At last, having as theoretical basis Bybee’s hypothesis about inflection –
derivation continuum (BYBEE, 1985), thematic vowel constructions were analyzed
from twelve criterions of differentiation listed by Gonçalves (2005). It is concluded
that noun thematic vowel is an element used in word formation, but it is not a
prototypical derivational element and it is not a prototypical inflectional one either. It is
about in the middle of inflection – derivation continuum.
10
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
TEMA
PÁGINA
Figura 1:
Construção bitransitiva
34
Figura 2:
Fusão de papéis temáticos
35
Figura 3:
Construção de movimento causado
37
Figura 4:
Construção resultativa
37
Figura 5:
Construção de movimento intransitivo
38
Figura 6:
Construção conativa
38
Figura 7:
Ligação por subparte
43
Figura 8:
Ligação por instância
44
Figura 9:
Continuum morfologia - sintaxe
47
Figura 10: Processamento cognitivo do verbo cair
62
Figura 11: Processamento cognitivo do substantivo queda
63
Figura 12: Reenquadre verbo → substantivo
64
Figura 13: Reenquadre indireto (por sufixação)
65
Figura 14: Reenquadre substantivo → verbo
68
Figura 15: Reenquadre + prefixação
76
Figura 16: Prototipicidade semântica dos substantivos
97
Figura 17: Prototipicidade formal dos substantivos
98
Figura 18: Reenquadre das construções de gênero
100
Figura 19: Rede construcional de gênero
105
Figura 20: Construções combinadas: X-o / X-a + -eir-
111
Figura 21: Rede construcional das construções combinadas
113
Figura 22: Constituintes imediatos
146
Figura 23: Continuum léxico - sintaxe
152
Figura 24: Continuum de grau de relevância
154
Figura 25: Continuum de grau de generalidade
155
Figura 26: Posição das construções de gênero no continuum flexão –
158
derivação
11
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................14
1.1. Apresentação do problema...........................................................................14
1.2. Hipóteses.......................................................................................................15
1.3. Metodologia...................................................................................................17
1.4. Apresentação do trabalho............................................................................18
2. A LINGÜÍSTICA COGNITIVA E SUA CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM................20
3. A GRAMÁTICA DAS CONSTRUÇÕES.................................................................25
3.1. Breve histórico..............................................................................................25
3.2. A proposta de Goldberg...............................................................................27
3.2.1. Definição de construção.......................................................................28
3.2.2. Vantagens de uma abordagem construcional......................................29
3.2.3. Tipos de construções...........................................................................33
3.2.4. Princípios cognitivos de organização lingüística..................................39
3.2.5. Relações de herança entre construções..............................................42
3.3. As construções: do morfema à sentença...................................................46
4. A FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR REENQUADRE MORFOLÓGICO..............51
4.1. O processo de “derivação regressiva”.......................................................51
4.2. A direcionalidade do processo....................................................................53
4.3. Proposta de revisão do conceito de regressão ― a formação por
reenquadre morfológico..............................................................................55
12
4.3.1. Nota sobre a nomenclatura..................................................................66
4.4. As formações X-ar........................................................................................68
4.5. As formações pref-X-ar................................................................................73
5. AS CONSTRUÇÕES GRAMATICAIS X-o / X-a.....................................................77
5.1. Vogais temáticas e gênero...........................................................................77
5.1.1. Vogal temática......................................................................................77
5.1.2. Gênero e cognição...............................................................................81
5.1.3. A relação entre vogal temática e gênero..............................................86
5.2. Vogal temática x desinência de gênero......................................................91
5.3. A construção básica X-o / X-a......................................................................96
5.3.1. Protótipos semânticos e formais..........................................................96
5.3.2. O reenquadre entre as construções de gênero....................................99
5.4. A construção decorrente X-o / X-a............................................................102
5.4.1. Relações semânticas.........................................................................106
5.4.2. Outras decorrências...........................................................................111
6. A VOGAL TEMÁTICA NOMINAL NO PORTUGUÊS: FLEXIONAL OU
DERIVACIONAL? ...............................................................................................117
6.1. Flexão x derivação......................................................................................117
6.2. Aplicação dos critérios de diferenciação.................................................122
6.2.1. Visibilidade para a sintaxe..................................................................122
6.2.2. Concorrência de estratégias de expressão........................................124
6.2.3. Produtividade......................................................................................128
6.2.4. Regularidade do significado...............................................................133
6.2.5. Expressão de subjetividade................................................................136
13
6.2.6. Ocorrência de lexicalização................................................................138
6.2.7. Possibilidade de mudança de classe.................................................141
6.2.8. Elementos nucleares e adjuntos........................................................142
6.2.9. Ordem e posição dentro da construção.............................................143
6.2.10. Recursividade...................................................................................145
6.2.11. Neologia de afixos............................................................................147
6.2.12. Expressão de características sociolingüísticas................................149
6.3. A proposta de Bybee..................................................................................150
6.4. A vogal temática no continuum flexão – derivação.................................155
7. CONCLUSÃO.......................................................................................................159
REFERÊNCIAS........................................................................................................161
ANEXOS...................................................................................................................168
14
REPENSANDO AS VOGAIS TEMÁTICAS NOMINAIS
A PARTIR DA GRAMÁTICA DAS CONSTRUÇÕES
1. INTRODUÇÃO
1.1. Apresentação do problema
A análise do significado de base composicional remonta a Frege, no final do
século XIX. Nesse modelo de análise, que foi a tônica durante muitos anos e ainda é
endossado por uma quantidade considerável de lingüistas, o significado do todo é
igual à soma dos significados das partes. O verbo cantar, por exemplo, cujo
significado é ‘emitir voz com melodia’, pode ser segmentado no radical cant-, que
contém o significado lexical do vocábulo, e nos elementos –a e –r, que acrescentam
a esse radical características morfossintáticas da classe dos verbos. O substantivo
cantor tem o mesmo radical cant- (com o mesmo significado, ‘emitir voz etc’),
acrescido do sufixo –or, indicativo de agente. Nesses vocábulos, é perfeitamente
possível uma análise de base composicional, já que o significado do vocábulo como
um todo corresponde satisfatoriamente à soma dos significados de cada parte.
Nesse modelo de análise, a vogal temática nominal tem sido motivo de
divergência entre os lingüistas. Esse segmento é tratado como um elemento
segmentável, recorrente, mas isento de significado, o que faz com que alguns
estudiosos inclusive duvidem de seu status como morfema. Estruturalmente, o
vocábulo mesa, por exemplo, cujo significado básico é ‘peça de mobiliário, com
tampo horizontal apoiado sobre pés’, pode ser segmentado em radical, mes-, mais a
vogal temática –a, que não tem significado algum: apenas distribui o item lexical em
15
classes mórficas (cf. Câmara Jr., 1977) ou categorias (cf. Zanotto, 1986).
Conseqüentemente, numa análise composicional, o significado do radical do item
lexical formado por radical + vogal temática vai ser exatamente igual ao significado
do próprio item.
O problema é: se a vogal temática não tem significado, e o significado de um
item lexical formado por radical + vogal temática é igual ao significado do radical,
como explicar diferenças de significado entre os itens barco / barca, mato / mata,
lenho / lenha, jarro / jarra? Numa análise puramente composicional, não há solução
para esse problema, porque ou se considera que A) em barco e barca há dois
radicais diferentes; ou se considera que B) as especificidades de significado estão
na vogal temática. A coincidência de forma e uma relação estreita no significado dos
dois vocábulos eliminam a primeira hipótese. Se compararmos o significado dos
vocábulos cama, saída e mata, não conseguiríamos estabelecer nenhuma
semelhança de significado a partir da vogal temática, que é a mesma nos três casos.
Isso elimina a segunda hipótese.
1.2. Hipóteses
O problema explicitado acima foi apenas o ponto de partida para esta tese.
No decorrer da pesquisa, esse problema se desdobrou em alguns outros, que
geraram uma seqüência de hipóteses. Para se chegar à hipótese que responde à
questão levantada a respeito dos pares do tipo mato / mata, algumas outras foram
formuladas; toda a argumentação desta tese se baseia na seqüência dessas
hipóteses. São elas:
16
1. A descrição que considera as formações do tipo atacar → ataque como
regressivos não é adequada. Nesse tipo de formação, acontece o que propomos
chamar neste trabalho de reenquadre morfológico.
2. Os substantivos, em português, distribuem-se em grupos de construções. O
significado dessas construções está relacionado ao gênero e a forma às vogais
temáticas. No que diz respeito ao gênero, a construção prototípica é a que relaciona
diretamente gênero a sexo. No que diz respeito à forma, a construção prototípica de
feminino é a de tema em -a; a de masculino é a de tema em -o.
3. Nas formações do tipo menino → menina e nas do tipo barco → barca
também ocorre um reenquadre da construção de gênero masculino para a de
gênero feminino.
4. Há uma rede construcional envolvendo as construções de gênero. A
construção básica seria aquela em que o gênero está diretamente relacionado a
sexo, como o primeiro par na hipótese acima. A construção que não estabelece
relação direta com sexo, como o segundo par da hipótese 3, seria decorrente dessa
construção básica, herdando dela o fato de o masculino ser mais prototípico e o
feminino se afastar desse protótipo.
5. Nos pares do tipo sapateiro / sapateira há uma combinação da construção
de gênero com a construção sufixal -eir-. Essa combinação pode acontecer na
construção básica, gerando a oposição agente do sexo masculino / agente do sexo
17
feminino, ou na construção decorrente, gerando a oposição agente / lugar ou
recipiente relacionado ao objeto expresso pela base.
6. A vogal temática é um elemento envolvido na formação de novos
vocábulos. Não é prototipicamente um elemento flexional nem derivacional,
situando-se, no continuum, numa posição eqüidistante entre esses dois pólos.
1.3. Metodologia
O objetivo deste trabalho é argumentar em defesa das hipóteses levantadas
no item anterior e, na medida do possível, convencer o leitor de sua veracidade.
Digo “na medida do possível” porque a linha teórica que fundamenta este trabalho
se sustenta a partir de hipóteses não facilmente comprováveis empiricamente. Foi
realizado um teste (anexo 1) para comprovar que o falante comum relaciona
diretamente construções de tema em –a ao gênero feminino e construções de tema
em -o ao masculino. Afora esse teste, toda a metodologia se baseia apenas no
levantamento de argumentos que sustentem as hipóteses apresentadas.
Essa argumentação tem por base os pressupostos teóricos da Lingüística
Cognitiva, mais especificamente a Gramática das Construções, segundo o modelo
proposto por Goldberg (1995), e a teoria dos protótipos, de acordo com Langacker
(1987). Utilizamos, ainda, a hipótese do continuum flexão-derivação, formulada por
Bybee (1985) e o levantamento das diferenças entre categorias flexionais e
derivacionais feito por Gonçalves (2005).
18
1.4. Apresentação do trabalho
No capítulo 2, é feita uma breve apresentação do modelo cognitivista e de
seus principais pressupostos teóricos. O capítulo 3 é uma extensão desses
pressupostos, centrando foco na proposta da Gramática das Construções segundo o
modelo de Goldberg (1995). Nos dois primeiros itens é apresentada a proposta em
si; no último fazemos um levantamento de exemplos de construções gramaticais,
desde as mais simples até as mais complexas, mostrando que não há uma oposição
discreta entre morfologia e sintaxe.
No capítulo 4 é feita uma crítica ao que tradicionalmente se conhece por
“derivação regressiva” ou “regressão”, para, em seguida, apresentar a nossa
proposta para a interpretação desse fenômeno: o conceito de reenquadre
morfológico. Mostramos que o processo pode ocorrer no sentido verbo →
substantivo (atacar → ataque) ou no sentido inverso (perfume → perfumar),
justificando a direcionalidade de cada um desses processos. Consideramos que as
formações pref-X-ar (como em alisar), tradicionalmente consideradas como
parassíntese, são uma variação desse último processo. Nesse mesmo capítulo,
justificamos a escolha da nomenclatura.
O capítulo 5 contém a argumentação nuclear deste trabalho. Nesse capítulo,
é fundamentada a hipótese de que existe em português um conjunto de construções
de gênero, relacionadas formalmente às vogais temáticas. Mostramos que nessas
construções acontecem também reenquadres morfológicos, do masculino para o
feminino. Apresentamos, ainda, a proposta de uma rede construcional envolvendo
essas construções de gênero, havendo um conjunto de construções básicas e um
conjunto de construções decorrentes.
19
No 6º capítulo, é feito um histórico da secular discussão a respeito da
diferença entre categorias flexionais e derivacionais. Apresentamos a seguir os doze
critérios propostos por Gonçalves (2005) para diferenciação, analisando as
construções envolvendo vogais temáticas de acordo com cada um desses critérios.
Por fim, apresentamos a hipótese de Bybee (1985) do continuum flexão – derivação,
e, a partir dos critérios propostos por Gonçalves, posicionamos a construção básica
e a construção decorrente nesse continuum.
20
2. A LINGÜÍSTICA COGNITIVA E SUA CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM
A Lingüística Cognitiva começou a ser desenvolvida como um novo
paradigma teórico a partir do final da década de 70 do século passado,
principalmente com os trabalhos de Lakoff (1987), Lakoff e Johnson (1980) e
Langacker (1987, 1991). O principal aspecto do modelo cognitivista, que o diferencia
de modelos anteriores, como o estruturalista ou o gerativista, é que “a linguagem é
parte integrante da cognição humana” (LANGACKER, 1987, p. 12), e não uma
faculdade especial, à parte dos outros processos cognitivos.
Na relação entre a linguagem e o mundo material, a Lingüística Cognitiva
adota
um
ponto
de
vista
filosófico
denominado
por
Lakoff
(1987)
de
experiencialismo, ou realismo experiencial, numa contraposição ao objetivismo.
No objetivismo, há a crença de que os símbolos que compõem a língua adquirem
seu significado por correspondência direta com o mundo físico. Dessa forma, o
pensamento seria apenas uma manipulação mecânica de símbolos abstratos, e
funcionaria como se fosse um “espelho da natureza”. O pensamento é concebido
como algo abstrato e não-relacionado ao corpo humano e suas limitações, nem aos
sistemas perceptual e nervoso humanos. Outra característica do pensamento na
perspectiva objetivista é sua atomicidade, ou seja, pode ser dividido em partes como
se fosse um conjunto de peças de montar, que são combinadas em unidades
complexas e manipuladas por regras. Por fim, para os objetivistas, o pensamento é
lógico, no sentido mais estrito do termo, isto é, pode ser modelado de maneira
precisa por sistemas tais quais os utilizados na lógica matemática.
Como contraponto ao ponto de vista objetivista, o experiencialismo acredita
que o pensamento tem uma relação direta com o corpo humano, ou seja, nossos
21
sistemas conceptuais decorrem de nossa experiência corpórea, e o significado se
realiza em termos dessa experiência. O cerne de nosso sistema conceptual se
assenta, portanto, diretamente em nossa experiência física e social. Outro aspecto
da perspectiva experiencialista é que o pensamento é imaginativo, ou seja,
conseguimos conceptualizar, via metáfora e metonímia, mesmo conceitos abstratos
que vão muito além daquilo que podemos ver ou sentir. Como a metáfora e a
metonímia são também baseadas em nossa experiência, principalmente a corpórea,
a nossa capacidade imaginativa é também baseada, indiretamente, nessas
experiências. Todas as vezes, portanto, que categorizamos algo que não reflete
exatamente a natureza, estamos usando a capacidade geral humana da
imaginação.
A perspectiva experiencialista nega o atomismo do pensamento. Ao contrário
disso, na verdade, ele tem propriedades gestálticas: os conceitos têm uma estrutura
geral que vai muito além de simples “peças de montar” conceptuais, encaixadas
umas às outras por meio de regras gerais. Dessa estrutura geral do sistema
conceptual depende a eficiência do processamento cognitivo. O pensamento é,
portanto, bem mais que uma simples manipulação mecânica de símbolos abstratos.
Uma das primeiras preocupações dos cognitivistas foi com a categorização,
que pode ser definida como “um mecanismo de organização da informação obtida a
partir da apreensão da realidade” (CUENCA & HILFERTY, 1999, p. 32). Como a
realidade é, por natureza, composta por elementos diferentes entre si ― não há dois
seres exatamente iguais: nem duas pulgas, nem dois exemplares de um livro, nem
mesmo o lado direito e o lado esquerdo de uma pessoa ―, a categorização nos
possibilita organizar, em nossa mente, esse conjunto desorganizado que é a
realidade. Essa categorização se dá por meio de duas operações cognitivas
22
principais: a generalização, ou seja, a identificação de propriedades semelhantes, e
a discriminação, ou seja, a identificação das diferenças entre os seres.
Tradicionalmente, a categorização é feita como se cada categoria fosse um
compartimento, no qual encaixamos elementos que compartilham o mesmo conjunto
de propriedades. A Biologia, por exemplo, divide os seres vivos em categorias, de
acordo com determinadas características. O homem, o cachorro, o urso e o antílope
são mamíferos: todos eles mamam ao nascer, caminham no solo, são cobertos de
pêlos e gerados no útero das fêmeas. Todos se encaixam perfeitamente no mesmo
compartimento. Mas o que dizer de animais como a baleia, o ornitorrinco e a
équidna? Todos esses animais mamam ao nascer, mas nenhum deles se assemelha
muito aos outros mamíferos. A baleia não tem pêlos e vive toda a vida na água, além
de ter a forma muito mais próxima de um peixe do que da maioria dos outros
mamíferos. Nem a équidna nem o ornitorrinco são gerados em útero, mas em ovos,
como as aves. O ornitorrinco, além disso, tem nadadeiras e um bico como o de um
pato. Poderia talvez ser encaixado no compartimento das aves, mas teria o
inconveniente de ser uma ave que mama. Entre ser uma ave que mama e um
mamífero que põe ovos, os biólogos que fizeram a classificação preferiram a
segunda opção.
Tanto a baleia quanto a équidna e o ornitorrinco, que são animais diferentes
da concepção que se tem de um mamífero, foram classificados como tal; nenhum
desses seres, no entanto, se encaixa perfeitamente no padrão de sua categoria. Isso
mostra que a categorização compartimentada, em que se idealiza uma lista de
propriedades que são compartilhadas por todos os membros de uma classe, não dá
conta de organizar a nossa realidade desorganizada. Seria um inconveniente a
menos para os biólogos se não existissem ornitorrincos e outros seres que não se
23
deixam classificar. Mas eles existem, e é preciso um sistema de classificação que dê
conta deles. E isso não acontece somente com animais, mas com qualquer
categoria que pretendamos estabelecer.
Uma alternativa satisfatória ao “modelo dos compartimentos” é o modelo de
classificação com base em protótipos. Langacker (1987) assinala que trabalhos
experimentais em psicologia cognitiva demonstraram que as categorias são
freqüentemente organizadas em torno de instâncias prototípicas. Essas instâncias
são aquelas que as pessoas aceitam como mais comuns, e que geralmente ocorrem
com mais freqüência na nossa experiência. Os elementos que têm todas as
características que delineiam uma categoria são os elementos prototípicos.
Aqueles que têm menos características são menos prototípicos. Pertencer a uma
categoria não é, nesse modelo, uma questão de tudo-ou-nada, mas uma questão de
grau de pertencimento. Quanto menos características um elemento qualquer
compartilhar com os elementos prototípicos de uma categoria, menor a chance de
esse elemento ser incluído nela.
Uma organização categorial baseada em protótipos dá conta de forma muito
mais eficaz inclusive da descrição lingüística. A teoria lingüística é, de modo geral,
calcada em oposições discretas. Alguns exemplos de dicotomias rígidas utilizadas
na análise lingüística são sincronia x diacronia, competência x desempenho,
gramática x léxico, morfologia x sintaxe, semântica x pragmática, homonímia x
polissemia, conotação x denotação, flexão x derivação etc. Langacker (op. cit., p. 18)
considera falsas todas essas dicotomias. Segundo esse autor, a adesão estrita a
essas oposições resulta em problemas conceptuais e na negligência de exemplos
que se situem na transição entre um conceito e outro. Acrescenta ainda que uma
forma de se produzir uma falsa dicotomia é focar somente nos exemplos
24
representativos de dois extremos de um continuum: não levando em conta casos
intermediários, prontamente se observam classes discretas com propriedades
contrastantes nítidas.
Essa concepção de linguagem abrange todos os níveis da descrição
lingüística: sob a perspectiva cognitiva, a língua é um grande continuum; não há
fronteiras precisas entre morfologia, sintaxe, semântica, pragmática. A função
primordial da linguagem é expressar significados e, sendo assim, não é admissível
separar um componente lexical, um sintático e um semântico. A gramática, em si, é
também simbólica e significativa. No capítulo 3 será discutida mais longamente essa
relação íntima entre construção gramatical e significado.
25
3. A GRAMÁTICA DAS CONSTRUÇÕES
Neste capítulo, serão apresentados os pressupostos teóricos que norteiam
este trabalho, relacionados à gramática das construções. No primeiro item, será feito
um breve relato da origem do modelo, assim como seus principais expoentes. No
item seguinte, centrar-se-á o foco no trabalho de Goldberg (1995), que foi eleito para
embasar teoricamente esta tese. Por fim, serão dados exemplos de construções
gramaticais do português, desde as mais simples e elementares (os morfemas) até
as
construções
sentenciais,
que
podem
ter
uma
configuração
interna
consideravelmente mais complexa.
3.1. Breve histórico
O modelo da Gramática das Construções começou a ser desenvolvido em
fins da década de 70 do século passado, pelos professores da Universidade da
Califórnia, em Berkeley. Dois dos primeiros trabalhos que começaram a delinear o
modelo merecem menção por sua importância. O primeiro deles, de Charles Fillmore
(1979), é um artigo focado nos idiomatismos, questionando os modelos que
interpretavam o significado das sentenças composicionalmente. Nesse artigo, o
autor satiriza o artifício do falante/ouvinte ideal proposto pelo gerativismo, criando o
“falante/ouvinte inocente”. Esse falante conheceria os itens lexicais e seus
significados, assim como as regras de formação de sentenças, mas não conseguiria
lidar com as expressões idiomáticas, já que o significado dessas expressões não se
dá composicionalmente. Outro autor que, pioneiramente, percebeu que as teorias
pautadas na composicionalidade não dariam conta da significação de uma boa parte
26
das sentenças foi Lakoff (1977), que propôs, contradizendo os pressupostos
gerativistas de então, que não há uma distinção discreta entre léxico e sintaxe.
Os idiomatismos, fenômenos considerados periféricos e de exceção,
passaram a receber uma atenção antes só dispensada às formas consideradas
canônicas. A partir desse enfoque dado aos fenômenos “marginais”, percebeu-se
que, na verdade, não havia diferença substancial entre formas canônicas e
periféricas: todas eram construções gramaticais.
A partir da década de 80 do século passado, vários trabalhos desenvolveram
uma base teórica para a gramática das construções. Desses trabalhos, destaca-se o
de Lakoff (1987), que, a partir do conceito de “redes polissêmicas”, formulou o
conceito de “redes construcionais”: uma determinada construção básica é núcleo da
rede, de onde irradiam outras construções diretamente relacionadas, quase sempre
numa relação de natureza figurativa. A aplicação da teoria foi feita com uma rede
construcional envolvendo there, cujo núcleo é uma construção locativa. O valor
existencial irradia, metaforicamente, desse núcleo.
Outro trabalho de importância fundamental para o desenvolvimento da teoria
da gramática das construções foi desenvolvido por Fillmore & Kay (1993). Nesse
trabalho, os autores propõem um continuum de especificação dos elementos que
formam as construções. Numa combinação entre elementos especificados e
variáveis, uma construção pode ser completamente aberta, com todos os elementos
variáveis (a construção cuja configuração sintática é SN-V-SN, instanciada em João
ama Maria, por exemplo); pode ser parcialmente especificada, como a construção X
arrebentar+flexão a boca do balão, instanciada em Pedro arrebentou a boca do balão;
ou pode ser completamente especificada, como fórmulas de cortesia (Tchau!) ou
frases feitas, ditos populares, provérbios (Deus ajuda quem cedo madruga).
27
O trabalho que mais contribuiu para a formulação de um modelo de análise da
gramática das construções foi o de Goldberg (1995). Esse trabalho, focado nas
construções que envolvem estruturas argumentais de verbos, comprovou que a
construção aberta, formada só por um esquema abstrato, tem um significado próprio,
que vai se complementar a partir dos elementos instanciados ― os quais, por sua
vez, também vão ter seu significado complementado a partir do significado da
construção. O trabalho de Goldberg será apresentado mais detalhadamente no item
3.2 deste capítulo.
Por fim, um trabalho que de certa forma complementa o de Goldberg é o de
Mandelblit (1997). Essa autora uniu os conceitos teóricos propostos por Goldberg
com o Modelo dos Espaços Mentais (Fauconnier, 1994). Mandelblit centra o foco em
uma das construções propostas por Goldberg, a de movimento causado,
comparando a estruturação desse tipo de construção em duas línguas diferentes, o
inglês e o hebraico. A diferença fundamental entre a abordagem de Goldberg e a de
Mandelblit é que, para essa última, as relações de herança entre as construções (ver
item 3.2.4) se dão por um processo de mesclagem, utilizando os esquemas de
espaços mentais propostos por Fauconnier.
3.2. A proposta de Goldberg
Conforme dito no item anterior, o trabalho de Goldberg (1995), intitulado
Constructions ― A construction Grammar aproach to structure argument, é o mais
completo e o que mais contribuiu para o desenvolvimento de uma teoria da
Gramática das Construções. Como o próprio título já indica, esse trabalho tem como
28
objeto de estudo construções envolvendo verbos e sua estrutura argumental. A tese
central de Goldberg é de que
sentenças básicas do inglês são instâncias de construções ―
correspondências forma-significado que existem independentemente de
verbos específicos. Isto é, sustenta-se que as construções portam
significado por si mesmas, independentemente das palavras na sentença.
1
(GOLDBERG, 1995, p.1)
As construções sintáticas, segundo os pressupostos da Gramática Gerativa,
são consideradas como um epifenômeno, ou seja, como meras conseqüências da
aplicação de regras sintáticas. O trabalho de Goldberg veio reforçar a idéia de que,
na verdade, as construções gramaticais podem ser reconhecidas, por si só, como
entidades teóricas.
Além disso, outro importante princípio estabelecido pela autora é de que os
valores semânticos de uma sentença podem ser associados diretamente a padrões
sintáticos específicos, ou seja, a partir da Gramática das Construções, a relação
entre forma e significado ― entendendo o termo forma tanto numa perspectiva
lexical quanto sintática ― é mais integrada do que se tem considerado.
3.2.1. Definição de construção
Nos termos de Goldberg (op. cit.), as unidades básicas da linguagem são as
construções gramaticais, as quais são definidas da seguinte forma:
C é uma construção se e somente se C é um par forma-significado <Fi, Si>,
de tal forma que nenhum aspecto de Fi ou de Si seja estritamente previsível
a partir de partes componentes de C ou a partir de outras construções
2
previamente estabelecidas. (GOLDBERG, 1995, p. 4)
1
[...] basic sentences of English are instances of constructions ― form-meaning correspondences that
exist independently of particular verbs. That is, it is argued that constructions themselves carry
meaning, independently of the words in the sentence.
2
C is a CONSTRUCTION iffdef C is a form-meaning pair <Fi, Si> such that some aspect of Fi or some
aspect of Si is not strictly predictable from C’s component parts or from other previously established
constructions.
29
O conceito de construção gramatical, para Goldberg, pode ser comparado a
um outro conceito, o de listema, proposto por Di Sciullo & Williams (1987), isto é,
entidades gramaticais que existem em forma de listas memorizadas e armazenadas
mentalmente pelos falantes. Para esses autores, o léxico seria um conjunto de
listemas, contendo elementos de tipos diferentes entre si, tais como palavras,
sintagmas verbais, morfemas, padrões entoacionais etc. O que todos esses
elementos teriam em comum seria o fato de não se submeterem a regras. Di Sciullo
& Williams, inclusive, comparam o léxico a uma prisão, cujos moradores têm como
única característica em comum o fato de serem “fora-da-lei”,. Goldberg, no entanto,
apesar de considerar que as construções gramaticais equivalem aos listemas, não
concorda
que
consistam
em
um
conjunto
não-estruturado
de
entidades
independentes; pelo contrário, para a autora, constituem um entrelaçamento
altamente estruturado de informações inter-relacionadas (GOLDBERG, 1995, p. 5).
3.2.2. Vantagens de uma abordagem construcional
Goldberg enumera, em sua obra, várias vantagens para uma abordagem
construcional dos fenômenos gramaticais. Vamos, neste item, nos ater mais
longamente às duas primeiras, as quais consideramos mais relevantes. A primeira
vantagem é que não é necessário estabelecer que alguns verbos, em determinados
contextos, tenham um sentido estranho e pouco plausível. Esse fato pode ser
exemplificado pela seguinte sentença:
3
(1) Ele tossiu a espinha de peixe no guardanapo.
3
A sentença original usada por Goldberg é “He sneezed the napkin off the table.”, cuja tradução literal
é inaceitável em português: *Ele espirrou o guardanapo para fora da mesa. O exemplo “Ele tossiu a
espinha de peixe no guardanapo” foi dado pela Profa Ana Flávia Magela, em um curso de mestrado
30
O evento que envolve o verbo tossir tem um único participante, que, na
configuração sintática de uma construção utilizando esse verbo, teria a função de
sujeito. Isto é, tossir é, em princípio, um verbo intransitivo. Para considerar válida a
sentença acima, numa abordagem lexicocêntrica, seria necessário estabelecer que
esse verbo pode ser transitivo direto, numa configuração do tipo ‘X tossir Y’, o que
seria, no mínimo, estranho. Numa abordagem construcional, não seria preciso
estabelecer um sentido transitivo a esse verbo. É mais simples e mais exato
estabelecer que ele, mesmo sendo um verbo intransitivo, pode instanciar uma
construção transitiva. Ou seja, o sentido transitivo seria dado não pelo verbo em si,
mas pela construção em que está inserido.
Outra vantagem observada por Goldberg é que uma abordagem construcional
evita uma circularidade de análise resultante da assunção, corrente na teoria
lingüística, de que a sintaxe é uma projeção de elementos requeridos por itens
lexicais. Ou seja, o verbo seria o elemento que determinaria quantos complementos,
e de quais tipos, co-ocorreriam com ele na sentença. O problema é que, se
tomarmos esse pressuposto como verdadeiro, um verbo poderia ter várias estruturas
argumentais diferentes, gerando diferentes configurações sintáticas. O verbo correr,
por exemplo, pode ocorrer em diversos contextos sintáticos, dentre os quais:
(2) Pedro corre.
(3) Pedro correu ao local do acidente.
(4) Pedro correu as crianças da sala.
Todos os exemplos acima são não só possíveis, mas correntemente
utilizados. Com base em uma teoria que afirme que o verbo determina, a partir de
sua estrutura argumental, os complementos que co-ocorrem com ele na estrutura
sintática, precisaríamos afirmar simultaneamente que:
sobre Gramática das Construções, e equivale perfeitamente ao exemplo de Goldberg, com a
vantagem de ser aceitável em português.
31
a) o verbo correr estabelece uma relação argumental somente com um
agente; logo, vai figurar em uma estrutura sintática intransitiva (sentença 2);
b) o verbo correr estabelece uma relação argumental com um agente e com
um locativo indicando alvo; logo, vai figurar em uma estrutura sintática transitiva com
um complemento preposicionado (sentença 3);
c) o verbo correr estabelece uma relação argumental com um agente, um
paciente e com um locativo indicando ponto de origem; logo, vai figurar em uma
estrutura sintática bitransitiva com um complemento não-preposicionado e com um
preposicionado (sentença 4).
Essa multiplicidade de análises diferentes para um mesmo verbo é
conseqüência do fato de se considerar que determinados complementos que
figuram junto a um verbo são decorrentes exclusivamente da estrutura argumental
desse verbo. Ao mesmo tempo, a depreensão da estrutura argumental só é possível
a partir dos complementos que, concretamente, figuram junto ao verbo. Perceba-se
que há uma circularidade nesse raciocínio, a qual pode ser evitada ao se considerar
que não é o verbo que determina, por si só, seus complementos. Somente uma
abordagem construcional é capaz de dar conta dessa diversidade de configurações
sintáticas e sentidos do verbo. Na verdade, cada uma das configurações sintáticas
exemplificadas é uma construção diferente, com seus valores semânticos
específicos. Os diferentes significados que o verbo assume são decorrentes de sua
integração com o significado da própria construção.
Dessa forma, o verbo correr pode instanciar tipos diferentes de construção,
adquirindo com isso valores semânticos diferentes. Na sentença (2), instancia uma
construção intransitiva, em que somente o papel de agente é designado. A
integração desse verbo com essa construção faz com que se evidencie o sentido
32
básico da ‘ação’. A sentença (3) é uma construção de movimento intransitivo4, cujo
significado básico é ‘X mover-se para Y’, no qual Y é um locativo. Nessa construção,
portanto, além do valor básico de ação, evidencia-se a noção de movimento para um
determinado lugar. Na sentença (4), temos uma construção de movimento causado,
que tem como significado básico ‘X causa Y mover-se para Z’. A integração do verbo
correr com essa construção faz com que esse verbo aparentemente adquira um
valor causativo que ele não tinha originalmente ― na verdade, esse valor está na
própria construção, e não no verbo.
Esses exemplos ilustram a terceira vantagem enumerada por Goldberg, em
relação a uma abordagem construcional: a economia semântica. Os múltiplos
sentidos que os verbos adquirem nos diferentes contextos não precisam ser
atribuídos a idiossincrasias do próprio verbo; é muito mais econômica uma descrição
que atribua essas diferenças de significado à integração entre o sentido do verbo e o
da construção que ele instancia.
O quarto argumento da autora para defender a Gramática das Construções é
que, com esse modelo, a composicionalidade é preservada. Não nos parece, no
entanto, que essa seja exatamente uma vantagem em relação a outros modelos, já
que nos outros a base da análise semântica é exatamente a composicionalidade. A
diferença é que, na abordagem construcional, a composicionalidade é considerada
de uma forma enfraquecida, já que o significado de uma expressão vai ser o
resultado da integração entre o significado dos elementos lexicais que a compõem e
o significado da própria construção. A composicionalidade continua presente no
modelo, mas o significado de uma sentença não é visto como somente a soma dos
significados de seus componentes. Veja-se por exemplo a sentença:
(5) Pedro caiu na boca do povo.
4
No item 3.2.3 a configuração dessas construções terá um maior detalhamento.
33
Há uma série de processos cognitivos envolvidos para que um falante possa
processar o significado dessa sentença, mas é evidente que o simples conhecimento
do significado da cada um dos itens lexicais não vai ser suficiente para a
compreensão da expressão como um todo. Essa relação não imediata entre
significado dos itens e significado da sentença acontece com uma infinidade de
sentenças da língua ― os chamados idiomatismos. Por essa razão, para que um
falante seja considerado proficiente no uso de uma língua, vai precisar conhecer não
só o significado dos itens lexicais dessa língua, mas também o significado das
construções, principalmente aquelas total ou parcialmente especificadas, como a
sentença (5)5.
Os dois últimos argumentos apresentados por Goldberg dizem respeito a
evidências
que podem auxiliar na comprovação de hipóteses ligadas à
Psicolingüística: o primeiro deles se relaciona ao processamento de sentenças; o
segundo, à aquisição da linguagem por crianças.
3.2.3. Tipos de construções
Goldberg (1995) apresenta em sua obra um elenco de cinco tipos de
construções do inglês, instanciadas na forma de sentenças básicas. Segundo a
autora, as construções que correspondem a sentenças básicas codificam eventos
básicos na experiência humana, tais como ‘alguém transfere algo a alguém’, ‘alguém
faz com que algo ou alguém se mova de um lugar a outro’, ‘alguém faz com que algo
ou alguém seja modificado’ etc. Os papéis desempenhados pelos participantes
desses eventos vão corresponder aos papéis argumentais das construções. Dessa
5
É evidente que nenhum falante conhece todo o inventário de itens lexicais e construções de uma
língua; mas apenas aqueles que são necessários nos atos de comunicação de que participa.
34
forma, tanto as construções quanto os verbos que instanciam as construções vão
apresentar uma estrutura de papéis argumentais, que deverão combinar entre si (se
forem compatíveis).
Tomemos como exemplo uma construção bitransitiva, que tem como valor
semântico ‘X causar Y receber Z’. Os elementos envolvidos são um agente (X), um
paciente (Z) e um recipiente (Y). A representação esquemática da estrutura
argumental dessa construção é:
CAUSAR-RECEBER
<agente receptor paciente>
O esquema da construção como um todo é o seguinte:
Semântica CAUSAR-RECEBER
< agente
recipiente
paciente >
R
R: instância,
meio
Sintaxe
PRED
<
V
>
SUJEITO
OBJETO 1
Fusão
de
papéis
OBJETO 2
FIGURA 1
No esquema acima, PRED é o predicador, ou seja, a variável que vai ser
preenchida quando a construção for instanciada; os símbolos < > representam os
papéis participantes no verbo instanciado; a linha pontilhada representa um papel
argumental que pode ou não ser designado.
Tomemos também como exemplo o verbo enviar: no evento que envolve o
ato de enviar, existem necessariamente um “enviador”, um destinatário e um objeto
enviado. É possível também explicitar esquematicamente os elementos envolvidos
no ato de enviar da seguinte forma:
enviar <”enviador” destinatário objeto enviado>
35
Quando esse verbo instancia a construção referida, há uma fusão dos papéis
temáticos da construção com os papéis envolvidos no evento relacionado ao verbo.
O esquema dessa fusão é o seguinte:
Semântica CAUSAR-RECEBER
< agente
recipiente
paciente >
R
R: instância,
meio
Sintaxe
ENVIAR
<“enviador”
V
SUJEITO
destinatário obj.enviado>
OBJETO 1
Fusão
de
papéis
OBJETO 2
FIGURA 2
A fusão entre os papéis da construção e os do verbo obedece a dois
princípios: o Princípio da Coerência Semântica e o Princípio da Correspondência. O
primeiro diz que somente os papéis que são semanticamente compatíveis podem
ser fundidos; o segundo diz que cada papel participante lexicalmente designado
precisa ser fundido com um papel argumental da construção. Em outras palavras:
para que um elemento possa aparecer concretamente em uma seqüência sintática,
deve corresponder a um papel previsto na configuração da construção.
O contrário, no entanto, não é obrigatoriamente verdadeiro: é possível que um
papel argumental previsto na estrutura da construção deixe de ser designado. Há
quatro diferentes razões para que isso aconteça (cf. Goldberg, 1995, p. 56 et seq.).
A primeira delas é o sombreamento, no qual um dos participantes é “posto nas
sombras”: ele existe, mas não é evidenciado. É o caso, por exemplo, do papel de
recipiente na sentença a seguir:
(6) O candidato distribuía santinhos.
O elemento a quem os santinhos eram distribuídos foi sombreado: poderia
estar na sentença, mas não está. Diferente é o caso do corte, em que a construção
36
não admite algum papel argumental previsto no evento evocado pelo verbo. O verbo
rasgar, por exemplo, prevê dois papéis participantes: ‘alguém que rasga’ e o ‘objeto
rasgado’. Pode figurar, no entanto, numa construção inacusativa:
(7) Minha calça rasgou.
Nesse caso, o papel argumental equivalente ao agente não está previsto na
construção, e portanto não pode aparecer: é um caso de corte.
A terceira razão para um argumento não aparecer na construção é o que a
autora chamou de absorção de papel. Segundo Goldberg, esse fenômeno acontece
em construções reflexivas, quando um papel participante é absorvido por outro, e se
fundem em um só papel argumental. Como conseqüência, esses papéis vão ser
instanciados na construção por meio de um único termo sintático. Esse fenômeno
acontece em alguns dialetos do português. O verbo arrumar, por exemplo, evoca um
evento com dois participantes: ‘alguém que arruma’, e ‘alguém ou algo que é
arrumado’. É possível, no entanto, que esses dois participantes se fundam num só.
Pulhiese (2004) analisou construções como o exemplo a seguir, as quais ela
chamou de “construções desreflexivizadas”:
(9) Maria arrumou e ficou esperando o namorado.
No exemplo, que é uma instância das construções estudadas por essa autora,
o SN Maria instancia simultaneamente os dois papéis temáticos requeridos no
evento evocado pelo verbo arrumar.
A quarta razão para que um argumento não seja designado é quando há um
complemento nulo. Isso pode acontecer em duas situações: na primeira, em que há
um complemento nulo indefinido, o papel não-expresso recebe uma interpretação
indefinida; nesse caso, a identidade do referente é desconhecida ou irrelevante.
Como no exemplo a seguir, em que aquilo que é comido existe como participante da
cena, mas não é lexicalmente designado:
37
(9) Pedro come ∅ demais, quando vai à churrascaria.
A segunda situação em que há um complemento nulo é quando a identidade
do referente é recuperável pelo contexto; é o que chamamos de complemento nulo
definido:
(10) A seleção do Brasil perdeu ∅.
Além da bitransitiva, Goldberg analisou outros quatro diferentes tipos de
construção. São eles:
Construção de movimento causado:
< causa
Semântica CAUSAR-MOVER
alvo
tema >
R
R: instância,
meio
Sintaxe
PRED
V
<
>
SUJEITO
OBLÍQUO
Fusão
de
papéis
OBJETO
FIGURA 3
Exemplo:
(11) Pedrocausa jogou os pratostema pela janelaalvo.
b) Construção resultativa:
Semântica CAUSAR-TORNAR
< agente
paciente
result./alvo >
Fusão
de
papéis
R
R: instância,
meio
Sintaxe
PRED
V
<
SUJEITO
FIGURA 4
OBJETO
OBLÍQUO
38
Exemplo:
(12) Pedroagente pintou o cabelopaciente de vermelhoresultado.
c) construção de movimento intransitivo:
Semântica
< tema
MOVER-SE PARA
trajetória >
Fusão de
papéis
R
R: instância,
meio
<
PRED
Sintaxe
V
>
SUJEITO
OBLÍQUO
FIGURA 5
Exemplo:
(13) A bolatema rolou para fora do campotrajetória.
d) Construção conativa
Semântica
< agente
DIRIGIR AÇÃO PARA
tema >
Fusão de
papéis
R
R: instância,
meio
Sintaxe
PRED
<
V
>
SUJEITO
FIGURA 6
Exemplo:
(14) Pedroagente atirou no ladrãotema.
OBLÍQUO
39
3.2.4. Princípios cognitivos de organização lingüística
Goldberg, em concordância com a obra pioneira de Lakoff (1987) a respeito
das redes construcionais, afirma que a totalidade das construções de uma língua
forma um conjunto sistemático e organizado. A tese da autora é de que as
construções formam uma rede, e são ligadas entre si por relações de herança (ver
3.2.5), isto é, uma construção decorre da outra herdando características específicas.
As relações entre construções são regidas por alguns princípios básicos. São eles:
a) Princípio da Motivação Maximizada ⇒ se uma construção A é
sintaticamente relacionada à construção B, então o sistema da construção A é
motivado no mesmo grau que essa construção seja também semanticamente
relacionada à construção B. Essa motivação é maximizada.
Para entender melhor esse princípio, tomemos a seguinte situação: o
referente [mesa] não faz prever, de modo algum, a forma lingüística mesa: esse
signo não é previsível, e sim arbitrário. O vocábulo derivado mesário, no entanto,
tem alguma previsibilidade, caso se conheça previamente a base mesa. Mesário é
uma construção motivada, ou seja, há uma razão para ter a forma que tem,
relacionada à forma da outra construção ― o termo motivação, aqui, está sendo
utilizado no sentido saussureano. Quanto mais motivada for a forma, mais fácil será
depreender e memorizar seu significado. Quanto mais formas motivadas tiver um
sistema, mais eficaz na comunicação ele será. Daí a validade do Princípio da
Motivação Maximizada: esse princípio determina que, se existe uma relação de
40
forma entre duas construções, então há motivação; como conseqüência, o falante
vai também estabelecer uma relação semântica entre essas duas construções,
tornando a comunicação mais eficiente.
b) Princípio da Não-Sinonímia ⇒ se duas construções são sintaticamente
distintas, devem ser semântica ou pragmaticamente distintas.
Corolário A ⇒ se duas construções são sintaticamente distintas e
semanticamente sinônimas, então elas têm de ser pragmaticamente
distintas.
Corolário B ⇒ se duas construções são sintaticamente distintas e
pragmaticamente sinônimas, então elas têm de ser semanticamente
distintas.
Ou seja, segundo esse princípio, a forma está diretamente relacionada a
valores semânticos e pragmáticos; se uma construção é formalmente diferente de
outra, necessariamente vai ser semântica e/ou pragmaticamente diferente também.
O corolário A pode ser exemplificado com os seguintes pares de sentenças
sintaticamente distintas:
(15) Chegou a polícia.
(16) A polícia chegou.
Se formos comparar as duas construções em termos de condições de
verdade, não há nenhuma diferença entre elas. Pinheiro (2004), no entanto, mostrou
que há uma diferença pragmática: a sentença (15) seria utilizada num contexto em
que não houvesse expectativa a respeito da chegada da polícia; na sentença (16),
ao contrário, há a pressuposição de que a polícia era esperada.
41
Quanto ao corolário B, comparem-se as sentenças:
(17) Os cinzeiros estão cheios.
(18) Esvazie os cinzeiros.
As sentenças (17) e (18) podem ser interpretadas como variantes do mesmo
ato ilocucionário (cf. PINTO, 2000), ou seja, se ditas por uma pessoa com autoridade
socialmente reconhecida a outra que tem como função fazer a limpeza, ambas são
inequivocamente interpretadas como ordens. Do ponto de vista semântico, no
entanto, são diferentes: somente a sentença (18) é uma ordem, já que há uma
construção de imperativo; a sentença (17) é, fora, de um contexto pragmático, nada
mais que uma afirmativa.
c) Princípio do Poder Expressivo Maximizado ⇒ o inventário de construções é
maximizado para atender aos propósitos comunicativos.
d) Princípio da Economia Maximizada ⇒ o número de construções distintas é
minimizado tanto quanto possível, dado o princípio anterior.
O terceiro e o quarto princípios restringem um ao outro, já que um determina
o máximo de construções e o outro o mínimo possível. Na verdade, tanto um quanto
outro atendem aos propósitos comunicativos: haverá quantas construções forem
necessárias para atender às necessidades da comunicação (Princípio do Poder
Expressivo Maximizado), mas não mais do que o necessário (Princípio da Economia
Maximizada).
42
3.2.5. Relações de herança entre construções
Goldberg, nas relações que as construções estabelecem umas com as outras
numa rede construcional, identifica quatro tipos de relação de herança entre as
construções. Como “herança” entende-se qualquer característica formal ou
semântica que esteja na construção básica e se transfira para a construção
decorrente. São as seguintes as relações de ligação:
a) Ligação por polissemia ⇒ nesse tipo de ligação, se estabelece uma relação
entre um sentido específico de uma construção e alguma extensão desse sentido,
que estará presente na construção decorrente. Por exemplo, na construção
bitransitiva, o sentido básico é ‘X causa Y receber Z’. Uma instância desse sentido
básico seria
(19) Pedro deu um carro a Marcos.
Esse sentido básico pode se desdobrar em vários outros sentidos
relacionados, instanciados nos exemplos a seguir:
‘X causa Y não receber Z’:
(20) Pedro recusou o carro a Marcos.
‘X pretende causar Y receber Z’:
(21) Pedro assou um bolo para Marcos.
‘X atua para causar Y receber Z em algum momento futuro’:
(22) Pedro legou seus bens a Marcos.
b) Ligação por subpartes ⇒ ocorre quando uma parte de outra construção
existe independentemente, constituindo uma outra construção à parte. A construção
43
de movimento causado, por exemplo, tem parte de suas especificações sintáticosemânticas presentes na construção de movimento intransitivo:
Construção de movimento causado
Semântica
< causa
CAUSAR-MOVER
alvo
tema >
R
R: instância,
meio
Sintaxe
<
PRED
V
SUJEITO
OBLÍQUO
OBJETO
Ligação por
subparte
Construção de movimento
intransitivo
Semântica
>
< tema
MOVER-SE PARA
trajetória >
R
R: instância,
meio
Sintaxe
<
PRED
V
>
SUJEITO
OBLÍQUO
FIGURA 7
c) Ligação por instância ⇒ acontece quando uma determinada construção é
uma instância de outra, com alguns elementos especificados. Esse tipo de ligação
pode ser identificado no esquema a seguir:
44
Semântica
< causa
CAUSAR-MOVER
alvo
tema >
R
R: instância,
meio
Sintaxe
PRED
V
<
>
SUJEITO
OBLÍQUO
OBJETO
alvo
tema >
Ligação por
instância
Semântica
CAUSAR-MOVER
< causa
R
R: instância,
meio
Sintaxe
CHUTAR
V
< chutador
SUJEITO
para escanteio
OBLÍQUO
elem. chutado >
OBJETO
FIGURA 8
No exemplo acima, temos a construção de movimento causado, que tem
como configuração sintática ‘X V Y para Z’, ou seja, é uma construção aberta. Uma
instância dessa construção seria
(23) Pedro chutou a bola para fora do campo.
A construção decorrente é também uma instância da construção básica, mas
com alguns elementos especificados ― no caso, o verbo e o alvo. A configuração
sintática da construção decorrente é ‘X chutar Y para escanteio’, significando
45
‘descartar Y’, ‘desfazer algum tipo de relação previamente estabelecida com Y’. Uma
instância dessa segunda construção seria
(24) Pedro chutou a namorada para escanteio.
Essa construção, além disso, está relacionada metaforicamente ao MCI
(modelo cognitivo idealizado) (cf. Lakoff, 1987) de ‘futebol’, fazendo parte de uma
rede bem mais complexa. Foi apresentada aqui, a título de exemplo, apenas a
relação de ligação por instância.
d) Ligação por extensão metafórica ⇒ segundo os pressupostos da
Lingüística Cognitiva, a metáfora é um fenômeno conceptual que relaciona dois
domínios cognitivos diferentes, estabelecendo “uma projeção da estrutura de um
domínio-origem numa estrutura correspondente de um domínio-alvo” (SILVA, 1997,
p. 74). Essa projeção entre domínios é chamada de “mapeamento”. Lakoff &
Johnson (1980) mostraram que muitos domínios da nossa experiência de vida são
conceptualizados com base em outros. O primeiro exemplo dado por esses autores
é de que há um mapeamento entre o domínio da ‘discussão’ e o domínio da ‘guerra’,
gerando a metáfora conceptual
DISCUSSÃO É GUERRA.
Essa metáfora pode ser
instanciada de diversas maneiras, utilizando elementos específicos desses
domínios: atacar ou defender idéias, tomar posição, defender uma posição, ganhar
ou perder uma discussão, estratégias de argumentação etc. (cf. op. cit., p. 46).
As construções gramaticais também são expressões de domínios cognitivos
específicos, e é possível que duas construções se relacionem por meio de um
mapeamento metafórico: é o que chamamos de ligação por extensão metafórica.
Uma construção de movimento intransitivo, por exemplo, pode ser base para uma
extensão metafórica de mudança de estado, através das máximas metafóricas
46
MOVIMENTOS SÃO MUDANÇAS
e
LOCAIS SÃO ESTADOS.
A construção de movimento
intransitivo, cujas configurações semântica e sintática são, respectivamente, ‘X
move-se para Y’ e ‘SUJ V OBL’, pode ser instanciada nas sentenças
(25) Pedro entrou na sala.
(26) Pedro foi à faculdade.
(27) Pedro saiu do país.
A construção decorrente por extensão metafórica mantém a configuração
sintática, e passa a ter como configuração semântica ‘X muda para Y’, em que Y,
que na construção de base era um lugar, passa a ser, numa relação metafórica, um
estado. As sentenças a seguir são instâncias da construção decorrente:
(28) Pedro entrou em desespero.
(29) Pedro foi à loucura.
(30) Pedro saiu da depressão.
3.3. As construções: do morfema à sentença
Numa abordagem tradicional, a língua é considerada uma estrutura em que
vários níveis diferentes se articulam. Segundo Azeredo (1990, p. 31), são cinco os
níveis da hierarquia gramatical: o nível mais básico de articulação é o do morfema;
seguem-se os níveis do vocábulo, do sintagma, da oração, e por fim do período. Na
abordagem gerativista, a gramática se subdivide em componentes, que atuam
separadamente na estrutura até se chegar a uma sentença enunciável.
A abordagem construcional, ao contrário das linhas teóricas anteriores, tem
como premissa básica que não há distinção entre léxico e sintaxe. Salomão, num
artigo que discute exatamente essa questão, afirma: “a linguagem é concebida como
uma rede construcional, de tal modo que as unidades constitucionais divergem
47
apenas no caráter de sua especificação formal interna” (SALOMÃO, 2002, p. 69). A
língua passa a ser vista, nessa perspectiva, como um imenso continuum, formado
exclusivamente por construções, desde as mais básicas até as mais complexas.
Dessa perspectiva, portanto, vocábulos e estruturas sintáticas não são unidades
discretas, perfeitamente distinguíveis entre si, e sim partes de um continuum. Não
há, portanto, uma fronteira rígida que os separe. Conseqüentemente, as áreas de
investigação da Morfologia e da Sintaxe passam a ter também um objeto de estudo
com limites pouco precisos. Poderíamos esquematizar esse continuum da seguinte
forma:
MORFEMA
SENTENÇA
Objeto de estudo da Morfologia
Objeto de estudo da Sintaxe
FIGURA 9
Na maioria das vezes em que se fala de construções gramaticais, os
exemplos e os objetos de estudo são construções de base sintática, ou seja,
localizadas mais à direita do continuum mostrado na figura 9. A própria Goldberg, no
entanto, atenta para o fato de que morfemas devem também ser considerados
construções gramaticais : “expandindo um pouco a noção pré-teórica de construção,
morfemas são claras instâncias de construções, já que são pareamentos de
significado e forma, os quais não são previsíveis a partir de nenhum outro
48
elemento”6 (GOLDBERG, 1995, p. 4). Apesar disso, quase todos os trabalhos
publicados concentram suas análises na parte direita do continuum ― incluindo a
própria Goldberg.
A seguir, daremos alguns exemplos de construções mais ou menos
especificadas, partindo do lado esquerdo do continuum até chegar ao lado direito.
Como exemplos de construções mais estritamente morfológicas, temos a construção
nominal aberta ‘X-vt’, que pode ser instanciada na forma dos vocábulos tucano, rosa,
árvore, casebre, pelanca, mamilo. Os três últimos exemplos, aparentemente,
poderiam ser instâncias das construções ‘X-ebre’, ‘X-anca’ e ‘X-ilo’, já que existem
as formas casa, pele e mama. No entanto, esses elementos sufixais não ocorrem em
nenhum outro contexto. Nessas supostas construções, X não é um elemento
variável; sendo assim, as formalizações acima são inadequadas7. Outros exemplos
são a construção adverbial parcialmente especificada ‘X-(a)-mente’, instanciada em
belamente, fortemente, livremente, e construções completamente especificadas, ou
seja, sem elementos variáveis: bambu, sofá, caqui, só, grená.
Um pouco mais à direita do continuum, temos a construção aberta ‘X-X’, em
que X é sempre um verbo flexionado no presente do indicativo: quebra-quebra, pulapula, roça-roça, corre-corre. Uma construção parcialmente especificada nesse
mesmo ponto do continuum seria ‘guarda-X’: guarda-roupa, guarda-chuva, guardapó, guarda-costas8. As construções a seguir são completamente especificadas:
girassol, passatempo, aguardente, couve-flor, pombo-correio.
6
[...] expanding the pretheoretical notion of construction somewhat, morphemes are clear instances of
constructions in that they are pairings of meaning and form that are not predictable from anything else.
7
Rocha (1988) chama esses elementos não-produtivos de “sufixóides”, os quais podem, ainda,
aparecer em formais verbais, como cantarolar e choramingar.
8
Na verdade, as formas em ‘guarda-X’ não são uma única construção, mas uma rede construcional
ainda não descrita.
49
Na parte central do continuum, há várias construções que não se enquadram
perfeitamente nem no domínio da Morfologia nem no da Sintaxe. São vocábulos
frasais, como os grifados nas sentenças a seguir:
(31) Ele é um maria-vai-com-as-outras.
(32) Maria é a maior leva-e-traz do bairro.
(33) Maria gosta de usar vestidos tomara-que-caia.
É provável que as construções desse tipo sejam sempre completamente
especificadas.
Há também um outro tipo de construção, decorrente de outra por uma ligação
de instância, em que determinados verbos se associam ao seu complemento
formando um todo indissolúvel, comportando-se sintaticamente como se fosse um
único vocábulo: fazer sala, tomar conta, matar o tempo, cair em si. Essas mesmas
construções poderiam instanciar partes de construções mais complexas, que
estariam mais à direita no continuum. A expressão fazer sala, por exemplo, tem uma
configuração
sintática
‘V-OBJ’.
Esse
conjunto,
no
entanto,
se
comporta
sintaticamente como um verbo transitivo indireto, e vai instanciar uma construção
cuja configuração sintática é ‘X V a Y’, ocupando a posição V. As duas sentenças a
seguir são instâncias dessa construção:
(34) Maria agrada a Pedro.
(35) Maria fez sala a Pedro.
No extremo direito do continuum haveria as sentenças formadas por período
composto, como a construção de oposição ‘X, embora Y’ ou a de condição ‘Se X,
então Y’. Nessas construções, as variáveis são orações inteiras. Quanto às
construções completamente especificadas, é possível a sua existência mesmo no
extremo direito do continuum, como provérbios:
(36) Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.
50
(37) Pau que nasce torto morre torto.
e fórmulas populares infantis:
(38) O amor é uma flor roxa que nasce no coração do trouxa.
(39) Cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu.
51
4. A FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR REENQUADRE MORFOLÓGICO
Algumas questões importantes relativas a este trabalho serão discutidas
neste capítulo. A primeira delas é a validade do que tradicionalmente se denomina
“derivação regressiva”, que é a que envolve construções do tipo X-vtverbal-(r) →
X-vtnominal, como em abater → abate. Outra questão relevante a ser discutida é a
direcionalidade do processo: o verbo abater é derivado de abate ou vice-versa? E
nos pares em que os substantivos expressam elementos concretos, como em prego
/ pregar ou olho / olhar? Essas questões serão discutidas nos itens 4.1 e 4.2 a
seguir.
No item seguinte, revemos o conceito de regressão, propondo que esse
processo se enquadra num outro tipo de formação, o reenquadre morfológico. Nesse
mesmo item, será discutida a questão da nomenclatura, e explicado o porquê do
nome escolhido para o processo.
Os dois últimos itens do capítulo tratam do processo contrário à regressão,
em que o verbo é formado a partir do substantivo: são as formações em X-ar e
pref-X-ar, tradicionalmente consideradas, respectivamente, como derivadas sufixais
e parassintéticas. Argumentamos em favor de se considerarem esses casos também
como formações por reenquadre morfológico, sendo que o segundo tipo seria uma
formação híbrida.
4.1. O processo de “derivação regressiva”
Na descrição tradicional do português, há uma oposição entre a noção de
processo derivacional progressivo ― com acréscimo de elementos mórficos ― e
52
regressivo ― com retirada de elementos. Said Ali, gramático que produziu sua obra
em fins do século XIX e primeira metade do século XX, assim define esse último
processo: “consiste a derivação regressiva em criar vocábulos não acrescentando,
mas subtraindo algum afixo” (SAID ALI, 1964, p. 117). Gramáticos mais recentes,
como Lima (1972, p. 214), Cunha e Cintra (1985, p. 102) e Bechara (1999, p. 370),
utilizam basicamente a mesma definição de Said Ali. Alves, lingüista contemporânea,
assim define o processo: “ocorre o fenômeno da derivação regressiva quando a
criação de uma nova unidade léxica deve-se à supressão de um elemento,
considerado de caráter sufixal” (ALVES, 1990, p. 71). Ou seja, o texto é basicamente
uma paráfrase de Said Ali. As lingüistas portuguesas Azuaga (1996) e Rio-Torto
(1998) também utilizam em suas obras definições semelhantes. Um exemplo desse
processo seria a formação do vocábulo agravo, a partir do verbo agravar ― exemplo
dado por Rio-Torto (1998, p. 98). Aparentemente, não incomoda a nenhum desses
autores o fato de que o substantivo agravo não é formado simplesmente com
retirada de elementos do verbo agravar ― nele, aparece um elemento que não
estava presente na palavra original.
Alguns autores, no entanto, atentaram para esse detalhe. Basilio (1987, p.
39), analisando as formações apertar / aperto, ameaçar / ameaça e cortar / corte,
observa que “se considerarmos que esses casos são de derivação regressiva, pelo
menos teremos que considerar que se trata de um caso misto, pois também ocorre o
acréscimo de vogais”. Sandmann, sem chegar a nenhuma conclusão, aventa a
possibilidade de esse tipo de formação ser sufixal, e não regressiva. Esse autor
questiona se não se poderia considerar como sufixos o –o final de agito, o –a de
engorda ou o –e de desmame (SANDMANN, 1997, p. 45). Outro autor que questiona
a existência de deverbais regressivos é Rocha, que em sua obra tem um subitem
53
intitulado “O problema da derivação regressiva” (ROCHA, 1998, p. 185). Esse autor,
de forma mais peremptória que Sandmann, considera esse tipo de formação como
sufixal, e não como regressiva. Segundo Rocha, tanto as formações patrulhamento
quanto patrulha são derivadas do verbo patrulhar pelo mesmo padrão de formação:
V→S
–suf
9
. A diferença seria que patrulhamento seria formada com acréscimo do
sufixo nominalizador -mento ao verbo patrulhar, enquanto patrulha seria gerada a
partir
da
seguinte
RFP
(regra
de
formação
de
palavras):
[patrulhar]v → [[patrulhar]v∅]s, que ele chama de “derivação zero”, utilizando um
“sufixo implícito zero”.
De acordo com a linha teórica seguida neste trabalho, que é a da Gramática
das Construções segundo o modelo de Goldberg, não é possível concordar com o
artifício proposto por Rocha (apesar de a proposta ser mais consistente que a noção
de “derivação regressiva”). Se as construções gramaticais são pareamentos de
forma e significado (Goldberg, 1995), não é admissível um afixo zero, sem
significante. Será apresentada, no item 4.3 deste trabalho, uma outra proposta de
análise deste tipo de processo.
4.2. A direcionalidade do processo
Outra questão que se coloca nos chamados “derivados regressivos” é a
direcionalidade do processo: fumar, por exemplo, seria uma forma primitiva ou um
derivado denominal do substantivo fumo? E o substantivo acerto, seria primitivo ou
um deverbal do verbo acertar? Basilio, em duas obras diferentes (1980 e 1987),
9
Pode parecer, à primeira vista, que o símbolo (-) antes de suf, na formalização da regra, equivale ao
sinal matemático de menos, indicando que aquele sufixo não se materializa fonologicamente. Essa
conclusão, no entanto, não é correta, já que em outra parte da obra, quando fala de nominalização
com uso expresso do sufixo (ROCHA, 1998, p. 125), o autor utiliza exatamente a mesma
formalização. Esse símbolo está indicando, somente, que naquela posição entra uma forma presa.
54
discute essa questão, chegando, em cada uma delas, a conclusões diversas. Em
Basilio (1980), a autora considera que o critério mais pertinente para analisar este
processo é o morfológico. O argumento usado é de que as formas nominalizadas
dos verbos sem acréscimo de afixo podem terminar em -a, -e, -o ou em consoante
(cf. matiz / matizar), enquanto os verbos são em mais de 95% terminados em -ar ―
as novas formações são obrigatoriamente em -ar. Isso faz com que uma regra de
formação tendo o verbo como forma primitiva seja bem menos preditível que o
contrário, tendo o substantivo como primitivo. A partir desse fato, a autora considera
que todas as formações em que a forma nominalizada do verbo não possui nenhum
afixo ― como por exemplo cola, desejo, enfeite, zanga ― sejam formas primitivas,
enquanto os verbos correspondentes ― colar, desejar, enfeitar , zangar ― sejam
formas derivadas.
Na obra de 1987, Basilio revê essa posição10. Após analisar uma série de
exemplos, a autora conclui que
é impossível determinar com exatidão se temos uma formação regressiva
ou se temos um substantivo básico de que o verbo se teria formado. Em
casos de dúvida, no entanto, a análise de uma palavra como formação
deverbal pode ser mais interessante, sempre que esta tiver um sentido mais
abstrato. (BASILIO, 1987, p. 41-2)
O primeiro argumento de Basilio para defender esta nova posição é de que a
formação de substantivos a partir de verbos é infinitamente mais produtiva que a
formação de verbos a partir de substantivos. O segundo argumento é de caráter
sintático-semântico: as duas funções da formação deverbal são “expressar o
significado do verbo dentro de uma visão nominal” e “dar ao significado do verbo
uma forma sintática de substantivo para que possa figurar em certos tipos de
estrutura, exigidos pelo discurso, em que um verbo não caberia sintaticamente”
10
Essa revisão se deu provavelmente devido ao fato de a autora ter orientado a tese de doutorado da
Profa Lea Gamarsky, defendida em 1984 e editada em 1988 (GAMARSKY, 1988), cujas idéias são
basicamente as que Basilio defende na obra de 1987.
55
(1987, p. 42-3). Se um substantivo não preenche essas funções, não deve ser
considerado como deverbal. Exemplificando: a sentença
1a. Os bárbaros atacaram a cidade violentamente.
pode ser parafraseada da seguinte forma:
1b. O ataque à cidade (pelos bárbaros) foi violento.
Em 1b, a palavra ataque expressa, com características morfossintáticas de
substantivo, o mesmo valor semântico básico do verbo atacar. Já a sentença
2a. A camareira perfumou as fronhas.
não pode de forma alguma ser parafraseada como
2b. *A camareira fez o perfume das fronhas.,
já que perfume não expressa a noção de perfumar sob uma perspectiva nominal.
Como a expressão do sentido de um verbo sob uma perspectiva nominal é um
processo geral na língua, praticamente categórico ― são muito poucos os verbos
que não admitem nominalização ―, será adotada neste trabalho a proposta de
análise das formações do tipo atacar → ataque feita por Basilio (1987), que inclui
este processo específico no conjunto das formações dos substantivos deverbais
(dos quais a maioria é formada por sufixação).
4.3. Proposta de revisão do conceito de regressão ― a formação por
reenquadre morfológico
Parte-se portanto neste trabalho da assunção da análise proposta em Basilio
(1987), de que nas formações que envolvem pares do tipo acertar / acerto, apoiar /
apoio, disputar / disputa, a direcionalidade do processo é do verbo para o
substantivo, ou seja, o substantivo é deverbal (ao contrário do que a autora sustenta
em Basilio (1980)).
56
Assumindo essa perspectiva de análise, propõe-se neste trabalho uma nova
visão, diferente da tradicional, que considera essas formações como regressivas, e
diferente também da proposta de Rocha (1998), que considera como um caso de
derivação zero.
Na descrição proposta aqui, parte-se do conceito, que permeia toda essa
obra, de construção gramatical. Sendo essa a unidade básica da língua, as classes
de vocábulos são também consideradas tipos de construções gramaticais, assim
como cada um dos elementos que isoladamente compõem essas classes. No par
transtornar / transtorno, por exemplo, o primeiro elemento pertence a um conjunto de
vocábulos que compartilham uma semântica própria e possuem características
formais também próprias ― os verbos. Da mesma forma, os substantivos, conjunto
no qual se inclui o segundo elemento do par, também têm características semânticas
e formais que lhe são peculiares.
Neste ponto, seria conveniente explicitar quais seriam essas propriedades
formais e semânticas que fazem com que substantivos e verbos sejam construções
gramaticais específicas. Na verdade, nenhuma das classes de vocábulos
tradicionalmente estabelecidas tem características formais e semânticas comuns a
absolutamente
todos
os
elementos
que
compõem
essas
classes.
Como
possivelmente todas as categorias gramaticais, também as classes de vocábulos
podem ser analisadas como categorias radiais, que possuem um centro prototípico e
elementos que se afastam mais ou menos desse protótipo. Vamos nos ater às duas
classes que interessam diretamente a este trabalho neste momento, o substantivo e
o verbo.
Sob o ponto de vista da forma, ou seja, dos elementos que compõem
internamente a construção, os substantivos caracterizam-se por possuírem um
57
radical, que se anexa via de regra a uma vogal temática, e pela possibilidade de se
adjungir a esse conjunto uma desinência de número. Também podem fazer parte
desse conjunto elementos sufixais, como -ção, -mento, -(z)inho, -eiro, -nça. Como se
pode perceber, o substantivo não é uma classe de fácil identificação, do ponto de
vista formal, já que pode ter uma estrutura interna bastante variável. No entanto, é
possível identificar uma maior ocorrência de construções do tipo X-vt, em que a
vogal temática é predominantemente -o ou -a. As formas com tema em -e são
menos ocorrentes, e as atemáticas ainda menos. Mesmo quando está presente na
estrutura um elemento sufixal, a probabilidade maior é que a construção obedeça ao
padrão X-vt, só que nesse caso X teria uma estrutura complexa: jardineiro,
lagartixinha, acabamento, lembrança. As formas prototípicas do substantivo seriam,
portanto, as construções X-o e X-a.
Alguns autores preferem definir essa categoria numa perspectiva sintática,
isto é, em relação à construção sentencial na qual a construção substantiva se pode
inserir. Trask, por exemplo, afirma que
uma maneira melhor de identificar os substantivos é usar uma moldura
adequada. Considerem-se as molduras O ____ estava ótimo, Os ____
estavam ótimos, A ____ estava ótima, As ____ estavam ótimas. Se for
possível colocar uma única palavra em um dos espaços vazios, obtendo
uma boa sentença, essa palavra terá que ser um substantivo, porque a
gramática do português permite que os substantivos e só os substantivos
apareçam nessas posições. A primeira moldura aceita formas singulares de
substantivos masculinos, como almoço, lápis e alferes; a segunda aceita
formas masculinas e plurais, como óculos e lápis, entre outras. Atenção:
não haverá nenhuma garantia de que o resultado será sensato: A dor
estava ótima não soa muito normal, mas é claramente gramatical, e,
portanto, dor é um substantivo. (TRASK, 2004, P. 285)
Esse teste apenas mostra quais são os elementos que podem pertencer à
categoria dos substantivos; nada diz, no entanto, a respeito do que é um
substantivo.
Quanto aos verbos, uma definição de ordem sintática jamais teria o mesmo
sucesso que o obtido na identificação dos substantivos, já que aparecem em
58
contextos bastante diversos. Há verbos que podem aparecer em construções com
três diferentes argumentos (Pedroargumento
médicoargumento 3), com dois (Pedroargumento
(Pedroargumento
1
1
1
mostrou a feridaargumento
2
ao
ama seus amigosargumento 2), com um
desmaiou) ou com nenhum (Chove). Há, além disso, os verbos
copulativos ou de ligação, a respeito dos quais não há consenso se possuem ou não
uma estrutura argumental (cf. Duarte & Brito, 2003, p. 194), e os auxiliares modais e
aspectuais, que se fazem sempre acompanhar de outros verbos nas construções em
que figuram. Como se pode ver, do ponto de vista do contexto em que figuram,
podem-se dividir os verbos em inúmeras subcategorias, muitas vezes sem muita
semelhança entre si.
Se no contexto sentencial em que se podem inserir os verbos são uma
categoria extremamente heterogênea e de difícil generalização, o mesmo não
acontece em relação à sua forma interna, ao contrário dos substantivos. Nessa
perspectiva, os verbos são construções perfeitamente identificáveis: são formados
por um radical, por uma vogal temática (cujo conjunto difere do conjunto das vogais
temáticas nominais) e pela possibilidade de se adjungirem sufixos indicativos de
pessoa e de tempo-modo-aspecto. Essa característica é na verdade o que une todos
os elementos dessa classe, identificando-a como uma construção de um tipo
específico. Dessa forma, a construção gramatical chamada de verbo é constituída
formalmente de três partes distintas: um radical, que pertence a um conjunto infinito
de formas, uma vogal temática, cujo conjunto é extremamente reduzido,
restringindo-se a três elementos, e as desinências indicativas de pessoa e tempomodo-aspecto, as quais podem estar combinadas entre si ou não. Sendo assim, o
elemento que vai na verdade caracterizar o verbo, por ser um elemento mais
constante ― são raras as formas verbais em que não aparece ― é a vogal temática,
59
já que o radical pode variar ao infinito e as desinências são elementos apenas
potenciais, podendo figurar ou não nas formas verbais.
Quanto ao significado das categorias substantivo e verbo, Langacker (1991,
p. 15) faz referência ao fato de parecer “impossível encontrar qualquer propriedade
distintiva que seja comum a todos os membros de uma ou outra classe.” E
acrescenta: “é então uma doutrina básica da lingüística moderna que substantivos e
verbos não possam ser definidos nocionalmente”.
Vejamos alguns aspectos da heterogeneidade semântica dessas classes. Os
substantivos são definidos por Neves (2000, p. 67) como os vocábulos que “são
usados para referir-se às diferentes entidades (coisas, pessoas, fatos, etc.),
denominando-as”. Duarte & Oliveira (2003, p. 210) definem os substantivos
(designados, nessa obra, pelo termo “nomes”) como “categorias lingüísticas
caracterizáveis semanticamente por terem um potencial de referência11, isto é, por
serem, em geral, utilizadas numa situação concreta de comunicação, como uma
função designatória ou de nomeação”. Essa referenciação, no entanto, abrange uma
enorme gama de entidades que são completamente diversas entre si, desde as mais
concretas, passando por uma escala de crescente abstratização: prato é mais
concreto que vento, que é mais concreto que ataque, que é mais concreto que
virtude. É possível até que um mesmo substantivo possa estabelecer diferentes
relações de referenciação, numa perspectiva mais concreta ou mais abstrata;
compare-se por exemplo o termo grifado nas duas sentenças a seguir:
(3) O gato da minha vizinha é bem-tratado.
(4) O gato pode transmitir doenças.
Na sentença (3), o substantivo gato tem uma referência mais concreta,
diretamente relacionada a um ser no mundo objetivo; em (4), a referência não é a
11
Grifo no original.
60
nenhum ser em particular, mas a uma categoria de seres. É, portanto, uma
referência de caráter mais abstrato que na primeira sentença.
Além disso, existe a possibilidade de praticamente qualquer elemento ser
apresentado sob uma perspectiva referencial, mesmo que não seja essa, em
princípio, a sua função. O vocábulo verde, por exemplo, tem como finalidade básica
qualificar: camisa verde, cartolina verde. Pode, no entanto, referenciar a vegetação
de modo geral, a qual, via de regra, é de cor verde, estabelecendo uma relação
metonímica entre a vegetação e sua cor. Além disso, verde é, inegavelmente, o
nome de uma cor. Na sentença
(5) Quando misturamos o azul e o amarelo, obtemos o verde.,
os três termos indicativos de cores, apesar de serem tradicionalmente considerados
adjetivos, estão servindo para nomear e referenciar ― tarefa que é do substantivo.
Os verbos, por sua vez, têm propriedades semânticas talvez tão díspares
quanto os substantivos. Duarte & Brito (2003, p. 193 et seq.) identificam os seguintes
valores semânticos para os verbos: estados (como existir, ser, morar, ter), processos
(como chover, chorar, correr, dançar), processos culminados (como destruir,
comprar, arrumar, escrever), culminações (como chegar, sair, falecer), pontos (como
espirrar, suspirar).
O grande problema dessas
definições é que não dizem respeito
exclusivamente aos verbos. Substantivos podem expressar exatamente os mesmos
valores semânticos: estados (felicidade, sofrimento), processos (choro, corrida),
processos culminados (destruição, compra), culminações (chegada, falecimento),
pontos (espirro, suspiro). Na verdade, praticamente qualquer verbo vai ter um
substantivo equivalente, com o mesmo valor semântico básico. Há que existir,
portanto, alguma definição dessas classes que seja mais eficaz, que dê conta do
61
fato de os falantes jamais se equivocarem em relação ao seu uso, nos contextos
exatos. Ou seja, numa perspectiva cognitiva, os falantes conseguem identificar
perfeitamente um substantivo ou um verbo como construções específicas. Segundo
Langacker (1991, p. 15), é de se esperar que categorias com tamanha relevância
gramatical, como substantivo e verbo, tenham uma base conceptual.
Esse autor propõe que se diferenciem essas duas categorias a partir de uma
metáfora que ele chamou de “modelo da bola de bilhar”. Apresentaremos a seguir
esse modelo, de forma sintética. Quatro elementos essenciais compõem o modelo: o
primeiro é a bola de bilhar, que representa uma determinada quantidade de
substância material espacialmente delimitada. Os outros três elementos são espaço,
tempo e energia. Na interação entre a bola e outro objeto, acontece uma
transferência de energia, que vai ter como conseqüência o movimento da bola no
espaço ― e esse movimento vai necessariamente se desenvolver num intervalo de
tempo. Espaço e tempo, combinados, formam o conjunto multidimensional no qual
se manifestam os outros dois componentes.
O espaço é, portanto, o domínio no qual a substância material se instancia e o
tempo é o domínio de instância da energia e da conseqüente modificação. A
substância material é autônoma, ou seja, existe independente de qualquer interação
que possa ter com outro elemento qualquer. Já a energia só é observável por
intermédio de sua conseqüência: a modificação, que se manifesta no tempo.
Esse modelo serve para explicar como são conceptualizadas as categorias
‘substantivo’ e ‘verbo’: a primeira é representada pela substância material, enquanto
a segunda corresponde à interação entre uma porção de substância material e
outra, causada por uma transferência de energia. Dessa forma, podemos inferir que
os substantivos são conceptualmente autônomos, concebidos de forma estática;
62
verbos, ao contrário, são conceptualmente dependentes e concebidos de forma
dinâmica.
Em relação aos verbos e sua contraparte nominal, Langacker (1987, p. 144)
mostrou que os dois tipos de vocábulo são conceptualizados por intermédio de dois
diferentes processos cognitivos. Os verbos, que mostram, conforme visto, uma
interação que se desenvolve no tempo, são processados cognitivamente de forma
seqüencial ― o que o autor chama de “sequential scanning”. A figura abaixo mostra
o esquema do processamento cognitivo do verbo cair:
FIGURA 10
Essa figura é a representação esquemática da conceptualização de um
movimento. Qualquer movimento é formado por pelo menos dois elementos: aquele
que se move, chamado de trajetor, e um elemento fixo, chamado de ponto de
referência. No esquema acima, o trajetor é o elemento circular; o ponto de referência
é a base retangular. Nesse esquema, cada quadro representa um momento na
seqüência do processo. As linhas pontilhadas mostram que há continuidade de
movimento no tempo; cada quadro é somente a representação de alguns dos
inúmeros momentos passíveis de representação. A linha inclinada mostra que o
trajetor muda espacialmente de um momento a outro; a horizontal mostra que o
ponto de referência se mantém imóvel no tempo. Esse esquema mostra
63
perfeitamente a conceptualização de um verbo: o trajetor recebe energia suficiente
para mudar de posição, interagindo com o ponto de referência; essa interação se
desenvolve no tempo.
O substantivo abstrato queda, equivalente nominal de cair, por outro lado, é
processado cognitivamente de forma única, como um bloco ― a esse processo
Langacker chamou “summary scanning”. A figura a seguir mostra o esquema do
processamento cognitivo desse substantivo:
FIGURA 11
Ou seja, na conceptualização do verbo é levada em conta a interação entre
elementos se desenvolvendo no tempo. A conceptualização do substantivo, ao
contrário, é temporalmente estática.
Fica, pois, evidenciado que existem de fato diferentes bases conceptuais
envolvidas na cognição de substantivos e verbos, contradizendo a doutrina básica,
referida acima, que diz que substantivos e verbos não podem ser definidos
nocionalmente. Essas duas categorias têm características formais e conceptuais
específicas que fazem com que possam ser consideradas construções gramaticais.
Tecidas essas considerações, voltemos ao conceito de regressão. Na
formação transtornar → transtorno, não acontece uma perda de elementos, como
preconiza a descrição tradicional, mas uma substituição. Há um reenquadre
64
morfológico direto12: a construção gramatical deixa de ser uma construção
característica de um verbo (com seus constituintes e semântica próprios) e passa a
ser uma construção gramatical que caracteriza o vocábulo como um substantivo
(também, por sua vez, com forma e semântica próprias). Nesse processo de
formação, o verbo perde o elemento que o caracteriza como pertencente a essa
classe de vocábulos, ou seja, a vogal temática verbal13. Quando esse vocábulo se
reenquadra no conjunto dos substantivos, adquire os elementos que caracterizam
essa classe, no caso, a vogal temática nominal e a possibilidade de anexação da
desinência nominal (de número). O esquema a seguir mostra o processo de
reenquadre:
pesc - a transtorn - a agit - a -
(r)
(sse)
(mos)
(do)
(ndo)
...
pesc - a
transtorn - o
(s)
agit - o
CONSTRUÇÕES VERBAIS
CONSTRUÇÕES NOMINAIS
FIGURA 12
Este processo está sendo designado como reenquadre morfológico direto, ou
seja, que acontece diretamente de uma classe a outra, envolvendo exclusivamente
os elementos que caracterizam genericamente as classes envolvidas. Dessa forma,
o termo pesca, formado por reenquadre, se iguala construcionalmente a mesa, que é
12
A razão para o uso dessa nomenclatura será apresentada no item 4.3.1.
A desinência de infinitivo não é, na verdade, um elemento obrigatório nos verbos; o infinitivo como
forma representante de todo o paradigma verbal é uma convenção de caráter lexicográfico. O que
caracteriza o verbo de fato é a vogal temática verbal, à qual se adjungem as desinências verbais,
dentre elas a de infinitivo.
13
65
um vocábulo primitivo. Nos reenquadres indiretos, há junção de construções ― o
elemento responsável pelo reenquadre é um afixo, como podemos ver no esquema
a seguir:
coloc - a - (r)
CONSTRUÇÃO
VERBAL
coloc - a - ção
CONSTRUÇÃO
NOMINAL
-ção
CONSTRUÇÃO SUFIXAL
NOMINALIZADORA
FIGURA 13
Os afixos, como se enquadram na definição “pareamento forma / significado”,
também são considerados construções (ver capítulo 3). Dessa forma, a construção
colocação é formada com a junção da construção verbal colocar com a construção
sufixal nominalizadora -ção ― responsável pelo reenquadre como um substantivo.
O único ponto que ainda está um tanto obscuro é em relação à escolha da
vogal temática no substantivo formado. Não temos nenhuma hipótese do que
causou a escolha de uma vogal ou outra no decorrer da evolução da língua; na
sincronia atual, no entanto, parece haver uma tendência no padrão de formação. Se
na formação de verbos novos a única vogal temática possível é -a, nos substantivos
é exatamente essa a que está bloqueada. Não há formações recentes em -a, e
parece-nos que essa vogal é totalmente improdutiva no momento atual. Quanto ao
uso de -o ou –e, parece-nos que a primeira é usada em formas verbais primitivas:
agito, chego, sufoco. Já a segunda parece ser usada em formações em que no
verbo há um prefixo: desmame, ajuste, enquadre. É provável que sejam somente
66
tendências, e não regras categóricas. Seria preciso fazer um minucioso
levantamento das formas recentes para confirmar ou não essas hipóteses.
4.3.1. Nota sobre a nomenclatura
Os processos de formação de palavras em análise neste capítulo ― ou seja,
as formações do tipo afagar → afago e cravo → cravar ― poderiam, em princípio,
ser designadas de diferentes formas. A primeira delas, adotada por Villalva (2003, p.
953), é o termo conversão. Essa autora considera como conversão os casos
exemplificados acima, além daquilo que é tradicionalmente chamado de conversão:
a mudança de categoria gramatical sem mudança de forma (processo também
chamado, na descrição tradicional, de “derivação imprópria”). Optamos por não usar
esse termo para designar os processos em análise por já estar bastante
comprometido, já que é usualmente relacionado ao processo de mudança categorial
sem alteração na forma. Todos os autores a seguir utilizam o termo conversão nessa
acepção: Sandmann (1997, p. 47), Crystal (1985, p. 68), Jota (1976, p. 90), RioTorto (1998, p. 98), Azuaga (1996, p. 241), Basilio (1987, p. 60), Alves (1990, p. 60),
Rocha (1998, p. 172).
As
outras
possibilidades
seriam
os
termos
recategorização
ou
transcategorizaçao, por um lado, e reenquadre morfológico, por outro. O termo
reenquadre também já está, de certa forma, comprometido. Está, obviamente,
relacionado ao termo enquadre, que é uma tradução do inglês frame, expressão
cunhada por Fillmore (1977). A noção de ‘enquadre’ tem sido, de modo geral,
utilizada numa perspectiva semântico-pragmática. Está relacionada à nossa
67
capacidade
cognitiva
de
organizar
mentalmente
e
explicitar
verbalmente
conhecimentos sobre aspectos do mundo funcional. Dessa forma, num enquadre de
‘transação comercial’, por exemplo, um falante precisa relacionar os conceitos
envolvidos às opções lexicais e sintáticas que os representam. Estariam envolvidas
nesse enquadre as construções lexicais compra, venda, mercadoria, vender,
comprar (com os seus respectivos argumentos relacionados com os devidos papéis
temáticos formando construções sentenciais) etc.
A noção de ‘enquadre’, no entanto, pode ser perspectivizada num enquadre
(perdoe-se a redundância) menos pragmático e mais lingüístico stricto sensu. Da
mesma forma que o falante é capaz de estruturar em sua mente um conhecimento
de categorias extralingüísticas, também é capaz de estruturar categorias lingüísticas,
mesmo que não saiba explicitar metalingüisticamente esse conhecimento tão bem
quanto consegue listar os móveis de uma casa. E é baseado nesse conhecimento
que o falante tem das categorias gramaticais ― qualquer falante é capaz de
perceber que existem diferenças funcionais e formais entre, por exemplo, comprar
(verbo) e compra (substantivo) ― que optamos por utilizar o termo enquadre,
mesmo que numa acepção um pouco diferente da mais usual na literatura
lingüística. Com esse termo, fica explícito que a passagem de uma categoria a outra
não é simplesmente um artifício metalingüístico, mas um processo cognitivo
realizado pelo próprio falante. Por essa razão, foram rejeitados os termos
recategorização e transcategorização, que poderiam também designar os processos,
mas na perspectiva do processo em si, e não da perspectiva do falante em relação
ao processo que ele próprio realiza.
68
4.4. As formações X-ar
De forma semelhante ao processo descrito no item 4.3, também é possível
haver o processo inverso, isto é, um verbo ser formado a partir de um substantivo,
por reenquadre morfológico. O verbo perfumar, por exemplo, seria formado a partir
do substantivo perfume, com adaptação morfológica: a construção perde a vogal
temática nominal –e, que a caracteriza como um substantivo, e recebe a vogal
temática verbal –a, característica de verbos. O esquema seria semelhante ao
mostrado na figura 12, só que inverso:
perfum - e
matiz - (e) -
perfum - a
matiz - a
(s)
parafus - o
parafus - a
CONSTRUÇÕES NOMINAIS
(r)
(sse)
(mos)
(do)
(ndo)
...
CONSTRUÇÕES VERBAIS
FIGURA 14
Basilio (1993) aventa três possibilidades de análise para esse tipo de
formação. A primeira delas, rejeitada em seguida pela autora, considera que “tais
formas se estruturam a partir do acréscimo da vogal temática ao radical. Nesse
caso, teríamos um radical comum perfum-, do qual derivariam o substantivo perfume
e o verbo perfumar, pelo acréscimo da respectiva vogal temática” (BASILIO, 1993, p.
297). Num trabalho posterior (BASILIO & MARTINS, 2002)14, a autora deixa de fazer
14
Apesar de o artigo ter sido escrito a quatro mãos, as duas primeiras partes ― onde o assunto que
interessa a este trabalho é discutido ― ficaram a cargo de Basilio; a terceira a cargo de Martins.
69
referência a essa possibilidade e se atém às outras duas, que são as que interessam
ao foco deste trabalho.
A segunda possibilidade, também rejeitada pela autora, é de que “tais formas
resultam do acréscimo de uma VT que adapta morfologicamente o substantivo da
base a uma conjugação verbal. Neste caso, teríamos um processo de conversão
com adaptação temática flexional” (BASILIO, 1993, p. 297). Esta é, com algumas
modificações, a hipótese que adotamos, conforme foi exposto no início deste item.
A terceira possibilidade, a que é defendida pela autora, considera que “tais
formas resultam do acréscimo do elemento derivacional –a, formador de verbos, a
uma base substantiva”. Seria, portanto, um caso de derivação sufixal, em que o
segmento final –a(r) do verbo perfumar seria um sufixo derivacional formador de
verbos. A autora não argumenta propriamente em favor da hipótese que abraça;
restringe-se a levantar problemas de análise para desabonar a hipótese anterior. Ela
própria, no entanto, levanta um problema em relação à própria hipótese que adota: o
fato de haver uma coincidência entre o sufixo formador do verbo e a vogal temática
caracterizadora da flexão verbal.
Como a hipótese defendida neste trabalho é (com restrições de caráter
teórico) a segunda, tentaremos contra-argumentar em relação aos problemas
levantados por Basilio quanto a essa possibilidade de análise.
A primeira crítica feita por Basilio ao que ela chama de conversão é que esta
prevê o amoldamento do substantivo à conjugação verbal e, portanto, o
acréscimo de uma vogal temática verbal, apenas quando a base substantiva
termina em consoante ou em vogal não compatível com a conjugação
verbal. O que observamos, ao contrário, é que, mesmo quando as bases
substantivas já apresentam uma vogal temática compatível com a
conjugação verbal, ainda assim temos o acréscimo de –a, como por
exemplo em perfume / perfumar (e não ∗perfumer, cf. temer) rede / enredar
(e não ∗reder, cf. ceder) etc. (BASILIO & MARTINS, 2002, p. 379).
Sendo assim, será feita referência ao artigo como em parceria; quanto ao autor, referir-se-á somente
a Basilio.
70
Só é possível considerar que na formação de um verbo denominal há
acréscimo de uma vogal temática verbal “apenas quando a base substantiva termina
em consoante ou em vogal não compatível com a conjugação verbal” se não se
considerar que vogal temática verbal e vogal temática nominal são dois elementos
mórficos diferentes. Na verdade, essa “compatibilidade” não existe; como são
elementos
morficamente
diferentes,
não
há
obrigatoriedade
de
serem
fonologicamente iguais. Alguns fatores comprovam que são de fato elementos
diferentes: o primeiro é que a vogal temática nominal é obrigatoriamente átona,
enquanto a vogal temática verbal pode ser átona ou tônica, dependendo da flexão
do verbo. Outra diferença é que o conjunto dos elementos que compõem o
paradigma da vogal temática nominal é diferente do conjunto das vogais temáticas
verbais: as primeiras são -a, -e, -o; as segundas são -a, -e, -i. Há inclusive autores,
como Villalva (2003), que atribuem nomes diferentes a cada um desses elementos
mórficos: o que se costuma chamar na tradição brasileira de vogal temática nominal,
a autora chama “índice temático”, usando a nomenclatura vogal temática apenas
para os constituintes verbais.
Quanto a todas as formações serem em -ar, isso se deve ao fato de essa ser
a única conjugação aberta do português; o conjunto dos verbos de 3ª conjugação é
fechado e a 2ª só pode ser ampliada com formações que utilizem o sufixo –ec(er).
Perceba-se que todas as formações verbais recentes na língua que não utilizam o
sufixo –ec(er) são de 1ª conjugação, mesmo aquelas que não são formadas a partir
de uma base do português, como por exemplo os verbos formatar ou deletar. Esses
verbos são adaptações morfológicas dos verbos ingleses format e delete, ou seja,
foram formados em -ar não porque sejam derivados sufixais, mais porque a
formação em -ar de novos verbos é uma regra categórica para o português atual.
71
A segunda crítica da autora é que
falantes do português parecem interpretar formas como perfumar e
desossar15 como derivadas respectivamente dos substantivos perfume e
osso, ou seja, a relação entre perfume / perfumar, luta / lutar etc não é
estruturalmente análoga a casos como velho / velho (adjetivo / substantivo),
doce / doce (substantivo / adjetivo) etc., de dupla vinculação categorial.
(BASILIO & MARTINS, 2002, p. 379-380)
Neste ponto, é preciso concordar com a autora. De fato as construções
perfume / perfumar não são estruturalmente análogas a velho (adjetivo) / velho
(substantivo). O único problema é que este não é um argumento válido para essa
situação. Basilio chama conversão a um processo que não é em princípio chamado
assim. Azuaga (1996, p. 241), por exemplo, dá a seguinte definição para esse
fenômeno: “A conversão, que alguns lingüistas designam por derivação zero, ou
ainda derivação imprópria, consiste na obtenção de uma palavra a partir de uma já
existente, sem alteração na sua forma.” Não é este exatamente o caso da formação
perfume → perfumar, já que há alteração na forma. Basilio chama “conversão” a
esse processo, alargando a definição tradicional, para em seguida argumentar que
não pode ser conversão, porque é estruturalmente diferente da relação entre os
casos tradicionais de conversão velho / velho.
Na verdade, a relação entre os dois elementos desse par é bem diferente,
podendo até mesmo ser levantada a dúvida se é realmente um caso de conversão,
apesar de aparecer freqüentemente como exemplo do processo ― a própria Azuaga
dá esse mesmo exemplo para o fenômeno. O lingüista Perini (2000, p. 31) comenta
exatamente a diferença de relação entre as classes envolvidas aqui:
Ao contrário do que se dá com os verbos, as classes tradicionalmente
denominadas “substantivo” e “adjetivo” têm limites muito pouco claros. É
fácil distinguir formalmente um substantivo de um verbo, mas a separação
entre substantivos e adjetivos é tão pouco marcada que há razão para
duvidar da existência de duas classes distintas. (Perini, 2000, p. 31)
15
No item 4.5 será analisado esse tipo de construção.
72
Não é esse o foco deste trabalho, mas é possível que substantivos e adjetivos
sejam extremidades de um continuum, em que há alguns elementos limítrofes, que
tenham características comuns a ambas as classes. A diferença básica entre essas
duas classes é de ordem sintático-semântica: substantivos são núcleos e
referenciam; adjetivos são adjuntos e caracterizam. Do ponto de vista puramente
morfológico, as duas classes não se distinguem. Há determinadas palavras que
seriam consideradas como substantivos, mas que podem caracterizar, servindo
como adjunto:
(6) Tenho dois filhos homens.
Outros vocábulos expressam em princípio características, mas podem servir
perfeitamente para referenciar, funcionando como núcleo:
(7) No meu prédio há uma gorda no primeiro andar, um careca no segundo, uma gostosona
no terceiro e um cardíaco no quarto.
Nenhuma das construções grifadas nos exemplos poderia ser considerada
prototipicamente substantivo nem adjetivo. Estariam num espaço intermediário do
continuum, assim como todos os exemplos listados por Basilio: velho, doce, absurdo
(1993, p. 299).
O terceiro argumento usado por Basilio para desconsiderar o processo
perfume → perfumar como uma conversão é que
o elemento -a que entra na formação desses verbos não se limita à
conjugação do verbo, mas constitui o tema derivante para formações
posteriores, como vemos em [[delimita]Vção]S, [[contenta]Vmento]S,
[[filtra]Vgem]S, [[emociona]Vnte]A etc.,configurando-se, pois, como lexema
verbal. (BASILIO & MARTINS, 2002, p. 380)
Ainda aqui, não é possível considerar o argumento da autora pertinente, já
que o fenômeno apontado não se restringe a formas derivadas. Se a construção
delimitação é formada com a adjunção do sufixo -ção ao tema verbal derivado
delimita-, acontece exatamente o mesmo com a construção captação, por exemplo,
73
em que o tema capta- é primitivo; ou com tratamento, em que o tema trata- é
também primitivo. Ou seja, o fenômeno apontado pela autora não corrobora a tese
de que o -a dos temas delimita-, contenta-, filtra- ou emociona- seja um sufixo por
não se limitar à conjugação do verbo, já que esse elemento também aparece, com a
mesma função, em derivados de verbos primitivos.
Em síntese, não concordamos com Basilio quando se defende a tese de que
o elemento -a de filtrar é um sufixo derivacional, mas tampouco consideramos como
um caso de conversão, pelo menos não da forma como é tradicionalmente definida.
Acreditamos que seja uma conversão “lato sensu”, mas que se define melhor como
reenquadre morfológico, que é o tipo de processo que estamos propondo.
4.5. As formações pref-X-ar
Considera-se tradicionalmente que as formações parassintéticas, isto é, com
adjunção simultânea de um prefixo e de um sufixo a uma base, englobam as
formações do tipo pref-X-suf-vtverbal-(r) (como em amolecer) e do tipo pref-X-a(r)
(como em encerar). Basilio defende essa posição, argumentando que, se não se
considerar o elemento final -a(r) como um sufixo, “teríamos de considerar possíveis
processos de mudança de classe por prefixação, o que torna sobremaneira mais
complexa a descrição dos processos de formação de palavras em português.”
(BASILIO, 1993, p. 301).
Na verdade, o que torna a descrição de processos de formação de palavras
em uma língua mais simples ou mais complexo é a própria língua. Se os processos
são poucos e simples, a descrição é simples; se são muitos e/ou complexos, a
74
descrição torna-se complexa. Tentar criar generalizações que não se sustentam
empiricamente não torna a descrição mais simples, e sim mais imprecisa.
Não parece, no entanto, que as formações do tipo pref-X-ar sejam um caso
de prefixação heterocategorial. Basilio, ao lado da crítica a respeito da mudança de
classe, faz a seguinte observação:
O problema na modificação da descrição de processos como os envolvidos
em desossar, encurtar etc, não se limita à perda de generalização de que
prefixos não são usados para fins de mudança de classe em português.
Temos, de acréscimo, uma situação bem mais complexa, envolvendo a
mistura de prefixação com conversão, o que é, no mínimo, estranho, dado
que normalmente se entende por conversão a mudança de classe sem
nenhuma operação morfológica associada. (BASILIO, 1993, p. 301)
Outros autores, no entanto, não consideram esse processo híbrido tão
estranho assim. Ao contrário de Basilio, pelo menos duas autoras, Villalva (2003) e
Rio-Torto (1998), consideram que as formações do tipo empalidecer e esfriar são
processos de tipos diferentes. Villalva, apesar de se referir aos dois tipos de
formação como parassintéticas, separa-as em formações com prefixo e sufixo (como
amolecer) e em formações com prefixo e sem sufixo, derivadas por conversão (como
alisar) (cf. Villalva, 2003, p. 955).
Rio-Torto (1998, p. 211 et seq.) tem uma visão diferente em relação às
formações em foco. O processo tradicionalmente considerado como parassíntese,
isto é, um processo simultâneo de prefixação e sufixação, é considerado por essa
autora como uma descrição equivocada, sendo rejeitada em favor do que ela chama
de “circunfixação”, ou seja, “a adjunção simultânea de um operador descontínuo, do
tipo en-...-iz- (encolerizar), a-...-ec- (amadurecer), en-...-ec- (ensurdecer), a uma
base, dando origem a um produto heterocategorial” (op. cit, p. 214). Não importa,
neste trabalho, se o conceito de circunfixação é mais adequado que o de
parassíntese; o ponto importante é que essa autora considera os verbos do tipo
75
agrupar, aclarar etc como “formados por prefixação, pressupondo-se que esta tenha
poderes heterocategoriais, ou por conversão, ocorrida antes ou após a adjunção do
prefixo, ou por força desta” (RIO-TORTO, 1998., p. 220). Como se pode ver, as duas
possibilidades rejeitadas por Basilio em favor da cumulação sufixo derivacional /
vogal temática verbal no segmento –a(r) são as únicas aceitas como possíveis por
Rio-Torto.
Concordamos em parte com a visão dessa autora, de que essas formações
são um processo híbrido de prefixação com conversão. Na verdade, essa conversão
“lato sensu” (em que há associação de operações morfológicas) deveria ser
considerada como um caso do processo que está sendo proposto neste trabalho, o
reenquadre morfológico, combinado com a prefixação. Nesse tipo de processo,
teríamos um esquema semelhante ao da figura 13, mas com duas diferenças: a
primeira, óbvia, é de que a direção da formação é da construção nominal para a
verbal. A segunda é de que, na formação esquematizada pela figura 13, o elemento
responsável pela formação da construção nominal é o sufixo; nesta formação, há
uma combinação de acréscimo de prefixo com o elemento que caracteriza os verbos
como categoria, ou seja, a vogal temática verbal. Atente-se que, apesar da
coincidência fonológica, o -a de beleza e o -a de embelezar são dois elementos
mórficos distintos.
Eis o esquema deste tipo de formação:
76
belez - a
CONSTRUÇÃO
NOMINAL
embeleza - a - (r)
CONSTRUÇÃO
VERBAL
emCONSTRUÇÃO
PREFIXAL
FIGURA 15
77
5. AS CONSTRUÇÕES GRAMATICAIS X-o / X-a
Este capítulo é capital na argumentação deste trabalho; é onde será
desenvolvida a hipótese do reenquadre entre construções de gênero. No item 5.1,
argumentaremos em favor de se considerar que existe uma relação intrínseca entre
a noção gramatical de gênero e a noção extralingüística de sexo. Além disso,
assumimos que há uma relação também direta entre o gênero e as vogais temáticas
que formam as construções. Tanto uma relação quanto a outra têm um núcleo
prototípico e irradiações menos prototípicas a partir desse núcleo.
No item 5.2, argumentamos em favor de não se estabelecer nenhuma
diferença entre o que tradicionalmente se considera desinência de gênero e as
vogais temáticas. A seguir, será desenvolvida a hipótese do reenquadre entre
construções de gênero, tanto na construção básica (do tipo menino / menina) quanto
na construção decorrente (do tipo jarro / jarra). Por fim, será apresentada a hipótese
do reenquadre simultâneo à combinação entre construções.
5.1. Vogais temáticas e gênero
5.1.1. Vogal temática
A literatura especializada na área de lingüística é parca em informações a
respeito do que chamamos de vogal temática ou índice temático, especialmente no
que se refere à vogal temática nominal. Dos dicionários de lingüística consultados,
somente os originalmente em língua portuguesa e um único originalmente em língua
estrangeira trazem algum verbete relativo ao assunto. Câmara Jr., no verbete
78
“tema”, define índice temático como um segmento fônico com que o radical se
amplia e que serve de característica mórfica para um conjunto de vocábulos de
mesma espécie (CÂMARA Jr., 1977, p. 231). Acrescenta, ainda, a informação de
que, em português, o índice temático é uma vogal. Jota (1976, p. 349), no seu
dicionário, considera sinônimos os termos “índice temático” e “vogal temática”,
definida como “vogal destacável pela análise, que aparece antes das desinências”.
Acrescenta, ainda, a informação de que podem ocorrer tanto em formas verbais
quanto nominais. Dos dicionários consultados escritos originalmente em outro
idioma, nem Crystal (1985) nem Trask (2004) contemplam a vogal temática com um
verbete. Somente Dubois et alii (1973, p. 582) fazem referência a esse elemento
mórfico, mas de forma muito sucinta: “vogal temática é a que se acrescenta à raiz de
um morfema para formar o tema”.
Algumas obras especificamente sobre morfologia fazem referência direta à
vogal temática. Zanotto (1986, p. 39) assim a define: “é um segmento fônico que se
acrescenta ao radical (primário ou não) para agrupar vocábulos (nomes e verbos)
em categorias.” O autor chama atenção para a distinção entre a vogal temática –a
(como em artista, telefonema e borracha), e o que ele considera, corroborando a
visão de Câmara Jr., a desinência de gênero –a (como em mestra, bela, nova).
Segundo esse autor, a finalidade da vogal temática é ser acrescentada ao radical
para formar o tema, que serve de base para o acréscimo de desinências. Zanotto
considera atemáticos apenas os vocábulos oxítonos terminados em vogal; os
terminados em consoante apresentariam tema em –e, cuja vogal temática só
apareceria nas formas de plural: mares, vezes, males.
Kehdi (1990, p. 34) identifica as vogais temáticas nominais e verbais, as quais
teriam como função marcar classes de nomes e verbos. Esse autor discorda da
79
descrição feita por Câmara Jr., que opõe formas masculinas não-marcadas a formas
femininas marcadas pela desinência –a. Segundo Kehdi (1990), e ratificando a
tradição gramatical portuguesa, há uma oposição de gênero entre –o e –a; sendo
assim, para esse autor, as vogais finais de moço e porca seriam desinências de
gênero, enquanto as terminações de carro e porta seriam vogais temáticas nominais.
As gramáticas tradicionais também trazem poucas informações a respeito das
vogais temáticas nominais. Rocha Lima (1972, p. 196) diz que “vogal temática é o
morfema que caracteriza nomes e verbos portugueses, reunindo-os em classes
morfológicas estanques.” Acrescenta as informações de que as vogais temáticas
nominais, sempre átonas, podem ser –a, -o e –e, e são atemáticos os nomes
acabados em consoante e vogal tônica.
Bechara (1999, p. 337) não define a vogal temática, mas faz referência a ela
quando diz que o tema é “o radical acrescido da vogal temática e que constitui a
parte da palavra pronta para funcionar no discurso e para receber a desinência ou
sufixo.” Os exemplos dados englobam temas nominais (“livro-”) e verbais
(“trabalha-”).
Cunha e Cintra (1985), no capítulo sobre estrutura das palavras (p. 78 et
seq.), identificam, dentre outros morfemas, “as vogais que caracterizam a
conjugação dos verbos” (p. 80). Ou seja, esses autores não reconhecem a
existência das vogais temáticas nominais ─ ou, se a reconhecem, não se
manifestam a respeito.
Villalva (2003, p. 921 et seq.), uma das autoras da Gramática da língua
portuguesa, editada em Portugal, tem uma visão um pouco diferente em relação ao
assunto abordado. Segundo a autora, as classes temáticas nas quais se distribuem
verbos, nomes e adjetivos são determinadas por sufixos chamados de “constituintes
80
temáticos”. Deixando clara a diferença mórfica existente entre os constituintes
verbais e nominais, a autora lhes dá diferentes nomes: vogais temáticas e índices
temáticos, respectivamente (ao contrário da tradição brasileira, que não diferencia,
na nomenclatura, um elemento mórfico do outro). Essa autora enumera três critérios
que definem a inclusão dos nomes (substantivos) e adjetivos em classes temáticas:
o primeiro refere-se ao índice propriamente dito, que pode ser –a, -e, -o ou ∅. A
autora distingue, ainda, nomes com índice ∅ de nomes atemáticos: os primeiros são
aqueles cujo índice temático aparece nas formas de plural, mas não nas de singular
(como apresentador, mar e furriel ─ exemplos da própria autora), enquanto os
segundos são aqueles que nunca apresentam índice temático, como avô, avó, tatu e
café. O segundo critério distingue nomes variáveis de invariáveis; o terceiro nomes
de gênero masculino de nomes de gênero feminino. Cruzando-se todos esses
fatores, a autora apresenta nada menos que vinte e três diferentes classes temáticas
relativas aos substantivos, e nove diferentes classes para os adjetivos.
O único autor que faz um questionamento mais amplo a respeito da vogal
temática é Rosa (2000, p. 128 e ss.), que tem em sua obra um subcapítulo intitulado
“E a vogal temática? (Ou: Afinal, o que é uma vogal temática?)”. A autora dá a
definição tradicional de vogal temática: “é um formativo que expande a raiz para a
constituição do tema, a base para as marcas flexionais.” Adotando a posição de
Anderson, que considera flexionais as categorias relevantes para a sintaxe, a autora
conclui que não é um elemento flexional, já que, segundo ela, não se pode apontar
nenhuma relação entre a vogal temática e a sintaxe. Rosa conclui dizendo que a
vogal temática “seria algo que poderíamos, como Aronoff (1994), considerar
morfologia pura: formas em relação com outras formas”.
81
Gonçalves (2005, p. 17), considera as vogais temáticas um problema para o
critério estabelecido por Anderson. Segundo aquele autor, esses elementos são
insensíveis para a sintaxe, apesar de terem uma clara função de caráter flexional,
que é expandir a raiz para a formação do tema, que por sua vez é a base para o
acréscimo de desinências.
Será feita neste trabalho uma proposta de revisão do papel das vogais
temáticas nominais no português. Não concordamos que esses elementos sejam
invisíveis para a sintaxe. Nos itens 5.1.3 e 6.2.1, será aprofundado o debate a
respeito dessa invisibilidade da vogal temática para os processos sintáticos.
5.1.2. Gênero e cognição
O gênero no português tem sido objeto de numerosos trabalhos acadêmicos,
dentre os quais podemos citar Azeredo (1978), Pereira (1987), Botelho (1996),
Araújo (2003), Deus (2003), Silva (2004), além dos trabalhos pioneiros de Câmara
Jr. (1942 e 1972). O que todos esses trabalhos têm em comum é uma abordagem
prioritariamente tecnicista, que ressalta a dificuldade ou impossibilidade de uma
sistematização coerente da totalidade dos substantivos do português no que diz
respeito ao gênero. Bechara (1999, p. 133) traduz a conclusão a que muitos desses
autores chegaram: “a distinção do gênero nos substantivos não tem fundamentos
racionais, exceto a tradição fixada pelo uso e pela norma”. Essa conclusão está em
concordância com o que Câmara Jr. já tinha dito quase sessenta anos antes, a
respeito do gênero nas línguas em geral: “o gênero nominal, à luz da lingüística
geral, é uma visão caleidoscópica, em que variam consideravelmente o número de
82
classes, as linhas diretrizes da classificação e a maior ou menor coerência com que
essas linhas são obedecidas” (CÂMARA Jr., 1942, p. 132).
Essa abordagem mais racional e científica se contrapôs a uma visão anterior,
menos técnica, de gramáticos que não dispunham de um arcabouço teórico
suficiente para uma descrição adequada dos fatos da língua. Pereira (1987) faz
referência ao modo como esses gramáticos abordavam o gênero, e à evolução do
pensamento lingüístico no que diz respeito a essa abordagem:
Para outros gramáticos, o gênero gramatical é o “sexo suposto”, o “sexo por
extensão, figuradamente”, havendo também os que opõem o “sexo real” ou
“natural” ao “sexo imaginário” ou “gramatical” das palavras.
Progressivamente, contudo, os gramáticos, ao se afastarem da definição
semântica do gênero das palavras, abandonaram também as alusões
figuradas aos sexos das coisas e dos vocábulos. Passaram a definir o
masculino e o feminino como duas classes gramaticais nas quais os
vocábulos se distribuem, com uma função também de distinguir machos e
fêmeas nos substantivos referentes a seres vivos. (PEREIRA, 1987, p. 24-5)
Não pomos em dúvida o valor das abordagens recentes que procuram
analisar o gênero de uma forma mais objetiva; no entanto, como a nossa perspectiva
de análise é cognitiva, o que nos interessa no momento é exatamente essa visão
mais ingênua e mais subjetiva evidenciada pelos gramáticos mais antigos. Essa é a
noção de gênero que têm intuitivamente os falantes leigos, que não se
“contaminaram” por um pensamento mais racional.
Câmara Jr. faz referência a essa noção intuitiva da relação entre gênero
gramatical e sexo:
Franz Bopp, o velho e verdadeiro criador da gramática indo-européia,
admitiu que os homens primitivos indo-europeus tinham transferido a noção
de sexo do reino animal para todas as coisas do universo, que assim lhes
aparecia como um grande conjunto de machos e fêmeas. (CÂMARA Jr.,
1942, p. 133)
Uma evidência disso é o fato, que de maneira alguma é uma coincidência, de
que o mesmo par de palavras é usado para se referir a um e outro conceito: gênero /
sexo masculino, gênero / sexo feminino. Essa relação ocorre porque o gênero, um
fenômeno lingüístico, é conceptualizado em termos de sexo, uma característica
83
biológica. Essa forma de ver o mundo não é um fenômeno ocasional, isolado; pelo
contrário. Isso fica evidente na afirmativa de Lakoff e Johnson (1980, p. 127) de que
“a maior parte do nosso sistema conceptual é metaforicamente estruturado, isto é,
que os conceitos, na sua maioria, são parcialmente compreendidos em termos de
outros conceitos”. Além disso, nossa compreensão do mundo como um todo, e o
conhecimento apreendido desse mundo ― incluindo aí o conhecimento lingüístico ―
se dá a partir dos conceitos mais básicos, relacionados diretamente à nossa
experiência corporal. Lakoff e Johnson (op. cit., p. 129) citam como parte desse
grupo os seguintes conceitos centrais da nossa experiência corpórea: para cima –
para baixo, dentro – fora, frente – atrás, luminoso – sombrio, quente – frio, macho –
fêmea. É, portanto, não só perfeitamente admissível, mas também justificável a
relação que o falante comum estabelece entre gênero e sexo, conceptualizando o
primeiro conceito, mais abstrato, em termos do segundo, mais concreto e mais
básico.
Quanto ao aspecto cultural, há, historicamente, uma assimetria na relação
entre os dois sexos. Como o gênero é conceptualizado em termos de sexo, essa
assimetria refletiu-se também na língua. A diferença de prestígio entre os sexos
remonta a 10.000 anos atrás. A antropóloga Helen Fisher relata que,
com a invenção do arado, os povos se fixaram nas terras e a mulher perdeu
sua antiga função de buscar alimentos. Perdeu sua independência
econômica e seu papel passou a ser o de gerar filhos [...]. O papel dos
homens tornou-se muito mais importante. Eram eles que guerreavam e
aravam o solo, e aconteceu então uma virada ― o que era uma igualdade
entre os sexos transformou-se em mulheres subordinadas e homens
dominadores. (FISHER, 1993, p. 30-1)
Esses foram os primeiros passos para o estabelecimento gradativo do status
do sexo masculino como central, como o padrão de comportamento humano,
relegando o feminino à marginalidade.
84
No início da civilização ocidental, entre os romanos, prevaleceu a idéia de que
havia uma “inferioridade natural” das mulheres (cf. MACEDO, 1990, p. 14). Essa
idéia foi reforçada com a supremacia cristã, quando os mitos originais da civilização
romana foram substituídos pelos judaicos, dentre os quais o mito da criação de Eva,
transcrito a seguir, em que a condição de inferioridade da mulher fica explícita:
“Então o Senhor Deus fez cair um sono profundo sobre o homem e ele adormeceu.
Tirou-lhe uma das costelas e fechou o lugar com carne. Depois, da costela tirada do
homem o Senhor Deus formou a mulher e a apresentou ao homem.” (GÊNESIS 2, v.
21-2).
Com essa dupla herança no que diz respeito à inferiorização feminina, o
pensamento que se seguiu, na Idade Média, não podia ser diferente. Um exemplo
desse pensamento é dado pelo historiador Macedo:
Santo Agostinho, o maior representante do pensamento cristão em sua fase
de afirmação no Ocidente, no De Genesi contra Manicheos (Contra os
maniqueus), considerava a sujeição feminina na ordem natural das coisas.
O homem deveria ser governado pela sabedoria divina. A mulher, ao
contrário, deveria ser governada pelo homem, tal qual o corpo pela alma, a
razão viril dominando a parte animal do ser. (MACEDO, 1990, p. 66)
Em síntese: formou-se, culturalmente, desde que se tem notícia, a noção de
que o masculino é o elemento prototípico ― afinal, segundo um dos mitos básicos
na formulação do pensamento ocidental, o homem foi criado à própria imagem e
semelhança de Deus. O feminino, por sua vez, segundo esse mesmo mito, foi criado
a partir do masculino: é, portanto, um elemento marginal, afastado desse protótipo.
Essa noção, que é cultural e, por isso, ao mesmo tempo, cognitiva ― nossa
cognição se fundamenta não só em experiências básicas corpóreas, mas também
em nossas bases culturais ―, vai ter conseqüências também lingüísticas. Uma delas
é o padrão, praticamente geral, de que o feminino é morfologicamente formado a
85
partir do masculino. Os termos masculinos são mais básicos e preexistem aos
femininos. Esse fato fica saliente nas formações por sufixação, exemplificadas a
seguir:
duque → duquesa
barão → baronesa
conde → condessa
profeta → profetisa
galo → galinha
tigre → tigresa
Outra conseqüência da prototipicidade do masculino é o fato de esse gênero
ser o mais geral na língua, semanticamente menos marcado, enquanto o feminino é
sempre mais específico, semanticamente mais marcado. Se num grupo escolar
houver somente elementos do sexo feminino, vamos nos referir a esses elementos
como “as alunas”, no feminino. Se, no entanto, um único elemento do sexo
masculino for acrescentado a esse grupo, obrigatoriamente temos de passar a dizer
“os alunos”, já que o masculino é mais geral. Além disso, todas as concordâncias
com elementos que não são marcados com gênero, como uma oração, por exemplo,
são no masculino. Observe-se o adjetivo no masculino, concordando com a oração
subjetiva “viver”:
(1) Viver é bom.
(2) É ótimo que você tenha aceitado o convite.
Em resumo: conceptualizamos o gênero em termos de sexo; as diferenças
em relação a como, cognitivamente, os falantes percebem um e outro sexo são
culturalmente motivadas e se refletem no gênero, tornando o masculino o gênero
prototípico, e o feminino afastado desse protótipo.
86
5.1.3. A relação entre vogal temática e gênero
Com base em algumas evidências, apresentadas a seguir, propõe-se neste
trabalho uma nova visão a respeito do papel das vogais temáticas em relação aos
fenômenos sintáticos. A hipótese que pretendemos demonstrar aqui é de que existe
uma estreita relação entre as vogais temáticas e o gênero dos substantivos, o que
tem conseqüências na configuração sintática, via concordância.
A primeira dessas evidências é que, quando analisamos os pares de
construções que são o foco central deste trabalho (mato / mata, barco / barco, horto /
horta etc.), verificamos que em 100% das ocorrências as construções X-o são de
gênero masculino e as X-a são femininas. Um fato categórico como esse não pode
ser mera coincidência. Ao se ampliar o foco de visão para o conjunto dos
substantivos da língua, verifica-se que nesse conjunto a relação entre vogal temática
e gênero não é categórica, já que há construções do tipo X-a que são masculinas,
como mapa e cometa, e construções de gênero feminino em X-o, como tribo, libido,
imago e virago16. No entanto, esses vocábulos são minoria absoluta no conjunto dos
substantivos da língua. Termos femininos em –o só há, ao que consta, os quatro
exemplos citados. Os termos masculinos em –a são mais numerosos, mas mesmo
assim relativamente poucos. Desses termos, a maioria é formada por empréstimos
do grego, como cometa, fantasma, problema, esquema, fonema etc. Vocábulos
masculinos com tema em –a oriundos do latim, como dia, mapa e poeta, são
raríssimos. No próprio latim, já era possível estabelecer uma relação entre as
declinações e o gênero: Câmara Jr. (1979, p. 74) afirma que na 1ª declinação
predominavam os substantivos femininos, na 2ª os masculinos e os da 3ª se
16
Dessas, as únicas de uso corrente são as duas primeiras. E virago, coincidentemente, tem o
sentido de ‘mulher masculinizada’.
87
dividiam em masculinos e femininos. Esse estado de coisas permanece em
português, em que os substantivos com vogal temática –a são predominantemente
femininos, os com tema em –o são masculinos (salvo as exceções citadas) e os de
tema em –e dividem-se em masculinos e femininos. Os substantivos atemáticos são
também basicamente masculinos, como bambu, caqui, café, sofá, vatapá. As poucas
exceções são os vocábulos ralé e fé e os terminados em /a/ nasal: maçã, romã,
jaçanã.
Muitos dos contra-exemplos citados, na verdade, são decorrentes do fato de,
em português, os sufixos serem atribuidores de gênero. Há, em português, sufixos
formadores de palavras femininas, como –ção (consolação, declinação, coroação) e
–ez (viuvez, estupidez, sensatez); sufixos formadores de palavras masculinas, como
–al (laranjal, pinheiral) e –mento (sofrimento, salvamento); e, por fim, sufixos que
podem formar palavras masculinas ou femininas, como –eiro(a) (jaqueira, cajueiro) e
–inho(a) (mesinha, livrinho). A esse último grupo pertencem dois sufixos que formam
palavras masculinas ou femininas, mas sem variação de forma: os sufixos –ista (o/a
artista, o/a tenista, o/a lingüista) e –a (o/a autodidata, o/a espírita). Esses sufixos
justificam uma parte das exceções, ou seja, palavras masculinas que no entanto
terminam em –a. Outra exceção causada pelo gênero intrínseco de um sufixo são os
vocábulos gregos exemplificados acima, a maioria deles formados pelos sufixos
-ema e –oma ― alguns dos quais não segmentáveis no momento atual da língua ―
(fonema, morfema, esquema, problema, telefonema, genoma, sarcoma, tracoma).
Outra evidência da relação estreita entre vogais temáticas e gênero é de
caráter cognitivo: os falantes, de modo geral, estabelecem uma relação imediata
entre construções em –o e o gênero masculino e construções em –a e o gênero
feminino. Kehdi (1990, p. 30) lembra que na linguagem popular espontânea há
88
criações (inexistentes na língua culta) que opõem formas masculinas em –o a outras
em –a que eram originalmente femininas: coiso, corujo, crianço, madrasto. Outro
argumento é que os falantes do português estranham nomes próprios femininos em
–o, como o da rainha da antiga Cartago, Dido, ou nomes femininos japoneses, como
Noriko.
Outro forte argumento em favor da tese de que o falante relaciona
intuitivamente os gêneros e as vogais temáticas foi a pesquisa desenvolvida por
Name (2002), em sua tese de doutorado, a respeito da aquisição do gênero por
crianças pequenas. A hipótese da autora é de que os determinantes são os
principais responsáveis pela atribuição de gênero a um substantivo. Na pesquisa,
foram contadas às crianças histórias curtas utilizando objetos com nomes
inventados, terminados em –a, –e ou –o átonos. Havia nas histórias objetos cujos
nomes eram masculinos com as três terminações e objetos com nomes femininos
também com todas as terminações. O gênero de cada nome era explicitado no
próprio texto apresentado às crianças, por intermédio dos determinantes. Ao final de
cada história, fazia-se à criança uma pergunta, à qual ela era obrigada a responder
identificando o gênero do substantivo indicado na pergunta. Nas respostas, 98% das
crianças relacionaram perfeitamente o gênero masculino a um substantivo terminado
em –o, e gênero feminino a um substantivo terminado em –a. No entanto, quando
essa relação era invertida (feminino em –o e masculino em –a), o nível de acerto
caiu para 80,29%. Ou seja, mesmo com o gênero já tendo sido explicitado pelo
narrador da história, ainda assim quase 20% das crianças associaram o feminino ao
–a e o masculino ao –o. Os dados de Name de fato comprovam que a indicação do
gênero no determinante é eficaz na aquisição do gênero de um substantivo.
Entretanto, não é ocasional o fato de uma parcela razoável das crianças ter trocado
89
o gênero dos substantivos, mesmo depois de esse gênero ter sido explicitado. Esses
dados comprovam a hipótese de que os falantes estabelecem uma relação direta
entre o gênero masculino e a vogal temática –o e o gênero feminino e a vogal
temática –a.
Outro trabalho que reforça essa tese é um artigo de Figueira (1996), sobre
aquisição da linguagem, no qual a autora apresenta uma série de exemplos
concretos da relação que os falantes (neste caso específico, crianças de dois a cinco
anos de idade) estabelecem entre a terminação –a e o gênero feminino e a
terminação –o e o gênero masculino. Eis alguns dos exemplos:
(3) “Faça essa fada ser uma fada boa e esse fado ser ruim.”
(4) “Bom dio é para homem, bom dia é para mulher.”
(5) “― Que ele fez com ela?
― Deu um tapo na cara.”
(6) “Eu não gosto de pai careco.”
(7) “Eu vou na dentista, a Renata vai no dentisto.”
(8) “Ela é a minha fona.”
Os trabalhos de Name e Figueira são a respeito de aquisição da linguagem;
utilizam, portanto, informantes em idade de aquisição. Para tentar comprovar que a
associação entre as terminações das palavras e o gênero se mantém na idade
adulta, elaboramos um teste, no qual os informantes deveriam relacionar algum
gênero a construções do tipo X-o, X-a, X-e e X-∅. A exemplo do teste feito por
Name, utilizamos substantivos inventados, com a diferença de que os informantes
não eram informados a respeito do gênero desses substantivos; deveriam, ao
contrário, atribuí-lo eles mesmos. O teste foi apresentado a 56 informantes, todos
adultos, de ambos os sexos, com idades variando entre 18 e 40 anos. O teste
constituía num pequeno texto, contextualizando o uso das palavras inventadas, ao
90
fim do qual os informantes deveriam relacionar adjetivos que denotam cores a esses
substantivos, fazendo, naturalmente, a concordância de gênero. Nenhuma
explicação prévia foi dada aos informantes, ou seja, nenhum deles sabia qual o
objetivo do teste. O texto do teste está no anexo 1.
Foi dada aos informantes a instrução para que usassem letra maiúscula de
imprensa, para que se evitassem confusões entre a letra o e a letra a, que podem
ser facilmente confundidas em caligrafia cursiva. Dos 56 testes aplicados, sete foram
descartados, porque os informantes atribuíram simultaneamente gênero masculino e
feminino ao mesmo substantivo. Um deles, por exemplo, escreveu que os “carubos”
eram “vermelhos e pretas”. Dos 49 restantes, os resultados percentuais na atribuição
do gênero a cada uma das construções foram os seguintes:
TIPO DE CONSTRUÇÃO
ATRIBUIÇÃO DE GÊNERO
MASCULINO
ATRIBUIÇÃO DE GÊNERO
FEMININO
X-o
94,87%
5,13%
X-a
3,85%
96,15%
X-e
84,62%
15,38%
X-∅ (terminada em –i)
78,85%
21,15%
X-∅ (terminada em –ã)
11,54%
88,46%
Como podemos comprovar pela tabela acima, não só as crianças, mas
também os falantes adultos associam intuitivamente a construção do tipo X-a ao
gênero feminino e a construção do tipo X-o ao gênero masculino. Os dados
comprovam também que os falantes intuem que as construções em X-∅ são
predominantemente masculinas, a não ser quando X (ou, na nomenclatura
tradicional, o radical) termina em /a/ nasal: nesse caso, a grande maioria dos
91
falantes considerou que eram construções femininas. Nas construções em X-e
houve uma predominância de atribuição de gênero masculino, talvez devido ao fato
de o masculino ser mais prototípico ― ou seja, quando não se tem nenhum indício
de qual gênero usar, dá-se preferência ao masculino. De todos os dados, os mais
conclusivos, no entanto, são os que relacionam os gêneros às construções X-o e
X-a. Com esta pequena mostragem, e com os argumentos anteriores, espero ter
apresentado evidências suficientes para comprovar a primeira hipótese apresentada
em 1.2, aquela que diz que há uma relação direta entre a vogal temática e o gênero
dos substantivos.
5.2. Vogal temática x desinência de gênero
Conforme já apresentado brevemente no item 5.1.1, há duas principais
propostas de análise do aspecto morfológico do gênero no português. Nas duas
propostas, há uma oposição entre vogais temáticas e desinência(s) de gênero.
Considera-se tradicionalmente que a desinência de gênero só ocorre em vocábulos
referentes a seres sexuados, indicando o sexo desses seres. Dessa forma, somente
em vocábulos como garoto / garota ou porco / porca ocorreria esse tipo de morfema.
As vogais átonas finais de substantivos referentes a seres não-animados são
consideradas vogais temáticas.
Das duas descrições propostas, a mais tradicional é a que opõe as
desinências de gênero -o, como a vogal final de urso, e -a, como em ursa,
constituindo exceções todos os casos que não se enquadrem aí. Essa descrição é
adotada, por exemplo, por Cunha e Cintra (1985), Jota (1981) e Kehdi (1990). A
outra descrição foi feita por Câmara Jr., o qual propôs que somente o elemento -a
92
seja considerada desinência de gênero; a forma masculina seria não-marcada
morfologicamente, a exemplo do singular, no português. Essa proposta de análise
englobaria um número bem maior de formas de masculino, antes relegadas à lista
de exceções, tais como português, professor, peru, parente. Assim, a presença do
elemento -a ― que seria considerado a única desinência de gênero ― indicaria o
gênero feminino; a ausência desse morfema indicaria masculino. Nessa proposta, o
-o de menino e urso é considerado uma vogal temática, igualando estruturalmente
essas palavras a teto e nabo. A proposta de Câmara Jr. passou a ter um grande
número de adeptos, dentre os quais até mesmo o gramático Rocha Lima (LIMA,
1972).
As duas propostas podem ser assim sintetizadas:
SERES NÃO-ANIMADOS
SERES ANIMADOS
–a
PROP. TRADICIONAL
d.g.
CÂMARA JR.
d.g.
–o
EXEMPLO
gata
d.g.
EXEMPLO
gato
v.t.
–a
v.t.
EXEMPLO
mesa
v.t.
–o
v.t.
EXEMPLO
carro
v.t.
Neste trabalho, no entanto, não consideramos pertinente a diferenciação
entre desinência de gênero e vogal temática, porque essa distinção pode causar
alguns problemas ou inconsistências na análise. A primeira delas ocorre no caso dos
elementos polissêmicos. Na polissemia, há uma expansão do significado de um
vocábulo, por metáfora ou metonímia, como nos exemplos a seguir:
(9) Pedro feriu-se em uma das pernas.
(10) Esta cadeira tem uma das pernas mais curta.
Na sentença (9), o vocábulo perna está sendo usado num sentido mais
básico, e em (10) há uma extensão metafórica. São, no entanto, duas ocorrências do
93
mesmo vocábulo; a polissemia não cria novos vocábulos, e sim novos usos para
vocábulos já existentes. Acontece o mesmo com os vocábulos porca ou cachorra: o
primeiro pode significar ‘fêmea do porco’ ou ‘peça metálica, munida de um furo
cilíndrico, cuja superfície é rosqueada para receber um parafuso’17; o segundo pode
significar ‘fêmea do cachorro’ ou ‘arma de fogo’, na linguagem dos marginais
(certamente tendo como fundamento da metáfora a noção de ‘ferocidade’). Temos,
então, o vocábulo porca referindo-se a: A) um ser animado do sexo feminino, em
oposição a porco; nesse caso, a vogal final deve ser considerada uma desinência de
gênero; e B) um ser não-animado; nesse caso, o -a final deve ser considerado uma
vogal temática. O mesmo ocorre com o termo polissêmico cachorra, que vai ter
numa acepção uma desinência de gênero e em outra uma vogal temática. É no
mínimo estranho que, num uso básico, um vocábulo tenha uma estrutura
morfológica e num uso metafórico passe a ter outra ― sendo que a forma é
rigorosamente a mesma.
Mais estranho ainda seria o caso de periquita. Esse vocábulo, de uso popular,
significa ‘órgão sexual feminino’. Foi claramente criado a partir de periquito,
formando um feminino de uso apenas metafórico18, já que periquito é um substantivo
epiceno. Isso causa uma situação conflitante: periquita tem um referente nãoanimado; sendo assim, o -a final deveria ser considerado uma vogal temática. Ao
mesmo tempo, é a forma feminina de periquito, devendo, portanto, o -a final ser
considerado uma desinência de gênero.
17
Segundo Houaiss (2001, p. 2263), a razão dessa metáfora é que o órgão sexual do porco tem a
forma helicoidal, semelhante à rosca de um parafuso.
18
São comuns nomes de animais, principalmente aves, metaforizando os órgãos sexuais, tanto o
masculino quanto o feminino (cf. pinto, peru, passarinho, passarinha).
94
Se considerarmos, como na descrição tradicional, o -o final de nomes
referentes a seres animados também uma desinência de gênero, esse problema se
estende a outros vocábulos que também têm extensões metafóricas a partir de seu
significado básico, como gato (‘instalação irregular feita para furtar energia elétrica’),
macaco (‘ferramenta para elevar veículos’), pinto ( ‘órgão sexual masculino’).
O segundo problema é em relação aos vocábulos femininos que têm o gênero
motivado pelos referentes, mas não formam pares morficamente equivalentes.
Esses vocábulos se distribuem em dois grupos: os pares heteronímicos, como
ovelha, cabra, vaca, e os femininos formados por sufixação, como sacerdotisa,
condessa ou duquesa. Como não existe uma forma morficamente equivalente de
masculino, o -a final desses vocábulos é considerado, na descrição tradicional, uma
vogal temática. É difícil, no entanto, admitir que não existe absolutamente nenhuma
relação entre o gênero dessas palavras e o elemento final -a, que claramente faz
referência ao feminino.
O terceiro e último problema diz respeito ao conceito estruturalista de
morfema zero (∅). Segundo Jota (1981, p. 215), um morfema ∅ é uma “ausência de
morfema com caráter distintivo”, ou seja, uma determinada posição na estrutura do
vocábulo pode estar preenchida ou não, sendo que o não-preenchimento é
significativo. Por exemplo, no par casa∅ / casas, o singular é interpretado pelo não
preenchimento da posição da desinência de número. Outro exemplo seria a forma
verbal canta∅∅, em oposição a cantávamos, em que as duas posições vazias
fazem com que interpretemos o primeiro morfema ∅ como presente do indicativo e o
segundo como 3ª pessoa do singular. Na oposição de gênero, como em filho / filha,
por exemplo, foi estabelecido que há uma oposição entre um morfema ∅ de
95
masculino e a desinência de gênero -a de feminino. O problema é que, ao contrário
dos outros exemplos, a posição ocupada pela desinência de gênero -a não está
vazia na forma masculina; está preenchida pela vogal temática -o19. Isso faz com
que ou se interpretem essas oposições como duas desinências de gênero, que é a
descrição tradicional, ou se considere que a desinência de gênero e a vogal temática
são paradigmaticamente equivalentes.
Optamos, no entanto, por não adotar nenhuma das duas alternativas: por
todas as razões expostas neste item, e pelo que ficou demonstrado no item 5.1.3, ou
seja, que existe na verdade uma relação direta entre a vogal temática e o gênero ―
não só em vocábulos relativos a seres animados ―, consideramos que não é
pertinente a distinção entre desinência de gênero e vogal temática. Essa posição,
apesar de contrária ao que os lingüistas brasileiros de modo geral adotam, não é
inédita: Villalva (2003, p. 922) também não faz distinção entre esses dois elementos.
No item dedicado às classes temáticas dos vocábulos, a autora enumera como
exemplos de índices temáticos20 as vogais finais dos vocábulos aluna, mapa, mosca,
casa (tema em -a); aluno, livro, modelo, ídolo (tema em -o); infante, abutre, gente,
semente (tema em -e). Como se pode ver, essa autora põe no mesmo patamar
vogais finais tanto de vocábulos referentes a seres animados como referentes a
seres não-animados. Consideramos, pois, em consonância com Villalva, que não há
diferença na constituição interna dos vocábulos mesa e menina, nem de livro e pato;
todos os elementos átonos finais dessas palavras podem ser, conjuntamente,
considerado vogais temáticas.
19
Somente em formas atemáticas, terminadas em vogal tônica ou consoante, como peru, francês ou
cantor, a posição ocupada pela desinência de gênero vai estar vazia.
20
Villalva, conforme já assinalado em 5.1.1, distingue na nomenclatura vogais temáticas verbais de
vogais temáticas nominais. A autora chama as verbais de “vogais temáticas”; as nominais chama de
“índices temáticos”.
96
5.3. A construção básica X-o / X-a
5.3.1. Protótipos semânticos e formais
Os substantivos, além de constituírem, em conjunto, uma construção,
conforme visto em 4.3, internamente também se distribuem em subcategorias, as
quais, por sua vez, também constituem construções. Essas categorias estão
relacionadas a dois fatores: o primeiro deles, de caráter semântico, é o gênero dos
substantivos. O segundo, de caráter formal, é a vogal temática que figura na
construção.
Foi visto, em 5.1.2, que o gênero dos substantivos é conceptualizado como
uma metáfora de um dos conceitos básicos na cognição humana, que é a diferença
entre macho e fêmea. Em uma parte dos substantivos relacionados a seres
sexuados, essa relação não é metafórica; é referencial. Isso acontece nos pares de
substantivos que têm uma forma para se referir ao sexo masculino e outra para o
feminino, como homem / mulher, pombo / pomba, galo / galinha, bode / cabra,
francês / francesa. Em relação ao significado, esse seria o núcleo prototípico da
construção. A partir desse núcleo, irradiam outros conjuntos em que a relação com a
noção de macho / fêmea é cada vez menos referencial. Desses conjuntos, o mais
próximo do núcleo é o grupo de substantivos unigenéricos referentes a seres
sexuados, como onça, juriti, borboleta. Na seqüência, vêm os substantivos com
referência concreta relativos a seres não-sexuados e, por fim, os mais afastados do
núcleo prototípico são os de referência abstrata.
Não levando em consideração a forma, as construções de gênero podem ser
assim esquematizadas:
97
HOMEM / MULHER
GATO / GATA
CANTOR / CANTORA
DUENDE
AGULHA
PAZ
MARIPOSA
MAR
TUBARÃO
CARRASCO
CARAMBOLA
INAUGURAÇÃO
CARRO
GENTILEZA
SOCIEDADE
FIGURA 16
É interessante notar que, mesmo que a referência não esteja no sexo ―
onça, por ser um substantivo feminino, não tem somente referentes do sexo feminino
― a conceptualização que está subjacente fica explícita em algumas situações. Nas
histórias infantis, por exemplo, muito dificilmente apareceria uma personagem que
se chamasse “Senhor Onça”. O gênero feminino do substantivo vai causar uma
relação direta com o sexo feminino: a probabilidade maior é que a personagem seja
“Dona Onça”. Da mesma forma, seriam “Dona Tartaruga”, “Seu Jabuti”, “Dona
Lagartixa” e assim por diante. Com os substantivos abstratos, que têm uma
referência muito mais distante da noção concreta de sexo, também acontece um
processo semelhante. Quando são personificados, o sexo da personagem vai
corresponder ao gênero do substantivo. Dessa forma, a Liberdade e a Justiça são
personificadas como mulheres; o Amor e o Tempo são apresentados com forma
masculina21.
21
Essa relação imediata só não vai acontecer com palavras relativas a seres humanos com alto
índice de ocorrência, como pessoa ou criança. Nesse caso, o gênero não aciona a relação com sexo.
Em palavras com menor ocorrência, acontece a relação com sexo: dificilmente um homem usaria a
expressão “meu cônjuge” (que é uma palavra considerada pela gramática tradicional como
sobrecomum) para se referir à própria esposa.
98
As construções de gênero também se agrupam de acordo com as vogais
temáticas que figuram nos substantivos. Conforme mostrado no item 5.1.3, há uma
relação entre vogal temática e gênero. O feminino é prototipicamente expresso pela
vogal temática -a; o masculino pela vogal -o. Os nomes atemáticos se aproximam do
núcleo prototípico do masculino, e os de tema em -e ficariam, numa configuração
esquemática, eqüidistantes dos dois núcleos prototípicos. A representação
esquemática da prototipicidade das vogais temáticas em relação ao gênero seria a
seguinte:
SUBSTANTIVOS
MASCULINOS
SUBSTANTIVOS
FEMININOS
+ prototípico
-o
-a
-∅
-e
-a
-e
-∅
-o
- prototípico
FIGURA 17
Ao cruzarmos o esquema semântico com o formal, encontraríamos um núcleo
prototípico mais restrito, representado pelos pares do tipo menino / menina, moço /
moça, coelho / coelha, em que a noção de sexo está explícita e as vogais temáticas
99
são -a para feminino e -o para masculino. As inúmeras combinações entre as vogais
temáticas utilizadas e a relação com sexo mais referencial ou mais metafórica
formam uma gradação nas construções de gênero que partem do núcleo prototípico
até chegar à zona mais periférica, em que há substantivos masculinos em -a e, mais
afastados ainda do protótipo, femininos em -o. Todos os substantivos de tema em -e
ficam numa zona neutra de prototipicidade, ou seja, não são prototipicamente
masculinos nem femininos. O substantivo abstrato feminino com tema em -o libido
seria talvez o mais afastado possível do protótipo.
5.3.1. O reenquadre entre as construções de gênero
Foi proposto, no item 4.3, o processo de formação de vocábulos por
reenquadre morfológico, no qual o vocábulo primitivo perde as características
morfossintáticas da classe a que pertence e adquire as da classe em que está se
reenquadrando. Um processo semelhante ocorre entre as subcategorias do
substantivo: os elementos masculinos das construções se reenquadram como
femininos. Dessa forma, menino, que é um exemplo da construção básica, perde o
seu elemento caracterizador como uma construção de masculino, ou seja, a vogal
temática -o, e se reenquadra em uma construção de feminino, recebendo a vogal
temática -a, resultando na construção menina. Nessas construções, que são
referentes a seres sexuados, os valores semânticos envolvidos são óbvios: as
variações de sexo. Esse reenquadre também pode acontecer a partir das
construções com tema em -e e em -∅, mas não são prototípicos. O esquema a
seguir mostra o processo de reenquadre das construções de gênero:
100
+
PROTOTIPICIDADE
Tema em -o
MASC 1
MASC 2
FEM
-
+
PROTOTIPICIDADE
-
PROTOTIPICIDADE NEUTRA
Tema em -e
Tema em -∅
MASC 1
MASC 2
FEM
MASC 1
MASC 2
FEM
+
PROTOTIPICIDADE
-
Tema em -a
FEM 1
FEM 2
MASC
FIGURA 18
Tema em -o:
MASC 1: menino, pato, médico
MASC 2: carro, livro, tucano
FEM: libido, tribo
Tema em ∅:
MASC 1: peru, cantor, freguês
MASC 2: sofá, maracujá, urubu
FEM: fé, pá, ralé
Tema em -e:
MASC 1: mestre, elefante, parente
MASC 2: pente, lustre, abutre
FEM: ponte, árvore, esfinge
Tema em -a:
FEM 1: menina, pata, médica, mestra, elefanta, parenta, perua
FEM 2: casa, mesa, cobra
MASC: fantasma, poeta, mapa
No esquema, os conjuntos representados pelo número 1 são os relativos a
seres sexuados envolvidos no processo de reenquadre. Os conjuntos de número 2
são de vocábulos do mesmo gênero do primeiro grupo, mas não envolvidos no
101
processo. Os do terceiro grupo são substantivos do gênero inverso ao dos vocábulos
envolvidos no reenquadre.
A seta com linha mais cheia mostra o reenquadre prototípico: X-o → X-a. Os
outros reenquadres, representados pelas setas com linha mais fina, também são
possíveis, mas são menos ocorrentes. O reenquadre X-e → X-a ocorre, por
exemplo,nas formações parente → parenta ou mestre → mestra. Essas formações,
no entanto, além de pouco ocorrentes, tendem a ser desfeitas pelos falantes. Não
são incomuns sentenças como as a seguir:
(11) Maria é mestre em Lingüística.
(12) Maria é parente do meu vizinho.
(13) Maria é presidente do clube.
As formações X-∅ → X-a com X terminando em vogal tônica são bastante
incomuns. A única que nos ocorreu foi peru → perua. Mais produtiva é a formação,
nesse padrão, na qual X termina em consoante. Tradicionalmente, esse conjunto de
vocábulos é considerado como tema em -e, que é a vogal que aparece nas formas
de plural. Esse padrão, exemplificado pelas formações inglês → inglesa ou pastor →
pastora, seria do seguinte tipo:
MASCULINO SINGULAR
FEMININO SINGULAR
X-∅ → X-a
MASCULINO PLURAL
FEMININO PLURAL
X-e-s → X-a-s
O esquema da figura 18 representa todo o conjunto dos substantivos da
língua. Essa representação divide os substantivos de cada subconjunto temático em
três grupos, dos quais somente o primeiro representa os vocábulos envolvidos no
102
processo de reenquadre. Perceba-se que é um processo produtivo, mas não
obrigatório ― nem todos os substantivos relativos a seres sexuados vão
necessariamente se reenquadrar como femininos. A produtividade do processo, no
entanto, se comprova em exemplos como a sentença (9), no item 5.1.3: fono (X-o)
→ fona (X-a)22. É interessante notar que, por analogia, pode acontecer o processo
invertido, ou seja, um termo feminino se reenquadrar como masculino. Os exemplos
dados por Kehdi (1990) ilustram esse fato: crianço, corujo, madrasto.
5.4. A construção decorrente X-o / X-a
Neste item, retomamos o problema que deu origem a este trabalho, ou seja,
as construções gramaticais do tipo veio / veia, mato / mata, poço / poça. Duas
questões se colocam, opostas entre si: o que esses pares têm de semelhantes às
construções analisadas no item anterior, do tipo moço/ moça ou pombo / pomba? E
o que têm de diferentes? Essas são as questões que tentaremos responder neste
item. Da mesma forma que a vogal temática em si, poucos autores fazem referência
a esses pares: entre os consultados, somente três o fazem explicitamente. Um deles
é Câmara Jr. (1970), que iguala os pares que se referem a seres sexuados, como
urso / ursa, aos que se referem aos não-sexuados, como barco / barca,
considerando tanto uma construção quanto a outra como casos de flexão. Outro
autor que aborda esses pares é Carvalho (1984), cuja visão é corroborada por
Bechara (1999). Ambos consideram esses casos como derivacionais. O status
flexional ou derivacional dessas construções (e também das construções analisadas
em 5.3) será investigado mais pormenorizadamente no capítulo 6 deste trabalho.
22
É claro que a grande quantidade de pares existentes na língua, por si só, já comprova a
produtividade do processo. O que queremos evidenciar, nesse momento, é que o processo continua
produtivo na criação de novas formas.
103
Voltando às questões que serão abordadas neste item: a primeira delas é o
que têm em comum os dois tipos de construção. Formalmente a semelhança é
evidente: tanto rato / rata quanto fruto / fruta têm exatamente a mesma estrutura: há
a mesma oposição de vogais temáticas nos dois pares. Essa semelhança formal foi
o que levou os autores citados a concluírem que se trata exatamente do mesmo
caso. Do ponto de vista semântico, porém, a semelhança não é tão evidente.
Câmara Jr. tentou estabelecer uma generalização semântica para esses pares:
(...) o masculino é uma forma geral, não-marcada, e o feminino indica uma
especialização qualquer (jarra é uma espécie de «jarro», barca um tipo
especial de «barco», como ursa é a fêmea do animal chamado urso, e
menina uma mulher em crescimento na idade dos seres humanos
denominados como a de «menino»). (CÂMARA Jr., 1970, p. 88-9)
O problema é que, nem sempre, essa diferenciação se sustenta,
empiricamente. Pereira (1987) observou que em vários casos, como poço / poça ou
espinho / espinha, a relação geral/específico não ocorre. Poderíamos acrescentar,
ainda, porto / porta, veio / veia, sapato / sapata e diversos outros. Ao contrário do
que ocorre com os substantivos referentes a seres sexuados, a relação semântica
entre esses pares não tem a regularidade que Câmara Jr. tentou estabelecer. A
partir dessa constatação, Pereira conclui, então, que “não há efetivamente
justificativa adequada para se afirmar que existe um processo sintático-semântico
regular de ‘variação de gênero’ em substantivos inanimados, semelhante à variação
regular dos substantivos animados” (op. cit, p. 47).
Numa abordagem construcional, consideramos que os pares porco / porca e
jarro / jarra não podem ser considerados como exatamente a mesma construção,
justamente pela diferença de significado entre o conjunto a que pertence o primeiro
par ― que é regular e indica sexo ― e o conjunto a que pertence o segundo, cuja
regularidade não é tão evidente. Consideramos, no entanto, que existe uma relação
íntima entre um conjunto e outro: a construção que envolve os seres não
104
sexuados é decorrente da construção básica, que envolve os seres sexuados.
Em menino → menina, que é um exemplo da construção básica, há um reenquadre
do masculino para o feminino, conforme visto no item anterior. Nas construções jarro
→ jarra há também um reenquadre do mesmo tipo: a construção de masculino perde
o elemento que a caracteriza como tal, ou seja, a vogal temática -o, e adquire a
característica morfossintática da construção de feminino ― a vogal temática -a.
Conforme visto em 3.2.5, em toda decorrência entre construções há uma
relação de herança, ou seja, a construção decorrente herda alguma característica da
construção de origem. Em relação à forma, a característica herdada foi a ocorrência
das vogais temáticas mais produtivas no processo de reenquadre da construção
básica: -o e -a. No que diz respeito ao significado, a construção decorrente vai
herdar a característica de o masculino ser o elemento nuclear, prototípico, enquanto
o feminino é o elemento marginal, que se afasta do protótipo. Se na construção
básica essa diferença entre os gêneros se realiza como a diferença entre os sexos,
na construção decorrente essa relação vai ter um caráter bem menos objetivo.
Nessa construção, o masculino vai se caracterizar por ser o elemento mais geral ―
como Câmara Jr. estabeleceu ― mas também vai ter um valor semântico mais
básico, menos figurativo. O feminino, ao contrário, vai ter valores semânticos mais
específicos e mais figurativos (metafóricos ou metonímicos). A relação de herança
que se estabelece entre as construções, como se pode perceber, é uma ligação por
polissemia, isto é, uma extensão do sentido da construção básica está presente na
construção decorrente. As oposições semânticas que se estabelecem entre o
masculino e o feminino na construção decorrente vão ser mais exploradas no item
5.4.1.
105
A seguir, apresentamos um esquema da decorrência entre os dois conjuntos
de construções:
+
PROTOTIPICIDADE
-
+
Tema em -o
MASC 1
MASC 2
-
PROTOTIPICIDADE
Tema em -e
Tema em -∅
FEM
MASC 1
MASC 2
+
PROTOTIPICIDADE NEUTRA
FEM
MASC 1
MASC 2
PROTOTIPICIDADE
-
Tema em -a
FEM
FEM 1
FEM 2
MASC
⇒ ligação por polissemia
+
PROTOTIPICIDADE
-
+
Tema em -o
MASC 1
MASC 2
FEM
PROTOTIPICIDADE
-
Tema em -a
FEM 1
FEM 2
MASC
FIGURA 19
A parte superior do esquema é a mesma já apresentada no item 5.3, em que
abordamos a construção básica; a parte inferior representa a construção decorrente.
Perceba-se que os subconjuntos de substantivos envolvidos no segundo reenquadre
não são os mesmos do primeiro. Os grupos envolvidos nos reenquadres da
construção básica (identificados, no esquema, pelo algarismo 1) referenciam sempre
seres
sexuados;
na
construção
decorrente,
os
subconjuntos
envolvidos
(identificados pelo algarismo 2) englobam os vocábulos referentes a seres nãosexuados.
106
5.4.1. Relações semânticas
Numa análise de base composicional, em que o significado do todo é
estabelecido pela soma dos significados das partes, os pares da construção
decorrente (jarro / jarra, porto / porta, marco / marca etc) deveriam ser sinônimos
perfeitos, já que a vogal temática, em si, não tem significado23. O que causa a
diferença de significado entre os elementos do par é, portanto, como vimos, o
reenquadre em uma outra construção. Essa diferença semântica causada pelo
reenquadre se baseia no princípio da não-sinonímia, estabelecido por Goldberg
(1995). Segundo esse princípio, conforme visto em 3.2.4, se duas construções são
sintaticamente distintas devem ser semântica e pragmaticamente distintas. Esse
princípio foi formulado para servir de base à análise de construções sintáticas (como
evidencia o termo sintaticamente). Pode, no entanto, ser adaptado, e passa a ser
verdadeiro para todo e qualquer tipo de construção: onde se lê “sintaticamente”,
pode-se ler “formalmente”; dessa forma, vai passar a abranger também construções
morfológicas.
Temos, assim, uma construção masculina mato que dá origem, por
reenquadre, à construção feminina mata ― que deveria, se levados em conta
apenas os significados de seus elementos constituintes, ser sinônima da construção
original. Aplicado o princípio da não-sinonímia, no entanto, há duas possibilidades
para as construções que em princípio deveriam ser perfeitamente sinônimas. A
primeira delas é o bloqueio de uma das formas, de acordo com Aronoff (1976): se há
duas formas concorrentes na língua, uma é eliminada em benefício da outra. É o
que acontece, por exemplo, com os substantivos deverbais *formamento e
23
O que há, conforme exposto no item 5.1, é uma relação direta entre as vogais temáticas -a e -o e
os gêneros feminino e masculino, respectivamente; e uma conceptualização dos gêneros com base
no sexo biológico. Isso não significa, no entanto, que as vogais temáticas signifiquem sexo.
107
*formância, que foram bloqueados pela opção que os falantes fizeram pelo termo
formação24. A outra possibilidade é uma especialização no significado da forma
concorrente, passando ambas a co-ocorrer. É o que acontece com os deverbais
recebimento e recepção, ou com os deadjetivais claridade e clareza. E é também o
que ocorre com os pares em foco neste item: há uma especialização no significado
da forma reenquadrada na construção de feminino.
Essa especialização pode ser principalmente de dois tipos: ou acontece uma
restrição no valor semântico em relação ao masculino, tomando um significado mais
específico, ou acontece uma extensão figurativa do significado, de base metafórica
ou metonímica. Alguns pares, no entanto, estabelecem entre si uma relação
totalmente imprevisível, conforme veremos a seguir. Exemplos do primeiro tipo, em
que o feminino restringe o valor semântico do masculino, seriam mato / mata, barco /
barca, jarro / jarra, fruto / fruta, saco / saca, cerco / cerca, horto / horta. Comparemse os seguintes exemplos:
(14) Pedro gosta de viver no meio do mato.
(15) Pedro gosta de viver no meio da mata.
Na sentença (15), mata é um tipo de lugar específico, necessariamente
formado por um conjunto de árvores. Já o termo mato, na sentença (14) é bem mais
abrangente, pode ter como referente qualquer tipo de vegetação. A sentença (15)
implica a sentença (14), mas o contrário não é verdadeiro. O mesmo acontece com
os outros pares: toda barca é também um barco, mas nem todo barco é uma barca;
toda jarra é também um jarro, mas nem todo jarro é uma jarra; toda fruta é também
um fruto, mas nem todo fruto é uma fruta; toda saca é também um saco, mas nem
todo saco é uma saca. No penúltimo par, cerco / cerca, o masculino é o ato de
24
É possível que, pela Teoria da Otimalidade, se explique a escolha que os falantes fazem por
algumas formas em detrimento de outras.
108
cercar, podendo nomear também qualquer coisa concreta que cerque algo; o
feminino é mais específico, nomeando especificamente um determinado tipo de
construção, com características próprias, que serve para cercar. No último, o
feminino, horta, é mais específico: designa um terreno onde são plantados tipos
específicos de vegetais comestíveis, sempre rasteiros ou de estatura baixa. O
masculino, horto, é mais abrangente; designa um lugar onde se plantam diversos
tipos de vegetais, que podem ser comestíveis, ornamentais, medicinais, etc. Esses
vegetais podem ser desde plantas rasteiras até árvores.
A relação semântica que se estabelece entre os dois elementos do par
também pode ser de base metonímica, ou seja, os referentes de cada elemento do
par fazem parte do mesmo domínio cognitivo. Estão nesse caso os pares braço /
braça, comando / comanda, marco / marca, vento / venta, lenho / lenha, madeiro /
madeira, ramo / rama, ovo / ova. Como se pode ver, em todos há relações
metonímicas, mas de diferentes tipos. Em braço / braça, a relação é entre um
referente e sua medida: braça equivale (ou equivalia, em sua origem) à medida de
um braço. Em comando / comanda, o elemento feminino é uma representação
concreta do ato de comandar (mas em contexto bem específico, que é o registro de
consumo em um bar ou restaurante. Esse registro é o que vai determinar ― ou seja,
“comandar” ― o pagamento da conta relativa ao consumo). Em marco / marca, o
elemento masculino expressa um referente mais concreto, enquanto o feminino
assume um valor semântico mais abstrato. Em vento / venta a relação metonímica é
inusitada: vento é o ar em movimento; a parte do corpo por onde o ar se movimenta,
ou seja, o nariz, passou a ser designado como venta. Nos outros pares, a relação é
de elemento/conjunto: os referentes masculinos equivalem a elementos do conjunto;
os femininos ao conjunto como um todo.
109
Outra relação possível é de base metafórica: são comparações entre
elementos de diferentes domínios cognitivos. Fazem parte desse conjunto os pares
bico / bica; encosto / encosta; balanço / balança; banco / banca, barraco / barraca,
bolso / bolsa, cinto / cinta, quadro / quadra, espinho / espinha; arco / arca; fosso /
fossa, rolo / rola; veio / veia; calçado / calçada; sapato / sapata; porto / porta. Nos
treze primeiros pares, o elemento masculino tem um valor mais básico; o feminino é
uma nomeação de base metafórica, através da comparação com algum dado da
aparência física do referente de origem. Bica se assemelha ao aspecto de um bico;
encosta ao de um encosto, e assim por diante. Em calçado / calçada, sapato /
sapata e porto / porta, a relação é de finalidade: calçado e sapato servem para se
pisar, se apoiar; calçada e sapata também vão servir, em contextos totalmente
diversos, como pontos de apoio. Porto e porta têm em comum o fato de servirem
como pontos de entrada em algum lugar: porto em uma cidade; porta em uma casa.
Alguns pares, como palmo / palma, troco / troca, poço / poça, cesto / cesta,
cinto / cinta, estabelecem relações menos gerais, e por isso seus significados são
menos previsíveis. Os dois primeiros, palmo / palma e troco / troca, expressam
relações metonímicas, só que, nesses casos, a relação masculino/feminino é
invertida: aparentemente, o feminino é anterior ao masculino. O primeiro par se
assemelha a braço / braça, mas a noção de medida é metonimicamente expressa
pelo masculino. No segundo, troco / troca, o feminino referencia o ato de trocar; o
masculino tem como referente um subproduto desse ato. No terceiro par, poço /
poça, os dois elementos do par têm em comum o fato de se referirem a uma porção
delimitada de água. O masculino, no entanto, tem como referente uma concavidade
profunda e construída intencionalmente; o referente do feminino, ao contrário, é uma
concavidade rasa e produto do acaso (conseqüência de chuva, por exemplo).
110
No quarto par, cesto / cesta, parece não haver uma relação geral/específico,
nem do masculino para o feminino nem o contrário. Existe, é certo, uma estreita
relação semântica, mas parece não estar perfeitamente clara a diferença de
significado entre os dois. Houaiss (2001) dá os dois termos como sinônimos. Para
tentar perceber como os falantes diferenciam um termo do outro, perguntamos a seis
informantes, todos cariocas e adultos, a diferença de significado entre os dois
termos. Dois dos informantes não reconheceram diferença: afirmaram usar
indistintamente, por exemplo, cesto ou cesta de frutas, cesto ou cesta de roupa suja.
Uma pequena maioria, no entanto, considera que há uma diferença de dimensão e
formato: segundo esses informantes, cesta tem uma dimensão relativamente menor
e costuma ter o diâmetro da abertura maior em relação ao diâmetro da base; cesto,
por sua vez, tem uma dimensão relativamente maior e costuma ter o diâmetro da
base e o da abertura mais próximos. Além disso, cesto costuma mais
frequentemente ter uma tampa.
Essas diferenças de significado mostram que, nas construções de base
morfológica, o significado não é sempre perfeitamente previsível. É possível
estabelecer algumas regularidades, mas, como praticamente todos os demais
aspectos da língua, vai haver elementos que se aproximam mais do padrão, ou seja,
mais prototípicos, e outros que se afastam desse padrão.
5.4.2. Outras decorrências
Existe a possibilidade de duas construções morfológicas se combinarem
formando uma terceira. Isso acontece, por exemplo, no processo de composição. Na
construção beija-flor, temos a combinação da construção verbal beija (3ª pessoa do
111
singular do verbo beijar) e do substantivo flor. Apesar da contribuição desses
elementos formadores no significado da construção, temos um terceiro significado,
que na verdade está longe do que significaria a construção sintática beija flor.
De forma semelhante, é possível também que as construções de reenquadre
de gênero, analisadas neste trabalho, se combinem com outra construção, gerando
significados específicos. Uma das combinações possíveis é com o sufixo -eir-, que
por sua própria natureza é extremamente polissêmico (cf. galinheiro, parteira,
manteigueira, abacateiro ― na primeira construção, o significado é ‘lugar’, na
segunda é ‘agente’, na terceira é ‘recipiente’ e na quarta é um ‘recipiente’
metafórico). O esquema a seguir mostra, no quadro inferior esquerdo, o processo de
reenquadre X-o → X-a, simultâneo à combinação com a construção sufixal -eir(quadro superior esquerdo), resultando na construção combinada X-eir-o → X-eir-a
(à direita):
CONSTRUÇÃO
SUFIXAL
-eir-
CONSTRUÇÃO
BÁSICA
CONSTRUÇÃO
COMBINADA
X-o
X-eir-o
X-a
X-eir-a
FIGURA 20
Na combinação da construção de gênero básica com a construção -eir-, a
contribuição do significado da primeira é ‘sexo masculino / sexo feminino’,
acontecendo a oposição através do reenquadre. O sufixo contribui com o significado
‘agente’. Na construção combinada, a construção de origem X-eir-o vai significar
112
‘agente do sexo masculino que lida com X’. Ao ser reenquadrada numa construção
de feminino, vai significar ‘agente do sexo feminino que lida com X’. Um exemplo do
reenquadre na construção combinada seria porteiro → porteira, em que ambos
significam ‘agente que lida com porta’ ― no caso o profissional que tem como
função tomar conta da porta de um prédio. Dos dois elementos do par, o primeiro é
do sexo masculino e o segundo do sexo feminino25.
A construção decorrente X-o →X-a (do tipo mato / mata, analisada neste item)
também pode ser combinada com o mesmo sufixo -eir-. O esquema a seguir mostra
essa decorrência:
25
Em todas as fusões da construção básica de gênero com o sufixo –eir-, a forma de feminino, que
aqui indica ‘profissional’, tem uso mais restrito que a de masculino: lixeira, porteira, leiteira, carteira,
pedreira.
113
CONSTRUÇÃO
SUFIXAL
-eir-
CONSTRUÇÃO
BÁSICA
CONSTRUÇÃO
COMBINADA 1
X-o
X-eir-o
X-a
X-eir-a
CONSTRUÇÃO
DECORRENTE
CONSTRUÇÃO
COMBINADA 2
X-o
X-eir-o
X-a
X-eir-a
CONSTRUÇÃO
SUFIXAL
-eirFIGURA 21
Na combinação da construção sufixal -eir- com a construção decorrente26, o
significado resultante é bem diferente de quando a combinação é com a construção
básica. Na construção que chamamos de “construção combinada 2” (quadro inferior
à direita), o reenquadre do masculino para o feminino vai gerar o significado ‘lugar
ou utensílio relacionado a X’. Tomemos como exemplo X = sapato. Na construção
decorrente, o reenquadre sapato → sapata vai gerar, no feminino, um valor
26
Na verdade, o quadro superior esquerdo, representando a construção sufixal –eir- é o mesmo
representado na parte inferior. Está representado duas vezes para permitir uma melhor visualização
do processo, não porque sejam duas construções diferentes.
114
metafórico, tendo como fundamento da metáfora a noção de ‘apoio’. Quando essa
construção se combina com a construção sufixal -eir-, o sentido do elemento
masculino vai ser ‘profissional que trabalha com sapatos’ (nesse caso, fabricando ou
consertando ― o sentido exato de como o agente vai lidar com o objeto referenciado
pela base X não é previsível: pode ser venda, fabricação, manufatura). Quando esse
masculino é reenquadrado na construção de feminino, adquire o sentido ‘utensílio
onde se guardam sapatos’. Dessa forma, um reenquadre do masculino para o
feminino na construção combinada 1 (proveniente da construção de gênero básica)
vai gerar o significado ‘agente do sexo feminino que lida com X’. Quando o
reenquadre se dá na construção combinada 2, proveniente da construção
decorrente, o significado vai ser ‘lugar ou utensílio relacionado a X’.
A ocorrência de uma base X nos dois lados do esquema, tanto à esquerda
quanto à direita, como acontece com X = sapato, não é comum. Na maioria das
vezes, o reenquadre vai acontecer ou somente à esquerda, com em jarro / jarra, ou
somente à direita, como em churrasqueiro / churrasqueira. Nesse par, o feminino,
quando formado na construção combinada 1, tem o sentido de ‘agente do sexo
feminino que lida com churrasco’; quando formado na construção combinada 2 tem o
sentido de ‘utensílio onde se faz churrasco’. Não existe, nesse caso, um par
churrasco / *churrasca, formado na construção decorrente, à esquerda no esquema.
Outros exemplos, que seguem o mesmo padrão semântico, são leiteiro / leiteira,
pipoqueiro / pipoqueira, lixeiro / lixeira etc27. Perceba-se que são polissêmicas
justamente as formas em -a, o que reforça a hipótese de que o masculino é mais
prototípico, com significados mais previsíveis, enquanto o feminino se afasta desse
núcleo prototípico e previsível.
27
Uma lista não-exaustiva de exemplos é dada no Anexo 2 deste trabalho.
115
Um processo idêntico acontece com o sufixo -ari-, que se irmana
historicamente a -eir-. Com -ari-, no entanto, a produtividade é bem menor: há os
pares rodoviário / rodoviária, ferroviário / ferroviária e talvez não muitos além desses.
Outro processo digno de nota acontece com o sufixo de origem grega -ic-. Esse
sufixo, formador de adjetivos, aparece em vocábulos como atômico, rítmico, fálico.
Há um grande número de vocábulos, no entanto, de cuja formação histórica esse
sufixo participou, mas que, no entanto, não mais pode ser identificado como um
elemento à parte: são construções já fossilizadas. Exemplos dessa fossilização
seriam mágico, químico, físico. Esses adjetivos, no entanto, têm freqüentemente um
uso substantivo, indicando o agente que lida o fenômeno caracterizado pelo adjetivo:
um químico é aquele que lida fenômenos químicos; um mágico é o que lida com
fenômenos mágicos e assim por diante.
Esse grupo de substantivos também pode passar por um processo de
reenquadre para construções de feminino: físico → física. Esse reenquadre vai se
dar na construção de gênero decorrente, fazendo uma oposição em que o masculino
significa ‘agente que lida com fenômenos caracterizados como X’ e o feminino
significa ‘conjunto de fenômenos caracterizados como X’, em que X é o adjetivo que
deu origem aos substantivos. Dessa forma, no exemplo, um físico é um ‘agente que
lida com fenômenos físicos’ e física pode ser definida como ‘conjunto de fenômenos
físicos’. Esse tipo de reenquadre é bastante recorrente, como atestam os exemplos
estatístico / estatística, músico / música, mecânico / mecânica, técnico / técnica28. É
interessante notar que, se no caso de -eir- o reenquadre na construção básica é
pouco recorrente, no caso das construções com -ic- esse reenquadre na maior parte
das vezes é bloqueado, como mostram os exemplos a seguir:
(16) Pedro é músico.
28
Idem nota anterior.
116
(17) * Maria é música.
(18) Pedro trabalha como mágico.
(19) * Maria trabalha como mágica.
(20) Pedro é um grande gramático.
(21) * Maria é uma grande gramática.
A hipótese do reenquadre em construções combinadas precisa ainda ser mais
detidamente analisada, o que certamente será feito num trabalho futuro. Há diversas
hipóteses que tentam dar conta da polissemia do sufixo -eir-29; é necessário cotejálas com a nossa hipótese para desenvolver uma argumentação mais sólida. Neste
trabalho, a hipótese está sendo apenas apresentada, já que tem uma relação direta
com a hipótese central, que é da existência do reenquadre entre construções e
como isso se dá nas construções de gênero.
29
Cf. BOTELHO (2004), ÁLVARES (2004), ALMEIDA & GONÇALVES (2006) GONÇALVES (1998),
MARINHO (2004), PIZA (2005).
117
6.
A
VOGAL
TEMÁTICA
NOMINAL
NO
PORTUGUÊS:
FLEXIONAL
OU
DERIVACIONAL?
Neste capítulo, discutiremos o status flexional ou derivacional da vogal
temática nominal. No primeiro item, faremos uma reflexão a respeito do que se tem
considerado, na literatura lingüística, diferenças entre os processos flexionais e
derivacionais. No segundo item, a partir da proposta de Gonçalves (2005),
analisamos as vogais temáticas de acordo com diferentes critérios de diferenciação.
Por fim, apresentamos a proposta de Bybee (1985), na qual esses dois conceitos
são apresentados não como processos discretos, mas como extremidades
prototípicas de um mesmo continuum. A partir da análise feita em 6.2, tentamos
inserir as vogais temáticas nominais, tanto as das construções básicas quanto as
das construções decorrentes, nesse continuum.
6.1. Flexão x derivação
A discussão a respeito do estabelecimento dos limites entre as características
flexionais ou derivacionais de determinados grupos de elementos lingüísticos não é
uma discussão recente. Remonta pelo menos ao século I a.C., quando o gramático
latino Varrão (116-26 a.C.), em sua obra De lingua latina30, formulou os conceitos de
deriuatio naturalis e deriuatio uoluntaria. O primeiro processo tem como finalidade
indicar variações de uma mesma palavra, enquanto o segundo serviria para criar
novas palavras.
30
Infelizmente, das vinte e cinco partes que compunham originalmente a obra, somente seis
chegaram aos nossos dias. (Cf. WEEDWOOD, 1995, p. 36).
118
Os conceitos formulados por Varrão foram retomados por Câmara Jr. (1970),
vinte e um séculos depois, para estabelecer as diferenças entre flexão e derivação
no português. Esse autor utiliza esses conceitos principalmente para argumentar a
favor da não-inclusão da variação de grau entre as categorias flexionais do
português, além de ratificar a tradição de incluir o gênero e o número nominais entre
essas categorias. Câmara Jr. estipula quatro critérios para mostrar essas diferenças:
o primeiro deles, que diz respeito à regularidade, opõe “obrigatoriedade e
sistematização coerente” relativos à flexão ao caráter “fortuito e desconexo”
(CÂMARA Jr., 1970, p. 81) do processo de derivação. O segundo critério é a
obrigatoriedade da flexão, imposta pelo que Câmara Jr. chamou, um tanto
obscuramente, de “própria natureza da frase”, em oposição à derivação, que pode
ser usada ou não de acordo com a vontade do falante. Os exemplos dados pelo
autor são de que a adoção de um substantivo no plural ou de um verbo na 1ª pessoa
do pretérito imperfeito se devem à citada “natureza da frase”. Não nos parece, no
entanto, que haja qualquer imposição de base sintática para o uso do plural do
substantivo ou do verbo no pretérito imperfeito. O único caso que parece se aplicar é
o morfema de número-pessoa, que vai figurar na forma verbal em função do sujeito
da oração. Mas isso na verdade estaria relacionado ao critério seguinte, que é o da
possibilidade de ativação da concordância. Segundo esse critério, somente as
formas que portem um traço de natureza flexional têm a capacidade de ativar a
concordância, ao passo que as formas que contenham um elemento derivacional
não têm essa propriedade. O quarto e último critério diz respeito ao fato de os
elementos flexionais pertencerem a um inventário fechado, rígido, que não permite
criatividade por parte do falante, ao contrário das formas derivadas, que constituem
um inventário aberto, ao qual o falante pode acrescentar elementos recém-criados.
119
Autores mais recentes retomam a posição de Câmara Jr., ora para corroborar
completamente sua posição, ora para estabelecer pontos de discordância. Zanotto
(1986, p.54), num subcapítulo intitulado “Derivação e flexão – grau”, retoma e ratifica
a posição de Câmara Jr., concluindo que o grau é uma categoria derivacional e não
flexional. Mais adiante, no subcapítulo “O gênero”, considera como flexional a
oposição pato / pata e gato / gata.
Outro autor que retoma os critérios de Câmara Jr., mas a partir desses
mesmos critérios chega a algumas conclusões um pouco diversas é Rocha (1998, p.
193 et seq.), num capítulo de sua obra intitulado “Flexão e derivação no português”.
Esse autor divide os critérios elaborados por Câmara Jr. em três: regularidade /
irregularidade,
concordância
/
não-concordância
e
não-opcionalidade
/
opcionalidade; em cada um desses critérios, o primeiro dos dois itens refere-se à
flexão e o segundo à derivação. Rocha analisa as categorias nominais de gênero,
número e grau e as categorias verbais de pessoa, número, tempo e modo para, a
partir de cada critério, inseri-las no processo de derivação ou de flexão.
Em sua análise, Rocha conclui, como Câmara Jr., que a categoria nominal de
número e as categorias verbais de pessoa, número, tempo e modo são casos de
flexão. As divergências entre as duas visões se dão nas categorias nominais de
gênero e grau. Segundo Rocha, o critério da regularidade não permite inserir a
categoria de gênero dentre as flexionais. O argumento usado é que a marca
morfológica distintiva de gênero se aplica a uma parcela muito pequena dos
substantivos da língua; segundo levantamento feito pelo autor, somente 4,5% dos
substantivos referem-se a seres sexuados, e mesmo destes, nem todos recebem a
120
marca morfológica de gênero, ou seja, pela baixa ocorrência, não pode ser
considerado um fenômeno regular.
Quanto ao grau, Rocha conclui, pelo mesmo critério, o da regularidade, que
essa categoria se deve inserir no conjunto das flexionais, ao contrário do que
Câmara Jr. sustenta. O argumento utilizado pelo autor é o seguinte:
(...) é preciso lembrar que a questão da afetividade é anterior ao aumento
ou diminuição de tamanho. (...) Sendo assim, o grau avaliativo é regular e
sistemático, porque, dado um substantivo, é possível constatar a existência
do mesmo substantivo com a marca morfológica de grau, que se realiza na
língua através de sufixos variados. (ROCHA, 1998, p. 198)
Essas
divergências
de
conclusões
fazem
com
que,
após
analisar
detalhadamente os critérios propostos por Câmara Jr., Rocha os descarte em
seguida, alegando que “não há concordância entre os critérios, ou seja, eles não são
constantes, quando aplicados aos morfemas nominais e verbais”31. Ao final do
capítulo, o autor opta pela definição de Anderson: “Flexão é precisamente o campo
em que os sistemas de regras sintáticas e morfológicas interagem” (Anderson, apud
Rocha, 1998, p. 206), e conclui que, utilizando-se esse critério, as categorias
nominais de gênero e número e as verbais de pessoa, número, tempo, modo e
aspecto são flexionais32.
No entanto, é interessante notar que, sob esse critério, as categorias de
tempo e modo seriam não-flexionais. Na verdade, a desinência modo-temporal não
assume uma determinada forma como decorrência de nenhum outro dado sintático;
além disso, a utilização desse morfema também não tem como conseqüência a
forma de nenhum outro elemento na configuração sintática. Só é possível incluir
essa categoria no conjunto das flexionais a partir do critério de Anderson alargando
31
No item 6.2. deste trabalho, mostramos que, na verdade, não há obrigatoriedade de convergência
de resultados.
32
Este critério de Anderson será analisado mais detidamente em 6.2.1.
121
a noção de concordância, como Rocha faz. Vejamos algumas definições de
concordância, retiradas de dicionários de Lingüística: segundo Crystal (1985, p. 58),
concordância é “uma relação formal entre elementos, em que a forma de uma
palavra exige uma forma correspondente em outra.” Trask (2004, p. 61) diz que
concordância é “o fenômeno gramatical no qual a forma de uma palavra numa
sentença é determinada pela forma de outra palavra com a qual tem alguma relação
gramatical”. O próprio Câmara Jr. assim define o termo: “princípio, vigente em muitas
línguas, segundo o qual, num sintagma, o vocábulo determinante se adapta a certas
categorias gramaticais do determinado.” (CÂMARA Jr., 1977, p. 77)
Em todas as definições apresentadas, a concordância é um fenômeno
morfossintático. Rocha utiliza um outro conceito, de base pragmática, quando diz,
textualmente, que está utilizando “o conceito de concordância em um sentido mais
amplo”, que não se refere apenas ao ajuste de morfemas nem se restringe ao texto.
O autor chama essa “concordância” de “concordância ideológica”. É bastante
cômodo, de fato, fazer análises alargando conceitos estabelecidos; o problema é
que, como conseqüência, o conceito de concordância acabou se superpondo aos de
dêixis e de referência.
De todos os autores, no entanto, aquele que foi mais fundo no
estabelecimento de critérios para distinguir os conceitos de flexão e derivação,
fazendo um levantamento não de quatro, como Câmara Jr., mas de doze diferentes
critérios, foi Gonçalves (2005). Esses critérios serão apresentados nos itens 6.2.1 a
6.2.12 a seguir, nos quais verificamos se a vogal temática nominal se comporta
como um elemento flexional ou derivacional.
122
6.2. Aplicação dos critérios de diferenciação
6.2.1. Visibilidade para a sintaxe
Segundo Anderson (1982, p. 589), somente as categorias flexionais são
relevantes para a sintaxe, enquanto os elementos derivacionais são sintaticamente
irrelevantes. Essa visibilidade para a sintaxe das sentenças se dá através dos
processos de regência e concordância. A regência é definida por Trask (2004, p. 61)
como “o fenômeno gramatical em que a presença de uma determinada palavra
numa sentença cria a exigência de que outra palavra ligada à primeira apareça em
uma determinada forma.” O mesmo autor define o fenômeno da concordância nos
seguintes termos: “o fenômeno gramatical no qual a forma de uma palavra numa
sentença é determinada pela forma de outra palavra com a qual tem alguma ligação
gramatical” (op. cit., p. 61).
O primeiro fenômeno pode ser exemplificado através da variação entre as
formas pronominais de 1ª pessoa do singular eu / me / mim. As três formas indicam
o mesmo valor gramatical, mas não aparecem nos mesmos contextos. Na sentença
“Joana gosta de ___”, obrigatoriamente a lacuna deve ser preenchida pela forma
oblíqua tônica mim, exigida pela presença da preposição. Diz-se, então que a
proposição rege o caso do pronome que introduz, fazendo-o apresentar-se com
essa forma específica. As sentenças *Gosta de eu e *Gosta de me são, por essa
razão, agramaticais.
O fenômeno da concordância pode ser exemplificado pela sentença a seguir:
(1) O feirante está vendendo uns pintinhos coloridos.
Nessa sentença, a forma do núcleo do SN com função de objeto direto
determina a forma dos outros elementos do sintagma. O fato de o vocábulo pintinhos
123
estar na forma de plural faz com que o determinante uns, assim como o adjetivo
coloridos, também assumam a forma de plural. Percebe-se, portanto, que o número
do substantivo é visível para outros elementos do sintagma, ou seja, é relevante
para a sintaxe, devendo, dessa forma, ser considerado flexional pelo critério
estabelecido por Anderson.
Observe-se ainda que esse núcleo está no grau diminutivo. Esse fato, no
entanto, não acarreta nenhum processo de concordância: não somos forçados a
dizer “pintinhos coloridinhos”; é perfeitamente possível variar o núcleo em grau e
essa variação não afetar nenhum outro elemento do sintagma. Ainda pelo critério de
Anderson, o grau do núcleo, como é invisível para os outros elementos do sintagma,
dever ser considerado como uma categoria de caráter derivacional.
Conforme já dito no item 5.1.1, Gonçalves (2005, p. 17) considera as vogais
temáticas um problema, sob a perspectiva do critério estabelecido por Anderson.
Esses elementos têm claramente uma função de caráter derivacional: expandir a raiz
para a formação do tema, o qual, por sua vez, serve de base para o acréscimo das
desinências. No entanto, segundo Gonçalves, as vogais temáticas seriam invisíveis
para a sintaxe.
Dois fatores, no entanto, podem levar a se propor uma nova visão a respeito
dessa invisibilidade das vogais temáticas em relação aos fenômenos sintáticos. O
primeiro deles, já amplamente exposto no item 5.1.3, é de que existe uma relação
direta entre vogais temáticas e gênero. Em “casa amarela”, por exemplo, o adjetivo
está no feminino em decorrência de a construção do tipo X-a casa ser uma
construção de feminino. Defendo, portanto, que as vogais temáticas, por serem
elementos indicativos de gênero, são visíveis sintaticamente.
124
O segundo fator é o fato, considerado unanimemente, de que o gênero de um
termo nuclear aciona o fenômeno da concordância nos termos que margeiam esse
núcleo. Ora, a concordância é uma relação entre a forma de uma palavra e a forma
de outra: se não considerarmos a existência de uma marca formal do gênero, não
poderia haver concordância, e sim regência, que é o fenômeno em que a forma de
uma palavra está ligada meramente à existência de outra palavra, e não à forma que
essa palavra assume. Se só considerarmos como marca formal de gênero o –a em
substantivos relativos a seres sexuados, teríamos a esdrúxula situação de ter de
considerar a forma do adjetivo em coelha branca como um caso de concordância e
em casa branca como de regência. Se considerarmos tanto o elemento final de
coelha quanto o de mesa como marcas formais de gênero feminino, ambos seriam
casos de concordância.
Esses fatores apontam para uma revisão da postura de Gonçalves, que
afirma que “as vogais temáticas, embora relevantes morfologicamente, são invisíveis
para a sintaxe.” (2005, p. 17) É possível, se associarmos as vogais temáticas aos
gêneros, a ocorrência do fenômeno sintático da concordância decorrente desse tipo
de morfema. Por esse critério, portanto, a vogal temática seria um elemento
flexional, e não derivacional.
6.2.2. Concorrência de estratégias de expressão
O segundo critério para se diferenciar uma categoria flexional de uma
derivacional é a concorrência de estratégias de expressão. Esse critério, proposto
por Gonçalves, diz que “um afixo é flexional se seu significado se materializa apenas
morfologicamente. Quando há uma concorrência de estratégias para exteriorizar seu
125
conteúdo, o afixo deve ser analisado como derivacional” (GONÇALVES, 2005, p.
23). Vamos, a seguir, tentar aplicar esse critério às vogais temáticas nas
construções que são nosso objeto de estudo. Na construção básica, a oposição de
vogal temática e gênero equivale a uma oposição de sexo dos referentes. Esse é o
caso de cachorro / cachorra, pombo / pomba, porco / porca, e também de mestre /
mestra, médico / médica, garoto / garota. O primeiro grupo se refere a seres
sexuados não-humanos, o segundo a seres humanos.
No primeiro desses grupos, o gênero pode ser expresso por uma oposição de
construções com diferentes temas: a construção com tema em –a expressa sexo
feminino e as outras, com outros temas, expressam sexo masculino. Nesse caso,
temos pares de construções com um elemento comum (o radical do vocábulo) e um
elemento variante, que seria a vogal temática. Essa não é, no entanto, a única
possibilidade para a expressão do sexo dos referentes. Concorrendo com a
construção de base morfológica gata, há ainda como possibilidades de expressão as
construções de base sintática gato fêmea, fêmea de gato, fêmea do gato. Apesar de
bem menos freqüentes, ainda assim são possibilidades de expressão do significado
‘sexo’. Note-se que essas outras construções, ao contrário da construção com
variação de vogal temática, também se presta à expressão do sexo dos referentes
nomeados por substantivos unigenéricos, como cobra ou avestruz: cobra fêmea,
fêmea do avestruz. Essas construções também se prestam, ainda, para expressar o
sexo dos referentes dos chamados pares heteronímicos: aqueles em que a oposição
de sexo é expressa por duas construções sem nenhum elemento em comum, como
bode / cabra, cavalo / égua. A título de curiosidade, fizemos uma busca no site
www.google.com.br para verificar se havia ocorrências de todas essas construções
126
indicativas de sexo. A partir dos nomes de três diferentes animais, foram
encontradas as seguintes ocorrências na busca33:
CONSTRUÇÃO
NÚMERO DE OCORRÊNCIAS
GATA
880.000
GATO FÊMEA
139
FÊMEA DE/DO GATO
161
PORCA
185.000
PORCO FÊMEA
6
FÊMEA DE/DO PORCO
14
ÉGUA
129.000
CAVALO FÊMEA
8
FÊMEA DE/DO CAVALO
24
Como se pode ver, apesar de possíveis, as construções de base sintática são
bem menos freqüentes que as de base morfológica para a expressão do sexo.
Levando em consideração que o significado ‘sexo’ nos seres não-humanos pode ser
expresso tanto morfológica quanto sintaticamente, podemos concluir que as vogais
temáticas que representam os sexos são, segundo o critério da concorrência de
estratégias de expressão, elementos derivacionais.
Ao analisarmos o segundo grupo de formas a que nos referimos no início
deste item (mestre / mestra, médico / médica, garoto / garoto), não chegaríamos às
33
Dados obtidos em 25/03/2006.
127
mesmas conclusões que no grupo anterior. Ao contrário das construções relativas a
seres sexuados não-humanos, as relacionadas aos seres humanos não admitem a
mesma concorrência de estratégias de expressão: não são possíveis as formas
fêmea do médico, fêmea de mestre ou garoto fêmea (esta última até pode ser
possível, mas para expressar o significado ‘garoto efeminado’, e não ‘garota’). No
conjunto de construções relativas a seres não-animados, também não há
concorrência de estratégias. Nesse conjunto, as formas não opõem sexo, mas
valores mais gerais e menos figurativos para as formas masculinas e menos gerais e
mais figurativos para as formas femininas. Teoricamente, há possibilidade de se
expressar sintaticamente o valor mais específico de formas como barca ou jarra, ou
o valor mais figurativo de formas como sapata ou braça. No entanto, essa perífrase
corresponderia a uma longa série de informações, não utilizável na prática. A
construção jarra pode ser parafraseada pelas construções “tipo de jarro para
armazenar ou servir bebidas”, ou “tipo de jarro onde se põem flores”; todavia,
nenhum falante substituiria, no discurso, jarra por qualquer dessas paráfrases (ao
contrário do que ocorre com gata e fêmea do gato). Analisando as vogais temáticas
dentro dos dois últimos grupos, em que não é possível expressar o conteúdo de
outras formas, senão morfologicamente, concluiríamos que são elementos flexionais.
Segundo o critério de concorrência de estratégias de expressão, portanto, o
conjunto de formas relativas a construções envolvendo vogal temática se mostra
ambíguo: aplicando algumas restrições semânticas (seres sexuados não-humanos),
concluímos que a vogal temática é um elemento derivacional; nas construções
relativas a seres humanos ou não-animados, esse elemento mórfico passa a ser
analisado como um elemento flexional.
128
6.2.3. Produtividade
O critério seguinte na diferenciação entre flexão e derivação é o da
produtividade, ao qual fazem referência Aronoff (1976), Basilio (1980) e Gonçalves
(2005). Basilio explicita esse critério nos seguintes termos:
Uma das maiores diferenças entre flexão e derivação é que na flexão as
regras são plenamente produtivas ― assim como na sintaxe sentencial ―,
enquanto na derivação as regras são caracteristicamente semiprodutivas.
Os paradigmas flexionais são nítidos, fechados, realmente sistemáticos (...).
(BASILIO, 1980, p. 69-70)
A autora, conforme a citação acima, diz que as regras de flexão são
“plenamente produtivas”. Gonçalves, no entanto, modaliza essa afirmativa, dizendo
que “afixos flexionais são altamente produtivos, tendo, pois, aplicabilidade quase
absoluta” (2005, p. 32) (sem grifo no original). A própria Basilio também relativiza
essa plena produtividade em nota de final de capítulo: “(...) podemos encontrar
muitas irregularidades em sistemas flexionais, mas estes casos não interferem no
reconhecimento dos padrões gerais” (Basilio, op. cit,, p. 72).
Para entender melhor esse critério, vamos utilizar o sufixo verbal –mos. Esse
sufixo, sempre anexado a verbos, repete as informações gramaticais de númeropessoa do sujeito do verbo (no caso, 1ª do plural). A produtividade desse sufixo é
total; pode ser anexado a qualquer verbo: comíamos, correremos, deixávamos,
disséssemos etc. Qualquer verbo pode ter anexado um sufixo de número-pessoa
como esse. Mesmo os verbos que expressam fenômenos naturais, que em princípio
rejeitariam esses sufixos, aceitam-nos em certos contextos (principalmente
literários). Observe-se o exemplo a seguir, do poeta Carlos Drummond de Andrade:
(2) “Não me chovas, maria, mais que o justo”34,
34
ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983. p. 708.
129
em que aparece, com sufixo de 2ª pessoa do singular, o verbo chover, o qual, por
ser impessoal, em princípio rejeitaria o sufixo de número-pessoa. Mesmo em
contextos não-literários, é possível a pessoalização de verbos impessoais. Veja os
exemplos a seguir:
(3) Ajunte a isto que fui também o primeiro que trovejei das alturas da Paulicéia
contra a perfídia das Cortes Portuguesas.35
(4) E trovejamos, gesticulamos, mais pelo incómodo que resulta da mudança das
coisas, do que por motivos fundamentados da persistência nelas.36
(5) Arrumei 3 taças de boca larga como a de Margueritha. Nevei as bordas com sal,
servi.37
No Dicionário Houaiss de língua portuguesa, os verbetes referentes aos
verbos chover, nevar e trovejar trazem a seguinte informação: “quando empregado
em sentido figurado, conjuga-se em quaisquer pessoas” (HOUAISS, 2001, pp. 706,
2014 e 2778).
Ao se combinarem nas formas verbais os diferentes sufixos de númeropessoa aos de tempo-modo-aspecto (acrescentando-se, ainda, as formas nominais
do verbo), obteremos um conjunto que ultrapassa quarenta diferentes formas. Esse
conjunto é, conforme salientou Basilio, nítido, fechado e sistemático. Qualquer verbo
que venha a ser criado no português vai poder ter todas as formas referentes a
todas as pessoas e tempos verbais. O verbo de criação recente bicicletar (o qual,
curiosamente, é usado apenas com o sentido ‘pedalar em bicicleta ergométrica’), por
exemplo, seria um desses casos. Compare-se esse verbo recém-formado com
estudar, que existe registrado no português desde o século XIII:
estudar
35
bicicletar
Frase de entrevista de José Bonifácio ao jornal O tamoio. In: Revista Jovem Museologia – Estudos
sobre Museus, Museologia e Patrimônio, Ano 01, nº. 01, janeiro de 2006.
(http://www.unirio.br/jovemmuseologia). Acesso: 04/04/06.
36
Fernando Aires, In: Revista Letras & Letras, 1991. (http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/ensaios.htm).
Acesso: 04/04/06.
37
http://www.canetaazul.blogger.com.br. Acesso: 04/04/06.
130
estudamos
bicicletamos
estudarias
bicicletarias
estudásseis
bicicletásseis
estudando
bicicletando
estudado
bicicletado
Comparando os sufixos que expressam os tempos e pessoas verbais com
outros sufixos, como –ice, -idão, -idade, -ura ou -eza, formadores de substantivos a
partir de adjetivos, percebemos uma bem menor produtividade desses últimos. Notese que normalmente um adjetivo aceita somente um desses sufixos, bloqueando-se
as outras formações (quando ocorre de um adjetivo aceitar mais de um sufixo com
mesma função, o significado torna-se diferente ― ver item 5.4, a respeito do
princípio da não-sinonímia):
Velhice
*velhidão
*velhidade
*velhura
*velheza
Meiguice
*meiguidão
*meiguidade
*meigura
*meigueza
*certice
certidão
*certidade
*certura
certeza
*escurice
escuridão
*escuridade
*escurura
*escureza
*honestice
*honestidão
honestidade
*honestura
*honesteza
*clarice
*claridão
claridade
*clarura
clareza
*gostosice
*gostosidão
*gostosidade
gostosura
*gostoseza
*altice
*altidão
*altidade
altura
alteza
*magrice
*magridão
*magridade
*magrura
magreza
*belice
*belidão
*belidade
*belura
beleza
Podem-se facilmente encontrar vários outros exemplos além dos citados para
as formações [[X]adjice]subst, [[X]adjidão]subst, [[X]adjidade]subst, [[X]adjura]subst, ou
131
[[X]adjeza]subst,
mas
nenhum
desses
sufixos
tem
uma
produtividade
nem
remotamente equivalente à dos sufixos de número-pessoa e de tempo-modoaspecto: os sufixos formadores de substantivos a partir de adjetivos são
semiprodutivos. Há inclusive adjetivos que sequer aceitam nominalização. Se
incluirmos o adjetivo azul no conjunto das formações acima, verificaremos que são
todas inaceitáveis:
*azulice
*azulidão
*azulidade
*azulura
*azuleza
E isso não se dá por ser um adjetivo identificador de cor, já que existem os
substantivos brancura, vermelhidão, amarelidão, pretume, roxidão, verdor.
O fato de os sufixos de número-pessoa e tempo-modo-aspecto constituírem
um conjunto sistemático de formas ― são altamente produtivos ― e os sufixos
formadores de substantivos a partir de adjetivos formarem um conjunto
assistemático ― são semiprodutivos ― faz com que incluamos, segundo o critério
em análise, o primeiro grupo entre as categorias flexionais e o segundo entre as
derivacionais.
Analisando as variações do substantivo, poderíamos com alguma facilidade
enquadrar a variação de número entre as categorias flexionais. Todos os
substantivos podem, em princípio, ter uma forma de plural. Alguns poucos têm plural
de aceitabilidade duvidosa, como ?gizes, ?fozes, ?cimas, ?arrozes, ?gravidezes.
Segundo Pereira (1987), o plural de substantivos incontáveis não indica mais de
uma unidade, e sim mais de um tipo. Dessa forma, feijões, açúcares, areias seriam
respectivamente tipos de feijão, de açúcar, de areia. Em algumas substâncias que
não são classificadas em tipos, como determinados elementos químicos, a
aceitabilidade do plural também é duvidosa: ?sódios, ?neônios, ?hélios. Há, ainda,
132
os pluralia tanta, substantivos plurais que não têm um correspondente singular:
fezes, parabéns, costas.
Estatisticamente falando, no entanto, essas exceções são praticamente nulas.
A quase totalidade dos substantivos do português tem uma forma de singular e uma
correspondente de plural.
Se na categoria de número a regularidade é grande, o mesmo não se dá em
relação à categoria de gênero. Todos os substantivos da língua têm um gênero, mas
são relativamente poucos os que podem variar em gênero. Segundo estatística feita
por Rocha (1998, p. 196), já citada neste capítulo, apenas 4,5% dos substantivos
referem-se a seres sexuados. Desses, boa parte tem gênero único (jacaré, cobra,
cônjuge, pulga, gafanhoto, criança, testemunha etc.). Somando-se as construções
em que a variação de vogal temática corresponde a variação de sexo, como gato /
gata, menino / menina, médico / médica, às construções do tipo mato / mata, porto /
porta, saco / saca, ainda assim teríamos um fenômeno bem pouco sistemático na
língua. As construções X-a, da coluna da direita, abaixo, são todas possíveis na
língua; entretanto, simplesmente não ocorrem.
cavalo
*cavala38
bode
*boda
gafanhoto
*gafanhota
carro
*carra
tronco
*tronca
Segundo Gonçalves, “a derivação forma paradigmas não necessariamente
coesos, porque tende a apresentar restrições de aplicabilidade, ou seja, pode ser
38
É recorrente a utilização da forma cavala como feminino de cavalo, mas somente de forma
metaforizada; nunca substituindo a construção égua: “Aquela professora é uma cavala”.
133
marcada por restrições lexicais arbitrárias” (GONÇALVES, 2005, p. 31). Sendo
arbitrária a não-existência de todos os elementos da segunda coluna, e devido a sua
baixa aplicabilidade, podemos classificar as construções envolvendo vogais
temáticas, segundo este terceiro critério, como uma categoria derivacional.
6.2.4. Regularidade do significado
O quarto critério distingue flexão de derivação a partir da regularidade do
significado das operações. Segundo esse critério, as operações flexionais têm um
significado mais regular e estável, enquanto o significado das derivacionais é mais
instável, podendo ser diferente em diferentes construções.
Se formos comparar diversas formas verbais em que esteja presente o sufixo
–ste, por exemplo (fizeste, correste, gritaste, inquietaste), verificaríamos que esse
elemento se adjunge a um tema verbal expressando sempre as noções de ‘processo
factual, concluso, acontecido num momento anterior à enunciação, realizado pelo
interlocutor’. Independentemente do valor semântico da base, o valor que esse
sufixo acrescenta à construção vai ser invariavelmente o mesmo. Sendo assim, pelo
critério em análise, uma operação envolvendo esse sufixo é flexional, pela
estabilidade de seu significado.
Compare-se
esse
sufixo
ao
sufixo
nominalizador
–ção,
que
forma
substantivos abstratos a partir de bases verbais: comparação, formatação,
regularização. Nas formações citadas, o sufixo gera na construção resultante o valor
semântico ‘ato de’: respectivamente, ‘ato de comparar’, ato de formatar’, ‘ato de
regularizar’. Porém, nem sempre esse valor vai ser tão estável. Há construções em
que é acrescentado à base um valor aspectual não presente nos exemplos já
134
citados; basta comparar com falação, casação, trepação, quebração, pulação. A
construção falação não significa simplesmente ‘ato de falar’, e sim ‘ato de falar que
se prolonga no tempo’, ou ainda, ‘vários atos de falar simultâneos’. Casação não é
simplesmente o ato de casar ― com esse significado, já existe na língua casamento
― mas a repetição do ato, ou vários atos simultâneos. Como se pode perceber, o
significado das diferentes construções envolvendo esse sufixo não vai ser regular,
ao contrário do que acontece naquelas em que aparece o sufixo -ste.
Conseqüentemente, o acréscimo do sufixo –ção a uma base verbal vai ser
considerado, pelo quarto critério, uma operação derivacional.
Diferentemente dos afixos analisados, aos quais se pode atribuir algum
significado, as vogais temáticas, por si só, não significam absolutamente nada. Elas
podem, no entanto, contribuir para o significado da construção como um todo ―
assim como todos os outros sufixos. Ou seja, se a um determinado radical se
acrescenta uma vogal temática, o significado da construção será um; se se
acrescenta outra, o significado também será outro. Quando a vogal temática está
numa construção que tenha como referente um ser animado, a variação de vogal
temática vai indicar a variação de sexo: assim, a construção gato indica sexo
masculino, ou a espécie como um todo, e gata indica sexo feminino. Há pelo menos
um caso em que a forma de feminino pode expressar um significado não previsto: no
par moço / moça, ambos têm o significado ‘ser-humano jovem’; o feminino, no
entanto, pode ser interpretado também como ‘mulher virgem’, independente da
idade. Além disso, muitas vezes as construções de feminino podem adquirir valores
subjetivos, de atribuição de juízo de valor. Esses usos não previstos serão
analisados no item 6.2.5, que trata da expressão da subjetividade.
135
Nas construções que têm como referentes seres não-animados, a
previsibilidade do significado é muito baixa. Nos pares barco / barca, por exemplo,
há uma nítida relação geral/específico. No entanto, o caráter dessa especificidade
não é previsível. Não é possível saber quais são as características a mais no item
feminino que não estão presentes no masculino. Além disso, pode haver várias
outras relações, como em sapato / sapata e braço / braça. No primeiro par, o
significado da construção de feminino é metaforizado a partir do significado da
construção de masculino; no segundo par, essa relação é metonímica: a construção
de feminino expressa o comprimento do referente da construção de masculino.
Como se pode observar, nesse segundo grupo de construções, referentes a
seres
não-animados,
há
uma
grande
instabilidade
no
significado
dessas
construções. Levando em consideração que nenhum elemento lingüístico significa
por si, isoladamente, mas sempre contribui para o significado da construção na qual
está inserido, e que vai estar sempre dentro de um contexto (uma outra construção
maior ou uma situação concreta de uso), podemos analisar não o significado dos
afixos em si ― o que seria impossível nas construções que são objeto deste trabalho
― mas das construções que ajudam a compor. A partir do critério da estabilidade do
significado das formas, podemos concluir então que pode haver uma boa dose de
previsibilidade no significado da construção, o que apontaria para um processo
flexional; mas isso somente vai ocorrer se o referente da construção for um ser
animado. Se, porém, o referente for não-animado, a previsibilidade é muito baixa,
apontando essas construções para processos derivacionais.
136
6.2.5. Expressão de subjetividade
Outro critério de diferenciação diz respeito à possibilidade de se expressarem
valores subjetivos a respeito de um referente qualquer. Segundo esse critério, a
derivação se presta a essa expressão, enquanto a flexão não se presta. Esse critério
é na verdade uma complementação do anterior, e reforça a não-variação do
significado nos processos flexionais.
Segundo Basilio,
A pejoratividade é provavelmente a expressão mais comum de atitude
subjetiva sobre a caracterização de um ser.
Em geral, podemos nos manifestar acerca de alguma coisa de uma maneira
neutra, positiva ou pejorativa. As expressões positiva e pejorativa são
expressões de atitude subjetiva; embora as expressões positivas contem
com algumas marcas morfológicas, é muito mais significativa a marca
morfológica de pejoratividade. (BASILIO, 1987, p. 86)
Um exemplo desse fato são as construções adjetivas denominais formadas
com o sufixo –ento. A própria base, quase sempre, já apresenta uma carga
semântica negativa39: piolhento, gosmento, nojento, remelento, melequento,
fedorento, grudento, sebento. Todos esses adjetivos expressam um alto grau de
pejoratividade no resultado do processo de formação. Mesmo quando se acrescenta
esse sufixo a bases que não são em princípio negativas, como mel ou pardo, as
construções resultantes se tornam pejorativas: melento, pardacento40.
Por outro lado, não é possível expressar nenhum tipo de impressão pessoal,
quer positiva quer negativa, com o sufixo –s, de plural. Não é possível encontrar
nenhum exemplo em que a forma de plural de um substantivo qualquer seja mais
positiva ou mais negativa que seu correspondente singular. Segundo o critério da
expressão de subjetividade, portanto, as construções em –ento seriam processos
39
O único exemplo que encontramos de uma formação com o sufixo –ento sem uma carga de
pejoratividade foi sedento.
40
Pardacento não é uma formação prototípica, já que se acrescentou um afixo formador de adjetivos
ao próprio adjetivo.
137
derivacionais, por poderem expressar valores subjetivos, e as construções de plural
seriam processos flexionais por não serem capazes de expressar esses valores.
Quanto às construções envolvendo vogal temática, as que têm como
referente seres não-animados não se prestam à expressão da subjetividade.
Comparando cada um dos pares do tipo veio / veia, saco / saca, barraco / barraca,
banco / banca, não se pode perceber nenhum tipo de valor subjetivo, positivo ou
negativo, quer nas construções masculinas quer nas femininas.
Nas construções cujos referentes são seres animados, por outro lado, há
inúmeros exemplos em que a forma de feminino pode expressar subjetividade.
Gonçalves (2005, p. 51) aponta que “algumas formas, além de veicularem a idéia de
feminino, são marcadas por forte conotação depreciativa, quando comparadas às de
masculino”. Os exemplos dados são os seguintes:
vagabundo
vagabunda
vadio
vadia
cachorro
cachorra
bruxo
bruxa
preparado
preparada
A esses exemplos poderíamos acrescentar puto, que em Portugal significa
‘menino’, e puta, que tanto em Portugal quanto no Brasil significa ‘prostituta’, ou
pistoleiro / pistoleira, em que o feminino (assim como em vagabunda e vadia),
também significa ‘prostituta’.
O critério para expressão de subjetividade, portanto, também direciona as
construções com vogal temática para dois sentidos diferentes: aquelas cujos
referentes são seres não-animados, por não serem capazes de expressar valores
subjetivos, seriam classificadas como flexionais; as construções que têm como
138
referente seres animados, por poderem apresentar, nas palavras de Gonçalves, uma
“função atitudinal” (GONÇALVES, 2005, p. 52), são enquadradas como processos
derivacionais.
6.2.6. Ocorrência de lexicalização
O termo lexicalização normalmente é utilizado com uma acepção de base
semântica: Sandmann (1997, p. 67), define esse termo como “um processo de
opacificação que as palavras vão sofrendo ao longo de sua permanência e uso na
língua”. E acrescenta, mais adiante: “Por lexicalização ou idiomatização, no caso da
palavra complexa, se entende o fato de a semântica não ser simplesmente a soma
das partes”. Alguns dos exemplos dados são portão, cartão, cursinho. Nestas
palavras, o sufixo perde o seu valor de grau e a construção inteira adquire um
significado que não equivale à soma das partes: o referente de portão não é uma
porta grande, mas um outro objeto diferente daquele cujo nome é a base da
construção. Acompanham Sandmann nessa acepção de base semântica Alves
(1990), Jota (1976) e Dubois et alii (1973).
Gonçalves (op. cit.), no entanto, com base em Bauer (1983), utiliza o termo
num sentido bem mais abrangente: lexicalização é “um fenômeno geral de
petrificação ― qualquer idiossincrasia constatada nas operações morfológicas”. Ou
seja, as irregularidades podem ser não só de base semântica, mas também
fonológica, morfológica e sintática. De acordo com a natureza da irregularidade,
Bauer (1983) identifica quatro diferentes tipos de lexicalização: semântica,
categorial, estrutural e rizomorfêmica.
139
O primeiro tipo, o único considerado pelos autores citados, está definido e
exemplificado acima. O segundo tipo, a categorial, ocorre quando, num processo de
formação, o termo que serve como base é de uma classe gramatical diferente da
que ocorre na regra geral. Um dos exemplos do item 6.2.5 ilustra esse tipo de
lexicalização: a regra de formação de adjetivos com o sufixo –ento é [[X]substento]adj,
ou seja, a uma base substantiva X é acrescido o sufixo, para formar um adjetivo com
valor de pejoratividade. A base de pardacento, no entanto, é outro adjetivo, o que faz
com que essa construção seja um exemplo de lexicalização categorial.
O terceiro tipo, a lexicalização estrutural, corresponde ao que se conceitua
tradicionalmente como alomorfia: “existem casos de morfemas que assumem, em
certas situações, diferentes configurações fonemáticas. São os alomorfes de um
mesmo morfema” (CARONE, 1994, p. 25). Essa definição equivale à de Gonçalves
(2005, p. 54), que diz que há lexicalização estrutural quando há anomalia na
estrutura do vocábulo quanto à sua constituição fonológica. Obviamente só há
anomalia tendo em vista um outro vocábulo que é visto como padrão, ou seja, há
duas formas equivalentes mas com diferentes constituições fonológicas ―
exatamente o conceito de alomorfia.
O quarto tipo ― que tem uma semelhança acentuada com o terceiro ―
acontece quando, num processo morfológico, um afixo é acrescentado a uma base
presa, a qual tem um equivalente livre. Esse tipo de lexicalização é chamado de
lexicalização rizomorfêmica. O aumentativo de nariz, por exemplo, é narigão.
Percebe-se que o sufixo –ão foi acrescido à base presa narig-, e não à forma livre
nariz. Na construção com sufixo formador de adjetivos –udo, também ocorre o
mesmo fenômeno; o sufixo é acrescido à base presa: narigudo. Em toda
lexicalização rizomorfêmica, há uma variação da constituição fonológica de um
140
elemento mórfico, o que também aponta para a definição de lexicalização estrutural.
Acreditamos, pois, que toda lexicalização rizomorfêmica é também estrutural,
embora o inverso não seja verdadeiro. Pode-se concluir, então, que este quarto tipo
é um subtipo do terceiro.
Como critério de diferenciação entre processos derivacionais e flexionais, a
lexicalização ― cujo conceito pode ser sintetizado como ‘arbitrariedades formais e
semânticas’ ― seria comum nos processos derivacionais e ocorreria bem pouco nos
flexionais. Analisando as construções envolvendo vogais temáticas, podemos
perceber que naquelas cujos referentes são não-animados pode ocorrer
eventualmente uma variação formal. Nos pares porto / porta, ovo / ova, troco / troca,
há uma variação na forma da base. Nesses pares, a vogal tônica das construções
masculinas vai ser a média-alta /o/, enquanto nas femininas figura a média-baixa /ɔ/.
Em relação ao significado, como a vogal temática por si não tem um significado
específico, nem há uma expectativa única de significado das construções, não há
razão para se falar em lexicalização semântica. Há nessas construções, no entanto,
a lexicalização do tipo estrutural, o que faz com que sejam consideradas processos
derivacionais.
Nas construções cujos referentes são seres animados, ocorrem tanto a
lexicalização estrutural (cf. porco / porca, sogro / sogra), quanto a semântica. Essa
última foi mostrada por Piza (2001), que deu os seguintes exemplos, nos quais a
forma de feminino assume um significado diferente de simplesmente ‘fêmea’: perua
(‘mulher extravagante’ ou ‘carro do tipo Kombi’, sendo este último significado
corrente em São Paulo), coelha (‘adolescente que pratica sexo com freqüência
exagerada’), bruxa (‘mariposa’). Pode-se acrescentar a esses exemplos espanhola
(‘posição sexual’) e negra (‘revanche’), exemplos dados por Gonçalves (2005), e
141
moça (‘mulher virgem’). O fato de se encontrarem os dois tipos de lexicalização
neste segundo grupo de construções também faz com que devam ser considerados
como resultantes de um fenômeno derivacional.
6.2.7. Possibilidade de mudança de classe
O sétimo critério apresentado por Gonçalves para estabelecer diferenças
entre flexão em derivação é a possibilidade de mudança de classe gramatical.
Segundo esse critério, “processos flexionais não são responsáveis por mudanças na
categorização lexical das bases. Os derivacionais, ao contrário, podem promover
alterações dessa natureza” (GONÇALVES, 2005, p. 62).
Esse critério, na verdade, só leva a um resultado positivo se houver a
mudança de classe, levando à conclusão de que o processo é derivacional41. No
entanto, há diversas formações cujo caráter derivacional não é posto em dúvida,
como por exemplo jornaleiro ou laranjal, em que não há mudança de classe no
processo. As bases são substantivos e as construções processadas são também
substantivos. Sendo assim, quando não há mudança de classe não se pode chegar
a nenhuma conclusão definitiva.
Nas construções envolvendo vogais temáticas, nunca há mudança de classe.
A vogal temática nominal é um elemento caracterizador dos substantivos (e
adjetivos), assim como as vogais temáticas verbais são elementos caracterizadores
dos verbos. Portanto, uma formação em que haja uma substituição de uma vogal
temática nominal por outra não vai causar a mudança de classe gramatical. As
formações jarro ⇒ jarra ou gato ⇒ gata envolvem sempre exclusivamente
41
Mesmo assim, Gonçalves levanta o ponto problemático do particípio, que tem características
morfossintáticas de adjetivo, apesar de ser tradicionalmente considerado uma flexão de verbo.
142
substantivos. Logo, não se pode chegar a dados conclusivos a respeito do caráter
flexional ou derivacional das construções com vogais temáticas, a partir do critério
da mudança de classe. Esse critério, por isso, fica descartado por não permitir que
se chegue a nenhuma conclusão.
6.2.8. Elementos nucleares e adjuntos
Outro critério apontado por Gonçalves (2005) para tentar diferenciar
processos derivacionais de flexionais é a relação que se dá entre elementos
determinantes e determinados em vocábulos morfologicamente complexos. Segundo
esse critério, sufixos derivacionais se comportam como cabeças das construções em
que se inserem (elementos nucleares) e flexionais se comportam como adjuntos
(elementos marginais). A título de exemplificação: os vocábulos galinheiro e
jornaleiro poderiam ser referencialmente retomados, num texto, respectivamente
pelos hiperônimos lugar e profissional. Note-se que essas noções não estão nas
bases galinha e jornal; foram acrescidas pelo sufixo. O sufixo de cada uma dessas
palavras, por conter o significado principal, é considerado o núcleo, enquanto a
base, por conter um valor semântico acessório, é o termo marginal. Seriam casos,
portanto, de derivação, pelo critério em análise.
Outro exemplo: no vocábulo cantávamos, a base expressa o significado ‘ação
de emitir voz de forma melodiosa’; o sufixo –va informa quando isso acontece (mais
os valores de modo e aspecto) e –mos nos informa quem é o agente da ação. A
informação central, portanto, está na base do vocábulo; as informações presentes
nos sufixos são acessórias. Concluiríamos, então, que essa construção foi formada
por um processo flexional.
143
Em relação às construções envolvendo vogal temática, o próprio Gonçalves
dá um exemplo: “em ‘gata’, o principal elemento significativo é a base, pois é em
função do seu conteúdo que se interpreta a construção morfológica. Poder-se-ia
pensar numa paráfrase do tipo: ‘gato do sexo feminino’” (GONÇALVES, 2005, p. 70).
Quanto às construções do tipo marco / marca, o único elemento que pode ter
o status de nuclear, numa perspectiva semântica ― e, aqui, mesmo numa
perspectiva estrutural ― é a base, já que a vogal temática, conforme já foi dito,
isoladamente é vazia de valor semântico. Como nos dois tipos de construção ― com
referente animado e com referente não-animado ― a base é o elemento nuclear e a
vogal temática é o adjunto, segundo o critério da relação elemento nuclear / adjunto
essas construções teriam o status de processos flexionais.
6.2.9. Ordem e posição dentro da construção
O critério seguinte diz respeito à ordem e à posição dos elementos dentro da
construção. Segundo esse critério, “afixos derivacionais se localizam mais próximos
da base e sempre precedem os flexionais,quando juntos na mesma palavra” (op. cit.,
p.76). Além disso, “afixos que aparecem próximos da base são mais relevantes por
promoverem mudanças mais acentuadas de significado” (ibidem). Na construção
vendedores, por exemplo, o sufixo –dor aparece mais próximo à base porque é a
parte da construção que introduz a noção de ‘agente’, modificando de forma drástica
o sentido original da base. Já a marca de plural indica apenas que é mais de um,
modificando muito superficialmente o sentido da base. Pelo critério exposto,
portanto, o elemento –dor, por estar mais próximo à base e por ter um significado
mais relevante dentro da construção, seria o responsável por um processo de
144
caráter derivacional. Já a marca de plural, por estar mais distante da base e por
acrescentar uma modificação de significado menos drástica, seria um elemento de
caráter flexional.
Vejamos a aplicabilidade desse critério às construções de vogal temática com
referente animado. A título de exemplo, peguemos, por exemplo, o par jornaleiro /
jornaleira. Nesse par, a noção de sexo está explicitada através dos elementos finais
–o / –a, enquanto a noção de agente é indicada pelo sufixo –eir–. Esse sufixo está
mais próximo à base, e a modifica mais drasticamente que os elementos –o / –a. A
rigor, na verdade, o elemento mais externo modifica não a base, mas todo o
conjunto anterior. Em jornaleiras teríamos as seguintes camadas: [[[[jornal]eir]a]s] ―
a base jornal é modificada pelo sufixo –eir–, indicando que é um agente que lida
com o referente representado pela base; o elemento –a, por sua vez, modifica todo o
conjunto jornaleir–, indicando que esse agente que lida com jornais é do sexo
feminino; por fim, o elemento –s modifica jornaleira, indicando que há mais de um
agente do sexo feminino que lida com jornais. Dessa forma, sendo um elemento
mais externo e com uma significação menos relevante dentro da construção, as
vogais temáticas, por esse critério, seriam consideradas elementos flexionais. Há, no
entanto, a possibilidade de as vogais temáticas aparecerem no interior do vocábulo,
no acréscimo do sufixo de grau diminutivo a algumas bases (ver item 6.2.10, sobre
recursividade). Na construção medicazinha, aparecem duas vogais temáticas, uma
mais próxima à base e outra mais afastada. Esse fenômeno é razoavelmente
recorrente, fazendo assim com que a vogal temática tenha um comportamento
ambíguo em relação a esse critério: na maior parte das vezes em que figura numa
construção mais complexa, aparece, junto com a marca de plural, como o elemento
145
mais afastado da base. Em alguns casos, no entanto, pode ficar junto à base e
haver outros elementos posteriores.
Se nas construções de gênero com referente animado, nas quais o gênero
equivale ao sexo do referente, a análise não é tão simples, a situação complica-se
um pouco mais nas construções de gênero com referente não-animado. Observemse as construções jarrinho / jarrinha. Nessas construções, os elementos –o / –a não
indicam sexo; tampouco significam coisa alguma. No entanto, sua presença, apesar
de estar na parte mais externa da construção, é muito mais relevante para o
significado da construção como um todo que o sufixo –inh–. Essa é mais uma
evidência para o problema que serve de ponto de partida para esta tese, exposto em
1.1. Em relação à posição mais próxima à base, acontece a mesma coisa que nas
construções de referente animado, como por exemplo na construção laminazinha.
Nos dois tipos de construção, portanto, o critério em análise não acrescenta dados
para se identificar o caráter flexional ou derivacional da vogal temática.
6.2.10. Recursividade
O critério seguinte diz respeito à possibilidade de algum tipo de afixo aparecer
mais de uma vez na construção ou não (ou seja, diz respeito à recursividade).
Segundo esse critério, apenas os afixos derivacionais podem ser recursivos; os
flexionais
seriam
mutuamente
excludentes.
Como
exemplo,
teríamos
a
impossibilidade de aparecer mais de um sufixo indicativo de tempo/modo/aspecto na
mesma forma verbal ― “são agramaticais formações como ‘cantavaremos’ ou
‘cantasseríamos’” (GONÇALVES, 2005, p. 83). A impossibilidade de recursividade
desse sufixo comprova o seu caráter flexional.
146
Por outro lado, sufixos como os de grau podem aparecer lado a lado na
mesma construção, às vezes até com sentidos antagônicos. Em formas
lexicalizadas, nas quais o significado do sufixo se opacificou, isto é comum:
portãozinho, mamãozinho, caipirinhona, poltroninha. Mas mesmo em formas não
lexicalizadas, ainda assim a recursividade é possível: em linguagem marcada
afetivamente, como em narigãozinho, beijãozinho, beijinhão, menininhazinha,
meninotazinha etc. Todos os exemplos dados foram de grau, mas outros sufixos
podem também ser recursivos: Gonçalves (op. cit, p. 85) dá o exemplo
institucionalização, que tem os seguintes constituintes imediatos:
institucionalização
institucionalizar
institucional
instituição
instituir
-ção
-izar
-al
-ção
FIGURA 22
Perceba-se que o sufixo –ção, formador de substantivos abstratos a partir de
bases verbais, aparece duas vezes na formação. A possibilidade de recursividade
desses sufixos aponta, segundo o critério em análise, para um processo
derivacional.
Conforme já foi mostrado no item anterior, as vogais temáticas podem, em
algumas situações restritas, também aparecer mais de uma vez na mesma
construção. Uma das situações em que isso acontece é quando o sufixo de grau
147
diminutivo é recursivo: livrinhozinho, pontinhazinha. Há também a variação –inho /
-zinho, em que normalmente os substantivos temáticos formam construções de grau
com a primeira variante (mesinha, cabinho) e os atemáticos ― incluindo os que
Villalva (2003) chamou de atemáticos propriamente ditos (cafezinho, romãzinha) e
os que chamou de tema em ∅ (florzinha, marzinho) ― formam com a segunda. Há
alguns substantivos temáticos, no entanto, que podem figurar numa construção de
grau com a presença de uma variante ou de outra (paredinha, paredezinha), e há
ainda aqueles que, mesmo sendo temáticos, mais comumente formam o diminutivo
com o acréscimo de –zinho (arvorezinha, estantezinha, lampadazinha). Nesses
casos, há recursividade de vogal temática: permanece a da base e é acrescentada a
do sufixo. A partir desses exemplos, dada a possibilidade de aparecer mais de uma
vez na mesma construção, as vogais temáticas se comportam segundo esse critério
como elementos derivacionais.
6.2.11. Neologia de afixos
O décimo-primeiro critério apresentado por Gonçalves na diferenciação entre
formas flexionais e derivacionais diz respeito à expansão do conjunto de formas, ou
seja, à criação de novos afixos. Segundo esse critério, “as chances de expansão do
número de elementos flexionais são mínimas. Embora remota, não é impossível a
criação de afixos derivacionais” (GONÇALVES, 2005, p. 87). A razão de ser desse
critério é que os elementos flexionais fazem parte da gramática da língua, sendo
portanto um sistema fechado e com poucas chances de modificação; os elementos
derivacionais, por outro lado, caracterizariam o léxico da língua, que é um sistema
aberto; conseqüentemente, adquire ininterruptamente novos elementos. Quase
148
sempre, essas novas aquisições são vocábulos, mas é possível também, muito
ocasionalmente, que novos afixos surjam na língua. Gonçalves dá o exemplo dos
sufixos -ê, que dá idéia de “excesso de X” (misere, lamacê, fumacê) e -ete, que
expressa “alguém do sexo feminino caracterizado por algum tipo de adesão a X”
(malufete, lulete, chacrete),
Segundo Houaiss (2001), o sufixo –ete entrou no português no século XIX,
em
formações
como
lanchonete,
caminhonete,
pierrete,
patinete.
Mais
recentemente, além do valor semântico identificado por Gonçalves, também passou
a ser usado na formação de oniônimos, como um atrativo publicitário: colchonete,
sofanete, cotonete.
Outro neologismo digno de nota é o novo uso, como superlativo, do sufixo
indicador de numerais ordinais –ésimo: cultésimo, gostosésima. Houaiss (op. cit., p.
1218) traz estes divertidos exemplos, considerados pelo autor como “pornofônicos”:
colhonésimo, merdésimo.
Quanto às vogais temáticas nominais, esses elemento mórficos já existiam
desde o latim: as três vogais temáticas do português, -a, -o, -e, correspondem,
respectivamente, às vogais temáticas da primeira, da segunda e da terceira
declinações. Havia em latim duas outras declinações, que tinham como vogais
temáticas -u e –e; essas declinações, porém, na mudança da língua, foram
incorporadas pelas três primeiras. Na verdade, a fixação das três vogais temáticas
que conhecemos hoje em português aconteceu antes mesmo de o português existir;
essas já eram as vogais temáticas existentes no latim vulgar (cf. ILARI, 1992, p. 90).
Esse conjunto, portanto, já se encontra cristalizado há pelo menos doze séculos. A
probabilidade de se modificar esse conjunto é provavelmente nula. Sendo assim,
149
pelo critério da possibilidade de neologia, devem-se considerar as vogais temáticas
nominais como elementos flexionais.
6.2.12. Expressão de características sociolingüísticas
O último critério proposto por Gonçalves é o que ele chama de “função
indexical dos processos morfológicos”. Isso acontece quando diferentes processos
morfológicos são formas variantes, identificando com seu uso diferentes grupos
sociais. Por esse critério, “apenas afixos derivacionais podem servir como meio de
sinalização do falante do ponto de vista social, geográfico e etário” (GONÇALVES,
2005, p. 89). Um dos exemplos dados pelo autor é o da noção semântica de
intensificação, cuja expressão é feita por intermédio de várias estratégias
alternantes.
Gonçalves observou que homens tendem ao uso de estratégias sintáticas ou
de prefixos intensivos, enquanto a intensificação por sufixação, procedida com o uso
dos sufixos -íssimo,-érrimo e -ésimo, é mais fortemente associada à fala feminina de
modo geral e à fala homossexual masculina em particular. Obviamente essa
oposição só vai existir nos indivíduos que se fazem reconhecer socialmente pela
fala, quer se apresentem como heterossexuais quer como homossexuais.
O problema deste critério é que ele nada diz em relação aos elementos que
não têm função indexical: tanto podem ser flexionais quanto derivacionais, já que há
inúmeros afixos comprovadamente derivacionais que não são usados na sinalização
de grupos específicos de falantes. Quanto às vogais temáticas nominais, não há
sinal de que possam, de alguma maneira, identificar algum grupo social. Como a
ausência da função indexical nada diz do caráter flexional ou derivacional de algum
150
elemento, este critério não pode ser usado para situar as vogais temáticas como
elementos pertencentes a um ou a outro grupo.
6.3. A proposta de Bybee
Tradicionalmente, conforme visto no Capítulo 2, concebe-se a noção de
categoria lingüística como um conjunto de elementos com características idênticas.
Cada categoria é vista, metaforicamente, como um compartimento, onde os
elementos lingüísticos se encaixam de acordo com suas propriedades. O grande
problema dessa perspectiva de descrição é que nem sempre os elementos
lingüísticos se deixam encaixar docilmente num determinado compartimento. Na
verdade, as categorias estabelecidas são formadas por elementos cujas
propriedades nem sempre são compartilhadas da mesma forma. Por isso, proliferam
trabalhos acadêmicos que questionam a validade de determinada categoria ou da
inclusão de determinados elementos em uma categoria ou em outra.
Como se pôde perceber pelo item 6.1, temos aqui um problema desse tipo:
não é possível estabelecer um padrão preciso de diferenciação entre categorias
flexionais e derivacionais. A proposta de Bybee (1985) é contradizer a idéia
tradicional de que categorias lingüísticas são excludentes entre si. Na verdade, os
elementos de uma categoria podem pertencer a ela em diferentes graus, de acordo
com o fato de possuírem ou não todas as características que a compõem. Ou seja,
as
categorias
lingüísticas
não
são
conjuntos
discretos,
mas
gradações:
normalmente, não é possível estabelecer um limite preciso entre uma categoria e
outra.
151
Bybee parte desse princípio para estabelecer um continuum onde os
elementos lingüísticos podem se situar, utilizando como critério o modo pelo qual
duas unidades de significação podem se combinar. A partir desse critério, a autora
estabeleceu três formas de expressão, das quais duas seriam os pólos do continuum
e a terceira o ponto medial entre esses dois pólos.
O primeiro pólo corresponde à expressão em que duas unidades de
significação se combinam num único item lexical monomorfêmico. Por exemplo, no
vocábulo pavor estão presentes simultaneamente as noções de ‘medo’ e
‘intensidade’. Essa forma de expressão é o que a autora chamou de expressão
lexical. O ponto medial do continuum corresponde à forma de expressão que Bybee
chamou de flexional. Nessa forma de expressão, cada unidade de significação é
expressa em uma forma individual, mas essas formas estão unidas no interior de
uma única palavra. Um exemplo dessa forma de expressão seria o vocábulo sofás,
em que as noções de ‘móvel estofado com mais de um assento etc’ e ‘mais de um’
estão expressas, respectivamente, pelos morfemas sofá e -s. Segundo a autora,
uma categoria morfológica é flexional se algum elemento dessa categoria
obrigatoriamente acompanha um radical quando ele figura numa oração.
Sendo assim, uma categoria flexional precisa ser combinável com qualquer
base que tenha traços sintáticos e semânticos próprios, produzindo um
sentido previsível. (BYBEE, 1985, P. 11).42
O segundo pólo do continuum corresponde à forma de expressão sintática.
Neste tipo de expressão, cada unidade de significação é expressa em uma palavra
independente. Dessa forma, as noções expressas lexicalmente pelo vocábulo linda
também podem ser expressas sintaticamente pela expressão muito bela.
Além desses três segmentos do continuum, é possível também identificar
áreas intermediárias. Entre a expressão lexical e a expressão flexional, situa-se a
42
A morphological category is inflectional if some member of the category obligatorily accompanies
the radical element when it occurs in a finite clause. Thus, an inflectional category must be combinable
with any stem with the proper syntactic and semantic features, yielding a predictable meaning.
152
expressão derivacional, cujos morfemas têm em comum com a expressão lexical o
fato de terem aplicabilidade freqüentemente restrita e serem idiossincráticos na
forma ou no significado. Entre a expressão flexional e a sintática, situa-se uma
classe fechada de formas que se aproximam funcionalmente das flexionais, mas não
são internas a nenhum item lexical. São formas gramaticais não-presas43, como os
clíticos e verbos auxiliares (ir em vou comprar ou ter em tinha comprado, por
exemplo). Todas essas formas de expressão, em seqüência, formam um continuum
(representado na figura a seguir) do maior para o menor grau de fusão entre as
unidades de significação: há maior fusão na expressão lexical e menor fusão na
expressão sintática.
LEXICAL
DERIVACIONAL
FLEXIONAL
maior grau de fusão
FORMAS
GRAMATICAIS
NÃO-PRESAS
SINTÁTICO
menor grau de fusão
FIGURA 23
Há, no entanto, um problema na seqüência do continuum: ele não contempla
a composição, que é um importante processo de formação de palavras em
português, como uma das formas de expressão. Bybee tem um item de sua obra
dedicado à composição e a um processo, inexistente em português, chamado
incorporação (BYBEE, 1985, p. 105 et. seq.). Esse processo é um tipo de
composição em que há, dentro do verbo, um morfema para indicar o paciente do
processo, ou, menos comumente, dois verbos fundidos um no outro. A autora inclui
esses dois processos, junto à flexão e à derivação, em um outro continuum, com
43
A autora chamou os elementos desse segmento do continuum de formas “gramaticais livres”, e
acrescentou que ocorrem em posições fixas. Em português, no entanto, os clíticos têm mobilidade de
posição. Acompanhando a proposta de Câmara Jr. (1970), que acrescentou às formas livres e presas
descritas por Bloomfield as formas dependentes, preferimos chamar esses elementos de formas
gramaticais não presas, o que corresponde melhor à realidade do português.
153
outro critério de distribuição que não o grau de fusão dos significados. Nesse outro
continuum, há a seguinte gradação:
FLEXÃO.
COMPOSIÇÃO
>
INCORPORAÇÃO
>
DERIVAÇÃO
>
A extremidade esquerda, a composição, corresponde a uma classe de
formas maior e mais livre, com significados mais ricos e mais específicos. O outro
extremo, correspondente à flexão, envolve classes menores e com significados mais
abstratos e mais gerais. Incorporação e derivação ficariam no segmento
intermediário desse continuum. Em outra parte da obra, a autora chama atenção
para o fato de a composição ser intermediária entre a expressão lexical e a
expressão sintática (como se o continuum apresentado na figura 23 fosse na
verdade circular). Essa parte do continuum corresponde aproximadamente ao
esquema da figura 9 (item 3.3).
Voltando ao continuum da figura 23, Bybee reconhece nele a existência das
formas gramaticais não-presas, mas esclarece que não vai se dedicar a elas em seu
trabalho. Centra foco, então, nas outras formas de expressão, cujas combinações de
significados são determinadas por dois princípios básicos: o princípio da relevância e
o princípio da generalidade. O primeiro diz que “o significado de um elemento é
relevante para o significado de outro se o conteúdo semântico do primeiro afeta ou
modifica diretamente o conteúdo semântico do segundo”44. Duas unidades de
significação são relevantes uma para a outra se o resultado de sua combinação
nomeia algo que tenha saliência cultural ou cognitiva. Piza (2001) dá o exemplo do
cruzamento vocabular bebemorar, criado pela fusão dos significados de comemorar
e beber, através de uma analogia jocosa com parte do radical do verbo comemorar,
que se assemelha a comer. Como o ato de beber (bebida alcoólica, bem entendido)
em comemorações é altamente relevante em nossa cultura, foi possível a criação do
44
A meaning element is relevant to another meaning element if the semantic content of the first
directly affects or modifies the semantic content of the second.
154
verbo, através da expressão lexical. Essa criação exemplifica uma das
características do princípio da relevância: quanto mais relevantes forem dois
significados um para o outro, maior a probabilidade de a sua expressão se dar
lexical ou derivacionalmente. E se dois significados forem pouco relevantes um para
o outro, mais provavelmente sua expressão vai se dar por via sintática. A noção de
‘lugar’, por exemplo, é altamente relevante para o sentido ‘locomover-se’. Sendo
assim, ‘locomover-se’ pode se fundir aos sentidos ‘no chão’, ‘no ar’, ‘na água’,
gerando, respectivamente, os sentidos dos verbos andar, voar e nadar. Outro
exemplo: o sentido ‘rapidamente’ é altamente relevante ao sentido do verbo andar,
gerando pela fusão dos dois sentidos o verbo correr. Esse mesmo sentido, no
entanto, não é relevante para os verbos ler ou colher X. Sendo assim, a junção
desses sentidos vai se dar por via sintática: ler rapidamente ou colher X
rapidamente. A expressão flexional é intermediária entre a forma de expressão
lexical ou derivacional e a forma de expressão sintática, formando o seguinte
continuum, no que diz respeito à relevância:
EXPRESSÃO LEXICAL
OU DERIVACIONAL
EXPRESSÃO
FLEXIONAL
maior grau de relevância
EXPRESSÃO
SINTÁTICA
menor grau de relevância
FIGURA 24
O segundo princípio que determina as combinações de significados nas
formas de expressão é o princípio da generalidade. Segundo esse princípio, uma
categoria flexional deve ser aplicável a todas as bases com determinadas
especificidades sintático-semânticas, e precisa obrigatoriamente ocorrer num
contexto sintático próprio (cf. BYBEE, 1985, p. 17). Para um processo morfológico
ser tão geral, ou seja, aplicável às bases de toda uma categoria gramatical, deve ter
155
um conteúdo semântico mínimo: se for muito específico, não vai ser compatível com
o valor semântico de um grande número de bases. Esses conteúdos mais
específicos tendem a ser expressos pelos meios de expressão lexical e sintático.
Dessa forma, a noção de ‘mais de um’, expressa pelo morfema de número, é
compatível praticamente com qualquer base de natureza substantiva (alguns poucos
exemplos de restrições estão enumerados no item 6.2.3). Já uma noção mais
específica, como ‘companhia’, vai ser expressa sempre sintaticamente: passear com
o Pedro, estudar com os amigos. Em síntese: quanto mais geral for o significado
maior a probabilidade de ser expresso flexionalmente; quanto mais específico, maior
a probabilidade de ser expresso lexical ou sintaticamente. A relação entre a
generalidade e os meios de expressão estão esquematizados na figura 25:
EXPRESSÃO
FLEXIONAL
EXPRESSÃO
DERIVACIONAL
maior grau de generalidade
EXPRESSÃO LEXICAL
OU SINTÁTICA
menor grau de generalidade
FIGURA 25
6.4. A vogal temática no continuum flexão derivação
A hipótese do continuum flexão – derivação proposta por Bybee é bastante
pertinente, já que dá base para uma análise relativizada de fenômenos que
tradicionalmente são enfocados de forma absoluta. O instrumental teórico específico
para análise das categorias, no entanto, é frágil. Conforme salientou Gonçalves
(2005, p. 169), apenas com as noções de generalidade e relevância, não é possível
inserir qualquer categoria no continuum ― ainda mais porque a relevância é de difícil
mensuração.
156
Por isso, optamos por usar a hipótese do continuum flexão – derivação, mas,
para inserir a categoria em análise nesse continuum, vamos utilizar os critérios de
diferenciação levantados por Gonçalves (op. cit) ― expostos nos itens 6.2.1 a 6.2.12
―, que formam um conjunto mais objetivo e dão maiores subsídios para inserir uma
categoria em diferentes pontos desse continuum. Os critérios são, em síntese, os
seguintes:
CRITÉRIO
FLEXÃO
DERIVAÇÃO
1.
Visibilidade sintática
SIM
NÃO
2.
Concorrência de estratégias de expressão
NÃO
SIM
3.
Produtividade
MENOR
MAIOR
4.
Regularidade do significado
MAIOR
MENOR
5.
Expressão de subjetividade
NÃO
SIM
6.
Ocorrência de lexicalização
NÃO
SIM
7.
Possibilidade de mudança de classe
NÃO
SIM
8.
Elementos nucleares
NÃO
SIM
9.
Proximidade da base
MENOR
MAIOR
10.
Recursividade
NÃO
SIM
11.
Neologia de afixos
NÃO
SIM
12.
Expressão de características sociolingüísticas
NÃO
SIM
Esses doze critérios, em conjunto, formam um subsídio bem mais objetivo
para estabelecimento do grau de pertencimento de um elemento qualquer à
categoria flexional ou à derivacional. A partir da análise feita em 6.2, será montado
um quadro que vai mostrar, em cada critério, se cada construção tende para a flexão
ou para a derivação. Com essa visão geral, calcularemos percentualmente o grau de
157
pertencimento de cada uma das construções a cada categoria. O quadro é o
seguinte:
CONSTRUÇÃO
BÁSICA
CRITÉRIO
FLEXÃO
DERIVAÇÃO
1.
Visibilidade sintática
X
2.
Concorrência de estratégias de
expressão
X
3.
Produtividade
4.
Regularidade do significado
5.
Expressão de subjetividade
X
6.
Ocorrência de lexicalização
X
7.
Possibilidade de mudança de
classe
8.
Elementos nucleares
9.
Proximidade da base
10.
Recursividade
11.
Neologia de afixos
12.
Expressão de características
sociolingüísticas
CONSTRUÇÃO
DECORRENTE
FLEXÃO
DERIVAÇÃO
X
X
X
X
X
X
X
NÃO CONCLUSIVO
X
X
X
NÃO CONCLUSIVO
X
NÃO CONCLUSIVO
NÃO CONCLUSIVO
X
X
NÃO CONCLUSIVO
X
X
NÃO CONCLUSIVO
Dos doze critérios apresentados por Gonçalves, três são não-conclusivos.
Nos nove restantes, a construção básica tem um comportamento 50% flexional e
50% derivacional. Essa construção fica localizada, portanto, exatamente no centro
do continuum flexão – derivação. A construção decorrente, pelos dados acima, se
comporta como derivacional em 44,5% dos casos, e como flexional em 55,5%. Está
localizada, portanto, num ponto ligeiramente à esquerda da construção básica,
158
tendendo um pouco mais para a flexão. O esquema a seguir mostra a posição de
cada uma das construções no continuum:
FLEXÃO
PROTOTÍPICA
CONSTRUÇÃO
BÁSICA
(gato / gata)
CONSTRUÇÃO
DECORRENTE
(mato / mata)
FIGURA 26
DERIVAÇÃO
PROTOTÍPICA
159
7. CONCLUSÃO
Acreditamos ter alcançado o objetivo final deste trabalho, que é apresentar
evidências suficientes para embasar as hipóteses apresentadas. Ao final de nossa
argumentação, esperamos poder dar como estabelecidos alguns conceitos, os quais
dividimos em três seqüências de conclusões. Na primeira seqüência, o primeiro dos
conceitos que pretendemos ter estabelecido é de que as classes gramaticais podem
ser consideradas em si construções gramaticais, com suas características
semântico-cognitivas e formais próprias. O segundo é de que é possível reenquadrar
um elemento de uma classe em outra, por meio da perda das características
morfossintáticas da classe de origem e aquisição das características da classe-alvo.
Esse processo é o que propusemos chamar “reenquadre morfológico”. Finalizando
essa primeira seqüência, concluímos que não é pertinente a descrição chamada
tradicionalmente de “derivação regressiva”: o processo no qual um substantivo é
formado a partir de um verbo sem que se usem afixos é na verdade um caso de
reenquadre morfológico.
Na segunda seqüência de conclusões, sustentamos que nos substantivos
acontece uma variação desse processo, envolvendo subclasses de substantivos.
Essas subclasses são também conjuntos de construções, cuja forma está
relacionada às vogais temáticas e cujo significado está relacionado ao gênero. As
construções de gênero prototípicas são aquelas que se relacionam diretamente com
a noção de sexo. No que diz respeito à forma, as prototípicas masculinas têm vogal
temática em -o; as femininas em -a. O próximo conceito estabelecido é de que há
uma rede construcional envolvendo as construções de vogais temáticas, na qual as
construções básicas são aquelas em que o gênero está diretamente relacionado ao
160
sexo do referente, e o conjunto de construções decorrentes é aquele em que o
gênero está apenas metaforicamente relacionado a sexo.
Na terceira seqüência, reforçamos o conceito formulado por Bybee de que
flexão e derivação são fenômenos escalares, distribuídas num continuum cujos
pólos representam as categorias prototipicamente derivacionais ― um dos pólos ―
e flexionais ― ou outro pólo. Como última conclusão, pretendemos ter demonstrado
que as construções envolvendo vogais temáticas não são prototipicamente
derivacionais nem flexionais, situando-se num ponto intermediário entre os dois
pólos.
A Gramática das Construções é um modelo de análise bastante recente;
sendo assim, há relativamente poucos trabalhos que utilizem seu arcabouço teórico.
Desses, quase todos se dedicam a construções de base sintática, até porque o
modelo foi desenvolvido para dar conta de construções sentenciais do inglês. A
adequação do modelo para construções morfológicas, além do foco nas vogais
temáticas nominais, assunto pouquíssimo explorado nos trabalhos lingüísticos,
conferem o pioneirismo e a originalidade desta tese. Esperamos que outros
trabalhos se somem a este, no sentido de desenvolver mais a junção das
perspectivas cognitiva e morfológica na descrição do português, e, principalmente,
que esta tese tenha sido uma contribuição de valor para o desenvolvimento dessa
combinação de perspectivas.
161
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168
ANEXO 1:
Um cientista conseguiu produzir em laboratório substâncias que se
assemelham muito a minerais, mas com cores belas e brilhantes. Achando que os
nomes que os cientistas normalmente dão às suas substâncias são muito técnicos, e
querendo enriquecer com sua descoberta, o cientista resolveu dar nomes que ele
considerou mais “comerciais”. A uma dessas substâncias ele deu o estranho nome
de “palime”. Havia palimes brancas e verdes. A uma outra, deu o nome de “ronele”,
os quais eram azuis e roxos.
Complete a lista dos estranhos nomes dados pelo cientista, acrescentando ao lado
as cores indicadas, que cada substância pode ter.
Obs.: Escreva usando letra maiúscula de imprensa (como nos exemplos).
palimes BRANCAS E VERDES____________
roneles AZUIS E ROXOS_________________
prilufos ______________________________
barucãs ______________________________
febalas ______________________________
carubos ______________________________
topiris ______________________________
noletas ______________________________
soviles ______________________________
jaligos ______________________________
quirijas ______________________________
relifis ______________________________
169
ANEXO 2:
Lista (não exaustiva) dos pares que formam as construções decorrentes X-o / X-a:
arco
arca
balanço
balança
banco
banca
barco
barca
barraco
barraca
bico
bica
bolso
bolsa
braço
braça
calçado
calçada
cerco
cerca
cesto
cesta
cinto
cinta
comando
comanda
encosto
encosta
espinho
espinha
fosso
fossa
fruto
fruta
horto
horta
jarro
jarra
lenho
lenha
madeiro
madeira
170
marco
marca
mato
mata
ovo
ova
palmo
palma
poço
poça
porto
porta
quadro
quadra
ramo
rama
rolo
rola
saco
saca
sapato
sapata
troco
troca
veio
veia
vento
venta
Lista (não exaustiva) dos pares que formam as construções X-eir-o / X-eir-a:
carteiro
carteira
chapeleiro
chapeleira
churrasqueiro
churrasqueira
farinheiro
farinheira
fruteiro
fruteira
leiteiro
leiteira
lixeiro
lixeira
pedreiro
pedreira
171
pipoqueiro
pipoqueira
porteiro
porteira
sapateiro
sapateira
salsicheiro
salsicheira
sorveteiro
sorveteira
Lista (não exaustiva) dos pares que formam as construções X-ic-o / X-ic-a:
botânico
botânica
clínico
clínica
crítico
crítica
estatístico
estatística
físico
física
gráfico
gráfica
gramático
gramática
mágico
mágica
matemático
matemática
mecânico
mecânica
metalúrgico
metalúrgica
músico
música
político
política
químico
química
técnico
técnica
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