UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Mauro José Rocha do Nascimento REPENSANDO AS VOGAIS TEMÁTICAS NOMINAIS A PARTIR DA GRAMÁTICA DAS CONSTRUÇÕES Rio de Janeiro 2006 2 Mauro José Rocha do Nascimento REPENSANDO AS VOGAIS TEMÁTICAS NOMINAIS A PARTIR DA GRAMÁTICA DAS CONSTRUÇÕES Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas – Língua Portuguesa, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Língua Portuguesa Orientadora: Profa Dra Maria Lúcia Leitão de Almeida Co-orientador: Prof. Dr. Carlos Alexandre Victório Gonçalves Rio de Janeiro 2006 3 Universidade Federal do Rio de Janeiro Título da Tese: Repensando as vogais temáticas nominais a partir da gramática das construções Autor: Mauro José Rocha do Nascimento Defesa em: agosto de 2006 BANCA EXAMINADORA: ___________________________________________________________________ Profa Dra Maria Lúcia Leitão de Almeida – orientadora Universidade Federal do Rio de Janeiro ___________________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Alexandre Victório Gonçalves – co-orientador Universidade Federal do Rio de Janeiro ___________________________________________________________________ Profa Dra Lílian Vieira Ferrari Universidade Federal do Rio de Janeiro ___________________________________________________________________ Profa Dra Adrete Terezinha Matias Grenfell Universidade Federal do Espírito Santo ___________________________________________________________________ Profa Dra Sandra Pereira Bernardo Universidade do Estado do Rio de Janeiro ___________________________________________________________________ Profa Dra Célia Regina dos Santos Lopes Universidade Federal do Rio de Janeiro ___________________________________________________________________ Prof. Dr. Mario Eduardo Toscano Martelotta Universidade Federal do Rio de Janeiro ___________________________________________________________________ Profa Dra Maria Aparecida Lino Pauliukonis Universidade Federal do Rio de Janeiro 4 A Darlene, Rômulo e Leonardo, minhas três razões de estar aqui. 5 AGRADECIMENTOS A Darlene, Rômulo e Leonardo, por todos os momentos de ausência e por me apoiarem incondicionalmente, principalmente em algumas difíceis decisões profissionais e nos inúmeros momentos de angústia que precederam o ponto final desta Tese. A Maria Lúcia e Carlos, meus mui queridos orientadores, que muitas vezes me fizeram me sentir culpado por se empenharem como orientadores muito mais do que eu como orientando. Aos meus companheiros de Lingüística Cognitiva Patrícia, Diogo, Ana Flávia, Luciano e Marina, por todos os momentos acadêmicos e lúdicos que compartilhamos. Às Profas Célia Lopes e Margarida Basílio, pelas inestimáveis observações no exame de qualificação, fundamentais para o desenvolvimento da argumentação neste trabalho. 6 RESUMO NASCIMENTO, Mauro José Rocha do. Repensando as vogais temáticas nominais a partir da gramática das construções. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. Este trabalho parte dos pressupostos teóricos da Lingüística Cognitiva, mais especificamente do modelo da Gramática das Construções desenvolvido por Goldberg (1995), adaptando-o para construções de base morfológica. A primeira proposta apresentada é de que as classes gramaticais podem ser consideradas em si construções gramaticais. Centramos foco nos substantivos e nos verbos, mais particularmente nos processos de formação envolvendo essas duas classes. Defendemos aqui que o processo no qual um substantivo é formado a partir de um verbo sem que se usem afixos, chamado tradicionalmente de “derivação regressiva”, é na verdade um caso do que propomos chamar “reenquadre morfológico”. O mesmo processo pode acontecer no sentido contrário, em que o verbo é formado a partir do substantivo, envolvendo apenas os elementos que caracterizam essas categorias. Com base nessa proposta, sustentamos que nos substantivos acontece uma variação desse mesmo processo, só que envolvendo subclasses de substantivos. Essas subclasses são também conjuntos de construções, cuja forma está relacionada às vogais temáticas e cujo significado está relacionado ao gênero. Quanto à forma, comprovamos que os falantes relacionam automaticamente as construções X-o ao gênero masculino e as construções X-a ao gênero feminino. Quanto ao significado, com base em Lakoff (1980), que afirma que conceptualizamos o mundo a partir de noções básicas de nossa experiência corporal, sustentamos que os falantes conceptualizam a noção gramatical de gênero em termos de diferenças de sexo; tanto que, nas línguas indo-européias de modo geral, existe essa relação entre gênero e sexo. No conjunto das construções envolvendo gênero, há um conjunto básico, em que gênero e sexo estão diretamente ligados (menino / menina, gato / gata). Nesse grupo de construções, há um reenquadre das construções masculinas com tema em –o, em –e ou em –Ø (atemáticas) para as construções femininas com tema em –a, ou seja, o feminino é formado a partir do masculino. Isso se dá por ser o masculino considerado o gênero prototípico, enquanto o feminino se afasta desse protótipo. A prototipicidade do masculino é um dado cultural, que se reflete lingüisticamente. Como conseqüência, o masculino é na língua o gênero básico, mais geral, enquanto o feminino é sempre usado em casos específicos. Dos três tipos de reenquadre envolvendo seres animados, o mais produtivo é o que envolve as vogais temáticas -o / -a, como menino / menina. Desse par mais produtivo, decorre um segundo grupo de construções, envolvendo seres não-animados. No conjunto decorrente, o gênero não se relaciona a sexo (são as construções do tipo jarro / jarra). Essas construções herdam do grupo básico o fato de o masculino ser o protótipo e o feminino ser 7 menos prototípico. Se no primeiro grupo a relação de prototipicidade se manifesta em relação a um elemento mais concreto, que é o sexo dos referentes, no segundo conjunto ocorre de forma menos objetiva: as construções de gênero masculino vão indicar elementos mais gerais e mais denotativos, enquanto as femininas vão indicar elementos mais específicos e mais conotativos (metafóricos ou metonímicos). Por fim, a partir da hipótese, proposta por Bybee (1985), de continuum flexão – derivação, analisamos as construções de vogal temática com base em doze critérios de diferenciação elencados por Gonçalves (2005). Concluiu-se que a vogal temática nominal é um elemento envolvido na formação de vocábulos, mas não é prototipicamente um elemento derivacional nem flexional, ficando aproximadamente no meio do continuum flexão / derivação. 8 ABSTRACT NASCIMENTO, Mauro José Rocha do. Repensando as vogais temáticas nominais a partir da gramática das construções. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. This work takes the Cognitive Linguistics as its theoretical basis, more specifically the Constructions Grammar model developed by Goldberg (1995), adapting it into morphologic constructions. The first proposal presented here is that word categories can be considered grammar constructions by itself. We focused nouns and verbs, particularly the formation processes which have relation with these two categories. It is argued that the process when a noun is formed from a verb using no affixes, traditionally called “regressive derivation”, it is in fact a case of a morphological reframe, as it is proposed .to be called. The same process may occur in an opposite way, i.e. from the noun to the verb, relating just the elements which characterize these categories. Having this proposal as its basis, it is argued that a variation of this process occurs inside the noun category, relating noun sub-categories. These subcategories are also sets of constructions. Its form is related to thematic vowels and its meaning is related to gender. About form, it is proved that speakers relate automatically X-o constructions to masculine gender and X-a constructions to feminine gender. About meaning, basing this hypothesis in Lakoff (1980), who claims that people conceptualize the world from basic notions of the body experience, it is claimed that speakers conceptualize grammatical notion of gender in basis of sex differences. Because of this, there is that relation between gender and sex in most of Indo-European languages. Inside the set of gender constructions, there is a basic set, where gender and sex are directly linked (menino ‘boy’ / menina ‘girl’, gato ‘male cat’ / gata ‘female cat’). In this group of constructions, there is a re-frame from -o, -e and -∅ theme masculine constructions to –a theme feminine constructions, that is, feminine gender is formed from masculine gender. That is because masculine gender is the prototypical one, while feminine gender moves away from this prototype. The prototypicity of masculine gender is a cultural data, which interferes in language. As its consequence, masculine gender is in language the basic one, the more general one, while feminine gender is always used just in specific situations. The most productive re-frame related to livened up beings is the one which links –o and –a constructions, like menino ‘boy’ / menina ‘girl’. A second group of constructions is derived from this most productive pair, related to non-livened up beings. In this set of constructions, gender is not related to sex (they are the constructions like jarro ‘jar’ / jarra ‘specific kind of jar’). These constructions inherit from the basic group masculine gender being the prototypical one and feminine gender being the less prototypical one. In the first group the relation of prototypicity is about a more concrete characteristic, i.e., the sex of the referent. On the other hand, in the second set the prototypicity occurs in a less objective way. In that group, masculine gender 9 expresses more general and more denotative elements, while feminine gender expresses more specific and more connotative (metaphoric and metonymic) elements. At last, having as theoretical basis Bybee’s hypothesis about inflection – derivation continuum (BYBEE, 1985), thematic vowel constructions were analyzed from twelve criterions of differentiation listed by Gonçalves (2005). It is concluded that noun thematic vowel is an element used in word formation, but it is not a prototypical derivational element and it is not a prototypical inflectional one either. It is about in the middle of inflection – derivation continuum. 10 LISTA DE ILUSTRAÇÕES TEMA PÁGINA Figura 1: Construção bitransitiva 34 Figura 2: Fusão de papéis temáticos 35 Figura 3: Construção de movimento causado 37 Figura 4: Construção resultativa 37 Figura 5: Construção de movimento intransitivo 38 Figura 6: Construção conativa 38 Figura 7: Ligação por subparte 43 Figura 8: Ligação por instância 44 Figura 9: Continuum morfologia - sintaxe 47 Figura 10: Processamento cognitivo do verbo cair 62 Figura 11: Processamento cognitivo do substantivo queda 63 Figura 12: Reenquadre verbo → substantivo 64 Figura 13: Reenquadre indireto (por sufixação) 65 Figura 14: Reenquadre substantivo → verbo 68 Figura 15: Reenquadre + prefixação 76 Figura 16: Prototipicidade semântica dos substantivos 97 Figura 17: Prototipicidade formal dos substantivos 98 Figura 18: Reenquadre das construções de gênero 100 Figura 19: Rede construcional de gênero 105 Figura 20: Construções combinadas: X-o / X-a + -eir- 111 Figura 21: Rede construcional das construções combinadas 113 Figura 22: Constituintes imediatos 146 Figura 23: Continuum léxico - sintaxe 152 Figura 24: Continuum de grau de relevância 154 Figura 25: Continuum de grau de generalidade 155 Figura 26: Posição das construções de gênero no continuum flexão – 158 derivação 11 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................14 1.1. Apresentação do problema...........................................................................14 1.2. Hipóteses.......................................................................................................15 1.3. Metodologia...................................................................................................17 1.4. Apresentação do trabalho............................................................................18 2. A LINGÜÍSTICA COGNITIVA E SUA CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM................20 3. A GRAMÁTICA DAS CONSTRUÇÕES.................................................................25 3.1. Breve histórico..............................................................................................25 3.2. A proposta de Goldberg...............................................................................27 3.2.1. Definição de construção.......................................................................28 3.2.2. Vantagens de uma abordagem construcional......................................29 3.2.3. Tipos de construções...........................................................................33 3.2.4. Princípios cognitivos de organização lingüística..................................39 3.2.5. Relações de herança entre construções..............................................42 3.3. As construções: do morfema à sentença...................................................46 4. A FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR REENQUADRE MORFOLÓGICO..............51 4.1. O processo de “derivação regressiva”.......................................................51 4.2. A direcionalidade do processo....................................................................53 4.3. Proposta de revisão do conceito de regressão ― a formação por reenquadre morfológico..............................................................................55 12 4.3.1. Nota sobre a nomenclatura..................................................................66 4.4. As formações X-ar........................................................................................68 4.5. As formações pref-X-ar................................................................................73 5. AS CONSTRUÇÕES GRAMATICAIS X-o / X-a.....................................................77 5.1. Vogais temáticas e gênero...........................................................................77 5.1.1. Vogal temática......................................................................................77 5.1.2. Gênero e cognição...............................................................................81 5.1.3. A relação entre vogal temática e gênero..............................................86 5.2. Vogal temática x desinência de gênero......................................................91 5.3. A construção básica X-o / X-a......................................................................96 5.3.1. Protótipos semânticos e formais..........................................................96 5.3.2. O reenquadre entre as construções de gênero....................................99 5.4. A construção decorrente X-o / X-a............................................................102 5.4.1. Relações semânticas.........................................................................106 5.4.2. Outras decorrências...........................................................................111 6. A VOGAL TEMÁTICA NOMINAL NO PORTUGUÊS: FLEXIONAL OU DERIVACIONAL? ...............................................................................................117 6.1. Flexão x derivação......................................................................................117 6.2. Aplicação dos critérios de diferenciação.................................................122 6.2.1. Visibilidade para a sintaxe..................................................................122 6.2.2. Concorrência de estratégias de expressão........................................124 6.2.3. Produtividade......................................................................................128 6.2.4. Regularidade do significado...............................................................133 6.2.5. Expressão de subjetividade................................................................136 13 6.2.6. Ocorrência de lexicalização................................................................138 6.2.7. Possibilidade de mudança de classe.................................................141 6.2.8. Elementos nucleares e adjuntos........................................................142 6.2.9. Ordem e posição dentro da construção.............................................143 6.2.10. Recursividade...................................................................................145 6.2.11. Neologia de afixos............................................................................147 6.2.12. Expressão de características sociolingüísticas................................149 6.3. A proposta de Bybee..................................................................................150 6.4. A vogal temática no continuum flexão – derivação.................................155 7. CONCLUSÃO.......................................................................................................159 REFERÊNCIAS........................................................................................................161 ANEXOS...................................................................................................................168 14 REPENSANDO AS VOGAIS TEMÁTICAS NOMINAIS A PARTIR DA GRAMÁTICA DAS CONSTRUÇÕES 1. INTRODUÇÃO 1.1. Apresentação do problema A análise do significado de base composicional remonta a Frege, no final do século XIX. Nesse modelo de análise, que foi a tônica durante muitos anos e ainda é endossado por uma quantidade considerável de lingüistas, o significado do todo é igual à soma dos significados das partes. O verbo cantar, por exemplo, cujo significado é ‘emitir voz com melodia’, pode ser segmentado no radical cant-, que contém o significado lexical do vocábulo, e nos elementos –a e –r, que acrescentam a esse radical características morfossintáticas da classe dos verbos. O substantivo cantor tem o mesmo radical cant- (com o mesmo significado, ‘emitir voz etc’), acrescido do sufixo –or, indicativo de agente. Nesses vocábulos, é perfeitamente possível uma análise de base composicional, já que o significado do vocábulo como um todo corresponde satisfatoriamente à soma dos significados de cada parte. Nesse modelo de análise, a vogal temática nominal tem sido motivo de divergência entre os lingüistas. Esse segmento é tratado como um elemento segmentável, recorrente, mas isento de significado, o que faz com que alguns estudiosos inclusive duvidem de seu status como morfema. Estruturalmente, o vocábulo mesa, por exemplo, cujo significado básico é ‘peça de mobiliário, com tampo horizontal apoiado sobre pés’, pode ser segmentado em radical, mes-, mais a vogal temática –a, que não tem significado algum: apenas distribui o item lexical em 15 classes mórficas (cf. Câmara Jr., 1977) ou categorias (cf. Zanotto, 1986). Conseqüentemente, numa análise composicional, o significado do radical do item lexical formado por radical + vogal temática vai ser exatamente igual ao significado do próprio item. O problema é: se a vogal temática não tem significado, e o significado de um item lexical formado por radical + vogal temática é igual ao significado do radical, como explicar diferenças de significado entre os itens barco / barca, mato / mata, lenho / lenha, jarro / jarra? Numa análise puramente composicional, não há solução para esse problema, porque ou se considera que A) em barco e barca há dois radicais diferentes; ou se considera que B) as especificidades de significado estão na vogal temática. A coincidência de forma e uma relação estreita no significado dos dois vocábulos eliminam a primeira hipótese. Se compararmos o significado dos vocábulos cama, saída e mata, não conseguiríamos estabelecer nenhuma semelhança de significado a partir da vogal temática, que é a mesma nos três casos. Isso elimina a segunda hipótese. 1.2. Hipóteses O problema explicitado acima foi apenas o ponto de partida para esta tese. No decorrer da pesquisa, esse problema se desdobrou em alguns outros, que geraram uma seqüência de hipóteses. Para se chegar à hipótese que responde à questão levantada a respeito dos pares do tipo mato / mata, algumas outras foram formuladas; toda a argumentação desta tese se baseia na seqüência dessas hipóteses. São elas: 16 1. A descrição que considera as formações do tipo atacar → ataque como regressivos não é adequada. Nesse tipo de formação, acontece o que propomos chamar neste trabalho de reenquadre morfológico. 2. Os substantivos, em português, distribuem-se em grupos de construções. O significado dessas construções está relacionado ao gênero e a forma às vogais temáticas. No que diz respeito ao gênero, a construção prototípica é a que relaciona diretamente gênero a sexo. No que diz respeito à forma, a construção prototípica de feminino é a de tema em -a; a de masculino é a de tema em -o. 3. Nas formações do tipo menino → menina e nas do tipo barco → barca também ocorre um reenquadre da construção de gênero masculino para a de gênero feminino. 4. Há uma rede construcional envolvendo as construções de gênero. A construção básica seria aquela em que o gênero está diretamente relacionado a sexo, como o primeiro par na hipótese acima. A construção que não estabelece relação direta com sexo, como o segundo par da hipótese 3, seria decorrente dessa construção básica, herdando dela o fato de o masculino ser mais prototípico e o feminino se afastar desse protótipo. 5. Nos pares do tipo sapateiro / sapateira há uma combinação da construção de gênero com a construção sufixal -eir-. Essa combinação pode acontecer na construção básica, gerando a oposição agente do sexo masculino / agente do sexo 17 feminino, ou na construção decorrente, gerando a oposição agente / lugar ou recipiente relacionado ao objeto expresso pela base. 6. A vogal temática é um elemento envolvido na formação de novos vocábulos. Não é prototipicamente um elemento flexional nem derivacional, situando-se, no continuum, numa posição eqüidistante entre esses dois pólos. 1.3. Metodologia O objetivo deste trabalho é argumentar em defesa das hipóteses levantadas no item anterior e, na medida do possível, convencer o leitor de sua veracidade. Digo “na medida do possível” porque a linha teórica que fundamenta este trabalho se sustenta a partir de hipóteses não facilmente comprováveis empiricamente. Foi realizado um teste (anexo 1) para comprovar que o falante comum relaciona diretamente construções de tema em –a ao gênero feminino e construções de tema em -o ao masculino. Afora esse teste, toda a metodologia se baseia apenas no levantamento de argumentos que sustentem as hipóteses apresentadas. Essa argumentação tem por base os pressupostos teóricos da Lingüística Cognitiva, mais especificamente a Gramática das Construções, segundo o modelo proposto por Goldberg (1995), e a teoria dos protótipos, de acordo com Langacker (1987). Utilizamos, ainda, a hipótese do continuum flexão-derivação, formulada por Bybee (1985) e o levantamento das diferenças entre categorias flexionais e derivacionais feito por Gonçalves (2005). 18 1.4. Apresentação do trabalho No capítulo 2, é feita uma breve apresentação do modelo cognitivista e de seus principais pressupostos teóricos. O capítulo 3 é uma extensão desses pressupostos, centrando foco na proposta da Gramática das Construções segundo o modelo de Goldberg (1995). Nos dois primeiros itens é apresentada a proposta em si; no último fazemos um levantamento de exemplos de construções gramaticais, desde as mais simples até as mais complexas, mostrando que não há uma oposição discreta entre morfologia e sintaxe. No capítulo 4 é feita uma crítica ao que tradicionalmente se conhece por “derivação regressiva” ou “regressão”, para, em seguida, apresentar a nossa proposta para a interpretação desse fenômeno: o conceito de reenquadre morfológico. Mostramos que o processo pode ocorrer no sentido verbo → substantivo (atacar → ataque) ou no sentido inverso (perfume → perfumar), justificando a direcionalidade de cada um desses processos. Consideramos que as formações pref-X-ar (como em alisar), tradicionalmente consideradas como parassíntese, são uma variação desse último processo. Nesse mesmo capítulo, justificamos a escolha da nomenclatura. O capítulo 5 contém a argumentação nuclear deste trabalho. Nesse capítulo, é fundamentada a hipótese de que existe em português um conjunto de construções de gênero, relacionadas formalmente às vogais temáticas. Mostramos que nessas construções acontecem também reenquadres morfológicos, do masculino para o feminino. Apresentamos, ainda, a proposta de uma rede construcional envolvendo essas construções de gênero, havendo um conjunto de construções básicas e um conjunto de construções decorrentes. 19 No 6º capítulo, é feito um histórico da secular discussão a respeito da diferença entre categorias flexionais e derivacionais. Apresentamos a seguir os doze critérios propostos por Gonçalves (2005) para diferenciação, analisando as construções envolvendo vogais temáticas de acordo com cada um desses critérios. Por fim, apresentamos a hipótese de Bybee (1985) do continuum flexão – derivação, e, a partir dos critérios propostos por Gonçalves, posicionamos a construção básica e a construção decorrente nesse continuum. 20 2. A LINGÜÍSTICA COGNITIVA E SUA CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM A Lingüística Cognitiva começou a ser desenvolvida como um novo paradigma teórico a partir do final da década de 70 do século passado, principalmente com os trabalhos de Lakoff (1987), Lakoff e Johnson (1980) e Langacker (1987, 1991). O principal aspecto do modelo cognitivista, que o diferencia de modelos anteriores, como o estruturalista ou o gerativista, é que “a linguagem é parte integrante da cognição humana” (LANGACKER, 1987, p. 12), e não uma faculdade especial, à parte dos outros processos cognitivos. Na relação entre a linguagem e o mundo material, a Lingüística Cognitiva adota um ponto de vista filosófico denominado por Lakoff (1987) de experiencialismo, ou realismo experiencial, numa contraposição ao objetivismo. No objetivismo, há a crença de que os símbolos que compõem a língua adquirem seu significado por correspondência direta com o mundo físico. Dessa forma, o pensamento seria apenas uma manipulação mecânica de símbolos abstratos, e funcionaria como se fosse um “espelho da natureza”. O pensamento é concebido como algo abstrato e não-relacionado ao corpo humano e suas limitações, nem aos sistemas perceptual e nervoso humanos. Outra característica do pensamento na perspectiva objetivista é sua atomicidade, ou seja, pode ser dividido em partes como se fosse um conjunto de peças de montar, que são combinadas em unidades complexas e manipuladas por regras. Por fim, para os objetivistas, o pensamento é lógico, no sentido mais estrito do termo, isto é, pode ser modelado de maneira precisa por sistemas tais quais os utilizados na lógica matemática. Como contraponto ao ponto de vista objetivista, o experiencialismo acredita que o pensamento tem uma relação direta com o corpo humano, ou seja, nossos 21 sistemas conceptuais decorrem de nossa experiência corpórea, e o significado se realiza em termos dessa experiência. O cerne de nosso sistema conceptual se assenta, portanto, diretamente em nossa experiência física e social. Outro aspecto da perspectiva experiencialista é que o pensamento é imaginativo, ou seja, conseguimos conceptualizar, via metáfora e metonímia, mesmo conceitos abstratos que vão muito além daquilo que podemos ver ou sentir. Como a metáfora e a metonímia são também baseadas em nossa experiência, principalmente a corpórea, a nossa capacidade imaginativa é também baseada, indiretamente, nessas experiências. Todas as vezes, portanto, que categorizamos algo que não reflete exatamente a natureza, estamos usando a capacidade geral humana da imaginação. A perspectiva experiencialista nega o atomismo do pensamento. Ao contrário disso, na verdade, ele tem propriedades gestálticas: os conceitos têm uma estrutura geral que vai muito além de simples “peças de montar” conceptuais, encaixadas umas às outras por meio de regras gerais. Dessa estrutura geral do sistema conceptual depende a eficiência do processamento cognitivo. O pensamento é, portanto, bem mais que uma simples manipulação mecânica de símbolos abstratos. Uma das primeiras preocupações dos cognitivistas foi com a categorização, que pode ser definida como “um mecanismo de organização da informação obtida a partir da apreensão da realidade” (CUENCA & HILFERTY, 1999, p. 32). Como a realidade é, por natureza, composta por elementos diferentes entre si ― não há dois seres exatamente iguais: nem duas pulgas, nem dois exemplares de um livro, nem mesmo o lado direito e o lado esquerdo de uma pessoa ―, a categorização nos possibilita organizar, em nossa mente, esse conjunto desorganizado que é a realidade. Essa categorização se dá por meio de duas operações cognitivas 22 principais: a generalização, ou seja, a identificação de propriedades semelhantes, e a discriminação, ou seja, a identificação das diferenças entre os seres. Tradicionalmente, a categorização é feita como se cada categoria fosse um compartimento, no qual encaixamos elementos que compartilham o mesmo conjunto de propriedades. A Biologia, por exemplo, divide os seres vivos em categorias, de acordo com determinadas características. O homem, o cachorro, o urso e o antílope são mamíferos: todos eles mamam ao nascer, caminham no solo, são cobertos de pêlos e gerados no útero das fêmeas. Todos se encaixam perfeitamente no mesmo compartimento. Mas o que dizer de animais como a baleia, o ornitorrinco e a équidna? Todos esses animais mamam ao nascer, mas nenhum deles se assemelha muito aos outros mamíferos. A baleia não tem pêlos e vive toda a vida na água, além de ter a forma muito mais próxima de um peixe do que da maioria dos outros mamíferos. Nem a équidna nem o ornitorrinco são gerados em útero, mas em ovos, como as aves. O ornitorrinco, além disso, tem nadadeiras e um bico como o de um pato. Poderia talvez ser encaixado no compartimento das aves, mas teria o inconveniente de ser uma ave que mama. Entre ser uma ave que mama e um mamífero que põe ovos, os biólogos que fizeram a classificação preferiram a segunda opção. Tanto a baleia quanto a équidna e o ornitorrinco, que são animais diferentes da concepção que se tem de um mamífero, foram classificados como tal; nenhum desses seres, no entanto, se encaixa perfeitamente no padrão de sua categoria. Isso mostra que a categorização compartimentada, em que se idealiza uma lista de propriedades que são compartilhadas por todos os membros de uma classe, não dá conta de organizar a nossa realidade desorganizada. Seria um inconveniente a menos para os biólogos se não existissem ornitorrincos e outros seres que não se 23 deixam classificar. Mas eles existem, e é preciso um sistema de classificação que dê conta deles. E isso não acontece somente com animais, mas com qualquer categoria que pretendamos estabelecer. Uma alternativa satisfatória ao “modelo dos compartimentos” é o modelo de classificação com base em protótipos. Langacker (1987) assinala que trabalhos experimentais em psicologia cognitiva demonstraram que as categorias são freqüentemente organizadas em torno de instâncias prototípicas. Essas instâncias são aquelas que as pessoas aceitam como mais comuns, e que geralmente ocorrem com mais freqüência na nossa experiência. Os elementos que têm todas as características que delineiam uma categoria são os elementos prototípicos. Aqueles que têm menos características são menos prototípicos. Pertencer a uma categoria não é, nesse modelo, uma questão de tudo-ou-nada, mas uma questão de grau de pertencimento. Quanto menos características um elemento qualquer compartilhar com os elementos prototípicos de uma categoria, menor a chance de esse elemento ser incluído nela. Uma organização categorial baseada em protótipos dá conta de forma muito mais eficaz inclusive da descrição lingüística. A teoria lingüística é, de modo geral, calcada em oposições discretas. Alguns exemplos de dicotomias rígidas utilizadas na análise lingüística são sincronia x diacronia, competência x desempenho, gramática x léxico, morfologia x sintaxe, semântica x pragmática, homonímia x polissemia, conotação x denotação, flexão x derivação etc. Langacker (op. cit., p. 18) considera falsas todas essas dicotomias. Segundo esse autor, a adesão estrita a essas oposições resulta em problemas conceptuais e na negligência de exemplos que se situem na transição entre um conceito e outro. Acrescenta ainda que uma forma de se produzir uma falsa dicotomia é focar somente nos exemplos 24 representativos de dois extremos de um continuum: não levando em conta casos intermediários, prontamente se observam classes discretas com propriedades contrastantes nítidas. Essa concepção de linguagem abrange todos os níveis da descrição lingüística: sob a perspectiva cognitiva, a língua é um grande continuum; não há fronteiras precisas entre morfologia, sintaxe, semântica, pragmática. A função primordial da linguagem é expressar significados e, sendo assim, não é admissível separar um componente lexical, um sintático e um semântico. A gramática, em si, é também simbólica e significativa. No capítulo 3 será discutida mais longamente essa relação íntima entre construção gramatical e significado. 25 3. A GRAMÁTICA DAS CONSTRUÇÕES Neste capítulo, serão apresentados os pressupostos teóricos que norteiam este trabalho, relacionados à gramática das construções. No primeiro item, será feito um breve relato da origem do modelo, assim como seus principais expoentes. No item seguinte, centrar-se-á o foco no trabalho de Goldberg (1995), que foi eleito para embasar teoricamente esta tese. Por fim, serão dados exemplos de construções gramaticais do português, desde as mais simples e elementares (os morfemas) até as construções sentenciais, que podem ter uma configuração interna consideravelmente mais complexa. 3.1. Breve histórico O modelo da Gramática das Construções começou a ser desenvolvido em fins da década de 70 do século passado, pelos professores da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Dois dos primeiros trabalhos que começaram a delinear o modelo merecem menção por sua importância. O primeiro deles, de Charles Fillmore (1979), é um artigo focado nos idiomatismos, questionando os modelos que interpretavam o significado das sentenças composicionalmente. Nesse artigo, o autor satiriza o artifício do falante/ouvinte ideal proposto pelo gerativismo, criando o “falante/ouvinte inocente”. Esse falante conheceria os itens lexicais e seus significados, assim como as regras de formação de sentenças, mas não conseguiria lidar com as expressões idiomáticas, já que o significado dessas expressões não se dá composicionalmente. Outro autor que, pioneiramente, percebeu que as teorias pautadas na composicionalidade não dariam conta da significação de uma boa parte 26 das sentenças foi Lakoff (1977), que propôs, contradizendo os pressupostos gerativistas de então, que não há uma distinção discreta entre léxico e sintaxe. Os idiomatismos, fenômenos considerados periféricos e de exceção, passaram a receber uma atenção antes só dispensada às formas consideradas canônicas. A partir desse enfoque dado aos fenômenos “marginais”, percebeu-se que, na verdade, não havia diferença substancial entre formas canônicas e periféricas: todas eram construções gramaticais. A partir da década de 80 do século passado, vários trabalhos desenvolveram uma base teórica para a gramática das construções. Desses trabalhos, destaca-se o de Lakoff (1987), que, a partir do conceito de “redes polissêmicas”, formulou o conceito de “redes construcionais”: uma determinada construção básica é núcleo da rede, de onde irradiam outras construções diretamente relacionadas, quase sempre numa relação de natureza figurativa. A aplicação da teoria foi feita com uma rede construcional envolvendo there, cujo núcleo é uma construção locativa. O valor existencial irradia, metaforicamente, desse núcleo. Outro trabalho de importância fundamental para o desenvolvimento da teoria da gramática das construções foi desenvolvido por Fillmore & Kay (1993). Nesse trabalho, os autores propõem um continuum de especificação dos elementos que formam as construções. Numa combinação entre elementos especificados e variáveis, uma construção pode ser completamente aberta, com todos os elementos variáveis (a construção cuja configuração sintática é SN-V-SN, instanciada em João ama Maria, por exemplo); pode ser parcialmente especificada, como a construção X arrebentar+flexão a boca do balão, instanciada em Pedro arrebentou a boca do balão; ou pode ser completamente especificada, como fórmulas de cortesia (Tchau!) ou frases feitas, ditos populares, provérbios (Deus ajuda quem cedo madruga). 27 O trabalho que mais contribuiu para a formulação de um modelo de análise da gramática das construções foi o de Goldberg (1995). Esse trabalho, focado nas construções que envolvem estruturas argumentais de verbos, comprovou que a construção aberta, formada só por um esquema abstrato, tem um significado próprio, que vai se complementar a partir dos elementos instanciados ― os quais, por sua vez, também vão ter seu significado complementado a partir do significado da construção. O trabalho de Goldberg será apresentado mais detalhadamente no item 3.2 deste capítulo. Por fim, um trabalho que de certa forma complementa o de Goldberg é o de Mandelblit (1997). Essa autora uniu os conceitos teóricos propostos por Goldberg com o Modelo dos Espaços Mentais (Fauconnier, 1994). Mandelblit centra o foco em uma das construções propostas por Goldberg, a de movimento causado, comparando a estruturação desse tipo de construção em duas línguas diferentes, o inglês e o hebraico. A diferença fundamental entre a abordagem de Goldberg e a de Mandelblit é que, para essa última, as relações de herança entre as construções (ver item 3.2.4) se dão por um processo de mesclagem, utilizando os esquemas de espaços mentais propostos por Fauconnier. 3.2. A proposta de Goldberg Conforme dito no item anterior, o trabalho de Goldberg (1995), intitulado Constructions ― A construction Grammar aproach to structure argument, é o mais completo e o que mais contribuiu para o desenvolvimento de uma teoria da Gramática das Construções. Como o próprio título já indica, esse trabalho tem como 28 objeto de estudo construções envolvendo verbos e sua estrutura argumental. A tese central de Goldberg é de que sentenças básicas do inglês são instâncias de construções ― correspondências forma-significado que existem independentemente de verbos específicos. Isto é, sustenta-se que as construções portam significado por si mesmas, independentemente das palavras na sentença. 1 (GOLDBERG, 1995, p.1) As construções sintáticas, segundo os pressupostos da Gramática Gerativa, são consideradas como um epifenômeno, ou seja, como meras conseqüências da aplicação de regras sintáticas. O trabalho de Goldberg veio reforçar a idéia de que, na verdade, as construções gramaticais podem ser reconhecidas, por si só, como entidades teóricas. Além disso, outro importante princípio estabelecido pela autora é de que os valores semânticos de uma sentença podem ser associados diretamente a padrões sintáticos específicos, ou seja, a partir da Gramática das Construções, a relação entre forma e significado ― entendendo o termo forma tanto numa perspectiva lexical quanto sintática ― é mais integrada do que se tem considerado. 3.2.1. Definição de construção Nos termos de Goldberg (op. cit.), as unidades básicas da linguagem são as construções gramaticais, as quais são definidas da seguinte forma: C é uma construção se e somente se C é um par forma-significado <Fi, Si>, de tal forma que nenhum aspecto de Fi ou de Si seja estritamente previsível a partir de partes componentes de C ou a partir de outras construções 2 previamente estabelecidas. (GOLDBERG, 1995, p. 4) 1 [...] basic sentences of English are instances of constructions ― form-meaning correspondences that exist independently of particular verbs. That is, it is argued that constructions themselves carry meaning, independently of the words in the sentence. 2 C is a CONSTRUCTION iffdef C is a form-meaning pair <Fi, Si> such that some aspect of Fi or some aspect of Si is not strictly predictable from C’s component parts or from other previously established constructions. 29 O conceito de construção gramatical, para Goldberg, pode ser comparado a um outro conceito, o de listema, proposto por Di Sciullo & Williams (1987), isto é, entidades gramaticais que existem em forma de listas memorizadas e armazenadas mentalmente pelos falantes. Para esses autores, o léxico seria um conjunto de listemas, contendo elementos de tipos diferentes entre si, tais como palavras, sintagmas verbais, morfemas, padrões entoacionais etc. O que todos esses elementos teriam em comum seria o fato de não se submeterem a regras. Di Sciullo & Williams, inclusive, comparam o léxico a uma prisão, cujos moradores têm como única característica em comum o fato de serem “fora-da-lei”,. Goldberg, no entanto, apesar de considerar que as construções gramaticais equivalem aos listemas, não concorda que consistam em um conjunto não-estruturado de entidades independentes; pelo contrário, para a autora, constituem um entrelaçamento altamente estruturado de informações inter-relacionadas (GOLDBERG, 1995, p. 5). 3.2.2. Vantagens de uma abordagem construcional Goldberg enumera, em sua obra, várias vantagens para uma abordagem construcional dos fenômenos gramaticais. Vamos, neste item, nos ater mais longamente às duas primeiras, as quais consideramos mais relevantes. A primeira vantagem é que não é necessário estabelecer que alguns verbos, em determinados contextos, tenham um sentido estranho e pouco plausível. Esse fato pode ser exemplificado pela seguinte sentença: 3 (1) Ele tossiu a espinha de peixe no guardanapo. 3 A sentença original usada por Goldberg é “He sneezed the napkin off the table.”, cuja tradução literal é inaceitável em português: *Ele espirrou o guardanapo para fora da mesa. O exemplo “Ele tossiu a espinha de peixe no guardanapo” foi dado pela Profa Ana Flávia Magela, em um curso de mestrado 30 O evento que envolve o verbo tossir tem um único participante, que, na configuração sintática de uma construção utilizando esse verbo, teria a função de sujeito. Isto é, tossir é, em princípio, um verbo intransitivo. Para considerar válida a sentença acima, numa abordagem lexicocêntrica, seria necessário estabelecer que esse verbo pode ser transitivo direto, numa configuração do tipo ‘X tossir Y’, o que seria, no mínimo, estranho. Numa abordagem construcional, não seria preciso estabelecer um sentido transitivo a esse verbo. É mais simples e mais exato estabelecer que ele, mesmo sendo um verbo intransitivo, pode instanciar uma construção transitiva. Ou seja, o sentido transitivo seria dado não pelo verbo em si, mas pela construção em que está inserido. Outra vantagem observada por Goldberg é que uma abordagem construcional evita uma circularidade de análise resultante da assunção, corrente na teoria lingüística, de que a sintaxe é uma projeção de elementos requeridos por itens lexicais. Ou seja, o verbo seria o elemento que determinaria quantos complementos, e de quais tipos, co-ocorreriam com ele na sentença. O problema é que, se tomarmos esse pressuposto como verdadeiro, um verbo poderia ter várias estruturas argumentais diferentes, gerando diferentes configurações sintáticas. O verbo correr, por exemplo, pode ocorrer em diversos contextos sintáticos, dentre os quais: (2) Pedro corre. (3) Pedro correu ao local do acidente. (4) Pedro correu as crianças da sala. Todos os exemplos acima são não só possíveis, mas correntemente utilizados. Com base em uma teoria que afirme que o verbo determina, a partir de sua estrutura argumental, os complementos que co-ocorrem com ele na estrutura sintática, precisaríamos afirmar simultaneamente que: sobre Gramática das Construções, e equivale perfeitamente ao exemplo de Goldberg, com a vantagem de ser aceitável em português. 31 a) o verbo correr estabelece uma relação argumental somente com um agente; logo, vai figurar em uma estrutura sintática intransitiva (sentença 2); b) o verbo correr estabelece uma relação argumental com um agente e com um locativo indicando alvo; logo, vai figurar em uma estrutura sintática transitiva com um complemento preposicionado (sentença 3); c) o verbo correr estabelece uma relação argumental com um agente, um paciente e com um locativo indicando ponto de origem; logo, vai figurar em uma estrutura sintática bitransitiva com um complemento não-preposicionado e com um preposicionado (sentença 4). Essa multiplicidade de análises diferentes para um mesmo verbo é conseqüência do fato de se considerar que determinados complementos que figuram junto a um verbo são decorrentes exclusivamente da estrutura argumental desse verbo. Ao mesmo tempo, a depreensão da estrutura argumental só é possível a partir dos complementos que, concretamente, figuram junto ao verbo. Perceba-se que há uma circularidade nesse raciocínio, a qual pode ser evitada ao se considerar que não é o verbo que determina, por si só, seus complementos. Somente uma abordagem construcional é capaz de dar conta dessa diversidade de configurações sintáticas e sentidos do verbo. Na verdade, cada uma das configurações sintáticas exemplificadas é uma construção diferente, com seus valores semânticos específicos. Os diferentes significados que o verbo assume são decorrentes de sua integração com o significado da própria construção. Dessa forma, o verbo correr pode instanciar tipos diferentes de construção, adquirindo com isso valores semânticos diferentes. Na sentença (2), instancia uma construção intransitiva, em que somente o papel de agente é designado. A integração desse verbo com essa construção faz com que se evidencie o sentido 32 básico da ‘ação’. A sentença (3) é uma construção de movimento intransitivo4, cujo significado básico é ‘X mover-se para Y’, no qual Y é um locativo. Nessa construção, portanto, além do valor básico de ação, evidencia-se a noção de movimento para um determinado lugar. Na sentença (4), temos uma construção de movimento causado, que tem como significado básico ‘X causa Y mover-se para Z’. A integração do verbo correr com essa construção faz com que esse verbo aparentemente adquira um valor causativo que ele não tinha originalmente ― na verdade, esse valor está na própria construção, e não no verbo. Esses exemplos ilustram a terceira vantagem enumerada por Goldberg, em relação a uma abordagem construcional: a economia semântica. Os múltiplos sentidos que os verbos adquirem nos diferentes contextos não precisam ser atribuídos a idiossincrasias do próprio verbo; é muito mais econômica uma descrição que atribua essas diferenças de significado à integração entre o sentido do verbo e o da construção que ele instancia. O quarto argumento da autora para defender a Gramática das Construções é que, com esse modelo, a composicionalidade é preservada. Não nos parece, no entanto, que essa seja exatamente uma vantagem em relação a outros modelos, já que nos outros a base da análise semântica é exatamente a composicionalidade. A diferença é que, na abordagem construcional, a composicionalidade é considerada de uma forma enfraquecida, já que o significado de uma expressão vai ser o resultado da integração entre o significado dos elementos lexicais que a compõem e o significado da própria construção. A composicionalidade continua presente no modelo, mas o significado de uma sentença não é visto como somente a soma dos significados de seus componentes. Veja-se por exemplo a sentença: (5) Pedro caiu na boca do povo. 4 No item 3.2.3 a configuração dessas construções terá um maior detalhamento. 33 Há uma série de processos cognitivos envolvidos para que um falante possa processar o significado dessa sentença, mas é evidente que o simples conhecimento do significado da cada um dos itens lexicais não vai ser suficiente para a compreensão da expressão como um todo. Essa relação não imediata entre significado dos itens e significado da sentença acontece com uma infinidade de sentenças da língua ― os chamados idiomatismos. Por essa razão, para que um falante seja considerado proficiente no uso de uma língua, vai precisar conhecer não só o significado dos itens lexicais dessa língua, mas também o significado das construções, principalmente aquelas total ou parcialmente especificadas, como a sentença (5)5. Os dois últimos argumentos apresentados por Goldberg dizem respeito a evidências que podem auxiliar na comprovação de hipóteses ligadas à Psicolingüística: o primeiro deles se relaciona ao processamento de sentenças; o segundo, à aquisição da linguagem por crianças. 3.2.3. Tipos de construções Goldberg (1995) apresenta em sua obra um elenco de cinco tipos de construções do inglês, instanciadas na forma de sentenças básicas. Segundo a autora, as construções que correspondem a sentenças básicas codificam eventos básicos na experiência humana, tais como ‘alguém transfere algo a alguém’, ‘alguém faz com que algo ou alguém se mova de um lugar a outro’, ‘alguém faz com que algo ou alguém seja modificado’ etc. Os papéis desempenhados pelos participantes desses eventos vão corresponder aos papéis argumentais das construções. Dessa 5 É evidente que nenhum falante conhece todo o inventário de itens lexicais e construções de uma língua; mas apenas aqueles que são necessários nos atos de comunicação de que participa. 34 forma, tanto as construções quanto os verbos que instanciam as construções vão apresentar uma estrutura de papéis argumentais, que deverão combinar entre si (se forem compatíveis). Tomemos como exemplo uma construção bitransitiva, que tem como valor semântico ‘X causar Y receber Z’. Os elementos envolvidos são um agente (X), um paciente (Z) e um recipiente (Y). A representação esquemática da estrutura argumental dessa construção é: CAUSAR-RECEBER <agente receptor paciente> O esquema da construção como um todo é o seguinte: Semântica CAUSAR-RECEBER < agente recipiente paciente > R R: instância, meio Sintaxe PRED < V > SUJEITO OBJETO 1 Fusão de papéis OBJETO 2 FIGURA 1 No esquema acima, PRED é o predicador, ou seja, a variável que vai ser preenchida quando a construção for instanciada; os símbolos < > representam os papéis participantes no verbo instanciado; a linha pontilhada representa um papel argumental que pode ou não ser designado. Tomemos também como exemplo o verbo enviar: no evento que envolve o ato de enviar, existem necessariamente um “enviador”, um destinatário e um objeto enviado. É possível também explicitar esquematicamente os elementos envolvidos no ato de enviar da seguinte forma: enviar <”enviador” destinatário objeto enviado> 35 Quando esse verbo instancia a construção referida, há uma fusão dos papéis temáticos da construção com os papéis envolvidos no evento relacionado ao verbo. O esquema dessa fusão é o seguinte: Semântica CAUSAR-RECEBER < agente recipiente paciente > R R: instância, meio Sintaxe ENVIAR <“enviador” V SUJEITO destinatário obj.enviado> OBJETO 1 Fusão de papéis OBJETO 2 FIGURA 2 A fusão entre os papéis da construção e os do verbo obedece a dois princípios: o Princípio da Coerência Semântica e o Princípio da Correspondência. O primeiro diz que somente os papéis que são semanticamente compatíveis podem ser fundidos; o segundo diz que cada papel participante lexicalmente designado precisa ser fundido com um papel argumental da construção. Em outras palavras: para que um elemento possa aparecer concretamente em uma seqüência sintática, deve corresponder a um papel previsto na configuração da construção. O contrário, no entanto, não é obrigatoriamente verdadeiro: é possível que um papel argumental previsto na estrutura da construção deixe de ser designado. Há quatro diferentes razões para que isso aconteça (cf. Goldberg, 1995, p. 56 et seq.). A primeira delas é o sombreamento, no qual um dos participantes é “posto nas sombras”: ele existe, mas não é evidenciado. É o caso, por exemplo, do papel de recipiente na sentença a seguir: (6) O candidato distribuía santinhos. O elemento a quem os santinhos eram distribuídos foi sombreado: poderia estar na sentença, mas não está. Diferente é o caso do corte, em que a construção 36 não admite algum papel argumental previsto no evento evocado pelo verbo. O verbo rasgar, por exemplo, prevê dois papéis participantes: ‘alguém que rasga’ e o ‘objeto rasgado’. Pode figurar, no entanto, numa construção inacusativa: (7) Minha calça rasgou. Nesse caso, o papel argumental equivalente ao agente não está previsto na construção, e portanto não pode aparecer: é um caso de corte. A terceira razão para um argumento não aparecer na construção é o que a autora chamou de absorção de papel. Segundo Goldberg, esse fenômeno acontece em construções reflexivas, quando um papel participante é absorvido por outro, e se fundem em um só papel argumental. Como conseqüência, esses papéis vão ser instanciados na construção por meio de um único termo sintático. Esse fenômeno acontece em alguns dialetos do português. O verbo arrumar, por exemplo, evoca um evento com dois participantes: ‘alguém que arruma’, e ‘alguém ou algo que é arrumado’. É possível, no entanto, que esses dois participantes se fundam num só. Pulhiese (2004) analisou construções como o exemplo a seguir, as quais ela chamou de “construções desreflexivizadas”: (9) Maria arrumou e ficou esperando o namorado. No exemplo, que é uma instância das construções estudadas por essa autora, o SN Maria instancia simultaneamente os dois papéis temáticos requeridos no evento evocado pelo verbo arrumar. A quarta razão para que um argumento não seja designado é quando há um complemento nulo. Isso pode acontecer em duas situações: na primeira, em que há um complemento nulo indefinido, o papel não-expresso recebe uma interpretação indefinida; nesse caso, a identidade do referente é desconhecida ou irrelevante. Como no exemplo a seguir, em que aquilo que é comido existe como participante da cena, mas não é lexicalmente designado: 37 (9) Pedro come ∅ demais, quando vai à churrascaria. A segunda situação em que há um complemento nulo é quando a identidade do referente é recuperável pelo contexto; é o que chamamos de complemento nulo definido: (10) A seleção do Brasil perdeu ∅. Além da bitransitiva, Goldberg analisou outros quatro diferentes tipos de construção. São eles: Construção de movimento causado: < causa Semântica CAUSAR-MOVER alvo tema > R R: instância, meio Sintaxe PRED V < > SUJEITO OBLÍQUO Fusão de papéis OBJETO FIGURA 3 Exemplo: (11) Pedrocausa jogou os pratostema pela janelaalvo. b) Construção resultativa: Semântica CAUSAR-TORNAR < agente paciente result./alvo > Fusão de papéis R R: instância, meio Sintaxe PRED V < SUJEITO FIGURA 4 OBJETO OBLÍQUO 38 Exemplo: (12) Pedroagente pintou o cabelopaciente de vermelhoresultado. c) construção de movimento intransitivo: Semântica < tema MOVER-SE PARA trajetória > Fusão de papéis R R: instância, meio < PRED Sintaxe V > SUJEITO OBLÍQUO FIGURA 5 Exemplo: (13) A bolatema rolou para fora do campotrajetória. d) Construção conativa Semântica < agente DIRIGIR AÇÃO PARA tema > Fusão de papéis R R: instância, meio Sintaxe PRED < V > SUJEITO FIGURA 6 Exemplo: (14) Pedroagente atirou no ladrãotema. OBLÍQUO 39 3.2.4. Princípios cognitivos de organização lingüística Goldberg, em concordância com a obra pioneira de Lakoff (1987) a respeito das redes construcionais, afirma que a totalidade das construções de uma língua forma um conjunto sistemático e organizado. A tese da autora é de que as construções formam uma rede, e são ligadas entre si por relações de herança (ver 3.2.5), isto é, uma construção decorre da outra herdando características específicas. As relações entre construções são regidas por alguns princípios básicos. São eles: a) Princípio da Motivação Maximizada ⇒ se uma construção A é sintaticamente relacionada à construção B, então o sistema da construção A é motivado no mesmo grau que essa construção seja também semanticamente relacionada à construção B. Essa motivação é maximizada. Para entender melhor esse princípio, tomemos a seguinte situação: o referente [mesa] não faz prever, de modo algum, a forma lingüística mesa: esse signo não é previsível, e sim arbitrário. O vocábulo derivado mesário, no entanto, tem alguma previsibilidade, caso se conheça previamente a base mesa. Mesário é uma construção motivada, ou seja, há uma razão para ter a forma que tem, relacionada à forma da outra construção ― o termo motivação, aqui, está sendo utilizado no sentido saussureano. Quanto mais motivada for a forma, mais fácil será depreender e memorizar seu significado. Quanto mais formas motivadas tiver um sistema, mais eficaz na comunicação ele será. Daí a validade do Princípio da Motivação Maximizada: esse princípio determina que, se existe uma relação de 40 forma entre duas construções, então há motivação; como conseqüência, o falante vai também estabelecer uma relação semântica entre essas duas construções, tornando a comunicação mais eficiente. b) Princípio da Não-Sinonímia ⇒ se duas construções são sintaticamente distintas, devem ser semântica ou pragmaticamente distintas. Corolário A ⇒ se duas construções são sintaticamente distintas e semanticamente sinônimas, então elas têm de ser pragmaticamente distintas. Corolário B ⇒ se duas construções são sintaticamente distintas e pragmaticamente sinônimas, então elas têm de ser semanticamente distintas. Ou seja, segundo esse princípio, a forma está diretamente relacionada a valores semânticos e pragmáticos; se uma construção é formalmente diferente de outra, necessariamente vai ser semântica e/ou pragmaticamente diferente também. O corolário A pode ser exemplificado com os seguintes pares de sentenças sintaticamente distintas: (15) Chegou a polícia. (16) A polícia chegou. Se formos comparar as duas construções em termos de condições de verdade, não há nenhuma diferença entre elas. Pinheiro (2004), no entanto, mostrou que há uma diferença pragmática: a sentença (15) seria utilizada num contexto em que não houvesse expectativa a respeito da chegada da polícia; na sentença (16), ao contrário, há a pressuposição de que a polícia era esperada. 41 Quanto ao corolário B, comparem-se as sentenças: (17) Os cinzeiros estão cheios. (18) Esvazie os cinzeiros. As sentenças (17) e (18) podem ser interpretadas como variantes do mesmo ato ilocucionário (cf. PINTO, 2000), ou seja, se ditas por uma pessoa com autoridade socialmente reconhecida a outra que tem como função fazer a limpeza, ambas são inequivocamente interpretadas como ordens. Do ponto de vista semântico, no entanto, são diferentes: somente a sentença (18) é uma ordem, já que há uma construção de imperativo; a sentença (17) é, fora, de um contexto pragmático, nada mais que uma afirmativa. c) Princípio do Poder Expressivo Maximizado ⇒ o inventário de construções é maximizado para atender aos propósitos comunicativos. d) Princípio da Economia Maximizada ⇒ o número de construções distintas é minimizado tanto quanto possível, dado o princípio anterior. O terceiro e o quarto princípios restringem um ao outro, já que um determina o máximo de construções e o outro o mínimo possível. Na verdade, tanto um quanto outro atendem aos propósitos comunicativos: haverá quantas construções forem necessárias para atender às necessidades da comunicação (Princípio do Poder Expressivo Maximizado), mas não mais do que o necessário (Princípio da Economia Maximizada). 42 3.2.5. Relações de herança entre construções Goldberg, nas relações que as construções estabelecem umas com as outras numa rede construcional, identifica quatro tipos de relação de herança entre as construções. Como “herança” entende-se qualquer característica formal ou semântica que esteja na construção básica e se transfira para a construção decorrente. São as seguintes as relações de ligação: a) Ligação por polissemia ⇒ nesse tipo de ligação, se estabelece uma relação entre um sentido específico de uma construção e alguma extensão desse sentido, que estará presente na construção decorrente. Por exemplo, na construção bitransitiva, o sentido básico é ‘X causa Y receber Z’. Uma instância desse sentido básico seria (19) Pedro deu um carro a Marcos. Esse sentido básico pode se desdobrar em vários outros sentidos relacionados, instanciados nos exemplos a seguir: ‘X causa Y não receber Z’: (20) Pedro recusou o carro a Marcos. ‘X pretende causar Y receber Z’: (21) Pedro assou um bolo para Marcos. ‘X atua para causar Y receber Z em algum momento futuro’: (22) Pedro legou seus bens a Marcos. b) Ligação por subpartes ⇒ ocorre quando uma parte de outra construção existe independentemente, constituindo uma outra construção à parte. A construção 43 de movimento causado, por exemplo, tem parte de suas especificações sintáticosemânticas presentes na construção de movimento intransitivo: Construção de movimento causado Semântica < causa CAUSAR-MOVER alvo tema > R R: instância, meio Sintaxe < PRED V SUJEITO OBLÍQUO OBJETO Ligação por subparte Construção de movimento intransitivo Semântica > < tema MOVER-SE PARA trajetória > R R: instância, meio Sintaxe < PRED V > SUJEITO OBLÍQUO FIGURA 7 c) Ligação por instância ⇒ acontece quando uma determinada construção é uma instância de outra, com alguns elementos especificados. Esse tipo de ligação pode ser identificado no esquema a seguir: 44 Semântica < causa CAUSAR-MOVER alvo tema > R R: instância, meio Sintaxe PRED V < > SUJEITO OBLÍQUO OBJETO alvo tema > Ligação por instância Semântica CAUSAR-MOVER < causa R R: instância, meio Sintaxe CHUTAR V < chutador SUJEITO para escanteio OBLÍQUO elem. chutado > OBJETO FIGURA 8 No exemplo acima, temos a construção de movimento causado, que tem como configuração sintática ‘X V Y para Z’, ou seja, é uma construção aberta. Uma instância dessa construção seria (23) Pedro chutou a bola para fora do campo. A construção decorrente é também uma instância da construção básica, mas com alguns elementos especificados ― no caso, o verbo e o alvo. A configuração sintática da construção decorrente é ‘X chutar Y para escanteio’, significando 45 ‘descartar Y’, ‘desfazer algum tipo de relação previamente estabelecida com Y’. Uma instância dessa segunda construção seria (24) Pedro chutou a namorada para escanteio. Essa construção, além disso, está relacionada metaforicamente ao MCI (modelo cognitivo idealizado) (cf. Lakoff, 1987) de ‘futebol’, fazendo parte de uma rede bem mais complexa. Foi apresentada aqui, a título de exemplo, apenas a relação de ligação por instância. d) Ligação por extensão metafórica ⇒ segundo os pressupostos da Lingüística Cognitiva, a metáfora é um fenômeno conceptual que relaciona dois domínios cognitivos diferentes, estabelecendo “uma projeção da estrutura de um domínio-origem numa estrutura correspondente de um domínio-alvo” (SILVA, 1997, p. 74). Essa projeção entre domínios é chamada de “mapeamento”. Lakoff & Johnson (1980) mostraram que muitos domínios da nossa experiência de vida são conceptualizados com base em outros. O primeiro exemplo dado por esses autores é de que há um mapeamento entre o domínio da ‘discussão’ e o domínio da ‘guerra’, gerando a metáfora conceptual DISCUSSÃO É GUERRA. Essa metáfora pode ser instanciada de diversas maneiras, utilizando elementos específicos desses domínios: atacar ou defender idéias, tomar posição, defender uma posição, ganhar ou perder uma discussão, estratégias de argumentação etc. (cf. op. cit., p. 46). As construções gramaticais também são expressões de domínios cognitivos específicos, e é possível que duas construções se relacionem por meio de um mapeamento metafórico: é o que chamamos de ligação por extensão metafórica. Uma construção de movimento intransitivo, por exemplo, pode ser base para uma extensão metafórica de mudança de estado, através das máximas metafóricas 46 MOVIMENTOS SÃO MUDANÇAS e LOCAIS SÃO ESTADOS. A construção de movimento intransitivo, cujas configurações semântica e sintática são, respectivamente, ‘X move-se para Y’ e ‘SUJ V OBL’, pode ser instanciada nas sentenças (25) Pedro entrou na sala. (26) Pedro foi à faculdade. (27) Pedro saiu do país. A construção decorrente por extensão metafórica mantém a configuração sintática, e passa a ter como configuração semântica ‘X muda para Y’, em que Y, que na construção de base era um lugar, passa a ser, numa relação metafórica, um estado. As sentenças a seguir são instâncias da construção decorrente: (28) Pedro entrou em desespero. (29) Pedro foi à loucura. (30) Pedro saiu da depressão. 3.3. As construções: do morfema à sentença Numa abordagem tradicional, a língua é considerada uma estrutura em que vários níveis diferentes se articulam. Segundo Azeredo (1990, p. 31), são cinco os níveis da hierarquia gramatical: o nível mais básico de articulação é o do morfema; seguem-se os níveis do vocábulo, do sintagma, da oração, e por fim do período. Na abordagem gerativista, a gramática se subdivide em componentes, que atuam separadamente na estrutura até se chegar a uma sentença enunciável. A abordagem construcional, ao contrário das linhas teóricas anteriores, tem como premissa básica que não há distinção entre léxico e sintaxe. Salomão, num artigo que discute exatamente essa questão, afirma: “a linguagem é concebida como uma rede construcional, de tal modo que as unidades constitucionais divergem 47 apenas no caráter de sua especificação formal interna” (SALOMÃO, 2002, p. 69). A língua passa a ser vista, nessa perspectiva, como um imenso continuum, formado exclusivamente por construções, desde as mais básicas até as mais complexas. Dessa perspectiva, portanto, vocábulos e estruturas sintáticas não são unidades discretas, perfeitamente distinguíveis entre si, e sim partes de um continuum. Não há, portanto, uma fronteira rígida que os separe. Conseqüentemente, as áreas de investigação da Morfologia e da Sintaxe passam a ter também um objeto de estudo com limites pouco precisos. Poderíamos esquematizar esse continuum da seguinte forma: MORFEMA SENTENÇA Objeto de estudo da Morfologia Objeto de estudo da Sintaxe FIGURA 9 Na maioria das vezes em que se fala de construções gramaticais, os exemplos e os objetos de estudo são construções de base sintática, ou seja, localizadas mais à direita do continuum mostrado na figura 9. A própria Goldberg, no entanto, atenta para o fato de que morfemas devem também ser considerados construções gramaticais : “expandindo um pouco a noção pré-teórica de construção, morfemas são claras instâncias de construções, já que são pareamentos de significado e forma, os quais não são previsíveis a partir de nenhum outro 48 elemento”6 (GOLDBERG, 1995, p. 4). Apesar disso, quase todos os trabalhos publicados concentram suas análises na parte direita do continuum ― incluindo a própria Goldberg. A seguir, daremos alguns exemplos de construções mais ou menos especificadas, partindo do lado esquerdo do continuum até chegar ao lado direito. Como exemplos de construções mais estritamente morfológicas, temos a construção nominal aberta ‘X-vt’, que pode ser instanciada na forma dos vocábulos tucano, rosa, árvore, casebre, pelanca, mamilo. Os três últimos exemplos, aparentemente, poderiam ser instâncias das construções ‘X-ebre’, ‘X-anca’ e ‘X-ilo’, já que existem as formas casa, pele e mama. No entanto, esses elementos sufixais não ocorrem em nenhum outro contexto. Nessas supostas construções, X não é um elemento variável; sendo assim, as formalizações acima são inadequadas7. Outros exemplos são a construção adverbial parcialmente especificada ‘X-(a)-mente’, instanciada em belamente, fortemente, livremente, e construções completamente especificadas, ou seja, sem elementos variáveis: bambu, sofá, caqui, só, grená. Um pouco mais à direita do continuum, temos a construção aberta ‘X-X’, em que X é sempre um verbo flexionado no presente do indicativo: quebra-quebra, pulapula, roça-roça, corre-corre. Uma construção parcialmente especificada nesse mesmo ponto do continuum seria ‘guarda-X’: guarda-roupa, guarda-chuva, guardapó, guarda-costas8. As construções a seguir são completamente especificadas: girassol, passatempo, aguardente, couve-flor, pombo-correio. 6 [...] expanding the pretheoretical notion of construction somewhat, morphemes are clear instances of constructions in that they are pairings of meaning and form that are not predictable from anything else. 7 Rocha (1988) chama esses elementos não-produtivos de “sufixóides”, os quais podem, ainda, aparecer em formais verbais, como cantarolar e choramingar. 8 Na verdade, as formas em ‘guarda-X’ não são uma única construção, mas uma rede construcional ainda não descrita. 49 Na parte central do continuum, há várias construções que não se enquadram perfeitamente nem no domínio da Morfologia nem no da Sintaxe. São vocábulos frasais, como os grifados nas sentenças a seguir: (31) Ele é um maria-vai-com-as-outras. (32) Maria é a maior leva-e-traz do bairro. (33) Maria gosta de usar vestidos tomara-que-caia. É provável que as construções desse tipo sejam sempre completamente especificadas. Há também um outro tipo de construção, decorrente de outra por uma ligação de instância, em que determinados verbos se associam ao seu complemento formando um todo indissolúvel, comportando-se sintaticamente como se fosse um único vocábulo: fazer sala, tomar conta, matar o tempo, cair em si. Essas mesmas construções poderiam instanciar partes de construções mais complexas, que estariam mais à direita no continuum. A expressão fazer sala, por exemplo, tem uma configuração sintática ‘V-OBJ’. Esse conjunto, no entanto, se comporta sintaticamente como um verbo transitivo indireto, e vai instanciar uma construção cuja configuração sintática é ‘X V a Y’, ocupando a posição V. As duas sentenças a seguir são instâncias dessa construção: (34) Maria agrada a Pedro. (35) Maria fez sala a Pedro. No extremo direito do continuum haveria as sentenças formadas por período composto, como a construção de oposição ‘X, embora Y’ ou a de condição ‘Se X, então Y’. Nessas construções, as variáveis são orações inteiras. Quanto às construções completamente especificadas, é possível a sua existência mesmo no extremo direito do continuum, como provérbios: (36) Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. 50 (37) Pau que nasce torto morre torto. e fórmulas populares infantis: (38) O amor é uma flor roxa que nasce no coração do trouxa. (39) Cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu. 51 4. A FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR REENQUADRE MORFOLÓGICO Algumas questões importantes relativas a este trabalho serão discutidas neste capítulo. A primeira delas é a validade do que tradicionalmente se denomina “derivação regressiva”, que é a que envolve construções do tipo X-vtverbal-(r) → X-vtnominal, como em abater → abate. Outra questão relevante a ser discutida é a direcionalidade do processo: o verbo abater é derivado de abate ou vice-versa? E nos pares em que os substantivos expressam elementos concretos, como em prego / pregar ou olho / olhar? Essas questões serão discutidas nos itens 4.1 e 4.2 a seguir. No item seguinte, revemos o conceito de regressão, propondo que esse processo se enquadra num outro tipo de formação, o reenquadre morfológico. Nesse mesmo item, será discutida a questão da nomenclatura, e explicado o porquê do nome escolhido para o processo. Os dois últimos itens do capítulo tratam do processo contrário à regressão, em que o verbo é formado a partir do substantivo: são as formações em X-ar e pref-X-ar, tradicionalmente consideradas, respectivamente, como derivadas sufixais e parassintéticas. Argumentamos em favor de se considerarem esses casos também como formações por reenquadre morfológico, sendo que o segundo tipo seria uma formação híbrida. 4.1. O processo de “derivação regressiva” Na descrição tradicional do português, há uma oposição entre a noção de processo derivacional progressivo ― com acréscimo de elementos mórficos ― e 52 regressivo ― com retirada de elementos. Said Ali, gramático que produziu sua obra em fins do século XIX e primeira metade do século XX, assim define esse último processo: “consiste a derivação regressiva em criar vocábulos não acrescentando, mas subtraindo algum afixo” (SAID ALI, 1964, p. 117). Gramáticos mais recentes, como Lima (1972, p. 214), Cunha e Cintra (1985, p. 102) e Bechara (1999, p. 370), utilizam basicamente a mesma definição de Said Ali. Alves, lingüista contemporânea, assim define o processo: “ocorre o fenômeno da derivação regressiva quando a criação de uma nova unidade léxica deve-se à supressão de um elemento, considerado de caráter sufixal” (ALVES, 1990, p. 71). Ou seja, o texto é basicamente uma paráfrase de Said Ali. As lingüistas portuguesas Azuaga (1996) e Rio-Torto (1998) também utilizam em suas obras definições semelhantes. Um exemplo desse processo seria a formação do vocábulo agravo, a partir do verbo agravar ― exemplo dado por Rio-Torto (1998, p. 98). Aparentemente, não incomoda a nenhum desses autores o fato de que o substantivo agravo não é formado simplesmente com retirada de elementos do verbo agravar ― nele, aparece um elemento que não estava presente na palavra original. Alguns autores, no entanto, atentaram para esse detalhe. Basilio (1987, p. 39), analisando as formações apertar / aperto, ameaçar / ameaça e cortar / corte, observa que “se considerarmos que esses casos são de derivação regressiva, pelo menos teremos que considerar que se trata de um caso misto, pois também ocorre o acréscimo de vogais”. Sandmann, sem chegar a nenhuma conclusão, aventa a possibilidade de esse tipo de formação ser sufixal, e não regressiva. Esse autor questiona se não se poderia considerar como sufixos o –o final de agito, o –a de engorda ou o –e de desmame (SANDMANN, 1997, p. 45). Outro autor que questiona a existência de deverbais regressivos é Rocha, que em sua obra tem um subitem 53 intitulado “O problema da derivação regressiva” (ROCHA, 1998, p. 185). Esse autor, de forma mais peremptória que Sandmann, considera esse tipo de formação como sufixal, e não como regressiva. Segundo Rocha, tanto as formações patrulhamento quanto patrulha são derivadas do verbo patrulhar pelo mesmo padrão de formação: V→S –suf 9 . A diferença seria que patrulhamento seria formada com acréscimo do sufixo nominalizador -mento ao verbo patrulhar, enquanto patrulha seria gerada a partir da seguinte RFP (regra de formação de palavras): [patrulhar]v → [[patrulhar]v∅]s, que ele chama de “derivação zero”, utilizando um “sufixo implícito zero”. De acordo com a linha teórica seguida neste trabalho, que é a da Gramática das Construções segundo o modelo de Goldberg, não é possível concordar com o artifício proposto por Rocha (apesar de a proposta ser mais consistente que a noção de “derivação regressiva”). Se as construções gramaticais são pareamentos de forma e significado (Goldberg, 1995), não é admissível um afixo zero, sem significante. Será apresentada, no item 4.3 deste trabalho, uma outra proposta de análise deste tipo de processo. 4.2. A direcionalidade do processo Outra questão que se coloca nos chamados “derivados regressivos” é a direcionalidade do processo: fumar, por exemplo, seria uma forma primitiva ou um derivado denominal do substantivo fumo? E o substantivo acerto, seria primitivo ou um deverbal do verbo acertar? Basilio, em duas obras diferentes (1980 e 1987), 9 Pode parecer, à primeira vista, que o símbolo (-) antes de suf, na formalização da regra, equivale ao sinal matemático de menos, indicando que aquele sufixo não se materializa fonologicamente. Essa conclusão, no entanto, não é correta, já que em outra parte da obra, quando fala de nominalização com uso expresso do sufixo (ROCHA, 1998, p. 125), o autor utiliza exatamente a mesma formalização. Esse símbolo está indicando, somente, que naquela posição entra uma forma presa. 54 discute essa questão, chegando, em cada uma delas, a conclusões diversas. Em Basilio (1980), a autora considera que o critério mais pertinente para analisar este processo é o morfológico. O argumento usado é de que as formas nominalizadas dos verbos sem acréscimo de afixo podem terminar em -a, -e, -o ou em consoante (cf. matiz / matizar), enquanto os verbos são em mais de 95% terminados em -ar ― as novas formações são obrigatoriamente em -ar. Isso faz com que uma regra de formação tendo o verbo como forma primitiva seja bem menos preditível que o contrário, tendo o substantivo como primitivo. A partir desse fato, a autora considera que todas as formações em que a forma nominalizada do verbo não possui nenhum afixo ― como por exemplo cola, desejo, enfeite, zanga ― sejam formas primitivas, enquanto os verbos correspondentes ― colar, desejar, enfeitar , zangar ― sejam formas derivadas. Na obra de 1987, Basilio revê essa posição10. Após analisar uma série de exemplos, a autora conclui que é impossível determinar com exatidão se temos uma formação regressiva ou se temos um substantivo básico de que o verbo se teria formado. Em casos de dúvida, no entanto, a análise de uma palavra como formação deverbal pode ser mais interessante, sempre que esta tiver um sentido mais abstrato. (BASILIO, 1987, p. 41-2) O primeiro argumento de Basilio para defender esta nova posição é de que a formação de substantivos a partir de verbos é infinitamente mais produtiva que a formação de verbos a partir de substantivos. O segundo argumento é de caráter sintático-semântico: as duas funções da formação deverbal são “expressar o significado do verbo dentro de uma visão nominal” e “dar ao significado do verbo uma forma sintática de substantivo para que possa figurar em certos tipos de estrutura, exigidos pelo discurso, em que um verbo não caberia sintaticamente” 10 Essa revisão se deu provavelmente devido ao fato de a autora ter orientado a tese de doutorado da Profa Lea Gamarsky, defendida em 1984 e editada em 1988 (GAMARSKY, 1988), cujas idéias são basicamente as que Basilio defende na obra de 1987. 55 (1987, p. 42-3). Se um substantivo não preenche essas funções, não deve ser considerado como deverbal. Exemplificando: a sentença 1a. Os bárbaros atacaram a cidade violentamente. pode ser parafraseada da seguinte forma: 1b. O ataque à cidade (pelos bárbaros) foi violento. Em 1b, a palavra ataque expressa, com características morfossintáticas de substantivo, o mesmo valor semântico básico do verbo atacar. Já a sentença 2a. A camareira perfumou as fronhas. não pode de forma alguma ser parafraseada como 2b. *A camareira fez o perfume das fronhas., já que perfume não expressa a noção de perfumar sob uma perspectiva nominal. Como a expressão do sentido de um verbo sob uma perspectiva nominal é um processo geral na língua, praticamente categórico ― são muito poucos os verbos que não admitem nominalização ―, será adotada neste trabalho a proposta de análise das formações do tipo atacar → ataque feita por Basilio (1987), que inclui este processo específico no conjunto das formações dos substantivos deverbais (dos quais a maioria é formada por sufixação). 4.3. Proposta de revisão do conceito de regressão ― a formação por reenquadre morfológico Parte-se portanto neste trabalho da assunção da análise proposta em Basilio (1987), de que nas formações que envolvem pares do tipo acertar / acerto, apoiar / apoio, disputar / disputa, a direcionalidade do processo é do verbo para o substantivo, ou seja, o substantivo é deverbal (ao contrário do que a autora sustenta em Basilio (1980)). 56 Assumindo essa perspectiva de análise, propõe-se neste trabalho uma nova visão, diferente da tradicional, que considera essas formações como regressivas, e diferente também da proposta de Rocha (1998), que considera como um caso de derivação zero. Na descrição proposta aqui, parte-se do conceito, que permeia toda essa obra, de construção gramatical. Sendo essa a unidade básica da língua, as classes de vocábulos são também consideradas tipos de construções gramaticais, assim como cada um dos elementos que isoladamente compõem essas classes. No par transtornar / transtorno, por exemplo, o primeiro elemento pertence a um conjunto de vocábulos que compartilham uma semântica própria e possuem características formais também próprias ― os verbos. Da mesma forma, os substantivos, conjunto no qual se inclui o segundo elemento do par, também têm características semânticas e formais que lhe são peculiares. Neste ponto, seria conveniente explicitar quais seriam essas propriedades formais e semânticas que fazem com que substantivos e verbos sejam construções gramaticais específicas. Na verdade, nenhuma das classes de vocábulos tradicionalmente estabelecidas tem características formais e semânticas comuns a absolutamente todos os elementos que compõem essas classes. Como possivelmente todas as categorias gramaticais, também as classes de vocábulos podem ser analisadas como categorias radiais, que possuem um centro prototípico e elementos que se afastam mais ou menos desse protótipo. Vamos nos ater às duas classes que interessam diretamente a este trabalho neste momento, o substantivo e o verbo. Sob o ponto de vista da forma, ou seja, dos elementos que compõem internamente a construção, os substantivos caracterizam-se por possuírem um 57 radical, que se anexa via de regra a uma vogal temática, e pela possibilidade de se adjungir a esse conjunto uma desinência de número. Também podem fazer parte desse conjunto elementos sufixais, como -ção, -mento, -(z)inho, -eiro, -nça. Como se pode perceber, o substantivo não é uma classe de fácil identificação, do ponto de vista formal, já que pode ter uma estrutura interna bastante variável. No entanto, é possível identificar uma maior ocorrência de construções do tipo X-vt, em que a vogal temática é predominantemente -o ou -a. As formas com tema em -e são menos ocorrentes, e as atemáticas ainda menos. Mesmo quando está presente na estrutura um elemento sufixal, a probabilidade maior é que a construção obedeça ao padrão X-vt, só que nesse caso X teria uma estrutura complexa: jardineiro, lagartixinha, acabamento, lembrança. As formas prototípicas do substantivo seriam, portanto, as construções X-o e X-a. Alguns autores preferem definir essa categoria numa perspectiva sintática, isto é, em relação à construção sentencial na qual a construção substantiva se pode inserir. Trask, por exemplo, afirma que uma maneira melhor de identificar os substantivos é usar uma moldura adequada. Considerem-se as molduras O ____ estava ótimo, Os ____ estavam ótimos, A ____ estava ótima, As ____ estavam ótimas. Se for possível colocar uma única palavra em um dos espaços vazios, obtendo uma boa sentença, essa palavra terá que ser um substantivo, porque a gramática do português permite que os substantivos e só os substantivos apareçam nessas posições. A primeira moldura aceita formas singulares de substantivos masculinos, como almoço, lápis e alferes; a segunda aceita formas masculinas e plurais, como óculos e lápis, entre outras. Atenção: não haverá nenhuma garantia de que o resultado será sensato: A dor estava ótima não soa muito normal, mas é claramente gramatical, e, portanto, dor é um substantivo. (TRASK, 2004, P. 285) Esse teste apenas mostra quais são os elementos que podem pertencer à categoria dos substantivos; nada diz, no entanto, a respeito do que é um substantivo. Quanto aos verbos, uma definição de ordem sintática jamais teria o mesmo sucesso que o obtido na identificação dos substantivos, já que aparecem em 58 contextos bastante diversos. Há verbos que podem aparecer em construções com três diferentes argumentos (Pedroargumento médicoargumento 3), com dois (Pedroargumento (Pedroargumento 1 1 1 mostrou a feridaargumento 2 ao ama seus amigosargumento 2), com um desmaiou) ou com nenhum (Chove). Há, além disso, os verbos copulativos ou de ligação, a respeito dos quais não há consenso se possuem ou não uma estrutura argumental (cf. Duarte & Brito, 2003, p. 194), e os auxiliares modais e aspectuais, que se fazem sempre acompanhar de outros verbos nas construções em que figuram. Como se pode ver, do ponto de vista do contexto em que figuram, podem-se dividir os verbos em inúmeras subcategorias, muitas vezes sem muita semelhança entre si. Se no contexto sentencial em que se podem inserir os verbos são uma categoria extremamente heterogênea e de difícil generalização, o mesmo não acontece em relação à sua forma interna, ao contrário dos substantivos. Nessa perspectiva, os verbos são construções perfeitamente identificáveis: são formados por um radical, por uma vogal temática (cujo conjunto difere do conjunto das vogais temáticas nominais) e pela possibilidade de se adjungirem sufixos indicativos de pessoa e de tempo-modo-aspecto. Essa característica é na verdade o que une todos os elementos dessa classe, identificando-a como uma construção de um tipo específico. Dessa forma, a construção gramatical chamada de verbo é constituída formalmente de três partes distintas: um radical, que pertence a um conjunto infinito de formas, uma vogal temática, cujo conjunto é extremamente reduzido, restringindo-se a três elementos, e as desinências indicativas de pessoa e tempomodo-aspecto, as quais podem estar combinadas entre si ou não. Sendo assim, o elemento que vai na verdade caracterizar o verbo, por ser um elemento mais constante ― são raras as formas verbais em que não aparece ― é a vogal temática, 59 já que o radical pode variar ao infinito e as desinências são elementos apenas potenciais, podendo figurar ou não nas formas verbais. Quanto ao significado das categorias substantivo e verbo, Langacker (1991, p. 15) faz referência ao fato de parecer “impossível encontrar qualquer propriedade distintiva que seja comum a todos os membros de uma ou outra classe.” E acrescenta: “é então uma doutrina básica da lingüística moderna que substantivos e verbos não possam ser definidos nocionalmente”. Vejamos alguns aspectos da heterogeneidade semântica dessas classes. Os substantivos são definidos por Neves (2000, p. 67) como os vocábulos que “são usados para referir-se às diferentes entidades (coisas, pessoas, fatos, etc.), denominando-as”. Duarte & Oliveira (2003, p. 210) definem os substantivos (designados, nessa obra, pelo termo “nomes”) como “categorias lingüísticas caracterizáveis semanticamente por terem um potencial de referência11, isto é, por serem, em geral, utilizadas numa situação concreta de comunicação, como uma função designatória ou de nomeação”. Essa referenciação, no entanto, abrange uma enorme gama de entidades que são completamente diversas entre si, desde as mais concretas, passando por uma escala de crescente abstratização: prato é mais concreto que vento, que é mais concreto que ataque, que é mais concreto que virtude. É possível até que um mesmo substantivo possa estabelecer diferentes relações de referenciação, numa perspectiva mais concreta ou mais abstrata; compare-se por exemplo o termo grifado nas duas sentenças a seguir: (3) O gato da minha vizinha é bem-tratado. (4) O gato pode transmitir doenças. Na sentença (3), o substantivo gato tem uma referência mais concreta, diretamente relacionada a um ser no mundo objetivo; em (4), a referência não é a 11 Grifo no original. 60 nenhum ser em particular, mas a uma categoria de seres. É, portanto, uma referência de caráter mais abstrato que na primeira sentença. Além disso, existe a possibilidade de praticamente qualquer elemento ser apresentado sob uma perspectiva referencial, mesmo que não seja essa, em princípio, a sua função. O vocábulo verde, por exemplo, tem como finalidade básica qualificar: camisa verde, cartolina verde. Pode, no entanto, referenciar a vegetação de modo geral, a qual, via de regra, é de cor verde, estabelecendo uma relação metonímica entre a vegetação e sua cor. Além disso, verde é, inegavelmente, o nome de uma cor. Na sentença (5) Quando misturamos o azul e o amarelo, obtemos o verde., os três termos indicativos de cores, apesar de serem tradicionalmente considerados adjetivos, estão servindo para nomear e referenciar ― tarefa que é do substantivo. Os verbos, por sua vez, têm propriedades semânticas talvez tão díspares quanto os substantivos. Duarte & Brito (2003, p. 193 et seq.) identificam os seguintes valores semânticos para os verbos: estados (como existir, ser, morar, ter), processos (como chover, chorar, correr, dançar), processos culminados (como destruir, comprar, arrumar, escrever), culminações (como chegar, sair, falecer), pontos (como espirrar, suspirar). O grande problema dessas definições é que não dizem respeito exclusivamente aos verbos. Substantivos podem expressar exatamente os mesmos valores semânticos: estados (felicidade, sofrimento), processos (choro, corrida), processos culminados (destruição, compra), culminações (chegada, falecimento), pontos (espirro, suspiro). Na verdade, praticamente qualquer verbo vai ter um substantivo equivalente, com o mesmo valor semântico básico. Há que existir, portanto, alguma definição dessas classes que seja mais eficaz, que dê conta do 61 fato de os falantes jamais se equivocarem em relação ao seu uso, nos contextos exatos. Ou seja, numa perspectiva cognitiva, os falantes conseguem identificar perfeitamente um substantivo ou um verbo como construções específicas. Segundo Langacker (1991, p. 15), é de se esperar que categorias com tamanha relevância gramatical, como substantivo e verbo, tenham uma base conceptual. Esse autor propõe que se diferenciem essas duas categorias a partir de uma metáfora que ele chamou de “modelo da bola de bilhar”. Apresentaremos a seguir esse modelo, de forma sintética. Quatro elementos essenciais compõem o modelo: o primeiro é a bola de bilhar, que representa uma determinada quantidade de substância material espacialmente delimitada. Os outros três elementos são espaço, tempo e energia. Na interação entre a bola e outro objeto, acontece uma transferência de energia, que vai ter como conseqüência o movimento da bola no espaço ― e esse movimento vai necessariamente se desenvolver num intervalo de tempo. Espaço e tempo, combinados, formam o conjunto multidimensional no qual se manifestam os outros dois componentes. O espaço é, portanto, o domínio no qual a substância material se instancia e o tempo é o domínio de instância da energia e da conseqüente modificação. A substância material é autônoma, ou seja, existe independente de qualquer interação que possa ter com outro elemento qualquer. Já a energia só é observável por intermédio de sua conseqüência: a modificação, que se manifesta no tempo. Esse modelo serve para explicar como são conceptualizadas as categorias ‘substantivo’ e ‘verbo’: a primeira é representada pela substância material, enquanto a segunda corresponde à interação entre uma porção de substância material e outra, causada por uma transferência de energia. Dessa forma, podemos inferir que os substantivos são conceptualmente autônomos, concebidos de forma estática; 62 verbos, ao contrário, são conceptualmente dependentes e concebidos de forma dinâmica. Em relação aos verbos e sua contraparte nominal, Langacker (1987, p. 144) mostrou que os dois tipos de vocábulo são conceptualizados por intermédio de dois diferentes processos cognitivos. Os verbos, que mostram, conforme visto, uma interação que se desenvolve no tempo, são processados cognitivamente de forma seqüencial ― o que o autor chama de “sequential scanning”. A figura abaixo mostra o esquema do processamento cognitivo do verbo cair: FIGURA 10 Essa figura é a representação esquemática da conceptualização de um movimento. Qualquer movimento é formado por pelo menos dois elementos: aquele que se move, chamado de trajetor, e um elemento fixo, chamado de ponto de referência. No esquema acima, o trajetor é o elemento circular; o ponto de referência é a base retangular. Nesse esquema, cada quadro representa um momento na seqüência do processo. As linhas pontilhadas mostram que há continuidade de movimento no tempo; cada quadro é somente a representação de alguns dos inúmeros momentos passíveis de representação. A linha inclinada mostra que o trajetor muda espacialmente de um momento a outro; a horizontal mostra que o ponto de referência se mantém imóvel no tempo. Esse esquema mostra 63 perfeitamente a conceptualização de um verbo: o trajetor recebe energia suficiente para mudar de posição, interagindo com o ponto de referência; essa interação se desenvolve no tempo. O substantivo abstrato queda, equivalente nominal de cair, por outro lado, é processado cognitivamente de forma única, como um bloco ― a esse processo Langacker chamou “summary scanning”. A figura a seguir mostra o esquema do processamento cognitivo desse substantivo: FIGURA 11 Ou seja, na conceptualização do verbo é levada em conta a interação entre elementos se desenvolvendo no tempo. A conceptualização do substantivo, ao contrário, é temporalmente estática. Fica, pois, evidenciado que existem de fato diferentes bases conceptuais envolvidas na cognição de substantivos e verbos, contradizendo a doutrina básica, referida acima, que diz que substantivos e verbos não podem ser definidos nocionalmente. Essas duas categorias têm características formais e conceptuais específicas que fazem com que possam ser consideradas construções gramaticais. Tecidas essas considerações, voltemos ao conceito de regressão. Na formação transtornar → transtorno, não acontece uma perda de elementos, como preconiza a descrição tradicional, mas uma substituição. Há um reenquadre 64 morfológico direto12: a construção gramatical deixa de ser uma construção característica de um verbo (com seus constituintes e semântica próprios) e passa a ser uma construção gramatical que caracteriza o vocábulo como um substantivo (também, por sua vez, com forma e semântica próprias). Nesse processo de formação, o verbo perde o elemento que o caracteriza como pertencente a essa classe de vocábulos, ou seja, a vogal temática verbal13. Quando esse vocábulo se reenquadra no conjunto dos substantivos, adquire os elementos que caracterizam essa classe, no caso, a vogal temática nominal e a possibilidade de anexação da desinência nominal (de número). O esquema a seguir mostra o processo de reenquadre: pesc - a transtorn - a agit - a - (r) (sse) (mos) (do) (ndo) ... pesc - a transtorn - o (s) agit - o CONSTRUÇÕES VERBAIS CONSTRUÇÕES NOMINAIS FIGURA 12 Este processo está sendo designado como reenquadre morfológico direto, ou seja, que acontece diretamente de uma classe a outra, envolvendo exclusivamente os elementos que caracterizam genericamente as classes envolvidas. Dessa forma, o termo pesca, formado por reenquadre, se iguala construcionalmente a mesa, que é 12 A razão para o uso dessa nomenclatura será apresentada no item 4.3.1. A desinência de infinitivo não é, na verdade, um elemento obrigatório nos verbos; o infinitivo como forma representante de todo o paradigma verbal é uma convenção de caráter lexicográfico. O que caracteriza o verbo de fato é a vogal temática verbal, à qual se adjungem as desinências verbais, dentre elas a de infinitivo. 13 65 um vocábulo primitivo. Nos reenquadres indiretos, há junção de construções ― o elemento responsável pelo reenquadre é um afixo, como podemos ver no esquema a seguir: coloc - a - (r) CONSTRUÇÃO VERBAL coloc - a - ção CONSTRUÇÃO NOMINAL -ção CONSTRUÇÃO SUFIXAL NOMINALIZADORA FIGURA 13 Os afixos, como se enquadram na definição “pareamento forma / significado”, também são considerados construções (ver capítulo 3). Dessa forma, a construção colocação é formada com a junção da construção verbal colocar com a construção sufixal nominalizadora -ção ― responsável pelo reenquadre como um substantivo. O único ponto que ainda está um tanto obscuro é em relação à escolha da vogal temática no substantivo formado. Não temos nenhuma hipótese do que causou a escolha de uma vogal ou outra no decorrer da evolução da língua; na sincronia atual, no entanto, parece haver uma tendência no padrão de formação. Se na formação de verbos novos a única vogal temática possível é -a, nos substantivos é exatamente essa a que está bloqueada. Não há formações recentes em -a, e parece-nos que essa vogal é totalmente improdutiva no momento atual. Quanto ao uso de -o ou –e, parece-nos que a primeira é usada em formas verbais primitivas: agito, chego, sufoco. Já a segunda parece ser usada em formações em que no verbo há um prefixo: desmame, ajuste, enquadre. É provável que sejam somente 66 tendências, e não regras categóricas. Seria preciso fazer um minucioso levantamento das formas recentes para confirmar ou não essas hipóteses. 4.3.1. Nota sobre a nomenclatura Os processos de formação de palavras em análise neste capítulo ― ou seja, as formações do tipo afagar → afago e cravo → cravar ― poderiam, em princípio, ser designadas de diferentes formas. A primeira delas, adotada por Villalva (2003, p. 953), é o termo conversão. Essa autora considera como conversão os casos exemplificados acima, além daquilo que é tradicionalmente chamado de conversão: a mudança de categoria gramatical sem mudança de forma (processo também chamado, na descrição tradicional, de “derivação imprópria”). Optamos por não usar esse termo para designar os processos em análise por já estar bastante comprometido, já que é usualmente relacionado ao processo de mudança categorial sem alteração na forma. Todos os autores a seguir utilizam o termo conversão nessa acepção: Sandmann (1997, p. 47), Crystal (1985, p. 68), Jota (1976, p. 90), RioTorto (1998, p. 98), Azuaga (1996, p. 241), Basilio (1987, p. 60), Alves (1990, p. 60), Rocha (1998, p. 172). As outras possibilidades seriam os termos recategorização ou transcategorizaçao, por um lado, e reenquadre morfológico, por outro. O termo reenquadre também já está, de certa forma, comprometido. Está, obviamente, relacionado ao termo enquadre, que é uma tradução do inglês frame, expressão cunhada por Fillmore (1977). A noção de ‘enquadre’ tem sido, de modo geral, utilizada numa perspectiva semântico-pragmática. Está relacionada à nossa 67 capacidade cognitiva de organizar mentalmente e explicitar verbalmente conhecimentos sobre aspectos do mundo funcional. Dessa forma, num enquadre de ‘transação comercial’, por exemplo, um falante precisa relacionar os conceitos envolvidos às opções lexicais e sintáticas que os representam. Estariam envolvidas nesse enquadre as construções lexicais compra, venda, mercadoria, vender, comprar (com os seus respectivos argumentos relacionados com os devidos papéis temáticos formando construções sentenciais) etc. A noção de ‘enquadre’, no entanto, pode ser perspectivizada num enquadre (perdoe-se a redundância) menos pragmático e mais lingüístico stricto sensu. Da mesma forma que o falante é capaz de estruturar em sua mente um conhecimento de categorias extralingüísticas, também é capaz de estruturar categorias lingüísticas, mesmo que não saiba explicitar metalingüisticamente esse conhecimento tão bem quanto consegue listar os móveis de uma casa. E é baseado nesse conhecimento que o falante tem das categorias gramaticais ― qualquer falante é capaz de perceber que existem diferenças funcionais e formais entre, por exemplo, comprar (verbo) e compra (substantivo) ― que optamos por utilizar o termo enquadre, mesmo que numa acepção um pouco diferente da mais usual na literatura lingüística. Com esse termo, fica explícito que a passagem de uma categoria a outra não é simplesmente um artifício metalingüístico, mas um processo cognitivo realizado pelo próprio falante. Por essa razão, foram rejeitados os termos recategorização e transcategorização, que poderiam também designar os processos, mas na perspectiva do processo em si, e não da perspectiva do falante em relação ao processo que ele próprio realiza. 68 4.4. As formações X-ar De forma semelhante ao processo descrito no item 4.3, também é possível haver o processo inverso, isto é, um verbo ser formado a partir de um substantivo, por reenquadre morfológico. O verbo perfumar, por exemplo, seria formado a partir do substantivo perfume, com adaptação morfológica: a construção perde a vogal temática nominal –e, que a caracteriza como um substantivo, e recebe a vogal temática verbal –a, característica de verbos. O esquema seria semelhante ao mostrado na figura 12, só que inverso: perfum - e matiz - (e) - perfum - a matiz - a (s) parafus - o parafus - a CONSTRUÇÕES NOMINAIS (r) (sse) (mos) (do) (ndo) ... CONSTRUÇÕES VERBAIS FIGURA 14 Basilio (1993) aventa três possibilidades de análise para esse tipo de formação. A primeira delas, rejeitada em seguida pela autora, considera que “tais formas se estruturam a partir do acréscimo da vogal temática ao radical. Nesse caso, teríamos um radical comum perfum-, do qual derivariam o substantivo perfume e o verbo perfumar, pelo acréscimo da respectiva vogal temática” (BASILIO, 1993, p. 297). Num trabalho posterior (BASILIO & MARTINS, 2002)14, a autora deixa de fazer 14 Apesar de o artigo ter sido escrito a quatro mãos, as duas primeiras partes ― onde o assunto que interessa a este trabalho é discutido ― ficaram a cargo de Basilio; a terceira a cargo de Martins. 69 referência a essa possibilidade e se atém às outras duas, que são as que interessam ao foco deste trabalho. A segunda possibilidade, também rejeitada pela autora, é de que “tais formas resultam do acréscimo de uma VT que adapta morfologicamente o substantivo da base a uma conjugação verbal. Neste caso, teríamos um processo de conversão com adaptação temática flexional” (BASILIO, 1993, p. 297). Esta é, com algumas modificações, a hipótese que adotamos, conforme foi exposto no início deste item. A terceira possibilidade, a que é defendida pela autora, considera que “tais formas resultam do acréscimo do elemento derivacional –a, formador de verbos, a uma base substantiva”. Seria, portanto, um caso de derivação sufixal, em que o segmento final –a(r) do verbo perfumar seria um sufixo derivacional formador de verbos. A autora não argumenta propriamente em favor da hipótese que abraça; restringe-se a levantar problemas de análise para desabonar a hipótese anterior. Ela própria, no entanto, levanta um problema em relação à própria hipótese que adota: o fato de haver uma coincidência entre o sufixo formador do verbo e a vogal temática caracterizadora da flexão verbal. Como a hipótese defendida neste trabalho é (com restrições de caráter teórico) a segunda, tentaremos contra-argumentar em relação aos problemas levantados por Basilio quanto a essa possibilidade de análise. A primeira crítica feita por Basilio ao que ela chama de conversão é que esta prevê o amoldamento do substantivo à conjugação verbal e, portanto, o acréscimo de uma vogal temática verbal, apenas quando a base substantiva termina em consoante ou em vogal não compatível com a conjugação verbal. O que observamos, ao contrário, é que, mesmo quando as bases substantivas já apresentam uma vogal temática compatível com a conjugação verbal, ainda assim temos o acréscimo de –a, como por exemplo em perfume / perfumar (e não ∗perfumer, cf. temer) rede / enredar (e não ∗reder, cf. ceder) etc. (BASILIO & MARTINS, 2002, p. 379). Sendo assim, será feita referência ao artigo como em parceria; quanto ao autor, referir-se-á somente a Basilio. 70 Só é possível considerar que na formação de um verbo denominal há acréscimo de uma vogal temática verbal “apenas quando a base substantiva termina em consoante ou em vogal não compatível com a conjugação verbal” se não se considerar que vogal temática verbal e vogal temática nominal são dois elementos mórficos diferentes. Na verdade, essa “compatibilidade” não existe; como são elementos morficamente diferentes, não há obrigatoriedade de serem fonologicamente iguais. Alguns fatores comprovam que são de fato elementos diferentes: o primeiro é que a vogal temática nominal é obrigatoriamente átona, enquanto a vogal temática verbal pode ser átona ou tônica, dependendo da flexão do verbo. Outra diferença é que o conjunto dos elementos que compõem o paradigma da vogal temática nominal é diferente do conjunto das vogais temáticas verbais: as primeiras são -a, -e, -o; as segundas são -a, -e, -i. Há inclusive autores, como Villalva (2003), que atribuem nomes diferentes a cada um desses elementos mórficos: o que se costuma chamar na tradição brasileira de vogal temática nominal, a autora chama “índice temático”, usando a nomenclatura vogal temática apenas para os constituintes verbais. Quanto a todas as formações serem em -ar, isso se deve ao fato de essa ser a única conjugação aberta do português; o conjunto dos verbos de 3ª conjugação é fechado e a 2ª só pode ser ampliada com formações que utilizem o sufixo –ec(er). Perceba-se que todas as formações verbais recentes na língua que não utilizam o sufixo –ec(er) são de 1ª conjugação, mesmo aquelas que não são formadas a partir de uma base do português, como por exemplo os verbos formatar ou deletar. Esses verbos são adaptações morfológicas dos verbos ingleses format e delete, ou seja, foram formados em -ar não porque sejam derivados sufixais, mais porque a formação em -ar de novos verbos é uma regra categórica para o português atual. 71 A segunda crítica da autora é que falantes do português parecem interpretar formas como perfumar e desossar15 como derivadas respectivamente dos substantivos perfume e osso, ou seja, a relação entre perfume / perfumar, luta / lutar etc não é estruturalmente análoga a casos como velho / velho (adjetivo / substantivo), doce / doce (substantivo / adjetivo) etc., de dupla vinculação categorial. (BASILIO & MARTINS, 2002, p. 379-380) Neste ponto, é preciso concordar com a autora. De fato as construções perfume / perfumar não são estruturalmente análogas a velho (adjetivo) / velho (substantivo). O único problema é que este não é um argumento válido para essa situação. Basilio chama conversão a um processo que não é em princípio chamado assim. Azuaga (1996, p. 241), por exemplo, dá a seguinte definição para esse fenômeno: “A conversão, que alguns lingüistas designam por derivação zero, ou ainda derivação imprópria, consiste na obtenção de uma palavra a partir de uma já existente, sem alteração na sua forma.” Não é este exatamente o caso da formação perfume → perfumar, já que há alteração na forma. Basilio chama “conversão” a esse processo, alargando a definição tradicional, para em seguida argumentar que não pode ser conversão, porque é estruturalmente diferente da relação entre os casos tradicionais de conversão velho / velho. Na verdade, a relação entre os dois elementos desse par é bem diferente, podendo até mesmo ser levantada a dúvida se é realmente um caso de conversão, apesar de aparecer freqüentemente como exemplo do processo ― a própria Azuaga dá esse mesmo exemplo para o fenômeno. O lingüista Perini (2000, p. 31) comenta exatamente a diferença de relação entre as classes envolvidas aqui: Ao contrário do que se dá com os verbos, as classes tradicionalmente denominadas “substantivo” e “adjetivo” têm limites muito pouco claros. É fácil distinguir formalmente um substantivo de um verbo, mas a separação entre substantivos e adjetivos é tão pouco marcada que há razão para duvidar da existência de duas classes distintas. (Perini, 2000, p. 31) 15 No item 4.5 será analisado esse tipo de construção. 72 Não é esse o foco deste trabalho, mas é possível que substantivos e adjetivos sejam extremidades de um continuum, em que há alguns elementos limítrofes, que tenham características comuns a ambas as classes. A diferença básica entre essas duas classes é de ordem sintático-semântica: substantivos são núcleos e referenciam; adjetivos são adjuntos e caracterizam. Do ponto de vista puramente morfológico, as duas classes não se distinguem. Há determinadas palavras que seriam consideradas como substantivos, mas que podem caracterizar, servindo como adjunto: (6) Tenho dois filhos homens. Outros vocábulos expressam em princípio características, mas podem servir perfeitamente para referenciar, funcionando como núcleo: (7) No meu prédio há uma gorda no primeiro andar, um careca no segundo, uma gostosona no terceiro e um cardíaco no quarto. Nenhuma das construções grifadas nos exemplos poderia ser considerada prototipicamente substantivo nem adjetivo. Estariam num espaço intermediário do continuum, assim como todos os exemplos listados por Basilio: velho, doce, absurdo (1993, p. 299). O terceiro argumento usado por Basilio para desconsiderar o processo perfume → perfumar como uma conversão é que o elemento -a que entra na formação desses verbos não se limita à conjugação do verbo, mas constitui o tema derivante para formações posteriores, como vemos em [[delimita]Vção]S, [[contenta]Vmento]S, [[filtra]Vgem]S, [[emociona]Vnte]A etc.,configurando-se, pois, como lexema verbal. (BASILIO & MARTINS, 2002, p. 380) Ainda aqui, não é possível considerar o argumento da autora pertinente, já que o fenômeno apontado não se restringe a formas derivadas. Se a construção delimitação é formada com a adjunção do sufixo -ção ao tema verbal derivado delimita-, acontece exatamente o mesmo com a construção captação, por exemplo, 73 em que o tema capta- é primitivo; ou com tratamento, em que o tema trata- é também primitivo. Ou seja, o fenômeno apontado pela autora não corrobora a tese de que o -a dos temas delimita-, contenta-, filtra- ou emociona- seja um sufixo por não se limitar à conjugação do verbo, já que esse elemento também aparece, com a mesma função, em derivados de verbos primitivos. Em síntese, não concordamos com Basilio quando se defende a tese de que o elemento -a de filtrar é um sufixo derivacional, mas tampouco consideramos como um caso de conversão, pelo menos não da forma como é tradicionalmente definida. Acreditamos que seja uma conversão “lato sensu”, mas que se define melhor como reenquadre morfológico, que é o tipo de processo que estamos propondo. 4.5. As formações pref-X-ar Considera-se tradicionalmente que as formações parassintéticas, isto é, com adjunção simultânea de um prefixo e de um sufixo a uma base, englobam as formações do tipo pref-X-suf-vtverbal-(r) (como em amolecer) e do tipo pref-X-a(r) (como em encerar). Basilio defende essa posição, argumentando que, se não se considerar o elemento final -a(r) como um sufixo, “teríamos de considerar possíveis processos de mudança de classe por prefixação, o que torna sobremaneira mais complexa a descrição dos processos de formação de palavras em português.” (BASILIO, 1993, p. 301). Na verdade, o que torna a descrição de processos de formação de palavras em uma língua mais simples ou mais complexo é a própria língua. Se os processos são poucos e simples, a descrição é simples; se são muitos e/ou complexos, a 74 descrição torna-se complexa. Tentar criar generalizações que não se sustentam empiricamente não torna a descrição mais simples, e sim mais imprecisa. Não parece, no entanto, que as formações do tipo pref-X-ar sejam um caso de prefixação heterocategorial. Basilio, ao lado da crítica a respeito da mudança de classe, faz a seguinte observação: O problema na modificação da descrição de processos como os envolvidos em desossar, encurtar etc, não se limita à perda de generalização de que prefixos não são usados para fins de mudança de classe em português. Temos, de acréscimo, uma situação bem mais complexa, envolvendo a mistura de prefixação com conversão, o que é, no mínimo, estranho, dado que normalmente se entende por conversão a mudança de classe sem nenhuma operação morfológica associada. (BASILIO, 1993, p. 301) Outros autores, no entanto, não consideram esse processo híbrido tão estranho assim. Ao contrário de Basilio, pelo menos duas autoras, Villalva (2003) e Rio-Torto (1998), consideram que as formações do tipo empalidecer e esfriar são processos de tipos diferentes. Villalva, apesar de se referir aos dois tipos de formação como parassintéticas, separa-as em formações com prefixo e sufixo (como amolecer) e em formações com prefixo e sem sufixo, derivadas por conversão (como alisar) (cf. Villalva, 2003, p. 955). Rio-Torto (1998, p. 211 et seq.) tem uma visão diferente em relação às formações em foco. O processo tradicionalmente considerado como parassíntese, isto é, um processo simultâneo de prefixação e sufixação, é considerado por essa autora como uma descrição equivocada, sendo rejeitada em favor do que ela chama de “circunfixação”, ou seja, “a adjunção simultânea de um operador descontínuo, do tipo en-...-iz- (encolerizar), a-...-ec- (amadurecer), en-...-ec- (ensurdecer), a uma base, dando origem a um produto heterocategorial” (op. cit, p. 214). Não importa, neste trabalho, se o conceito de circunfixação é mais adequado que o de parassíntese; o ponto importante é que essa autora considera os verbos do tipo 75 agrupar, aclarar etc como “formados por prefixação, pressupondo-se que esta tenha poderes heterocategoriais, ou por conversão, ocorrida antes ou após a adjunção do prefixo, ou por força desta” (RIO-TORTO, 1998., p. 220). Como se pode ver, as duas possibilidades rejeitadas por Basilio em favor da cumulação sufixo derivacional / vogal temática verbal no segmento –a(r) são as únicas aceitas como possíveis por Rio-Torto. Concordamos em parte com a visão dessa autora, de que essas formações são um processo híbrido de prefixação com conversão. Na verdade, essa conversão “lato sensu” (em que há associação de operações morfológicas) deveria ser considerada como um caso do processo que está sendo proposto neste trabalho, o reenquadre morfológico, combinado com a prefixação. Nesse tipo de processo, teríamos um esquema semelhante ao da figura 13, mas com duas diferenças: a primeira, óbvia, é de que a direção da formação é da construção nominal para a verbal. A segunda é de que, na formação esquematizada pela figura 13, o elemento responsável pela formação da construção nominal é o sufixo; nesta formação, há uma combinação de acréscimo de prefixo com o elemento que caracteriza os verbos como categoria, ou seja, a vogal temática verbal. Atente-se que, apesar da coincidência fonológica, o -a de beleza e o -a de embelezar são dois elementos mórficos distintos. Eis o esquema deste tipo de formação: 76 belez - a CONSTRUÇÃO NOMINAL embeleza - a - (r) CONSTRUÇÃO VERBAL emCONSTRUÇÃO PREFIXAL FIGURA 15 77 5. AS CONSTRUÇÕES GRAMATICAIS X-o / X-a Este capítulo é capital na argumentação deste trabalho; é onde será desenvolvida a hipótese do reenquadre entre construções de gênero. No item 5.1, argumentaremos em favor de se considerar que existe uma relação intrínseca entre a noção gramatical de gênero e a noção extralingüística de sexo. Além disso, assumimos que há uma relação também direta entre o gênero e as vogais temáticas que formam as construções. Tanto uma relação quanto a outra têm um núcleo prototípico e irradiações menos prototípicas a partir desse núcleo. No item 5.2, argumentamos em favor de não se estabelecer nenhuma diferença entre o que tradicionalmente se considera desinência de gênero e as vogais temáticas. A seguir, será desenvolvida a hipótese do reenquadre entre construções de gênero, tanto na construção básica (do tipo menino / menina) quanto na construção decorrente (do tipo jarro / jarra). Por fim, será apresentada a hipótese do reenquadre simultâneo à combinação entre construções. 5.1. Vogais temáticas e gênero 5.1.1. Vogal temática A literatura especializada na área de lingüística é parca em informações a respeito do que chamamos de vogal temática ou índice temático, especialmente no que se refere à vogal temática nominal. Dos dicionários de lingüística consultados, somente os originalmente em língua portuguesa e um único originalmente em língua estrangeira trazem algum verbete relativo ao assunto. Câmara Jr., no verbete 78 “tema”, define índice temático como um segmento fônico com que o radical se amplia e que serve de característica mórfica para um conjunto de vocábulos de mesma espécie (CÂMARA Jr., 1977, p. 231). Acrescenta, ainda, a informação de que, em português, o índice temático é uma vogal. Jota (1976, p. 349), no seu dicionário, considera sinônimos os termos “índice temático” e “vogal temática”, definida como “vogal destacável pela análise, que aparece antes das desinências”. Acrescenta, ainda, a informação de que podem ocorrer tanto em formas verbais quanto nominais. Dos dicionários consultados escritos originalmente em outro idioma, nem Crystal (1985) nem Trask (2004) contemplam a vogal temática com um verbete. Somente Dubois et alii (1973, p. 582) fazem referência a esse elemento mórfico, mas de forma muito sucinta: “vogal temática é a que se acrescenta à raiz de um morfema para formar o tema”. Algumas obras especificamente sobre morfologia fazem referência direta à vogal temática. Zanotto (1986, p. 39) assim a define: “é um segmento fônico que se acrescenta ao radical (primário ou não) para agrupar vocábulos (nomes e verbos) em categorias.” O autor chama atenção para a distinção entre a vogal temática –a (como em artista, telefonema e borracha), e o que ele considera, corroborando a visão de Câmara Jr., a desinência de gênero –a (como em mestra, bela, nova). Segundo esse autor, a finalidade da vogal temática é ser acrescentada ao radical para formar o tema, que serve de base para o acréscimo de desinências. Zanotto considera atemáticos apenas os vocábulos oxítonos terminados em vogal; os terminados em consoante apresentariam tema em –e, cuja vogal temática só apareceria nas formas de plural: mares, vezes, males. Kehdi (1990, p. 34) identifica as vogais temáticas nominais e verbais, as quais teriam como função marcar classes de nomes e verbos. Esse autor discorda da 79 descrição feita por Câmara Jr., que opõe formas masculinas não-marcadas a formas femininas marcadas pela desinência –a. Segundo Kehdi (1990), e ratificando a tradição gramatical portuguesa, há uma oposição de gênero entre –o e –a; sendo assim, para esse autor, as vogais finais de moço e porca seriam desinências de gênero, enquanto as terminações de carro e porta seriam vogais temáticas nominais. As gramáticas tradicionais também trazem poucas informações a respeito das vogais temáticas nominais. Rocha Lima (1972, p. 196) diz que “vogal temática é o morfema que caracteriza nomes e verbos portugueses, reunindo-os em classes morfológicas estanques.” Acrescenta as informações de que as vogais temáticas nominais, sempre átonas, podem ser –a, -o e –e, e são atemáticos os nomes acabados em consoante e vogal tônica. Bechara (1999, p. 337) não define a vogal temática, mas faz referência a ela quando diz que o tema é “o radical acrescido da vogal temática e que constitui a parte da palavra pronta para funcionar no discurso e para receber a desinência ou sufixo.” Os exemplos dados englobam temas nominais (“livro-”) e verbais (“trabalha-”). Cunha e Cintra (1985), no capítulo sobre estrutura das palavras (p. 78 et seq.), identificam, dentre outros morfemas, “as vogais que caracterizam a conjugação dos verbos” (p. 80). Ou seja, esses autores não reconhecem a existência das vogais temáticas nominais ─ ou, se a reconhecem, não se manifestam a respeito. Villalva (2003, p. 921 et seq.), uma das autoras da Gramática da língua portuguesa, editada em Portugal, tem uma visão um pouco diferente em relação ao assunto abordado. Segundo a autora, as classes temáticas nas quais se distribuem verbos, nomes e adjetivos são determinadas por sufixos chamados de “constituintes 80 temáticos”. Deixando clara a diferença mórfica existente entre os constituintes verbais e nominais, a autora lhes dá diferentes nomes: vogais temáticas e índices temáticos, respectivamente (ao contrário da tradição brasileira, que não diferencia, na nomenclatura, um elemento mórfico do outro). Essa autora enumera três critérios que definem a inclusão dos nomes (substantivos) e adjetivos em classes temáticas: o primeiro refere-se ao índice propriamente dito, que pode ser –a, -e, -o ou ∅. A autora distingue, ainda, nomes com índice ∅ de nomes atemáticos: os primeiros são aqueles cujo índice temático aparece nas formas de plural, mas não nas de singular (como apresentador, mar e furriel ─ exemplos da própria autora), enquanto os segundos são aqueles que nunca apresentam índice temático, como avô, avó, tatu e café. O segundo critério distingue nomes variáveis de invariáveis; o terceiro nomes de gênero masculino de nomes de gênero feminino. Cruzando-se todos esses fatores, a autora apresenta nada menos que vinte e três diferentes classes temáticas relativas aos substantivos, e nove diferentes classes para os adjetivos. O único autor que faz um questionamento mais amplo a respeito da vogal temática é Rosa (2000, p. 128 e ss.), que tem em sua obra um subcapítulo intitulado “E a vogal temática? (Ou: Afinal, o que é uma vogal temática?)”. A autora dá a definição tradicional de vogal temática: “é um formativo que expande a raiz para a constituição do tema, a base para as marcas flexionais.” Adotando a posição de Anderson, que considera flexionais as categorias relevantes para a sintaxe, a autora conclui que não é um elemento flexional, já que, segundo ela, não se pode apontar nenhuma relação entre a vogal temática e a sintaxe. Rosa conclui dizendo que a vogal temática “seria algo que poderíamos, como Aronoff (1994), considerar morfologia pura: formas em relação com outras formas”. 81 Gonçalves (2005, p. 17), considera as vogais temáticas um problema para o critério estabelecido por Anderson. Segundo aquele autor, esses elementos são insensíveis para a sintaxe, apesar de terem uma clara função de caráter flexional, que é expandir a raiz para a formação do tema, que por sua vez é a base para o acréscimo de desinências. Será feita neste trabalho uma proposta de revisão do papel das vogais temáticas nominais no português. Não concordamos que esses elementos sejam invisíveis para a sintaxe. Nos itens 5.1.3 e 6.2.1, será aprofundado o debate a respeito dessa invisibilidade da vogal temática para os processos sintáticos. 5.1.2. Gênero e cognição O gênero no português tem sido objeto de numerosos trabalhos acadêmicos, dentre os quais podemos citar Azeredo (1978), Pereira (1987), Botelho (1996), Araújo (2003), Deus (2003), Silva (2004), além dos trabalhos pioneiros de Câmara Jr. (1942 e 1972). O que todos esses trabalhos têm em comum é uma abordagem prioritariamente tecnicista, que ressalta a dificuldade ou impossibilidade de uma sistematização coerente da totalidade dos substantivos do português no que diz respeito ao gênero. Bechara (1999, p. 133) traduz a conclusão a que muitos desses autores chegaram: “a distinção do gênero nos substantivos não tem fundamentos racionais, exceto a tradição fixada pelo uso e pela norma”. Essa conclusão está em concordância com o que Câmara Jr. já tinha dito quase sessenta anos antes, a respeito do gênero nas línguas em geral: “o gênero nominal, à luz da lingüística geral, é uma visão caleidoscópica, em que variam consideravelmente o número de 82 classes, as linhas diretrizes da classificação e a maior ou menor coerência com que essas linhas são obedecidas” (CÂMARA Jr., 1942, p. 132). Essa abordagem mais racional e científica se contrapôs a uma visão anterior, menos técnica, de gramáticos que não dispunham de um arcabouço teórico suficiente para uma descrição adequada dos fatos da língua. Pereira (1987) faz referência ao modo como esses gramáticos abordavam o gênero, e à evolução do pensamento lingüístico no que diz respeito a essa abordagem: Para outros gramáticos, o gênero gramatical é o “sexo suposto”, o “sexo por extensão, figuradamente”, havendo também os que opõem o “sexo real” ou “natural” ao “sexo imaginário” ou “gramatical” das palavras. Progressivamente, contudo, os gramáticos, ao se afastarem da definição semântica do gênero das palavras, abandonaram também as alusões figuradas aos sexos das coisas e dos vocábulos. Passaram a definir o masculino e o feminino como duas classes gramaticais nas quais os vocábulos se distribuem, com uma função também de distinguir machos e fêmeas nos substantivos referentes a seres vivos. (PEREIRA, 1987, p. 24-5) Não pomos em dúvida o valor das abordagens recentes que procuram analisar o gênero de uma forma mais objetiva; no entanto, como a nossa perspectiva de análise é cognitiva, o que nos interessa no momento é exatamente essa visão mais ingênua e mais subjetiva evidenciada pelos gramáticos mais antigos. Essa é a noção de gênero que têm intuitivamente os falantes leigos, que não se “contaminaram” por um pensamento mais racional. Câmara Jr. faz referência a essa noção intuitiva da relação entre gênero gramatical e sexo: Franz Bopp, o velho e verdadeiro criador da gramática indo-européia, admitiu que os homens primitivos indo-europeus tinham transferido a noção de sexo do reino animal para todas as coisas do universo, que assim lhes aparecia como um grande conjunto de machos e fêmeas. (CÂMARA Jr., 1942, p. 133) Uma evidência disso é o fato, que de maneira alguma é uma coincidência, de que o mesmo par de palavras é usado para se referir a um e outro conceito: gênero / sexo masculino, gênero / sexo feminino. Essa relação ocorre porque o gênero, um fenômeno lingüístico, é conceptualizado em termos de sexo, uma característica 83 biológica. Essa forma de ver o mundo não é um fenômeno ocasional, isolado; pelo contrário. Isso fica evidente na afirmativa de Lakoff e Johnson (1980, p. 127) de que “a maior parte do nosso sistema conceptual é metaforicamente estruturado, isto é, que os conceitos, na sua maioria, são parcialmente compreendidos em termos de outros conceitos”. Além disso, nossa compreensão do mundo como um todo, e o conhecimento apreendido desse mundo ― incluindo aí o conhecimento lingüístico ― se dá a partir dos conceitos mais básicos, relacionados diretamente à nossa experiência corporal. Lakoff e Johnson (op. cit., p. 129) citam como parte desse grupo os seguintes conceitos centrais da nossa experiência corpórea: para cima – para baixo, dentro – fora, frente – atrás, luminoso – sombrio, quente – frio, macho – fêmea. É, portanto, não só perfeitamente admissível, mas também justificável a relação que o falante comum estabelece entre gênero e sexo, conceptualizando o primeiro conceito, mais abstrato, em termos do segundo, mais concreto e mais básico. Quanto ao aspecto cultural, há, historicamente, uma assimetria na relação entre os dois sexos. Como o gênero é conceptualizado em termos de sexo, essa assimetria refletiu-se também na língua. A diferença de prestígio entre os sexos remonta a 10.000 anos atrás. A antropóloga Helen Fisher relata que, com a invenção do arado, os povos se fixaram nas terras e a mulher perdeu sua antiga função de buscar alimentos. Perdeu sua independência econômica e seu papel passou a ser o de gerar filhos [...]. O papel dos homens tornou-se muito mais importante. Eram eles que guerreavam e aravam o solo, e aconteceu então uma virada ― o que era uma igualdade entre os sexos transformou-se em mulheres subordinadas e homens dominadores. (FISHER, 1993, p. 30-1) Esses foram os primeiros passos para o estabelecimento gradativo do status do sexo masculino como central, como o padrão de comportamento humano, relegando o feminino à marginalidade. 84 No início da civilização ocidental, entre os romanos, prevaleceu a idéia de que havia uma “inferioridade natural” das mulheres (cf. MACEDO, 1990, p. 14). Essa idéia foi reforçada com a supremacia cristã, quando os mitos originais da civilização romana foram substituídos pelos judaicos, dentre os quais o mito da criação de Eva, transcrito a seguir, em que a condição de inferioridade da mulher fica explícita: “Então o Senhor Deus fez cair um sono profundo sobre o homem e ele adormeceu. Tirou-lhe uma das costelas e fechou o lugar com carne. Depois, da costela tirada do homem o Senhor Deus formou a mulher e a apresentou ao homem.” (GÊNESIS 2, v. 21-2). Com essa dupla herança no que diz respeito à inferiorização feminina, o pensamento que se seguiu, na Idade Média, não podia ser diferente. Um exemplo desse pensamento é dado pelo historiador Macedo: Santo Agostinho, o maior representante do pensamento cristão em sua fase de afirmação no Ocidente, no De Genesi contra Manicheos (Contra os maniqueus), considerava a sujeição feminina na ordem natural das coisas. O homem deveria ser governado pela sabedoria divina. A mulher, ao contrário, deveria ser governada pelo homem, tal qual o corpo pela alma, a razão viril dominando a parte animal do ser. (MACEDO, 1990, p. 66) Em síntese: formou-se, culturalmente, desde que se tem notícia, a noção de que o masculino é o elemento prototípico ― afinal, segundo um dos mitos básicos na formulação do pensamento ocidental, o homem foi criado à própria imagem e semelhança de Deus. O feminino, por sua vez, segundo esse mesmo mito, foi criado a partir do masculino: é, portanto, um elemento marginal, afastado desse protótipo. Essa noção, que é cultural e, por isso, ao mesmo tempo, cognitiva ― nossa cognição se fundamenta não só em experiências básicas corpóreas, mas também em nossas bases culturais ―, vai ter conseqüências também lingüísticas. Uma delas é o padrão, praticamente geral, de que o feminino é morfologicamente formado a 85 partir do masculino. Os termos masculinos são mais básicos e preexistem aos femininos. Esse fato fica saliente nas formações por sufixação, exemplificadas a seguir: duque → duquesa barão → baronesa conde → condessa profeta → profetisa galo → galinha tigre → tigresa Outra conseqüência da prototipicidade do masculino é o fato de esse gênero ser o mais geral na língua, semanticamente menos marcado, enquanto o feminino é sempre mais específico, semanticamente mais marcado. Se num grupo escolar houver somente elementos do sexo feminino, vamos nos referir a esses elementos como “as alunas”, no feminino. Se, no entanto, um único elemento do sexo masculino for acrescentado a esse grupo, obrigatoriamente temos de passar a dizer “os alunos”, já que o masculino é mais geral. Além disso, todas as concordâncias com elementos que não são marcados com gênero, como uma oração, por exemplo, são no masculino. Observe-se o adjetivo no masculino, concordando com a oração subjetiva “viver”: (1) Viver é bom. (2) É ótimo que você tenha aceitado o convite. Em resumo: conceptualizamos o gênero em termos de sexo; as diferenças em relação a como, cognitivamente, os falantes percebem um e outro sexo são culturalmente motivadas e se refletem no gênero, tornando o masculino o gênero prototípico, e o feminino afastado desse protótipo. 86 5.1.3. A relação entre vogal temática e gênero Com base em algumas evidências, apresentadas a seguir, propõe-se neste trabalho uma nova visão a respeito do papel das vogais temáticas em relação aos fenômenos sintáticos. A hipótese que pretendemos demonstrar aqui é de que existe uma estreita relação entre as vogais temáticas e o gênero dos substantivos, o que tem conseqüências na configuração sintática, via concordância. A primeira dessas evidências é que, quando analisamos os pares de construções que são o foco central deste trabalho (mato / mata, barco / barco, horto / horta etc.), verificamos que em 100% das ocorrências as construções X-o são de gênero masculino e as X-a são femininas. Um fato categórico como esse não pode ser mera coincidência. Ao se ampliar o foco de visão para o conjunto dos substantivos da língua, verifica-se que nesse conjunto a relação entre vogal temática e gênero não é categórica, já que há construções do tipo X-a que são masculinas, como mapa e cometa, e construções de gênero feminino em X-o, como tribo, libido, imago e virago16. No entanto, esses vocábulos são minoria absoluta no conjunto dos substantivos da língua. Termos femininos em –o só há, ao que consta, os quatro exemplos citados. Os termos masculinos em –a são mais numerosos, mas mesmo assim relativamente poucos. Desses termos, a maioria é formada por empréstimos do grego, como cometa, fantasma, problema, esquema, fonema etc. Vocábulos masculinos com tema em –a oriundos do latim, como dia, mapa e poeta, são raríssimos. No próprio latim, já era possível estabelecer uma relação entre as declinações e o gênero: Câmara Jr. (1979, p. 74) afirma que na 1ª declinação predominavam os substantivos femininos, na 2ª os masculinos e os da 3ª se 16 Dessas, as únicas de uso corrente são as duas primeiras. E virago, coincidentemente, tem o sentido de ‘mulher masculinizada’. 87 dividiam em masculinos e femininos. Esse estado de coisas permanece em português, em que os substantivos com vogal temática –a são predominantemente femininos, os com tema em –o são masculinos (salvo as exceções citadas) e os de tema em –e dividem-se em masculinos e femininos. Os substantivos atemáticos são também basicamente masculinos, como bambu, caqui, café, sofá, vatapá. As poucas exceções são os vocábulos ralé e fé e os terminados em /a/ nasal: maçã, romã, jaçanã. Muitos dos contra-exemplos citados, na verdade, são decorrentes do fato de, em português, os sufixos serem atribuidores de gênero. Há, em português, sufixos formadores de palavras femininas, como –ção (consolação, declinação, coroação) e –ez (viuvez, estupidez, sensatez); sufixos formadores de palavras masculinas, como –al (laranjal, pinheiral) e –mento (sofrimento, salvamento); e, por fim, sufixos que podem formar palavras masculinas ou femininas, como –eiro(a) (jaqueira, cajueiro) e –inho(a) (mesinha, livrinho). A esse último grupo pertencem dois sufixos que formam palavras masculinas ou femininas, mas sem variação de forma: os sufixos –ista (o/a artista, o/a tenista, o/a lingüista) e –a (o/a autodidata, o/a espírita). Esses sufixos justificam uma parte das exceções, ou seja, palavras masculinas que no entanto terminam em –a. Outra exceção causada pelo gênero intrínseco de um sufixo são os vocábulos gregos exemplificados acima, a maioria deles formados pelos sufixos -ema e –oma ― alguns dos quais não segmentáveis no momento atual da língua ― (fonema, morfema, esquema, problema, telefonema, genoma, sarcoma, tracoma). Outra evidência da relação estreita entre vogais temáticas e gênero é de caráter cognitivo: os falantes, de modo geral, estabelecem uma relação imediata entre construções em –o e o gênero masculino e construções em –a e o gênero feminino. Kehdi (1990, p. 30) lembra que na linguagem popular espontânea há 88 criações (inexistentes na língua culta) que opõem formas masculinas em –o a outras em –a que eram originalmente femininas: coiso, corujo, crianço, madrasto. Outro argumento é que os falantes do português estranham nomes próprios femininos em –o, como o da rainha da antiga Cartago, Dido, ou nomes femininos japoneses, como Noriko. Outro forte argumento em favor da tese de que o falante relaciona intuitivamente os gêneros e as vogais temáticas foi a pesquisa desenvolvida por Name (2002), em sua tese de doutorado, a respeito da aquisição do gênero por crianças pequenas. A hipótese da autora é de que os determinantes são os principais responsáveis pela atribuição de gênero a um substantivo. Na pesquisa, foram contadas às crianças histórias curtas utilizando objetos com nomes inventados, terminados em –a, –e ou –o átonos. Havia nas histórias objetos cujos nomes eram masculinos com as três terminações e objetos com nomes femininos também com todas as terminações. O gênero de cada nome era explicitado no próprio texto apresentado às crianças, por intermédio dos determinantes. Ao final de cada história, fazia-se à criança uma pergunta, à qual ela era obrigada a responder identificando o gênero do substantivo indicado na pergunta. Nas respostas, 98% das crianças relacionaram perfeitamente o gênero masculino a um substantivo terminado em –o, e gênero feminino a um substantivo terminado em –a. No entanto, quando essa relação era invertida (feminino em –o e masculino em –a), o nível de acerto caiu para 80,29%. Ou seja, mesmo com o gênero já tendo sido explicitado pelo narrador da história, ainda assim quase 20% das crianças associaram o feminino ao –a e o masculino ao –o. Os dados de Name de fato comprovam que a indicação do gênero no determinante é eficaz na aquisição do gênero de um substantivo. Entretanto, não é ocasional o fato de uma parcela razoável das crianças ter trocado 89 o gênero dos substantivos, mesmo depois de esse gênero ter sido explicitado. Esses dados comprovam a hipótese de que os falantes estabelecem uma relação direta entre o gênero masculino e a vogal temática –o e o gênero feminino e a vogal temática –a. Outro trabalho que reforça essa tese é um artigo de Figueira (1996), sobre aquisição da linguagem, no qual a autora apresenta uma série de exemplos concretos da relação que os falantes (neste caso específico, crianças de dois a cinco anos de idade) estabelecem entre a terminação –a e o gênero feminino e a terminação –o e o gênero masculino. Eis alguns dos exemplos: (3) “Faça essa fada ser uma fada boa e esse fado ser ruim.” (4) “Bom dio é para homem, bom dia é para mulher.” (5) “― Que ele fez com ela? ― Deu um tapo na cara.” (6) “Eu não gosto de pai careco.” (7) “Eu vou na dentista, a Renata vai no dentisto.” (8) “Ela é a minha fona.” Os trabalhos de Name e Figueira são a respeito de aquisição da linguagem; utilizam, portanto, informantes em idade de aquisição. Para tentar comprovar que a associação entre as terminações das palavras e o gênero se mantém na idade adulta, elaboramos um teste, no qual os informantes deveriam relacionar algum gênero a construções do tipo X-o, X-a, X-e e X-∅. A exemplo do teste feito por Name, utilizamos substantivos inventados, com a diferença de que os informantes não eram informados a respeito do gênero desses substantivos; deveriam, ao contrário, atribuí-lo eles mesmos. O teste foi apresentado a 56 informantes, todos adultos, de ambos os sexos, com idades variando entre 18 e 40 anos. O teste constituía num pequeno texto, contextualizando o uso das palavras inventadas, ao 90 fim do qual os informantes deveriam relacionar adjetivos que denotam cores a esses substantivos, fazendo, naturalmente, a concordância de gênero. Nenhuma explicação prévia foi dada aos informantes, ou seja, nenhum deles sabia qual o objetivo do teste. O texto do teste está no anexo 1. Foi dada aos informantes a instrução para que usassem letra maiúscula de imprensa, para que se evitassem confusões entre a letra o e a letra a, que podem ser facilmente confundidas em caligrafia cursiva. Dos 56 testes aplicados, sete foram descartados, porque os informantes atribuíram simultaneamente gênero masculino e feminino ao mesmo substantivo. Um deles, por exemplo, escreveu que os “carubos” eram “vermelhos e pretas”. Dos 49 restantes, os resultados percentuais na atribuição do gênero a cada uma das construções foram os seguintes: TIPO DE CONSTRUÇÃO ATRIBUIÇÃO DE GÊNERO MASCULINO ATRIBUIÇÃO DE GÊNERO FEMININO X-o 94,87% 5,13% X-a 3,85% 96,15% X-e 84,62% 15,38% X-∅ (terminada em –i) 78,85% 21,15% X-∅ (terminada em –ã) 11,54% 88,46% Como podemos comprovar pela tabela acima, não só as crianças, mas também os falantes adultos associam intuitivamente a construção do tipo X-a ao gênero feminino e a construção do tipo X-o ao gênero masculino. Os dados comprovam também que os falantes intuem que as construções em X-∅ são predominantemente masculinas, a não ser quando X (ou, na nomenclatura tradicional, o radical) termina em /a/ nasal: nesse caso, a grande maioria dos 91 falantes considerou que eram construções femininas. Nas construções em X-e houve uma predominância de atribuição de gênero masculino, talvez devido ao fato de o masculino ser mais prototípico ― ou seja, quando não se tem nenhum indício de qual gênero usar, dá-se preferência ao masculino. De todos os dados, os mais conclusivos, no entanto, são os que relacionam os gêneros às construções X-o e X-a. Com esta pequena mostragem, e com os argumentos anteriores, espero ter apresentado evidências suficientes para comprovar a primeira hipótese apresentada em 1.2, aquela que diz que há uma relação direta entre a vogal temática e o gênero dos substantivos. 5.2. Vogal temática x desinência de gênero Conforme já apresentado brevemente no item 5.1.1, há duas principais propostas de análise do aspecto morfológico do gênero no português. Nas duas propostas, há uma oposição entre vogais temáticas e desinência(s) de gênero. Considera-se tradicionalmente que a desinência de gênero só ocorre em vocábulos referentes a seres sexuados, indicando o sexo desses seres. Dessa forma, somente em vocábulos como garoto / garota ou porco / porca ocorreria esse tipo de morfema. As vogais átonas finais de substantivos referentes a seres não-animados são consideradas vogais temáticas. Das duas descrições propostas, a mais tradicional é a que opõe as desinências de gênero -o, como a vogal final de urso, e -a, como em ursa, constituindo exceções todos os casos que não se enquadrem aí. Essa descrição é adotada, por exemplo, por Cunha e Cintra (1985), Jota (1981) e Kehdi (1990). A outra descrição foi feita por Câmara Jr., o qual propôs que somente o elemento -a 92 seja considerada desinência de gênero; a forma masculina seria não-marcada morfologicamente, a exemplo do singular, no português. Essa proposta de análise englobaria um número bem maior de formas de masculino, antes relegadas à lista de exceções, tais como português, professor, peru, parente. Assim, a presença do elemento -a ― que seria considerado a única desinência de gênero ― indicaria o gênero feminino; a ausência desse morfema indicaria masculino. Nessa proposta, o -o de menino e urso é considerado uma vogal temática, igualando estruturalmente essas palavras a teto e nabo. A proposta de Câmara Jr. passou a ter um grande número de adeptos, dentre os quais até mesmo o gramático Rocha Lima (LIMA, 1972). As duas propostas podem ser assim sintetizadas: SERES NÃO-ANIMADOS SERES ANIMADOS –a PROP. TRADICIONAL d.g. CÂMARA JR. d.g. –o EXEMPLO gata d.g. EXEMPLO gato v.t. –a v.t. EXEMPLO mesa v.t. –o v.t. EXEMPLO carro v.t. Neste trabalho, no entanto, não consideramos pertinente a diferenciação entre desinência de gênero e vogal temática, porque essa distinção pode causar alguns problemas ou inconsistências na análise. A primeira delas ocorre no caso dos elementos polissêmicos. Na polissemia, há uma expansão do significado de um vocábulo, por metáfora ou metonímia, como nos exemplos a seguir: (9) Pedro feriu-se em uma das pernas. (10) Esta cadeira tem uma das pernas mais curta. Na sentença (9), o vocábulo perna está sendo usado num sentido mais básico, e em (10) há uma extensão metafórica. São, no entanto, duas ocorrências do 93 mesmo vocábulo; a polissemia não cria novos vocábulos, e sim novos usos para vocábulos já existentes. Acontece o mesmo com os vocábulos porca ou cachorra: o primeiro pode significar ‘fêmea do porco’ ou ‘peça metálica, munida de um furo cilíndrico, cuja superfície é rosqueada para receber um parafuso’17; o segundo pode significar ‘fêmea do cachorro’ ou ‘arma de fogo’, na linguagem dos marginais (certamente tendo como fundamento da metáfora a noção de ‘ferocidade’). Temos, então, o vocábulo porca referindo-se a: A) um ser animado do sexo feminino, em oposição a porco; nesse caso, a vogal final deve ser considerada uma desinência de gênero; e B) um ser não-animado; nesse caso, o -a final deve ser considerado uma vogal temática. O mesmo ocorre com o termo polissêmico cachorra, que vai ter numa acepção uma desinência de gênero e em outra uma vogal temática. É no mínimo estranho que, num uso básico, um vocábulo tenha uma estrutura morfológica e num uso metafórico passe a ter outra ― sendo que a forma é rigorosamente a mesma. Mais estranho ainda seria o caso de periquita. Esse vocábulo, de uso popular, significa ‘órgão sexual feminino’. Foi claramente criado a partir de periquito, formando um feminino de uso apenas metafórico18, já que periquito é um substantivo epiceno. Isso causa uma situação conflitante: periquita tem um referente nãoanimado; sendo assim, o -a final deveria ser considerado uma vogal temática. Ao mesmo tempo, é a forma feminina de periquito, devendo, portanto, o -a final ser considerado uma desinência de gênero. 17 Segundo Houaiss (2001, p. 2263), a razão dessa metáfora é que o órgão sexual do porco tem a forma helicoidal, semelhante à rosca de um parafuso. 18 São comuns nomes de animais, principalmente aves, metaforizando os órgãos sexuais, tanto o masculino quanto o feminino (cf. pinto, peru, passarinho, passarinha). 94 Se considerarmos, como na descrição tradicional, o -o final de nomes referentes a seres animados também uma desinência de gênero, esse problema se estende a outros vocábulos que também têm extensões metafóricas a partir de seu significado básico, como gato (‘instalação irregular feita para furtar energia elétrica’), macaco (‘ferramenta para elevar veículos’), pinto ( ‘órgão sexual masculino’). O segundo problema é em relação aos vocábulos femininos que têm o gênero motivado pelos referentes, mas não formam pares morficamente equivalentes. Esses vocábulos se distribuem em dois grupos: os pares heteronímicos, como ovelha, cabra, vaca, e os femininos formados por sufixação, como sacerdotisa, condessa ou duquesa. Como não existe uma forma morficamente equivalente de masculino, o -a final desses vocábulos é considerado, na descrição tradicional, uma vogal temática. É difícil, no entanto, admitir que não existe absolutamente nenhuma relação entre o gênero dessas palavras e o elemento final -a, que claramente faz referência ao feminino. O terceiro e último problema diz respeito ao conceito estruturalista de morfema zero (∅). Segundo Jota (1981, p. 215), um morfema ∅ é uma “ausência de morfema com caráter distintivo”, ou seja, uma determinada posição na estrutura do vocábulo pode estar preenchida ou não, sendo que o não-preenchimento é significativo. Por exemplo, no par casa∅ / casas, o singular é interpretado pelo não preenchimento da posição da desinência de número. Outro exemplo seria a forma verbal canta∅∅, em oposição a cantávamos, em que as duas posições vazias fazem com que interpretemos o primeiro morfema ∅ como presente do indicativo e o segundo como 3ª pessoa do singular. Na oposição de gênero, como em filho / filha, por exemplo, foi estabelecido que há uma oposição entre um morfema ∅ de 95 masculino e a desinência de gênero -a de feminino. O problema é que, ao contrário dos outros exemplos, a posição ocupada pela desinência de gênero -a não está vazia na forma masculina; está preenchida pela vogal temática -o19. Isso faz com que ou se interpretem essas oposições como duas desinências de gênero, que é a descrição tradicional, ou se considere que a desinência de gênero e a vogal temática são paradigmaticamente equivalentes. Optamos, no entanto, por não adotar nenhuma das duas alternativas: por todas as razões expostas neste item, e pelo que ficou demonstrado no item 5.1.3, ou seja, que existe na verdade uma relação direta entre a vogal temática e o gênero ― não só em vocábulos relativos a seres animados ―, consideramos que não é pertinente a distinção entre desinência de gênero e vogal temática. Essa posição, apesar de contrária ao que os lingüistas brasileiros de modo geral adotam, não é inédita: Villalva (2003, p. 922) também não faz distinção entre esses dois elementos. No item dedicado às classes temáticas dos vocábulos, a autora enumera como exemplos de índices temáticos20 as vogais finais dos vocábulos aluna, mapa, mosca, casa (tema em -a); aluno, livro, modelo, ídolo (tema em -o); infante, abutre, gente, semente (tema em -e). Como se pode ver, essa autora põe no mesmo patamar vogais finais tanto de vocábulos referentes a seres animados como referentes a seres não-animados. Consideramos, pois, em consonância com Villalva, que não há diferença na constituição interna dos vocábulos mesa e menina, nem de livro e pato; todos os elementos átonos finais dessas palavras podem ser, conjuntamente, considerado vogais temáticas. 19 Somente em formas atemáticas, terminadas em vogal tônica ou consoante, como peru, francês ou cantor, a posição ocupada pela desinência de gênero vai estar vazia. 20 Villalva, conforme já assinalado em 5.1.1, distingue na nomenclatura vogais temáticas verbais de vogais temáticas nominais. A autora chama as verbais de “vogais temáticas”; as nominais chama de “índices temáticos”. 96 5.3. A construção básica X-o / X-a 5.3.1. Protótipos semânticos e formais Os substantivos, além de constituírem, em conjunto, uma construção, conforme visto em 4.3, internamente também se distribuem em subcategorias, as quais, por sua vez, também constituem construções. Essas categorias estão relacionadas a dois fatores: o primeiro deles, de caráter semântico, é o gênero dos substantivos. O segundo, de caráter formal, é a vogal temática que figura na construção. Foi visto, em 5.1.2, que o gênero dos substantivos é conceptualizado como uma metáfora de um dos conceitos básicos na cognição humana, que é a diferença entre macho e fêmea. Em uma parte dos substantivos relacionados a seres sexuados, essa relação não é metafórica; é referencial. Isso acontece nos pares de substantivos que têm uma forma para se referir ao sexo masculino e outra para o feminino, como homem / mulher, pombo / pomba, galo / galinha, bode / cabra, francês / francesa. Em relação ao significado, esse seria o núcleo prototípico da construção. A partir desse núcleo, irradiam outros conjuntos em que a relação com a noção de macho / fêmea é cada vez menos referencial. Desses conjuntos, o mais próximo do núcleo é o grupo de substantivos unigenéricos referentes a seres sexuados, como onça, juriti, borboleta. Na seqüência, vêm os substantivos com referência concreta relativos a seres não-sexuados e, por fim, os mais afastados do núcleo prototípico são os de referência abstrata. Não levando em consideração a forma, as construções de gênero podem ser assim esquematizadas: 97 HOMEM / MULHER GATO / GATA CANTOR / CANTORA DUENDE AGULHA PAZ MARIPOSA MAR TUBARÃO CARRASCO CARAMBOLA INAUGURAÇÃO CARRO GENTILEZA SOCIEDADE FIGURA 16 É interessante notar que, mesmo que a referência não esteja no sexo ― onça, por ser um substantivo feminino, não tem somente referentes do sexo feminino ― a conceptualização que está subjacente fica explícita em algumas situações. Nas histórias infantis, por exemplo, muito dificilmente apareceria uma personagem que se chamasse “Senhor Onça”. O gênero feminino do substantivo vai causar uma relação direta com o sexo feminino: a probabilidade maior é que a personagem seja “Dona Onça”. Da mesma forma, seriam “Dona Tartaruga”, “Seu Jabuti”, “Dona Lagartixa” e assim por diante. Com os substantivos abstratos, que têm uma referência muito mais distante da noção concreta de sexo, também acontece um processo semelhante. Quando são personificados, o sexo da personagem vai corresponder ao gênero do substantivo. Dessa forma, a Liberdade e a Justiça são personificadas como mulheres; o Amor e o Tempo são apresentados com forma masculina21. 21 Essa relação imediata só não vai acontecer com palavras relativas a seres humanos com alto índice de ocorrência, como pessoa ou criança. Nesse caso, o gênero não aciona a relação com sexo. Em palavras com menor ocorrência, acontece a relação com sexo: dificilmente um homem usaria a expressão “meu cônjuge” (que é uma palavra considerada pela gramática tradicional como sobrecomum) para se referir à própria esposa. 98 As construções de gênero também se agrupam de acordo com as vogais temáticas que figuram nos substantivos. Conforme mostrado no item 5.1.3, há uma relação entre vogal temática e gênero. O feminino é prototipicamente expresso pela vogal temática -a; o masculino pela vogal -o. Os nomes atemáticos se aproximam do núcleo prototípico do masculino, e os de tema em -e ficariam, numa configuração esquemática, eqüidistantes dos dois núcleos prototípicos. A representação esquemática da prototipicidade das vogais temáticas em relação ao gênero seria a seguinte: SUBSTANTIVOS MASCULINOS SUBSTANTIVOS FEMININOS + prototípico -o -a -∅ -e -a -e -∅ -o - prototípico FIGURA 17 Ao cruzarmos o esquema semântico com o formal, encontraríamos um núcleo prototípico mais restrito, representado pelos pares do tipo menino / menina, moço / moça, coelho / coelha, em que a noção de sexo está explícita e as vogais temáticas 99 são -a para feminino e -o para masculino. As inúmeras combinações entre as vogais temáticas utilizadas e a relação com sexo mais referencial ou mais metafórica formam uma gradação nas construções de gênero que partem do núcleo prototípico até chegar à zona mais periférica, em que há substantivos masculinos em -a e, mais afastados ainda do protótipo, femininos em -o. Todos os substantivos de tema em -e ficam numa zona neutra de prototipicidade, ou seja, não são prototipicamente masculinos nem femininos. O substantivo abstrato feminino com tema em -o libido seria talvez o mais afastado possível do protótipo. 5.3.1. O reenquadre entre as construções de gênero Foi proposto, no item 4.3, o processo de formação de vocábulos por reenquadre morfológico, no qual o vocábulo primitivo perde as características morfossintáticas da classe a que pertence e adquire as da classe em que está se reenquadrando. Um processo semelhante ocorre entre as subcategorias do substantivo: os elementos masculinos das construções se reenquadram como femininos. Dessa forma, menino, que é um exemplo da construção básica, perde o seu elemento caracterizador como uma construção de masculino, ou seja, a vogal temática -o, e se reenquadra em uma construção de feminino, recebendo a vogal temática -a, resultando na construção menina. Nessas construções, que são referentes a seres sexuados, os valores semânticos envolvidos são óbvios: as variações de sexo. Esse reenquadre também pode acontecer a partir das construções com tema em -e e em -∅, mas não são prototípicos. O esquema a seguir mostra o processo de reenquadre das construções de gênero: 100 + PROTOTIPICIDADE Tema em -o MASC 1 MASC 2 FEM - + PROTOTIPICIDADE - PROTOTIPICIDADE NEUTRA Tema em -e Tema em -∅ MASC 1 MASC 2 FEM MASC 1 MASC 2 FEM + PROTOTIPICIDADE - Tema em -a FEM 1 FEM 2 MASC FIGURA 18 Tema em -o: MASC 1: menino, pato, médico MASC 2: carro, livro, tucano FEM: libido, tribo Tema em ∅: MASC 1: peru, cantor, freguês MASC 2: sofá, maracujá, urubu FEM: fé, pá, ralé Tema em -e: MASC 1: mestre, elefante, parente MASC 2: pente, lustre, abutre FEM: ponte, árvore, esfinge Tema em -a: FEM 1: menina, pata, médica, mestra, elefanta, parenta, perua FEM 2: casa, mesa, cobra MASC: fantasma, poeta, mapa No esquema, os conjuntos representados pelo número 1 são os relativos a seres sexuados envolvidos no processo de reenquadre. Os conjuntos de número 2 são de vocábulos do mesmo gênero do primeiro grupo, mas não envolvidos no 101 processo. Os do terceiro grupo são substantivos do gênero inverso ao dos vocábulos envolvidos no reenquadre. A seta com linha mais cheia mostra o reenquadre prototípico: X-o → X-a. Os outros reenquadres, representados pelas setas com linha mais fina, também são possíveis, mas são menos ocorrentes. O reenquadre X-e → X-a ocorre, por exemplo,nas formações parente → parenta ou mestre → mestra. Essas formações, no entanto, além de pouco ocorrentes, tendem a ser desfeitas pelos falantes. Não são incomuns sentenças como as a seguir: (11) Maria é mestre em Lingüística. (12) Maria é parente do meu vizinho. (13) Maria é presidente do clube. As formações X-∅ → X-a com X terminando em vogal tônica são bastante incomuns. A única que nos ocorreu foi peru → perua. Mais produtiva é a formação, nesse padrão, na qual X termina em consoante. Tradicionalmente, esse conjunto de vocábulos é considerado como tema em -e, que é a vogal que aparece nas formas de plural. Esse padrão, exemplificado pelas formações inglês → inglesa ou pastor → pastora, seria do seguinte tipo: MASCULINO SINGULAR FEMININO SINGULAR X-∅ → X-a MASCULINO PLURAL FEMININO PLURAL X-e-s → X-a-s O esquema da figura 18 representa todo o conjunto dos substantivos da língua. Essa representação divide os substantivos de cada subconjunto temático em três grupos, dos quais somente o primeiro representa os vocábulos envolvidos no 102 processo de reenquadre. Perceba-se que é um processo produtivo, mas não obrigatório ― nem todos os substantivos relativos a seres sexuados vão necessariamente se reenquadrar como femininos. A produtividade do processo, no entanto, se comprova em exemplos como a sentença (9), no item 5.1.3: fono (X-o) → fona (X-a)22. É interessante notar que, por analogia, pode acontecer o processo invertido, ou seja, um termo feminino se reenquadrar como masculino. Os exemplos dados por Kehdi (1990) ilustram esse fato: crianço, corujo, madrasto. 5.4. A construção decorrente X-o / X-a Neste item, retomamos o problema que deu origem a este trabalho, ou seja, as construções gramaticais do tipo veio / veia, mato / mata, poço / poça. Duas questões se colocam, opostas entre si: o que esses pares têm de semelhantes às construções analisadas no item anterior, do tipo moço/ moça ou pombo / pomba? E o que têm de diferentes? Essas são as questões que tentaremos responder neste item. Da mesma forma que a vogal temática em si, poucos autores fazem referência a esses pares: entre os consultados, somente três o fazem explicitamente. Um deles é Câmara Jr. (1970), que iguala os pares que se referem a seres sexuados, como urso / ursa, aos que se referem aos não-sexuados, como barco / barca, considerando tanto uma construção quanto a outra como casos de flexão. Outro autor que aborda esses pares é Carvalho (1984), cuja visão é corroborada por Bechara (1999). Ambos consideram esses casos como derivacionais. O status flexional ou derivacional dessas construções (e também das construções analisadas em 5.3) será investigado mais pormenorizadamente no capítulo 6 deste trabalho. 22 É claro que a grande quantidade de pares existentes na língua, por si só, já comprova a produtividade do processo. O que queremos evidenciar, nesse momento, é que o processo continua produtivo na criação de novas formas. 103 Voltando às questões que serão abordadas neste item: a primeira delas é o que têm em comum os dois tipos de construção. Formalmente a semelhança é evidente: tanto rato / rata quanto fruto / fruta têm exatamente a mesma estrutura: há a mesma oposição de vogais temáticas nos dois pares. Essa semelhança formal foi o que levou os autores citados a concluírem que se trata exatamente do mesmo caso. Do ponto de vista semântico, porém, a semelhança não é tão evidente. Câmara Jr. tentou estabelecer uma generalização semântica para esses pares: (...) o masculino é uma forma geral, não-marcada, e o feminino indica uma especialização qualquer (jarra é uma espécie de «jarro», barca um tipo especial de «barco», como ursa é a fêmea do animal chamado urso, e menina uma mulher em crescimento na idade dos seres humanos denominados como a de «menino»). (CÂMARA Jr., 1970, p. 88-9) O problema é que, nem sempre, essa diferenciação se sustenta, empiricamente. Pereira (1987) observou que em vários casos, como poço / poça ou espinho / espinha, a relação geral/específico não ocorre. Poderíamos acrescentar, ainda, porto / porta, veio / veia, sapato / sapata e diversos outros. Ao contrário do que ocorre com os substantivos referentes a seres sexuados, a relação semântica entre esses pares não tem a regularidade que Câmara Jr. tentou estabelecer. A partir dessa constatação, Pereira conclui, então, que “não há efetivamente justificativa adequada para se afirmar que existe um processo sintático-semântico regular de ‘variação de gênero’ em substantivos inanimados, semelhante à variação regular dos substantivos animados” (op. cit, p. 47). Numa abordagem construcional, consideramos que os pares porco / porca e jarro / jarra não podem ser considerados como exatamente a mesma construção, justamente pela diferença de significado entre o conjunto a que pertence o primeiro par ― que é regular e indica sexo ― e o conjunto a que pertence o segundo, cuja regularidade não é tão evidente. Consideramos, no entanto, que existe uma relação íntima entre um conjunto e outro: a construção que envolve os seres não 104 sexuados é decorrente da construção básica, que envolve os seres sexuados. Em menino → menina, que é um exemplo da construção básica, há um reenquadre do masculino para o feminino, conforme visto no item anterior. Nas construções jarro → jarra há também um reenquadre do mesmo tipo: a construção de masculino perde o elemento que a caracteriza como tal, ou seja, a vogal temática -o, e adquire a característica morfossintática da construção de feminino ― a vogal temática -a. Conforme visto em 3.2.5, em toda decorrência entre construções há uma relação de herança, ou seja, a construção decorrente herda alguma característica da construção de origem. Em relação à forma, a característica herdada foi a ocorrência das vogais temáticas mais produtivas no processo de reenquadre da construção básica: -o e -a. No que diz respeito ao significado, a construção decorrente vai herdar a característica de o masculino ser o elemento nuclear, prototípico, enquanto o feminino é o elemento marginal, que se afasta do protótipo. Se na construção básica essa diferença entre os gêneros se realiza como a diferença entre os sexos, na construção decorrente essa relação vai ter um caráter bem menos objetivo. Nessa construção, o masculino vai se caracterizar por ser o elemento mais geral ― como Câmara Jr. estabeleceu ― mas também vai ter um valor semântico mais básico, menos figurativo. O feminino, ao contrário, vai ter valores semânticos mais específicos e mais figurativos (metafóricos ou metonímicos). A relação de herança que se estabelece entre as construções, como se pode perceber, é uma ligação por polissemia, isto é, uma extensão do sentido da construção básica está presente na construção decorrente. As oposições semânticas que se estabelecem entre o masculino e o feminino na construção decorrente vão ser mais exploradas no item 5.4.1. 105 A seguir, apresentamos um esquema da decorrência entre os dois conjuntos de construções: + PROTOTIPICIDADE - + Tema em -o MASC 1 MASC 2 - PROTOTIPICIDADE Tema em -e Tema em -∅ FEM MASC 1 MASC 2 + PROTOTIPICIDADE NEUTRA FEM MASC 1 MASC 2 PROTOTIPICIDADE - Tema em -a FEM FEM 1 FEM 2 MASC ⇒ ligação por polissemia + PROTOTIPICIDADE - + Tema em -o MASC 1 MASC 2 FEM PROTOTIPICIDADE - Tema em -a FEM 1 FEM 2 MASC FIGURA 19 A parte superior do esquema é a mesma já apresentada no item 5.3, em que abordamos a construção básica; a parte inferior representa a construção decorrente. Perceba-se que os subconjuntos de substantivos envolvidos no segundo reenquadre não são os mesmos do primeiro. Os grupos envolvidos nos reenquadres da construção básica (identificados, no esquema, pelo algarismo 1) referenciam sempre seres sexuados; na construção decorrente, os subconjuntos envolvidos (identificados pelo algarismo 2) englobam os vocábulos referentes a seres nãosexuados. 106 5.4.1. Relações semânticas Numa análise de base composicional, em que o significado do todo é estabelecido pela soma dos significados das partes, os pares da construção decorrente (jarro / jarra, porto / porta, marco / marca etc) deveriam ser sinônimos perfeitos, já que a vogal temática, em si, não tem significado23. O que causa a diferença de significado entre os elementos do par é, portanto, como vimos, o reenquadre em uma outra construção. Essa diferença semântica causada pelo reenquadre se baseia no princípio da não-sinonímia, estabelecido por Goldberg (1995). Segundo esse princípio, conforme visto em 3.2.4, se duas construções são sintaticamente distintas devem ser semântica e pragmaticamente distintas. Esse princípio foi formulado para servir de base à análise de construções sintáticas (como evidencia o termo sintaticamente). Pode, no entanto, ser adaptado, e passa a ser verdadeiro para todo e qualquer tipo de construção: onde se lê “sintaticamente”, pode-se ler “formalmente”; dessa forma, vai passar a abranger também construções morfológicas. Temos, assim, uma construção masculina mato que dá origem, por reenquadre, à construção feminina mata ― que deveria, se levados em conta apenas os significados de seus elementos constituintes, ser sinônima da construção original. Aplicado o princípio da não-sinonímia, no entanto, há duas possibilidades para as construções que em princípio deveriam ser perfeitamente sinônimas. A primeira delas é o bloqueio de uma das formas, de acordo com Aronoff (1976): se há duas formas concorrentes na língua, uma é eliminada em benefício da outra. É o que acontece, por exemplo, com os substantivos deverbais *formamento e 23 O que há, conforme exposto no item 5.1, é uma relação direta entre as vogais temáticas -a e -o e os gêneros feminino e masculino, respectivamente; e uma conceptualização dos gêneros com base no sexo biológico. Isso não significa, no entanto, que as vogais temáticas signifiquem sexo. 107 *formância, que foram bloqueados pela opção que os falantes fizeram pelo termo formação24. A outra possibilidade é uma especialização no significado da forma concorrente, passando ambas a co-ocorrer. É o que acontece com os deverbais recebimento e recepção, ou com os deadjetivais claridade e clareza. E é também o que ocorre com os pares em foco neste item: há uma especialização no significado da forma reenquadrada na construção de feminino. Essa especialização pode ser principalmente de dois tipos: ou acontece uma restrição no valor semântico em relação ao masculino, tomando um significado mais específico, ou acontece uma extensão figurativa do significado, de base metafórica ou metonímica. Alguns pares, no entanto, estabelecem entre si uma relação totalmente imprevisível, conforme veremos a seguir. Exemplos do primeiro tipo, em que o feminino restringe o valor semântico do masculino, seriam mato / mata, barco / barca, jarro / jarra, fruto / fruta, saco / saca, cerco / cerca, horto / horta. Comparemse os seguintes exemplos: (14) Pedro gosta de viver no meio do mato. (15) Pedro gosta de viver no meio da mata. Na sentença (15), mata é um tipo de lugar específico, necessariamente formado por um conjunto de árvores. Já o termo mato, na sentença (14) é bem mais abrangente, pode ter como referente qualquer tipo de vegetação. A sentença (15) implica a sentença (14), mas o contrário não é verdadeiro. O mesmo acontece com os outros pares: toda barca é também um barco, mas nem todo barco é uma barca; toda jarra é também um jarro, mas nem todo jarro é uma jarra; toda fruta é também um fruto, mas nem todo fruto é uma fruta; toda saca é também um saco, mas nem todo saco é uma saca. No penúltimo par, cerco / cerca, o masculino é o ato de 24 É possível que, pela Teoria da Otimalidade, se explique a escolha que os falantes fazem por algumas formas em detrimento de outras. 108 cercar, podendo nomear também qualquer coisa concreta que cerque algo; o feminino é mais específico, nomeando especificamente um determinado tipo de construção, com características próprias, que serve para cercar. No último, o feminino, horta, é mais específico: designa um terreno onde são plantados tipos específicos de vegetais comestíveis, sempre rasteiros ou de estatura baixa. O masculino, horto, é mais abrangente; designa um lugar onde se plantam diversos tipos de vegetais, que podem ser comestíveis, ornamentais, medicinais, etc. Esses vegetais podem ser desde plantas rasteiras até árvores. A relação semântica que se estabelece entre os dois elementos do par também pode ser de base metonímica, ou seja, os referentes de cada elemento do par fazem parte do mesmo domínio cognitivo. Estão nesse caso os pares braço / braça, comando / comanda, marco / marca, vento / venta, lenho / lenha, madeiro / madeira, ramo / rama, ovo / ova. Como se pode ver, em todos há relações metonímicas, mas de diferentes tipos. Em braço / braça, a relação é entre um referente e sua medida: braça equivale (ou equivalia, em sua origem) à medida de um braço. Em comando / comanda, o elemento feminino é uma representação concreta do ato de comandar (mas em contexto bem específico, que é o registro de consumo em um bar ou restaurante. Esse registro é o que vai determinar ― ou seja, “comandar” ― o pagamento da conta relativa ao consumo). Em marco / marca, o elemento masculino expressa um referente mais concreto, enquanto o feminino assume um valor semântico mais abstrato. Em vento / venta a relação metonímica é inusitada: vento é o ar em movimento; a parte do corpo por onde o ar se movimenta, ou seja, o nariz, passou a ser designado como venta. Nos outros pares, a relação é de elemento/conjunto: os referentes masculinos equivalem a elementos do conjunto; os femininos ao conjunto como um todo. 109 Outra relação possível é de base metafórica: são comparações entre elementos de diferentes domínios cognitivos. Fazem parte desse conjunto os pares bico / bica; encosto / encosta; balanço / balança; banco / banca, barraco / barraca, bolso / bolsa, cinto / cinta, quadro / quadra, espinho / espinha; arco / arca; fosso / fossa, rolo / rola; veio / veia; calçado / calçada; sapato / sapata; porto / porta. Nos treze primeiros pares, o elemento masculino tem um valor mais básico; o feminino é uma nomeação de base metafórica, através da comparação com algum dado da aparência física do referente de origem. Bica se assemelha ao aspecto de um bico; encosta ao de um encosto, e assim por diante. Em calçado / calçada, sapato / sapata e porto / porta, a relação é de finalidade: calçado e sapato servem para se pisar, se apoiar; calçada e sapata também vão servir, em contextos totalmente diversos, como pontos de apoio. Porto e porta têm em comum o fato de servirem como pontos de entrada em algum lugar: porto em uma cidade; porta em uma casa. Alguns pares, como palmo / palma, troco / troca, poço / poça, cesto / cesta, cinto / cinta, estabelecem relações menos gerais, e por isso seus significados são menos previsíveis. Os dois primeiros, palmo / palma e troco / troca, expressam relações metonímicas, só que, nesses casos, a relação masculino/feminino é invertida: aparentemente, o feminino é anterior ao masculino. O primeiro par se assemelha a braço / braça, mas a noção de medida é metonimicamente expressa pelo masculino. No segundo, troco / troca, o feminino referencia o ato de trocar; o masculino tem como referente um subproduto desse ato. No terceiro par, poço / poça, os dois elementos do par têm em comum o fato de se referirem a uma porção delimitada de água. O masculino, no entanto, tem como referente uma concavidade profunda e construída intencionalmente; o referente do feminino, ao contrário, é uma concavidade rasa e produto do acaso (conseqüência de chuva, por exemplo). 110 No quarto par, cesto / cesta, parece não haver uma relação geral/específico, nem do masculino para o feminino nem o contrário. Existe, é certo, uma estreita relação semântica, mas parece não estar perfeitamente clara a diferença de significado entre os dois. Houaiss (2001) dá os dois termos como sinônimos. Para tentar perceber como os falantes diferenciam um termo do outro, perguntamos a seis informantes, todos cariocas e adultos, a diferença de significado entre os dois termos. Dois dos informantes não reconheceram diferença: afirmaram usar indistintamente, por exemplo, cesto ou cesta de frutas, cesto ou cesta de roupa suja. Uma pequena maioria, no entanto, considera que há uma diferença de dimensão e formato: segundo esses informantes, cesta tem uma dimensão relativamente menor e costuma ter o diâmetro da abertura maior em relação ao diâmetro da base; cesto, por sua vez, tem uma dimensão relativamente maior e costuma ter o diâmetro da base e o da abertura mais próximos. Além disso, cesto costuma mais frequentemente ter uma tampa. Essas diferenças de significado mostram que, nas construções de base morfológica, o significado não é sempre perfeitamente previsível. É possível estabelecer algumas regularidades, mas, como praticamente todos os demais aspectos da língua, vai haver elementos que se aproximam mais do padrão, ou seja, mais prototípicos, e outros que se afastam desse padrão. 5.4.2. Outras decorrências Existe a possibilidade de duas construções morfológicas se combinarem formando uma terceira. Isso acontece, por exemplo, no processo de composição. Na construção beija-flor, temos a combinação da construção verbal beija (3ª pessoa do 111 singular do verbo beijar) e do substantivo flor. Apesar da contribuição desses elementos formadores no significado da construção, temos um terceiro significado, que na verdade está longe do que significaria a construção sintática beija flor. De forma semelhante, é possível também que as construções de reenquadre de gênero, analisadas neste trabalho, se combinem com outra construção, gerando significados específicos. Uma das combinações possíveis é com o sufixo -eir-, que por sua própria natureza é extremamente polissêmico (cf. galinheiro, parteira, manteigueira, abacateiro ― na primeira construção, o significado é ‘lugar’, na segunda é ‘agente’, na terceira é ‘recipiente’ e na quarta é um ‘recipiente’ metafórico). O esquema a seguir mostra, no quadro inferior esquerdo, o processo de reenquadre X-o → X-a, simultâneo à combinação com a construção sufixal -eir(quadro superior esquerdo), resultando na construção combinada X-eir-o → X-eir-a (à direita): CONSTRUÇÃO SUFIXAL -eir- CONSTRUÇÃO BÁSICA CONSTRUÇÃO COMBINADA X-o X-eir-o X-a X-eir-a FIGURA 20 Na combinação da construção de gênero básica com a construção -eir-, a contribuição do significado da primeira é ‘sexo masculino / sexo feminino’, acontecendo a oposição através do reenquadre. O sufixo contribui com o significado ‘agente’. Na construção combinada, a construção de origem X-eir-o vai significar 112 ‘agente do sexo masculino que lida com X’. Ao ser reenquadrada numa construção de feminino, vai significar ‘agente do sexo feminino que lida com X’. Um exemplo do reenquadre na construção combinada seria porteiro → porteira, em que ambos significam ‘agente que lida com porta’ ― no caso o profissional que tem como função tomar conta da porta de um prédio. Dos dois elementos do par, o primeiro é do sexo masculino e o segundo do sexo feminino25. A construção decorrente X-o →X-a (do tipo mato / mata, analisada neste item) também pode ser combinada com o mesmo sufixo -eir-. O esquema a seguir mostra essa decorrência: 25 Em todas as fusões da construção básica de gênero com o sufixo –eir-, a forma de feminino, que aqui indica ‘profissional’, tem uso mais restrito que a de masculino: lixeira, porteira, leiteira, carteira, pedreira. 113 CONSTRUÇÃO SUFIXAL -eir- CONSTRUÇÃO BÁSICA CONSTRUÇÃO COMBINADA 1 X-o X-eir-o X-a X-eir-a CONSTRUÇÃO DECORRENTE CONSTRUÇÃO COMBINADA 2 X-o X-eir-o X-a X-eir-a CONSTRUÇÃO SUFIXAL -eirFIGURA 21 Na combinação da construção sufixal -eir- com a construção decorrente26, o significado resultante é bem diferente de quando a combinação é com a construção básica. Na construção que chamamos de “construção combinada 2” (quadro inferior à direita), o reenquadre do masculino para o feminino vai gerar o significado ‘lugar ou utensílio relacionado a X’. Tomemos como exemplo X = sapato. Na construção decorrente, o reenquadre sapato → sapata vai gerar, no feminino, um valor 26 Na verdade, o quadro superior esquerdo, representando a construção sufixal –eir- é o mesmo representado na parte inferior. Está representado duas vezes para permitir uma melhor visualização do processo, não porque sejam duas construções diferentes. 114 metafórico, tendo como fundamento da metáfora a noção de ‘apoio’. Quando essa construção se combina com a construção sufixal -eir-, o sentido do elemento masculino vai ser ‘profissional que trabalha com sapatos’ (nesse caso, fabricando ou consertando ― o sentido exato de como o agente vai lidar com o objeto referenciado pela base X não é previsível: pode ser venda, fabricação, manufatura). Quando esse masculino é reenquadrado na construção de feminino, adquire o sentido ‘utensílio onde se guardam sapatos’. Dessa forma, um reenquadre do masculino para o feminino na construção combinada 1 (proveniente da construção de gênero básica) vai gerar o significado ‘agente do sexo feminino que lida com X’. Quando o reenquadre se dá na construção combinada 2, proveniente da construção decorrente, o significado vai ser ‘lugar ou utensílio relacionado a X’. A ocorrência de uma base X nos dois lados do esquema, tanto à esquerda quanto à direita, como acontece com X = sapato, não é comum. Na maioria das vezes, o reenquadre vai acontecer ou somente à esquerda, com em jarro / jarra, ou somente à direita, como em churrasqueiro / churrasqueira. Nesse par, o feminino, quando formado na construção combinada 1, tem o sentido de ‘agente do sexo feminino que lida com churrasco’; quando formado na construção combinada 2 tem o sentido de ‘utensílio onde se faz churrasco’. Não existe, nesse caso, um par churrasco / *churrasca, formado na construção decorrente, à esquerda no esquema. Outros exemplos, que seguem o mesmo padrão semântico, são leiteiro / leiteira, pipoqueiro / pipoqueira, lixeiro / lixeira etc27. Perceba-se que são polissêmicas justamente as formas em -a, o que reforça a hipótese de que o masculino é mais prototípico, com significados mais previsíveis, enquanto o feminino se afasta desse núcleo prototípico e previsível. 27 Uma lista não-exaustiva de exemplos é dada no Anexo 2 deste trabalho. 115 Um processo idêntico acontece com o sufixo -ari-, que se irmana historicamente a -eir-. Com -ari-, no entanto, a produtividade é bem menor: há os pares rodoviário / rodoviária, ferroviário / ferroviária e talvez não muitos além desses. Outro processo digno de nota acontece com o sufixo de origem grega -ic-. Esse sufixo, formador de adjetivos, aparece em vocábulos como atômico, rítmico, fálico. Há um grande número de vocábulos, no entanto, de cuja formação histórica esse sufixo participou, mas que, no entanto, não mais pode ser identificado como um elemento à parte: são construções já fossilizadas. Exemplos dessa fossilização seriam mágico, químico, físico. Esses adjetivos, no entanto, têm freqüentemente um uso substantivo, indicando o agente que lida o fenômeno caracterizado pelo adjetivo: um químico é aquele que lida fenômenos químicos; um mágico é o que lida com fenômenos mágicos e assim por diante. Esse grupo de substantivos também pode passar por um processo de reenquadre para construções de feminino: físico → física. Esse reenquadre vai se dar na construção de gênero decorrente, fazendo uma oposição em que o masculino significa ‘agente que lida com fenômenos caracterizados como X’ e o feminino significa ‘conjunto de fenômenos caracterizados como X’, em que X é o adjetivo que deu origem aos substantivos. Dessa forma, no exemplo, um físico é um ‘agente que lida com fenômenos físicos’ e física pode ser definida como ‘conjunto de fenômenos físicos’. Esse tipo de reenquadre é bastante recorrente, como atestam os exemplos estatístico / estatística, músico / música, mecânico / mecânica, técnico / técnica28. É interessante notar que, se no caso de -eir- o reenquadre na construção básica é pouco recorrente, no caso das construções com -ic- esse reenquadre na maior parte das vezes é bloqueado, como mostram os exemplos a seguir: (16) Pedro é músico. 28 Idem nota anterior. 116 (17) * Maria é música. (18) Pedro trabalha como mágico. (19) * Maria trabalha como mágica. (20) Pedro é um grande gramático. (21) * Maria é uma grande gramática. A hipótese do reenquadre em construções combinadas precisa ainda ser mais detidamente analisada, o que certamente será feito num trabalho futuro. Há diversas hipóteses que tentam dar conta da polissemia do sufixo -eir-29; é necessário cotejálas com a nossa hipótese para desenvolver uma argumentação mais sólida. Neste trabalho, a hipótese está sendo apenas apresentada, já que tem uma relação direta com a hipótese central, que é da existência do reenquadre entre construções e como isso se dá nas construções de gênero. 29 Cf. BOTELHO (2004), ÁLVARES (2004), ALMEIDA & GONÇALVES (2006) GONÇALVES (1998), MARINHO (2004), PIZA (2005). 117 6. A VOGAL TEMÁTICA NOMINAL NO PORTUGUÊS: FLEXIONAL OU DERIVACIONAL? Neste capítulo, discutiremos o status flexional ou derivacional da vogal temática nominal. No primeiro item, faremos uma reflexão a respeito do que se tem considerado, na literatura lingüística, diferenças entre os processos flexionais e derivacionais. No segundo item, a partir da proposta de Gonçalves (2005), analisamos as vogais temáticas de acordo com diferentes critérios de diferenciação. Por fim, apresentamos a proposta de Bybee (1985), na qual esses dois conceitos são apresentados não como processos discretos, mas como extremidades prototípicas de um mesmo continuum. A partir da análise feita em 6.2, tentamos inserir as vogais temáticas nominais, tanto as das construções básicas quanto as das construções decorrentes, nesse continuum. 6.1. Flexão x derivação A discussão a respeito do estabelecimento dos limites entre as características flexionais ou derivacionais de determinados grupos de elementos lingüísticos não é uma discussão recente. Remonta pelo menos ao século I a.C., quando o gramático latino Varrão (116-26 a.C.), em sua obra De lingua latina30, formulou os conceitos de deriuatio naturalis e deriuatio uoluntaria. O primeiro processo tem como finalidade indicar variações de uma mesma palavra, enquanto o segundo serviria para criar novas palavras. 30 Infelizmente, das vinte e cinco partes que compunham originalmente a obra, somente seis chegaram aos nossos dias. (Cf. WEEDWOOD, 1995, p. 36). 118 Os conceitos formulados por Varrão foram retomados por Câmara Jr. (1970), vinte e um séculos depois, para estabelecer as diferenças entre flexão e derivação no português. Esse autor utiliza esses conceitos principalmente para argumentar a favor da não-inclusão da variação de grau entre as categorias flexionais do português, além de ratificar a tradição de incluir o gênero e o número nominais entre essas categorias. Câmara Jr. estipula quatro critérios para mostrar essas diferenças: o primeiro deles, que diz respeito à regularidade, opõe “obrigatoriedade e sistematização coerente” relativos à flexão ao caráter “fortuito e desconexo” (CÂMARA Jr., 1970, p. 81) do processo de derivação. O segundo critério é a obrigatoriedade da flexão, imposta pelo que Câmara Jr. chamou, um tanto obscuramente, de “própria natureza da frase”, em oposição à derivação, que pode ser usada ou não de acordo com a vontade do falante. Os exemplos dados pelo autor são de que a adoção de um substantivo no plural ou de um verbo na 1ª pessoa do pretérito imperfeito se devem à citada “natureza da frase”. Não nos parece, no entanto, que haja qualquer imposição de base sintática para o uso do plural do substantivo ou do verbo no pretérito imperfeito. O único caso que parece se aplicar é o morfema de número-pessoa, que vai figurar na forma verbal em função do sujeito da oração. Mas isso na verdade estaria relacionado ao critério seguinte, que é o da possibilidade de ativação da concordância. Segundo esse critério, somente as formas que portem um traço de natureza flexional têm a capacidade de ativar a concordância, ao passo que as formas que contenham um elemento derivacional não têm essa propriedade. O quarto e último critério diz respeito ao fato de os elementos flexionais pertencerem a um inventário fechado, rígido, que não permite criatividade por parte do falante, ao contrário das formas derivadas, que constituem um inventário aberto, ao qual o falante pode acrescentar elementos recém-criados. 119 Autores mais recentes retomam a posição de Câmara Jr., ora para corroborar completamente sua posição, ora para estabelecer pontos de discordância. Zanotto (1986, p.54), num subcapítulo intitulado “Derivação e flexão – grau”, retoma e ratifica a posição de Câmara Jr., concluindo que o grau é uma categoria derivacional e não flexional. Mais adiante, no subcapítulo “O gênero”, considera como flexional a oposição pato / pata e gato / gata. Outro autor que retoma os critérios de Câmara Jr., mas a partir desses mesmos critérios chega a algumas conclusões um pouco diversas é Rocha (1998, p. 193 et seq.), num capítulo de sua obra intitulado “Flexão e derivação no português”. Esse autor divide os critérios elaborados por Câmara Jr. em três: regularidade / irregularidade, concordância / não-concordância e não-opcionalidade / opcionalidade; em cada um desses critérios, o primeiro dos dois itens refere-se à flexão e o segundo à derivação. Rocha analisa as categorias nominais de gênero, número e grau e as categorias verbais de pessoa, número, tempo e modo para, a partir de cada critério, inseri-las no processo de derivação ou de flexão. Em sua análise, Rocha conclui, como Câmara Jr., que a categoria nominal de número e as categorias verbais de pessoa, número, tempo e modo são casos de flexão. As divergências entre as duas visões se dão nas categorias nominais de gênero e grau. Segundo Rocha, o critério da regularidade não permite inserir a categoria de gênero dentre as flexionais. O argumento usado é que a marca morfológica distintiva de gênero se aplica a uma parcela muito pequena dos substantivos da língua; segundo levantamento feito pelo autor, somente 4,5% dos substantivos referem-se a seres sexuados, e mesmo destes, nem todos recebem a 120 marca morfológica de gênero, ou seja, pela baixa ocorrência, não pode ser considerado um fenômeno regular. Quanto ao grau, Rocha conclui, pelo mesmo critério, o da regularidade, que essa categoria se deve inserir no conjunto das flexionais, ao contrário do que Câmara Jr. sustenta. O argumento utilizado pelo autor é o seguinte: (...) é preciso lembrar que a questão da afetividade é anterior ao aumento ou diminuição de tamanho. (...) Sendo assim, o grau avaliativo é regular e sistemático, porque, dado um substantivo, é possível constatar a existência do mesmo substantivo com a marca morfológica de grau, que se realiza na língua através de sufixos variados. (ROCHA, 1998, p. 198) Essas divergências de conclusões fazem com que, após analisar detalhadamente os critérios propostos por Câmara Jr., Rocha os descarte em seguida, alegando que “não há concordância entre os critérios, ou seja, eles não são constantes, quando aplicados aos morfemas nominais e verbais”31. Ao final do capítulo, o autor opta pela definição de Anderson: “Flexão é precisamente o campo em que os sistemas de regras sintáticas e morfológicas interagem” (Anderson, apud Rocha, 1998, p. 206), e conclui que, utilizando-se esse critério, as categorias nominais de gênero e número e as verbais de pessoa, número, tempo, modo e aspecto são flexionais32. No entanto, é interessante notar que, sob esse critério, as categorias de tempo e modo seriam não-flexionais. Na verdade, a desinência modo-temporal não assume uma determinada forma como decorrência de nenhum outro dado sintático; além disso, a utilização desse morfema também não tem como conseqüência a forma de nenhum outro elemento na configuração sintática. Só é possível incluir essa categoria no conjunto das flexionais a partir do critério de Anderson alargando 31 No item 6.2. deste trabalho, mostramos que, na verdade, não há obrigatoriedade de convergência de resultados. 32 Este critério de Anderson será analisado mais detidamente em 6.2.1. 121 a noção de concordância, como Rocha faz. Vejamos algumas definições de concordância, retiradas de dicionários de Lingüística: segundo Crystal (1985, p. 58), concordância é “uma relação formal entre elementos, em que a forma de uma palavra exige uma forma correspondente em outra.” Trask (2004, p. 61) diz que concordância é “o fenômeno gramatical no qual a forma de uma palavra numa sentença é determinada pela forma de outra palavra com a qual tem alguma relação gramatical”. O próprio Câmara Jr. assim define o termo: “princípio, vigente em muitas línguas, segundo o qual, num sintagma, o vocábulo determinante se adapta a certas categorias gramaticais do determinado.” (CÂMARA Jr., 1977, p. 77) Em todas as definições apresentadas, a concordância é um fenômeno morfossintático. Rocha utiliza um outro conceito, de base pragmática, quando diz, textualmente, que está utilizando “o conceito de concordância em um sentido mais amplo”, que não se refere apenas ao ajuste de morfemas nem se restringe ao texto. O autor chama essa “concordância” de “concordância ideológica”. É bastante cômodo, de fato, fazer análises alargando conceitos estabelecidos; o problema é que, como conseqüência, o conceito de concordância acabou se superpondo aos de dêixis e de referência. De todos os autores, no entanto, aquele que foi mais fundo no estabelecimento de critérios para distinguir os conceitos de flexão e derivação, fazendo um levantamento não de quatro, como Câmara Jr., mas de doze diferentes critérios, foi Gonçalves (2005). Esses critérios serão apresentados nos itens 6.2.1 a 6.2.12 a seguir, nos quais verificamos se a vogal temática nominal se comporta como um elemento flexional ou derivacional. 122 6.2. Aplicação dos critérios de diferenciação 6.2.1. Visibilidade para a sintaxe Segundo Anderson (1982, p. 589), somente as categorias flexionais são relevantes para a sintaxe, enquanto os elementos derivacionais são sintaticamente irrelevantes. Essa visibilidade para a sintaxe das sentenças se dá através dos processos de regência e concordância. A regência é definida por Trask (2004, p. 61) como “o fenômeno gramatical em que a presença de uma determinada palavra numa sentença cria a exigência de que outra palavra ligada à primeira apareça em uma determinada forma.” O mesmo autor define o fenômeno da concordância nos seguintes termos: “o fenômeno gramatical no qual a forma de uma palavra numa sentença é determinada pela forma de outra palavra com a qual tem alguma ligação gramatical” (op. cit., p. 61). O primeiro fenômeno pode ser exemplificado através da variação entre as formas pronominais de 1ª pessoa do singular eu / me / mim. As três formas indicam o mesmo valor gramatical, mas não aparecem nos mesmos contextos. Na sentença “Joana gosta de ___”, obrigatoriamente a lacuna deve ser preenchida pela forma oblíqua tônica mim, exigida pela presença da preposição. Diz-se, então que a proposição rege o caso do pronome que introduz, fazendo-o apresentar-se com essa forma específica. As sentenças *Gosta de eu e *Gosta de me são, por essa razão, agramaticais. O fenômeno da concordância pode ser exemplificado pela sentença a seguir: (1) O feirante está vendendo uns pintinhos coloridos. Nessa sentença, a forma do núcleo do SN com função de objeto direto determina a forma dos outros elementos do sintagma. O fato de o vocábulo pintinhos 123 estar na forma de plural faz com que o determinante uns, assim como o adjetivo coloridos, também assumam a forma de plural. Percebe-se, portanto, que o número do substantivo é visível para outros elementos do sintagma, ou seja, é relevante para a sintaxe, devendo, dessa forma, ser considerado flexional pelo critério estabelecido por Anderson. Observe-se ainda que esse núcleo está no grau diminutivo. Esse fato, no entanto, não acarreta nenhum processo de concordância: não somos forçados a dizer “pintinhos coloridinhos”; é perfeitamente possível variar o núcleo em grau e essa variação não afetar nenhum outro elemento do sintagma. Ainda pelo critério de Anderson, o grau do núcleo, como é invisível para os outros elementos do sintagma, dever ser considerado como uma categoria de caráter derivacional. Conforme já dito no item 5.1.1, Gonçalves (2005, p. 17) considera as vogais temáticas um problema, sob a perspectiva do critério estabelecido por Anderson. Esses elementos têm claramente uma função de caráter derivacional: expandir a raiz para a formação do tema, o qual, por sua vez, serve de base para o acréscimo das desinências. No entanto, segundo Gonçalves, as vogais temáticas seriam invisíveis para a sintaxe. Dois fatores, no entanto, podem levar a se propor uma nova visão a respeito dessa invisibilidade das vogais temáticas em relação aos fenômenos sintáticos. O primeiro deles, já amplamente exposto no item 5.1.3, é de que existe uma relação direta entre vogais temáticas e gênero. Em “casa amarela”, por exemplo, o adjetivo está no feminino em decorrência de a construção do tipo X-a casa ser uma construção de feminino. Defendo, portanto, que as vogais temáticas, por serem elementos indicativos de gênero, são visíveis sintaticamente. 124 O segundo fator é o fato, considerado unanimemente, de que o gênero de um termo nuclear aciona o fenômeno da concordância nos termos que margeiam esse núcleo. Ora, a concordância é uma relação entre a forma de uma palavra e a forma de outra: se não considerarmos a existência de uma marca formal do gênero, não poderia haver concordância, e sim regência, que é o fenômeno em que a forma de uma palavra está ligada meramente à existência de outra palavra, e não à forma que essa palavra assume. Se só considerarmos como marca formal de gênero o –a em substantivos relativos a seres sexuados, teríamos a esdrúxula situação de ter de considerar a forma do adjetivo em coelha branca como um caso de concordância e em casa branca como de regência. Se considerarmos tanto o elemento final de coelha quanto o de mesa como marcas formais de gênero feminino, ambos seriam casos de concordância. Esses fatores apontam para uma revisão da postura de Gonçalves, que afirma que “as vogais temáticas, embora relevantes morfologicamente, são invisíveis para a sintaxe.” (2005, p. 17) É possível, se associarmos as vogais temáticas aos gêneros, a ocorrência do fenômeno sintático da concordância decorrente desse tipo de morfema. Por esse critério, portanto, a vogal temática seria um elemento flexional, e não derivacional. 6.2.2. Concorrência de estratégias de expressão O segundo critério para se diferenciar uma categoria flexional de uma derivacional é a concorrência de estratégias de expressão. Esse critério, proposto por Gonçalves, diz que “um afixo é flexional se seu significado se materializa apenas morfologicamente. Quando há uma concorrência de estratégias para exteriorizar seu 125 conteúdo, o afixo deve ser analisado como derivacional” (GONÇALVES, 2005, p. 23). Vamos, a seguir, tentar aplicar esse critério às vogais temáticas nas construções que são nosso objeto de estudo. Na construção básica, a oposição de vogal temática e gênero equivale a uma oposição de sexo dos referentes. Esse é o caso de cachorro / cachorra, pombo / pomba, porco / porca, e também de mestre / mestra, médico / médica, garoto / garota. O primeiro grupo se refere a seres sexuados não-humanos, o segundo a seres humanos. No primeiro desses grupos, o gênero pode ser expresso por uma oposição de construções com diferentes temas: a construção com tema em –a expressa sexo feminino e as outras, com outros temas, expressam sexo masculino. Nesse caso, temos pares de construções com um elemento comum (o radical do vocábulo) e um elemento variante, que seria a vogal temática. Essa não é, no entanto, a única possibilidade para a expressão do sexo dos referentes. Concorrendo com a construção de base morfológica gata, há ainda como possibilidades de expressão as construções de base sintática gato fêmea, fêmea de gato, fêmea do gato. Apesar de bem menos freqüentes, ainda assim são possibilidades de expressão do significado ‘sexo’. Note-se que essas outras construções, ao contrário da construção com variação de vogal temática, também se presta à expressão do sexo dos referentes nomeados por substantivos unigenéricos, como cobra ou avestruz: cobra fêmea, fêmea do avestruz. Essas construções também se prestam, ainda, para expressar o sexo dos referentes dos chamados pares heteronímicos: aqueles em que a oposição de sexo é expressa por duas construções sem nenhum elemento em comum, como bode / cabra, cavalo / égua. A título de curiosidade, fizemos uma busca no site www.google.com.br para verificar se havia ocorrências de todas essas construções 126 indicativas de sexo. A partir dos nomes de três diferentes animais, foram encontradas as seguintes ocorrências na busca33: CONSTRUÇÃO NÚMERO DE OCORRÊNCIAS GATA 880.000 GATO FÊMEA 139 FÊMEA DE/DO GATO 161 PORCA 185.000 PORCO FÊMEA 6 FÊMEA DE/DO PORCO 14 ÉGUA 129.000 CAVALO FÊMEA 8 FÊMEA DE/DO CAVALO 24 Como se pode ver, apesar de possíveis, as construções de base sintática são bem menos freqüentes que as de base morfológica para a expressão do sexo. Levando em consideração que o significado ‘sexo’ nos seres não-humanos pode ser expresso tanto morfológica quanto sintaticamente, podemos concluir que as vogais temáticas que representam os sexos são, segundo o critério da concorrência de estratégias de expressão, elementos derivacionais. Ao analisarmos o segundo grupo de formas a que nos referimos no início deste item (mestre / mestra, médico / médica, garoto / garoto), não chegaríamos às 33 Dados obtidos em 25/03/2006. 127 mesmas conclusões que no grupo anterior. Ao contrário das construções relativas a seres sexuados não-humanos, as relacionadas aos seres humanos não admitem a mesma concorrência de estratégias de expressão: não são possíveis as formas fêmea do médico, fêmea de mestre ou garoto fêmea (esta última até pode ser possível, mas para expressar o significado ‘garoto efeminado’, e não ‘garota’). No conjunto de construções relativas a seres não-animados, também não há concorrência de estratégias. Nesse conjunto, as formas não opõem sexo, mas valores mais gerais e menos figurativos para as formas masculinas e menos gerais e mais figurativos para as formas femininas. Teoricamente, há possibilidade de se expressar sintaticamente o valor mais específico de formas como barca ou jarra, ou o valor mais figurativo de formas como sapata ou braça. No entanto, essa perífrase corresponderia a uma longa série de informações, não utilizável na prática. A construção jarra pode ser parafraseada pelas construções “tipo de jarro para armazenar ou servir bebidas”, ou “tipo de jarro onde se põem flores”; todavia, nenhum falante substituiria, no discurso, jarra por qualquer dessas paráfrases (ao contrário do que ocorre com gata e fêmea do gato). Analisando as vogais temáticas dentro dos dois últimos grupos, em que não é possível expressar o conteúdo de outras formas, senão morfologicamente, concluiríamos que são elementos flexionais. Segundo o critério de concorrência de estratégias de expressão, portanto, o conjunto de formas relativas a construções envolvendo vogal temática se mostra ambíguo: aplicando algumas restrições semânticas (seres sexuados não-humanos), concluímos que a vogal temática é um elemento derivacional; nas construções relativas a seres humanos ou não-animados, esse elemento mórfico passa a ser analisado como um elemento flexional. 128 6.2.3. Produtividade O critério seguinte na diferenciação entre flexão e derivação é o da produtividade, ao qual fazem referência Aronoff (1976), Basilio (1980) e Gonçalves (2005). Basilio explicita esse critério nos seguintes termos: Uma das maiores diferenças entre flexão e derivação é que na flexão as regras são plenamente produtivas ― assim como na sintaxe sentencial ―, enquanto na derivação as regras são caracteristicamente semiprodutivas. Os paradigmas flexionais são nítidos, fechados, realmente sistemáticos (...). (BASILIO, 1980, p. 69-70) A autora, conforme a citação acima, diz que as regras de flexão são “plenamente produtivas”. Gonçalves, no entanto, modaliza essa afirmativa, dizendo que “afixos flexionais são altamente produtivos, tendo, pois, aplicabilidade quase absoluta” (2005, p. 32) (sem grifo no original). A própria Basilio também relativiza essa plena produtividade em nota de final de capítulo: “(...) podemos encontrar muitas irregularidades em sistemas flexionais, mas estes casos não interferem no reconhecimento dos padrões gerais” (Basilio, op. cit,, p. 72). Para entender melhor esse critério, vamos utilizar o sufixo verbal –mos. Esse sufixo, sempre anexado a verbos, repete as informações gramaticais de númeropessoa do sujeito do verbo (no caso, 1ª do plural). A produtividade desse sufixo é total; pode ser anexado a qualquer verbo: comíamos, correremos, deixávamos, disséssemos etc. Qualquer verbo pode ter anexado um sufixo de número-pessoa como esse. Mesmo os verbos que expressam fenômenos naturais, que em princípio rejeitariam esses sufixos, aceitam-nos em certos contextos (principalmente literários). Observe-se o exemplo a seguir, do poeta Carlos Drummond de Andrade: (2) “Não me chovas, maria, mais que o justo”34, 34 ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983. p. 708. 129 em que aparece, com sufixo de 2ª pessoa do singular, o verbo chover, o qual, por ser impessoal, em princípio rejeitaria o sufixo de número-pessoa. Mesmo em contextos não-literários, é possível a pessoalização de verbos impessoais. Veja os exemplos a seguir: (3) Ajunte a isto que fui também o primeiro que trovejei das alturas da Paulicéia contra a perfídia das Cortes Portuguesas.35 (4) E trovejamos, gesticulamos, mais pelo incómodo que resulta da mudança das coisas, do que por motivos fundamentados da persistência nelas.36 (5) Arrumei 3 taças de boca larga como a de Margueritha. Nevei as bordas com sal, servi.37 No Dicionário Houaiss de língua portuguesa, os verbetes referentes aos verbos chover, nevar e trovejar trazem a seguinte informação: “quando empregado em sentido figurado, conjuga-se em quaisquer pessoas” (HOUAISS, 2001, pp. 706, 2014 e 2778). Ao se combinarem nas formas verbais os diferentes sufixos de númeropessoa aos de tempo-modo-aspecto (acrescentando-se, ainda, as formas nominais do verbo), obteremos um conjunto que ultrapassa quarenta diferentes formas. Esse conjunto é, conforme salientou Basilio, nítido, fechado e sistemático. Qualquer verbo que venha a ser criado no português vai poder ter todas as formas referentes a todas as pessoas e tempos verbais. O verbo de criação recente bicicletar (o qual, curiosamente, é usado apenas com o sentido ‘pedalar em bicicleta ergométrica’), por exemplo, seria um desses casos. Compare-se esse verbo recém-formado com estudar, que existe registrado no português desde o século XIII: estudar 35 bicicletar Frase de entrevista de José Bonifácio ao jornal O tamoio. In: Revista Jovem Museologia – Estudos sobre Museus, Museologia e Patrimônio, Ano 01, nº. 01, janeiro de 2006. (http://www.unirio.br/jovemmuseologia). Acesso: 04/04/06. 36 Fernando Aires, In: Revista Letras & Letras, 1991. (http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/ensaios.htm). Acesso: 04/04/06. 37 http://www.canetaazul.blogger.com.br. Acesso: 04/04/06. 130 estudamos bicicletamos estudarias bicicletarias estudásseis bicicletásseis estudando bicicletando estudado bicicletado Comparando os sufixos que expressam os tempos e pessoas verbais com outros sufixos, como –ice, -idão, -idade, -ura ou -eza, formadores de substantivos a partir de adjetivos, percebemos uma bem menor produtividade desses últimos. Notese que normalmente um adjetivo aceita somente um desses sufixos, bloqueando-se as outras formações (quando ocorre de um adjetivo aceitar mais de um sufixo com mesma função, o significado torna-se diferente ― ver item 5.4, a respeito do princípio da não-sinonímia): Velhice *velhidão *velhidade *velhura *velheza Meiguice *meiguidão *meiguidade *meigura *meigueza *certice certidão *certidade *certura certeza *escurice escuridão *escuridade *escurura *escureza *honestice *honestidão honestidade *honestura *honesteza *clarice *claridão claridade *clarura clareza *gostosice *gostosidão *gostosidade gostosura *gostoseza *altice *altidão *altidade altura alteza *magrice *magridão *magridade *magrura magreza *belice *belidão *belidade *belura beleza Podem-se facilmente encontrar vários outros exemplos além dos citados para as formações [[X]adjice]subst, [[X]adjidão]subst, [[X]adjidade]subst, [[X]adjura]subst, ou 131 [[X]adjeza]subst, mas nenhum desses sufixos tem uma produtividade nem remotamente equivalente à dos sufixos de número-pessoa e de tempo-modoaspecto: os sufixos formadores de substantivos a partir de adjetivos são semiprodutivos. Há inclusive adjetivos que sequer aceitam nominalização. Se incluirmos o adjetivo azul no conjunto das formações acima, verificaremos que são todas inaceitáveis: *azulice *azulidão *azulidade *azulura *azuleza E isso não se dá por ser um adjetivo identificador de cor, já que existem os substantivos brancura, vermelhidão, amarelidão, pretume, roxidão, verdor. O fato de os sufixos de número-pessoa e tempo-modo-aspecto constituírem um conjunto sistemático de formas ― são altamente produtivos ― e os sufixos formadores de substantivos a partir de adjetivos formarem um conjunto assistemático ― são semiprodutivos ― faz com que incluamos, segundo o critério em análise, o primeiro grupo entre as categorias flexionais e o segundo entre as derivacionais. Analisando as variações do substantivo, poderíamos com alguma facilidade enquadrar a variação de número entre as categorias flexionais. Todos os substantivos podem, em princípio, ter uma forma de plural. Alguns poucos têm plural de aceitabilidade duvidosa, como ?gizes, ?fozes, ?cimas, ?arrozes, ?gravidezes. Segundo Pereira (1987), o plural de substantivos incontáveis não indica mais de uma unidade, e sim mais de um tipo. Dessa forma, feijões, açúcares, areias seriam respectivamente tipos de feijão, de açúcar, de areia. Em algumas substâncias que não são classificadas em tipos, como determinados elementos químicos, a aceitabilidade do plural também é duvidosa: ?sódios, ?neônios, ?hélios. Há, ainda, 132 os pluralia tanta, substantivos plurais que não têm um correspondente singular: fezes, parabéns, costas. Estatisticamente falando, no entanto, essas exceções são praticamente nulas. A quase totalidade dos substantivos do português tem uma forma de singular e uma correspondente de plural. Se na categoria de número a regularidade é grande, o mesmo não se dá em relação à categoria de gênero. Todos os substantivos da língua têm um gênero, mas são relativamente poucos os que podem variar em gênero. Segundo estatística feita por Rocha (1998, p. 196), já citada neste capítulo, apenas 4,5% dos substantivos referem-se a seres sexuados. Desses, boa parte tem gênero único (jacaré, cobra, cônjuge, pulga, gafanhoto, criança, testemunha etc.). Somando-se as construções em que a variação de vogal temática corresponde a variação de sexo, como gato / gata, menino / menina, médico / médica, às construções do tipo mato / mata, porto / porta, saco / saca, ainda assim teríamos um fenômeno bem pouco sistemático na língua. As construções X-a, da coluna da direita, abaixo, são todas possíveis na língua; entretanto, simplesmente não ocorrem. cavalo *cavala38 bode *boda gafanhoto *gafanhota carro *carra tronco *tronca Segundo Gonçalves, “a derivação forma paradigmas não necessariamente coesos, porque tende a apresentar restrições de aplicabilidade, ou seja, pode ser 38 É recorrente a utilização da forma cavala como feminino de cavalo, mas somente de forma metaforizada; nunca substituindo a construção égua: “Aquela professora é uma cavala”. 133 marcada por restrições lexicais arbitrárias” (GONÇALVES, 2005, p. 31). Sendo arbitrária a não-existência de todos os elementos da segunda coluna, e devido a sua baixa aplicabilidade, podemos classificar as construções envolvendo vogais temáticas, segundo este terceiro critério, como uma categoria derivacional. 6.2.4. Regularidade do significado O quarto critério distingue flexão de derivação a partir da regularidade do significado das operações. Segundo esse critério, as operações flexionais têm um significado mais regular e estável, enquanto o significado das derivacionais é mais instável, podendo ser diferente em diferentes construções. Se formos comparar diversas formas verbais em que esteja presente o sufixo –ste, por exemplo (fizeste, correste, gritaste, inquietaste), verificaríamos que esse elemento se adjunge a um tema verbal expressando sempre as noções de ‘processo factual, concluso, acontecido num momento anterior à enunciação, realizado pelo interlocutor’. Independentemente do valor semântico da base, o valor que esse sufixo acrescenta à construção vai ser invariavelmente o mesmo. Sendo assim, pelo critério em análise, uma operação envolvendo esse sufixo é flexional, pela estabilidade de seu significado. Compare-se esse sufixo ao sufixo nominalizador –ção, que forma substantivos abstratos a partir de bases verbais: comparação, formatação, regularização. Nas formações citadas, o sufixo gera na construção resultante o valor semântico ‘ato de’: respectivamente, ‘ato de comparar’, ato de formatar’, ‘ato de regularizar’. Porém, nem sempre esse valor vai ser tão estável. Há construções em que é acrescentado à base um valor aspectual não presente nos exemplos já 134 citados; basta comparar com falação, casação, trepação, quebração, pulação. A construção falação não significa simplesmente ‘ato de falar’, e sim ‘ato de falar que se prolonga no tempo’, ou ainda, ‘vários atos de falar simultâneos’. Casação não é simplesmente o ato de casar ― com esse significado, já existe na língua casamento ― mas a repetição do ato, ou vários atos simultâneos. Como se pode perceber, o significado das diferentes construções envolvendo esse sufixo não vai ser regular, ao contrário do que acontece naquelas em que aparece o sufixo -ste. Conseqüentemente, o acréscimo do sufixo –ção a uma base verbal vai ser considerado, pelo quarto critério, uma operação derivacional. Diferentemente dos afixos analisados, aos quais se pode atribuir algum significado, as vogais temáticas, por si só, não significam absolutamente nada. Elas podem, no entanto, contribuir para o significado da construção como um todo ― assim como todos os outros sufixos. Ou seja, se a um determinado radical se acrescenta uma vogal temática, o significado da construção será um; se se acrescenta outra, o significado também será outro. Quando a vogal temática está numa construção que tenha como referente um ser animado, a variação de vogal temática vai indicar a variação de sexo: assim, a construção gato indica sexo masculino, ou a espécie como um todo, e gata indica sexo feminino. Há pelo menos um caso em que a forma de feminino pode expressar um significado não previsto: no par moço / moça, ambos têm o significado ‘ser-humano jovem’; o feminino, no entanto, pode ser interpretado também como ‘mulher virgem’, independente da idade. Além disso, muitas vezes as construções de feminino podem adquirir valores subjetivos, de atribuição de juízo de valor. Esses usos não previstos serão analisados no item 6.2.5, que trata da expressão da subjetividade. 135 Nas construções que têm como referentes seres não-animados, a previsibilidade do significado é muito baixa. Nos pares barco / barca, por exemplo, há uma nítida relação geral/específico. No entanto, o caráter dessa especificidade não é previsível. Não é possível saber quais são as características a mais no item feminino que não estão presentes no masculino. Além disso, pode haver várias outras relações, como em sapato / sapata e braço / braça. No primeiro par, o significado da construção de feminino é metaforizado a partir do significado da construção de masculino; no segundo par, essa relação é metonímica: a construção de feminino expressa o comprimento do referente da construção de masculino. Como se pode observar, nesse segundo grupo de construções, referentes a seres não-animados, há uma grande instabilidade no significado dessas construções. Levando em consideração que nenhum elemento lingüístico significa por si, isoladamente, mas sempre contribui para o significado da construção na qual está inserido, e que vai estar sempre dentro de um contexto (uma outra construção maior ou uma situação concreta de uso), podemos analisar não o significado dos afixos em si ― o que seria impossível nas construções que são objeto deste trabalho ― mas das construções que ajudam a compor. A partir do critério da estabilidade do significado das formas, podemos concluir então que pode haver uma boa dose de previsibilidade no significado da construção, o que apontaria para um processo flexional; mas isso somente vai ocorrer se o referente da construção for um ser animado. Se, porém, o referente for não-animado, a previsibilidade é muito baixa, apontando essas construções para processos derivacionais. 136 6.2.5. Expressão de subjetividade Outro critério de diferenciação diz respeito à possibilidade de se expressarem valores subjetivos a respeito de um referente qualquer. Segundo esse critério, a derivação se presta a essa expressão, enquanto a flexão não se presta. Esse critério é na verdade uma complementação do anterior, e reforça a não-variação do significado nos processos flexionais. Segundo Basilio, A pejoratividade é provavelmente a expressão mais comum de atitude subjetiva sobre a caracterização de um ser. Em geral, podemos nos manifestar acerca de alguma coisa de uma maneira neutra, positiva ou pejorativa. As expressões positiva e pejorativa são expressões de atitude subjetiva; embora as expressões positivas contem com algumas marcas morfológicas, é muito mais significativa a marca morfológica de pejoratividade. (BASILIO, 1987, p. 86) Um exemplo desse fato são as construções adjetivas denominais formadas com o sufixo –ento. A própria base, quase sempre, já apresenta uma carga semântica negativa39: piolhento, gosmento, nojento, remelento, melequento, fedorento, grudento, sebento. Todos esses adjetivos expressam um alto grau de pejoratividade no resultado do processo de formação. Mesmo quando se acrescenta esse sufixo a bases que não são em princípio negativas, como mel ou pardo, as construções resultantes se tornam pejorativas: melento, pardacento40. Por outro lado, não é possível expressar nenhum tipo de impressão pessoal, quer positiva quer negativa, com o sufixo –s, de plural. Não é possível encontrar nenhum exemplo em que a forma de plural de um substantivo qualquer seja mais positiva ou mais negativa que seu correspondente singular. Segundo o critério da expressão de subjetividade, portanto, as construções em –ento seriam processos 39 O único exemplo que encontramos de uma formação com o sufixo –ento sem uma carga de pejoratividade foi sedento. 40 Pardacento não é uma formação prototípica, já que se acrescentou um afixo formador de adjetivos ao próprio adjetivo. 137 derivacionais, por poderem expressar valores subjetivos, e as construções de plural seriam processos flexionais por não serem capazes de expressar esses valores. Quanto às construções envolvendo vogal temática, as que têm como referente seres não-animados não se prestam à expressão da subjetividade. Comparando cada um dos pares do tipo veio / veia, saco / saca, barraco / barraca, banco / banca, não se pode perceber nenhum tipo de valor subjetivo, positivo ou negativo, quer nas construções masculinas quer nas femininas. Nas construções cujos referentes são seres animados, por outro lado, há inúmeros exemplos em que a forma de feminino pode expressar subjetividade. Gonçalves (2005, p. 51) aponta que “algumas formas, além de veicularem a idéia de feminino, são marcadas por forte conotação depreciativa, quando comparadas às de masculino”. Os exemplos dados são os seguintes: vagabundo vagabunda vadio vadia cachorro cachorra bruxo bruxa preparado preparada A esses exemplos poderíamos acrescentar puto, que em Portugal significa ‘menino’, e puta, que tanto em Portugal quanto no Brasil significa ‘prostituta’, ou pistoleiro / pistoleira, em que o feminino (assim como em vagabunda e vadia), também significa ‘prostituta’. O critério para expressão de subjetividade, portanto, também direciona as construções com vogal temática para dois sentidos diferentes: aquelas cujos referentes são seres não-animados, por não serem capazes de expressar valores subjetivos, seriam classificadas como flexionais; as construções que têm como 138 referente seres animados, por poderem apresentar, nas palavras de Gonçalves, uma “função atitudinal” (GONÇALVES, 2005, p. 52), são enquadradas como processos derivacionais. 6.2.6. Ocorrência de lexicalização O termo lexicalização normalmente é utilizado com uma acepção de base semântica: Sandmann (1997, p. 67), define esse termo como “um processo de opacificação que as palavras vão sofrendo ao longo de sua permanência e uso na língua”. E acrescenta, mais adiante: “Por lexicalização ou idiomatização, no caso da palavra complexa, se entende o fato de a semântica não ser simplesmente a soma das partes”. Alguns dos exemplos dados são portão, cartão, cursinho. Nestas palavras, o sufixo perde o seu valor de grau e a construção inteira adquire um significado que não equivale à soma das partes: o referente de portão não é uma porta grande, mas um outro objeto diferente daquele cujo nome é a base da construção. Acompanham Sandmann nessa acepção de base semântica Alves (1990), Jota (1976) e Dubois et alii (1973). Gonçalves (op. cit.), no entanto, com base em Bauer (1983), utiliza o termo num sentido bem mais abrangente: lexicalização é “um fenômeno geral de petrificação ― qualquer idiossincrasia constatada nas operações morfológicas”. Ou seja, as irregularidades podem ser não só de base semântica, mas também fonológica, morfológica e sintática. De acordo com a natureza da irregularidade, Bauer (1983) identifica quatro diferentes tipos de lexicalização: semântica, categorial, estrutural e rizomorfêmica. 139 O primeiro tipo, o único considerado pelos autores citados, está definido e exemplificado acima. O segundo tipo, a categorial, ocorre quando, num processo de formação, o termo que serve como base é de uma classe gramatical diferente da que ocorre na regra geral. Um dos exemplos do item 6.2.5 ilustra esse tipo de lexicalização: a regra de formação de adjetivos com o sufixo –ento é [[X]substento]adj, ou seja, a uma base substantiva X é acrescido o sufixo, para formar um adjetivo com valor de pejoratividade. A base de pardacento, no entanto, é outro adjetivo, o que faz com que essa construção seja um exemplo de lexicalização categorial. O terceiro tipo, a lexicalização estrutural, corresponde ao que se conceitua tradicionalmente como alomorfia: “existem casos de morfemas que assumem, em certas situações, diferentes configurações fonemáticas. São os alomorfes de um mesmo morfema” (CARONE, 1994, p. 25). Essa definição equivale à de Gonçalves (2005, p. 54), que diz que há lexicalização estrutural quando há anomalia na estrutura do vocábulo quanto à sua constituição fonológica. Obviamente só há anomalia tendo em vista um outro vocábulo que é visto como padrão, ou seja, há duas formas equivalentes mas com diferentes constituições fonológicas ― exatamente o conceito de alomorfia. O quarto tipo ― que tem uma semelhança acentuada com o terceiro ― acontece quando, num processo morfológico, um afixo é acrescentado a uma base presa, a qual tem um equivalente livre. Esse tipo de lexicalização é chamado de lexicalização rizomorfêmica. O aumentativo de nariz, por exemplo, é narigão. Percebe-se que o sufixo –ão foi acrescido à base presa narig-, e não à forma livre nariz. Na construção com sufixo formador de adjetivos –udo, também ocorre o mesmo fenômeno; o sufixo é acrescido à base presa: narigudo. Em toda lexicalização rizomorfêmica, há uma variação da constituição fonológica de um 140 elemento mórfico, o que também aponta para a definição de lexicalização estrutural. Acreditamos, pois, que toda lexicalização rizomorfêmica é também estrutural, embora o inverso não seja verdadeiro. Pode-se concluir, então, que este quarto tipo é um subtipo do terceiro. Como critério de diferenciação entre processos derivacionais e flexionais, a lexicalização ― cujo conceito pode ser sintetizado como ‘arbitrariedades formais e semânticas’ ― seria comum nos processos derivacionais e ocorreria bem pouco nos flexionais. Analisando as construções envolvendo vogais temáticas, podemos perceber que naquelas cujos referentes são não-animados pode ocorrer eventualmente uma variação formal. Nos pares porto / porta, ovo / ova, troco / troca, há uma variação na forma da base. Nesses pares, a vogal tônica das construções masculinas vai ser a média-alta /o/, enquanto nas femininas figura a média-baixa /ɔ/. Em relação ao significado, como a vogal temática por si não tem um significado específico, nem há uma expectativa única de significado das construções, não há razão para se falar em lexicalização semântica. Há nessas construções, no entanto, a lexicalização do tipo estrutural, o que faz com que sejam consideradas processos derivacionais. Nas construções cujos referentes são seres animados, ocorrem tanto a lexicalização estrutural (cf. porco / porca, sogro / sogra), quanto a semântica. Essa última foi mostrada por Piza (2001), que deu os seguintes exemplos, nos quais a forma de feminino assume um significado diferente de simplesmente ‘fêmea’: perua (‘mulher extravagante’ ou ‘carro do tipo Kombi’, sendo este último significado corrente em São Paulo), coelha (‘adolescente que pratica sexo com freqüência exagerada’), bruxa (‘mariposa’). Pode-se acrescentar a esses exemplos espanhola (‘posição sexual’) e negra (‘revanche’), exemplos dados por Gonçalves (2005), e 141 moça (‘mulher virgem’). O fato de se encontrarem os dois tipos de lexicalização neste segundo grupo de construções também faz com que devam ser considerados como resultantes de um fenômeno derivacional. 6.2.7. Possibilidade de mudança de classe O sétimo critério apresentado por Gonçalves para estabelecer diferenças entre flexão em derivação é a possibilidade de mudança de classe gramatical. Segundo esse critério, “processos flexionais não são responsáveis por mudanças na categorização lexical das bases. Os derivacionais, ao contrário, podem promover alterações dessa natureza” (GONÇALVES, 2005, p. 62). Esse critério, na verdade, só leva a um resultado positivo se houver a mudança de classe, levando à conclusão de que o processo é derivacional41. No entanto, há diversas formações cujo caráter derivacional não é posto em dúvida, como por exemplo jornaleiro ou laranjal, em que não há mudança de classe no processo. As bases são substantivos e as construções processadas são também substantivos. Sendo assim, quando não há mudança de classe não se pode chegar a nenhuma conclusão definitiva. Nas construções envolvendo vogais temáticas, nunca há mudança de classe. A vogal temática nominal é um elemento caracterizador dos substantivos (e adjetivos), assim como as vogais temáticas verbais são elementos caracterizadores dos verbos. Portanto, uma formação em que haja uma substituição de uma vogal temática nominal por outra não vai causar a mudança de classe gramatical. As formações jarro ⇒ jarra ou gato ⇒ gata envolvem sempre exclusivamente 41 Mesmo assim, Gonçalves levanta o ponto problemático do particípio, que tem características morfossintáticas de adjetivo, apesar de ser tradicionalmente considerado uma flexão de verbo. 142 substantivos. Logo, não se pode chegar a dados conclusivos a respeito do caráter flexional ou derivacional das construções com vogais temáticas, a partir do critério da mudança de classe. Esse critério, por isso, fica descartado por não permitir que se chegue a nenhuma conclusão. 6.2.8. Elementos nucleares e adjuntos Outro critério apontado por Gonçalves (2005) para tentar diferenciar processos derivacionais de flexionais é a relação que se dá entre elementos determinantes e determinados em vocábulos morfologicamente complexos. Segundo esse critério, sufixos derivacionais se comportam como cabeças das construções em que se inserem (elementos nucleares) e flexionais se comportam como adjuntos (elementos marginais). A título de exemplificação: os vocábulos galinheiro e jornaleiro poderiam ser referencialmente retomados, num texto, respectivamente pelos hiperônimos lugar e profissional. Note-se que essas noções não estão nas bases galinha e jornal; foram acrescidas pelo sufixo. O sufixo de cada uma dessas palavras, por conter o significado principal, é considerado o núcleo, enquanto a base, por conter um valor semântico acessório, é o termo marginal. Seriam casos, portanto, de derivação, pelo critério em análise. Outro exemplo: no vocábulo cantávamos, a base expressa o significado ‘ação de emitir voz de forma melodiosa’; o sufixo –va informa quando isso acontece (mais os valores de modo e aspecto) e –mos nos informa quem é o agente da ação. A informação central, portanto, está na base do vocábulo; as informações presentes nos sufixos são acessórias. Concluiríamos, então, que essa construção foi formada por um processo flexional. 143 Em relação às construções envolvendo vogal temática, o próprio Gonçalves dá um exemplo: “em ‘gata’, o principal elemento significativo é a base, pois é em função do seu conteúdo que se interpreta a construção morfológica. Poder-se-ia pensar numa paráfrase do tipo: ‘gato do sexo feminino’” (GONÇALVES, 2005, p. 70). Quanto às construções do tipo marco / marca, o único elemento que pode ter o status de nuclear, numa perspectiva semântica ― e, aqui, mesmo numa perspectiva estrutural ― é a base, já que a vogal temática, conforme já foi dito, isoladamente é vazia de valor semântico. Como nos dois tipos de construção ― com referente animado e com referente não-animado ― a base é o elemento nuclear e a vogal temática é o adjunto, segundo o critério da relação elemento nuclear / adjunto essas construções teriam o status de processos flexionais. 6.2.9. Ordem e posição dentro da construção O critério seguinte diz respeito à ordem e à posição dos elementos dentro da construção. Segundo esse critério, “afixos derivacionais se localizam mais próximos da base e sempre precedem os flexionais,quando juntos na mesma palavra” (op. cit., p.76). Além disso, “afixos que aparecem próximos da base são mais relevantes por promoverem mudanças mais acentuadas de significado” (ibidem). Na construção vendedores, por exemplo, o sufixo –dor aparece mais próximo à base porque é a parte da construção que introduz a noção de ‘agente’, modificando de forma drástica o sentido original da base. Já a marca de plural indica apenas que é mais de um, modificando muito superficialmente o sentido da base. Pelo critério exposto, portanto, o elemento –dor, por estar mais próximo à base e por ter um significado mais relevante dentro da construção, seria o responsável por um processo de 144 caráter derivacional. Já a marca de plural, por estar mais distante da base e por acrescentar uma modificação de significado menos drástica, seria um elemento de caráter flexional. Vejamos a aplicabilidade desse critério às construções de vogal temática com referente animado. A título de exemplo, peguemos, por exemplo, o par jornaleiro / jornaleira. Nesse par, a noção de sexo está explicitada através dos elementos finais –o / –a, enquanto a noção de agente é indicada pelo sufixo –eir–. Esse sufixo está mais próximo à base, e a modifica mais drasticamente que os elementos –o / –a. A rigor, na verdade, o elemento mais externo modifica não a base, mas todo o conjunto anterior. Em jornaleiras teríamos as seguintes camadas: [[[[jornal]eir]a]s] ― a base jornal é modificada pelo sufixo –eir–, indicando que é um agente que lida com o referente representado pela base; o elemento –a, por sua vez, modifica todo o conjunto jornaleir–, indicando que esse agente que lida com jornais é do sexo feminino; por fim, o elemento –s modifica jornaleira, indicando que há mais de um agente do sexo feminino que lida com jornais. Dessa forma, sendo um elemento mais externo e com uma significação menos relevante dentro da construção, as vogais temáticas, por esse critério, seriam consideradas elementos flexionais. Há, no entanto, a possibilidade de as vogais temáticas aparecerem no interior do vocábulo, no acréscimo do sufixo de grau diminutivo a algumas bases (ver item 6.2.10, sobre recursividade). Na construção medicazinha, aparecem duas vogais temáticas, uma mais próxima à base e outra mais afastada. Esse fenômeno é razoavelmente recorrente, fazendo assim com que a vogal temática tenha um comportamento ambíguo em relação a esse critério: na maior parte das vezes em que figura numa construção mais complexa, aparece, junto com a marca de plural, como o elemento 145 mais afastado da base. Em alguns casos, no entanto, pode ficar junto à base e haver outros elementos posteriores. Se nas construções de gênero com referente animado, nas quais o gênero equivale ao sexo do referente, a análise não é tão simples, a situação complica-se um pouco mais nas construções de gênero com referente não-animado. Observemse as construções jarrinho / jarrinha. Nessas construções, os elementos –o / –a não indicam sexo; tampouco significam coisa alguma. No entanto, sua presença, apesar de estar na parte mais externa da construção, é muito mais relevante para o significado da construção como um todo que o sufixo –inh–. Essa é mais uma evidência para o problema que serve de ponto de partida para esta tese, exposto em 1.1. Em relação à posição mais próxima à base, acontece a mesma coisa que nas construções de referente animado, como por exemplo na construção laminazinha. Nos dois tipos de construção, portanto, o critério em análise não acrescenta dados para se identificar o caráter flexional ou derivacional da vogal temática. 6.2.10. Recursividade O critério seguinte diz respeito à possibilidade de algum tipo de afixo aparecer mais de uma vez na construção ou não (ou seja, diz respeito à recursividade). Segundo esse critério, apenas os afixos derivacionais podem ser recursivos; os flexionais seriam mutuamente excludentes. Como exemplo, teríamos a impossibilidade de aparecer mais de um sufixo indicativo de tempo/modo/aspecto na mesma forma verbal ― “são agramaticais formações como ‘cantavaremos’ ou ‘cantasseríamos’” (GONÇALVES, 2005, p. 83). A impossibilidade de recursividade desse sufixo comprova o seu caráter flexional. 146 Por outro lado, sufixos como os de grau podem aparecer lado a lado na mesma construção, às vezes até com sentidos antagônicos. Em formas lexicalizadas, nas quais o significado do sufixo se opacificou, isto é comum: portãozinho, mamãozinho, caipirinhona, poltroninha. Mas mesmo em formas não lexicalizadas, ainda assim a recursividade é possível: em linguagem marcada afetivamente, como em narigãozinho, beijãozinho, beijinhão, menininhazinha, meninotazinha etc. Todos os exemplos dados foram de grau, mas outros sufixos podem também ser recursivos: Gonçalves (op. cit, p. 85) dá o exemplo institucionalização, que tem os seguintes constituintes imediatos: institucionalização institucionalizar institucional instituição instituir -ção -izar -al -ção FIGURA 22 Perceba-se que o sufixo –ção, formador de substantivos abstratos a partir de bases verbais, aparece duas vezes na formação. A possibilidade de recursividade desses sufixos aponta, segundo o critério em análise, para um processo derivacional. Conforme já foi mostrado no item anterior, as vogais temáticas podem, em algumas situações restritas, também aparecer mais de uma vez na mesma construção. Uma das situações em que isso acontece é quando o sufixo de grau 147 diminutivo é recursivo: livrinhozinho, pontinhazinha. Há também a variação –inho / -zinho, em que normalmente os substantivos temáticos formam construções de grau com a primeira variante (mesinha, cabinho) e os atemáticos ― incluindo os que Villalva (2003) chamou de atemáticos propriamente ditos (cafezinho, romãzinha) e os que chamou de tema em ∅ (florzinha, marzinho) ― formam com a segunda. Há alguns substantivos temáticos, no entanto, que podem figurar numa construção de grau com a presença de uma variante ou de outra (paredinha, paredezinha), e há ainda aqueles que, mesmo sendo temáticos, mais comumente formam o diminutivo com o acréscimo de –zinho (arvorezinha, estantezinha, lampadazinha). Nesses casos, há recursividade de vogal temática: permanece a da base e é acrescentada a do sufixo. A partir desses exemplos, dada a possibilidade de aparecer mais de uma vez na mesma construção, as vogais temáticas se comportam segundo esse critério como elementos derivacionais. 6.2.11. Neologia de afixos O décimo-primeiro critério apresentado por Gonçalves na diferenciação entre formas flexionais e derivacionais diz respeito à expansão do conjunto de formas, ou seja, à criação de novos afixos. Segundo esse critério, “as chances de expansão do número de elementos flexionais são mínimas. Embora remota, não é impossível a criação de afixos derivacionais” (GONÇALVES, 2005, p. 87). A razão de ser desse critério é que os elementos flexionais fazem parte da gramática da língua, sendo portanto um sistema fechado e com poucas chances de modificação; os elementos derivacionais, por outro lado, caracterizariam o léxico da língua, que é um sistema aberto; conseqüentemente, adquire ininterruptamente novos elementos. Quase 148 sempre, essas novas aquisições são vocábulos, mas é possível também, muito ocasionalmente, que novos afixos surjam na língua. Gonçalves dá o exemplo dos sufixos -ê, que dá idéia de “excesso de X” (misere, lamacê, fumacê) e -ete, que expressa “alguém do sexo feminino caracterizado por algum tipo de adesão a X” (malufete, lulete, chacrete), Segundo Houaiss (2001), o sufixo –ete entrou no português no século XIX, em formações como lanchonete, caminhonete, pierrete, patinete. Mais recentemente, além do valor semântico identificado por Gonçalves, também passou a ser usado na formação de oniônimos, como um atrativo publicitário: colchonete, sofanete, cotonete. Outro neologismo digno de nota é o novo uso, como superlativo, do sufixo indicador de numerais ordinais –ésimo: cultésimo, gostosésima. Houaiss (op. cit., p. 1218) traz estes divertidos exemplos, considerados pelo autor como “pornofônicos”: colhonésimo, merdésimo. Quanto às vogais temáticas nominais, esses elemento mórficos já existiam desde o latim: as três vogais temáticas do português, -a, -o, -e, correspondem, respectivamente, às vogais temáticas da primeira, da segunda e da terceira declinações. Havia em latim duas outras declinações, que tinham como vogais temáticas -u e –e; essas declinações, porém, na mudança da língua, foram incorporadas pelas três primeiras. Na verdade, a fixação das três vogais temáticas que conhecemos hoje em português aconteceu antes mesmo de o português existir; essas já eram as vogais temáticas existentes no latim vulgar (cf. ILARI, 1992, p. 90). Esse conjunto, portanto, já se encontra cristalizado há pelo menos doze séculos. A probabilidade de se modificar esse conjunto é provavelmente nula. Sendo assim, 149 pelo critério da possibilidade de neologia, devem-se considerar as vogais temáticas nominais como elementos flexionais. 6.2.12. Expressão de características sociolingüísticas O último critério proposto por Gonçalves é o que ele chama de “função indexical dos processos morfológicos”. Isso acontece quando diferentes processos morfológicos são formas variantes, identificando com seu uso diferentes grupos sociais. Por esse critério, “apenas afixos derivacionais podem servir como meio de sinalização do falante do ponto de vista social, geográfico e etário” (GONÇALVES, 2005, p. 89). Um dos exemplos dados pelo autor é o da noção semântica de intensificação, cuja expressão é feita por intermédio de várias estratégias alternantes. Gonçalves observou que homens tendem ao uso de estratégias sintáticas ou de prefixos intensivos, enquanto a intensificação por sufixação, procedida com o uso dos sufixos -íssimo,-érrimo e -ésimo, é mais fortemente associada à fala feminina de modo geral e à fala homossexual masculina em particular. Obviamente essa oposição só vai existir nos indivíduos que se fazem reconhecer socialmente pela fala, quer se apresentem como heterossexuais quer como homossexuais. O problema deste critério é que ele nada diz em relação aos elementos que não têm função indexical: tanto podem ser flexionais quanto derivacionais, já que há inúmeros afixos comprovadamente derivacionais que não são usados na sinalização de grupos específicos de falantes. Quanto às vogais temáticas nominais, não há sinal de que possam, de alguma maneira, identificar algum grupo social. Como a ausência da função indexical nada diz do caráter flexional ou derivacional de algum 150 elemento, este critério não pode ser usado para situar as vogais temáticas como elementos pertencentes a um ou a outro grupo. 6.3. A proposta de Bybee Tradicionalmente, conforme visto no Capítulo 2, concebe-se a noção de categoria lingüística como um conjunto de elementos com características idênticas. Cada categoria é vista, metaforicamente, como um compartimento, onde os elementos lingüísticos se encaixam de acordo com suas propriedades. O grande problema dessa perspectiva de descrição é que nem sempre os elementos lingüísticos se deixam encaixar docilmente num determinado compartimento. Na verdade, as categorias estabelecidas são formadas por elementos cujas propriedades nem sempre são compartilhadas da mesma forma. Por isso, proliferam trabalhos acadêmicos que questionam a validade de determinada categoria ou da inclusão de determinados elementos em uma categoria ou em outra. Como se pôde perceber pelo item 6.1, temos aqui um problema desse tipo: não é possível estabelecer um padrão preciso de diferenciação entre categorias flexionais e derivacionais. A proposta de Bybee (1985) é contradizer a idéia tradicional de que categorias lingüísticas são excludentes entre si. Na verdade, os elementos de uma categoria podem pertencer a ela em diferentes graus, de acordo com o fato de possuírem ou não todas as características que a compõem. Ou seja, as categorias lingüísticas não são conjuntos discretos, mas gradações: normalmente, não é possível estabelecer um limite preciso entre uma categoria e outra. 151 Bybee parte desse princípio para estabelecer um continuum onde os elementos lingüísticos podem se situar, utilizando como critério o modo pelo qual duas unidades de significação podem se combinar. A partir desse critério, a autora estabeleceu três formas de expressão, das quais duas seriam os pólos do continuum e a terceira o ponto medial entre esses dois pólos. O primeiro pólo corresponde à expressão em que duas unidades de significação se combinam num único item lexical monomorfêmico. Por exemplo, no vocábulo pavor estão presentes simultaneamente as noções de ‘medo’ e ‘intensidade’. Essa forma de expressão é o que a autora chamou de expressão lexical. O ponto medial do continuum corresponde à forma de expressão que Bybee chamou de flexional. Nessa forma de expressão, cada unidade de significação é expressa em uma forma individual, mas essas formas estão unidas no interior de uma única palavra. Um exemplo dessa forma de expressão seria o vocábulo sofás, em que as noções de ‘móvel estofado com mais de um assento etc’ e ‘mais de um’ estão expressas, respectivamente, pelos morfemas sofá e -s. Segundo a autora, uma categoria morfológica é flexional se algum elemento dessa categoria obrigatoriamente acompanha um radical quando ele figura numa oração. Sendo assim, uma categoria flexional precisa ser combinável com qualquer base que tenha traços sintáticos e semânticos próprios, produzindo um sentido previsível. (BYBEE, 1985, P. 11).42 O segundo pólo do continuum corresponde à forma de expressão sintática. Neste tipo de expressão, cada unidade de significação é expressa em uma palavra independente. Dessa forma, as noções expressas lexicalmente pelo vocábulo linda também podem ser expressas sintaticamente pela expressão muito bela. Além desses três segmentos do continuum, é possível também identificar áreas intermediárias. Entre a expressão lexical e a expressão flexional, situa-se a 42 A morphological category is inflectional if some member of the category obligatorily accompanies the radical element when it occurs in a finite clause. Thus, an inflectional category must be combinable with any stem with the proper syntactic and semantic features, yielding a predictable meaning. 152 expressão derivacional, cujos morfemas têm em comum com a expressão lexical o fato de terem aplicabilidade freqüentemente restrita e serem idiossincráticos na forma ou no significado. Entre a expressão flexional e a sintática, situa-se uma classe fechada de formas que se aproximam funcionalmente das flexionais, mas não são internas a nenhum item lexical. São formas gramaticais não-presas43, como os clíticos e verbos auxiliares (ir em vou comprar ou ter em tinha comprado, por exemplo). Todas essas formas de expressão, em seqüência, formam um continuum (representado na figura a seguir) do maior para o menor grau de fusão entre as unidades de significação: há maior fusão na expressão lexical e menor fusão na expressão sintática. LEXICAL DERIVACIONAL FLEXIONAL maior grau de fusão FORMAS GRAMATICAIS NÃO-PRESAS SINTÁTICO menor grau de fusão FIGURA 23 Há, no entanto, um problema na seqüência do continuum: ele não contempla a composição, que é um importante processo de formação de palavras em português, como uma das formas de expressão. Bybee tem um item de sua obra dedicado à composição e a um processo, inexistente em português, chamado incorporação (BYBEE, 1985, p. 105 et. seq.). Esse processo é um tipo de composição em que há, dentro do verbo, um morfema para indicar o paciente do processo, ou, menos comumente, dois verbos fundidos um no outro. A autora inclui esses dois processos, junto à flexão e à derivação, em um outro continuum, com 43 A autora chamou os elementos desse segmento do continuum de formas “gramaticais livres”, e acrescentou que ocorrem em posições fixas. Em português, no entanto, os clíticos têm mobilidade de posição. Acompanhando a proposta de Câmara Jr. (1970), que acrescentou às formas livres e presas descritas por Bloomfield as formas dependentes, preferimos chamar esses elementos de formas gramaticais não presas, o que corresponde melhor à realidade do português. 153 outro critério de distribuição que não o grau de fusão dos significados. Nesse outro continuum, há a seguinte gradação: FLEXÃO. COMPOSIÇÃO > INCORPORAÇÃO > DERIVAÇÃO > A extremidade esquerda, a composição, corresponde a uma classe de formas maior e mais livre, com significados mais ricos e mais específicos. O outro extremo, correspondente à flexão, envolve classes menores e com significados mais abstratos e mais gerais. Incorporação e derivação ficariam no segmento intermediário desse continuum. Em outra parte da obra, a autora chama atenção para o fato de a composição ser intermediária entre a expressão lexical e a expressão sintática (como se o continuum apresentado na figura 23 fosse na verdade circular). Essa parte do continuum corresponde aproximadamente ao esquema da figura 9 (item 3.3). Voltando ao continuum da figura 23, Bybee reconhece nele a existência das formas gramaticais não-presas, mas esclarece que não vai se dedicar a elas em seu trabalho. Centra foco, então, nas outras formas de expressão, cujas combinações de significados são determinadas por dois princípios básicos: o princípio da relevância e o princípio da generalidade. O primeiro diz que “o significado de um elemento é relevante para o significado de outro se o conteúdo semântico do primeiro afeta ou modifica diretamente o conteúdo semântico do segundo”44. Duas unidades de significação são relevantes uma para a outra se o resultado de sua combinação nomeia algo que tenha saliência cultural ou cognitiva. Piza (2001) dá o exemplo do cruzamento vocabular bebemorar, criado pela fusão dos significados de comemorar e beber, através de uma analogia jocosa com parte do radical do verbo comemorar, que se assemelha a comer. Como o ato de beber (bebida alcoólica, bem entendido) em comemorações é altamente relevante em nossa cultura, foi possível a criação do 44 A meaning element is relevant to another meaning element if the semantic content of the first directly affects or modifies the semantic content of the second. 154 verbo, através da expressão lexical. Essa criação exemplifica uma das características do princípio da relevância: quanto mais relevantes forem dois significados um para o outro, maior a probabilidade de a sua expressão se dar lexical ou derivacionalmente. E se dois significados forem pouco relevantes um para o outro, mais provavelmente sua expressão vai se dar por via sintática. A noção de ‘lugar’, por exemplo, é altamente relevante para o sentido ‘locomover-se’. Sendo assim, ‘locomover-se’ pode se fundir aos sentidos ‘no chão’, ‘no ar’, ‘na água’, gerando, respectivamente, os sentidos dos verbos andar, voar e nadar. Outro exemplo: o sentido ‘rapidamente’ é altamente relevante ao sentido do verbo andar, gerando pela fusão dos dois sentidos o verbo correr. Esse mesmo sentido, no entanto, não é relevante para os verbos ler ou colher X. Sendo assim, a junção desses sentidos vai se dar por via sintática: ler rapidamente ou colher X rapidamente. A expressão flexional é intermediária entre a forma de expressão lexical ou derivacional e a forma de expressão sintática, formando o seguinte continuum, no que diz respeito à relevância: EXPRESSÃO LEXICAL OU DERIVACIONAL EXPRESSÃO FLEXIONAL maior grau de relevância EXPRESSÃO SINTÁTICA menor grau de relevância FIGURA 24 O segundo princípio que determina as combinações de significados nas formas de expressão é o princípio da generalidade. Segundo esse princípio, uma categoria flexional deve ser aplicável a todas as bases com determinadas especificidades sintático-semânticas, e precisa obrigatoriamente ocorrer num contexto sintático próprio (cf. BYBEE, 1985, p. 17). Para um processo morfológico ser tão geral, ou seja, aplicável às bases de toda uma categoria gramatical, deve ter 155 um conteúdo semântico mínimo: se for muito específico, não vai ser compatível com o valor semântico de um grande número de bases. Esses conteúdos mais específicos tendem a ser expressos pelos meios de expressão lexical e sintático. Dessa forma, a noção de ‘mais de um’, expressa pelo morfema de número, é compatível praticamente com qualquer base de natureza substantiva (alguns poucos exemplos de restrições estão enumerados no item 6.2.3). Já uma noção mais específica, como ‘companhia’, vai ser expressa sempre sintaticamente: passear com o Pedro, estudar com os amigos. Em síntese: quanto mais geral for o significado maior a probabilidade de ser expresso flexionalmente; quanto mais específico, maior a probabilidade de ser expresso lexical ou sintaticamente. A relação entre a generalidade e os meios de expressão estão esquematizados na figura 25: EXPRESSÃO FLEXIONAL EXPRESSÃO DERIVACIONAL maior grau de generalidade EXPRESSÃO LEXICAL OU SINTÁTICA menor grau de generalidade FIGURA 25 6.4. A vogal temática no continuum flexão derivação A hipótese do continuum flexão – derivação proposta por Bybee é bastante pertinente, já que dá base para uma análise relativizada de fenômenos que tradicionalmente são enfocados de forma absoluta. O instrumental teórico específico para análise das categorias, no entanto, é frágil. Conforme salientou Gonçalves (2005, p. 169), apenas com as noções de generalidade e relevância, não é possível inserir qualquer categoria no continuum ― ainda mais porque a relevância é de difícil mensuração. 156 Por isso, optamos por usar a hipótese do continuum flexão – derivação, mas, para inserir a categoria em análise nesse continuum, vamos utilizar os critérios de diferenciação levantados por Gonçalves (op. cit) ― expostos nos itens 6.2.1 a 6.2.12 ―, que formam um conjunto mais objetivo e dão maiores subsídios para inserir uma categoria em diferentes pontos desse continuum. Os critérios são, em síntese, os seguintes: CRITÉRIO FLEXÃO DERIVAÇÃO 1. Visibilidade sintática SIM NÃO 2. Concorrência de estratégias de expressão NÃO SIM 3. Produtividade MENOR MAIOR 4. Regularidade do significado MAIOR MENOR 5. Expressão de subjetividade NÃO SIM 6. Ocorrência de lexicalização NÃO SIM 7. Possibilidade de mudança de classe NÃO SIM 8. Elementos nucleares NÃO SIM 9. Proximidade da base MENOR MAIOR 10. Recursividade NÃO SIM 11. Neologia de afixos NÃO SIM 12. Expressão de características sociolingüísticas NÃO SIM Esses doze critérios, em conjunto, formam um subsídio bem mais objetivo para estabelecimento do grau de pertencimento de um elemento qualquer à categoria flexional ou à derivacional. A partir da análise feita em 6.2, será montado um quadro que vai mostrar, em cada critério, se cada construção tende para a flexão ou para a derivação. Com essa visão geral, calcularemos percentualmente o grau de 157 pertencimento de cada uma das construções a cada categoria. O quadro é o seguinte: CONSTRUÇÃO BÁSICA CRITÉRIO FLEXÃO DERIVAÇÃO 1. Visibilidade sintática X 2. Concorrência de estratégias de expressão X 3. Produtividade 4. Regularidade do significado 5. Expressão de subjetividade X 6. Ocorrência de lexicalização X 7. Possibilidade de mudança de classe 8. Elementos nucleares 9. Proximidade da base 10. Recursividade 11. Neologia de afixos 12. Expressão de características sociolingüísticas CONSTRUÇÃO DECORRENTE FLEXÃO DERIVAÇÃO X X X X X X X NÃO CONCLUSIVO X X X NÃO CONCLUSIVO X NÃO CONCLUSIVO NÃO CONCLUSIVO X X NÃO CONCLUSIVO X X NÃO CONCLUSIVO Dos doze critérios apresentados por Gonçalves, três são não-conclusivos. Nos nove restantes, a construção básica tem um comportamento 50% flexional e 50% derivacional. Essa construção fica localizada, portanto, exatamente no centro do continuum flexão – derivação. A construção decorrente, pelos dados acima, se comporta como derivacional em 44,5% dos casos, e como flexional em 55,5%. Está localizada, portanto, num ponto ligeiramente à esquerda da construção básica, 158 tendendo um pouco mais para a flexão. O esquema a seguir mostra a posição de cada uma das construções no continuum: FLEXÃO PROTOTÍPICA CONSTRUÇÃO BÁSICA (gato / gata) CONSTRUÇÃO DECORRENTE (mato / mata) FIGURA 26 DERIVAÇÃO PROTOTÍPICA 159 7. CONCLUSÃO Acreditamos ter alcançado o objetivo final deste trabalho, que é apresentar evidências suficientes para embasar as hipóteses apresentadas. Ao final de nossa argumentação, esperamos poder dar como estabelecidos alguns conceitos, os quais dividimos em três seqüências de conclusões. Na primeira seqüência, o primeiro dos conceitos que pretendemos ter estabelecido é de que as classes gramaticais podem ser consideradas em si construções gramaticais, com suas características semântico-cognitivas e formais próprias. O segundo é de que é possível reenquadrar um elemento de uma classe em outra, por meio da perda das características morfossintáticas da classe de origem e aquisição das características da classe-alvo. Esse processo é o que propusemos chamar “reenquadre morfológico”. Finalizando essa primeira seqüência, concluímos que não é pertinente a descrição chamada tradicionalmente de “derivação regressiva”: o processo no qual um substantivo é formado a partir de um verbo sem que se usem afixos é na verdade um caso de reenquadre morfológico. Na segunda seqüência de conclusões, sustentamos que nos substantivos acontece uma variação desse processo, envolvendo subclasses de substantivos. Essas subclasses são também conjuntos de construções, cuja forma está relacionada às vogais temáticas e cujo significado está relacionado ao gênero. As construções de gênero prototípicas são aquelas que se relacionam diretamente com a noção de sexo. No que diz respeito à forma, as prototípicas masculinas têm vogal temática em -o; as femininas em -a. O próximo conceito estabelecido é de que há uma rede construcional envolvendo as construções de vogais temáticas, na qual as construções básicas são aquelas em que o gênero está diretamente relacionado ao 160 sexo do referente, e o conjunto de construções decorrentes é aquele em que o gênero está apenas metaforicamente relacionado a sexo. Na terceira seqüência, reforçamos o conceito formulado por Bybee de que flexão e derivação são fenômenos escalares, distribuídas num continuum cujos pólos representam as categorias prototipicamente derivacionais ― um dos pólos ― e flexionais ― ou outro pólo. Como última conclusão, pretendemos ter demonstrado que as construções envolvendo vogais temáticas não são prototipicamente derivacionais nem flexionais, situando-se num ponto intermediário entre os dois pólos. A Gramática das Construções é um modelo de análise bastante recente; sendo assim, há relativamente poucos trabalhos que utilizem seu arcabouço teórico. Desses, quase todos se dedicam a construções de base sintática, até porque o modelo foi desenvolvido para dar conta de construções sentenciais do inglês. A adequação do modelo para construções morfológicas, além do foco nas vogais temáticas nominais, assunto pouquíssimo explorado nos trabalhos lingüísticos, conferem o pioneirismo e a originalidade desta tese. Esperamos que outros trabalhos se somem a este, no sentido de desenvolver mais a junção das perspectivas cognitiva e morfológica na descrição do português, e, principalmente, que esta tese tenha sido uma contribuição de valor para o desenvolvimento dessa combinação de perspectivas. 161 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Maria Lúcia Leitão de; GONÇALVES, Carlos Alexandre. Polissemia sufixal: o caso das formas X-eiro - propostas e problemas. In: XX Encontro Anual da APL (Associação Portuguesa de Lingüística), 2006, Lisboa. Actas do XX Encontro da APL. Lisboa : APL. v. 1. p. 204-215. ÁLVARES, Cláudia Assad. 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Caxias do Sul: EDUCS, 1986. 168 ANEXO 1: Um cientista conseguiu produzir em laboratório substâncias que se assemelham muito a minerais, mas com cores belas e brilhantes. Achando que os nomes que os cientistas normalmente dão às suas substâncias são muito técnicos, e querendo enriquecer com sua descoberta, o cientista resolveu dar nomes que ele considerou mais “comerciais”. A uma dessas substâncias ele deu o estranho nome de “palime”. Havia palimes brancas e verdes. A uma outra, deu o nome de “ronele”, os quais eram azuis e roxos. Complete a lista dos estranhos nomes dados pelo cientista, acrescentando ao lado as cores indicadas, que cada substância pode ter. Obs.: Escreva usando letra maiúscula de imprensa (como nos exemplos). palimes BRANCAS E VERDES____________ roneles AZUIS E ROXOS_________________ prilufos ______________________________ barucãs ______________________________ febalas ______________________________ carubos ______________________________ topiris ______________________________ noletas ______________________________ soviles ______________________________ jaligos ______________________________ quirijas ______________________________ relifis ______________________________ 169 ANEXO 2: Lista (não exaustiva) dos pares que formam as construções decorrentes X-o / X-a: arco arca balanço balança banco banca barco barca barraco barraca bico bica bolso bolsa braço braça calçado calçada cerco cerca cesto cesta cinto cinta comando comanda encosto encosta espinho espinha fosso fossa fruto fruta horto horta jarro jarra lenho lenha madeiro madeira 170 marco marca mato mata ovo ova palmo palma poço poça porto porta quadro quadra ramo rama rolo rola saco saca sapato sapata troco troca veio veia vento venta Lista (não exaustiva) dos pares que formam as construções X-eir-o / X-eir-a: carteiro carteira chapeleiro chapeleira churrasqueiro churrasqueira farinheiro farinheira fruteiro fruteira leiteiro leiteira lixeiro lixeira pedreiro pedreira 171 pipoqueiro pipoqueira porteiro porteira sapateiro sapateira salsicheiro salsicheira sorveteiro sorveteira Lista (não exaustiva) dos pares que formam as construções X-ic-o / X-ic-a: botânico botânica clínico clínica crítico crítica estatístico estatística físico física gráfico gráfica gramático gramática mágico mágica matemático matemática mecânico mecânica metalúrgico metalúrgica músico música político política químico química técnico técnica