O DESEJO NO EPICURISMO Desire epicurism Ericsson Venâncio Coriolano Ruy de Carvalho1 RESUMO O presente trabalho tem como responsabilidade abarcar a categoria Desejo dentro da filosofia epicurista. A filosofia de Epicuro (341-270 a.C.) é dividida em três partes: a canônica, a física e a ética. Em 306 a.C, Epicuro compra uma casa com um imenso jardim em Atenas e lá instala sua Escola Filosófica que ficou conhecida como o “Jardim de Epicuro”. O pensamento epicurista parte da negação da dialética platônica e da afirmação da verdade como dada a partir dos critérios baseados na evidência imediata, a sensação. A partir desse critério gnosiológico e da renúncia da vida social na polis, Epicuro teoriza uma proposta de felicidade a partir da escolha de uma vida que evite ao máximo a dor e o sofrimento corporal e a intranqüilidade ou perturbação espiritual. Para ele existem dois tipos de felicidade: a absoluta, que é uma característica das divindades, e a outra a obtida pela escolha racional da adição e subtração de prazeres, própria dos humanos. É na ausência de dor que o epicurismo definirá o seu conceito de prazer, que é muito diferente da definição de quem o acusava de um hedonismo vulgar. Epicuro, na busca do cálculo certo da quantidade de prazer a ser alcançada, reivindica a posição indispensável do pensamento especulador e filosófico. Para ele a necessidade de prazer é primordial e congênito. Assim, a busca do prazer deve ser medida de forma racional e equilibrada, pois muitas vezes há prazeres que geram fortes dores futuras e dores que suportadas por algum período são fontes de grande prazer. Logo, o sábio é o indivíduo que racionalmente nega os prazeres dinâmicos e instáveis e procura desejar aquilo que o remete a um prazer estável, realizando um ato de ataraxia, procurando viver em equilíbrio com a natureza e com os demais seres partindo da própria existência material e natural; desmistificando os deuses, negando a imortalidade da alma e colocando o homem como responsável por suas escolhas. Dessa forma há uma diferenciação dentro da sua filosofia que distingue os desejos de duas formas: os naturais e os infundados. Ao assumir a imperfeição humana, a possibilidade probabilística de antecipar o futuro e o sofrimento como primordial e congênito ao homem, Epicuro, vincula sabiamente a quantidade de desejos sentidos e a possibilidade de saciar a todos com a vida feliz. Esse emparelhamento comparativo leva-o a uma filosofia, na teoria, do desejo e, na prática, da escolha dos desejos que podem ser saciados facilmente ou filosofia dos desejos necessários. Esse movimento de reduzir os desejos aos objetos que se pode ter, ou em última análise de reduzir os desejos aos voltados para o absoluto natural, levará o sábio a um estado de autarquia (autarkéia) que se dá no retorno ao natural, ao absoluto, ao bem, ou seja, ao de estar reconciliado consigo mesmo. Assim, filosofia é a ponte entre o indivíduo e a felicidade, é nela que o sábio se põe livre dos desejos instáveis e dinâmicos, e encontra o verdadeiro afastamento da dor. Palavras-chave: Epicuro, epicurismo, desejo. ABSTRACT The present work has as responsibility to accumulate of stocks the category inside Desire of the epicurist philosophy. The philosophy of Epicurus (341-270 BC), it is divided in three parts: the canonic one, the physics and the ethics. In 306 BC, Epicurus purchase one marries an immense garden in Athens and there it installs its Philosophical School that was known as the "Garden of Epicuro". The epicurist thought part of the negation of the platonic dialectic and the affirmation of the truth as given from the criteria based on the immediate evidence, the sensation. To leave of this gnosiologic criterion and the resignation of the social life in you polis, the theory of Epicurus considers the happiness from the choice of a life that prevents to the maximum pain and the corporal suffering and the disturbance spiritual. For it two types of happiness exist: absolute, that it is a characteristic of the deities, and to another one gotten for the rational choice of the addition and the subtraction of pleasures, proper of the human beings. It is in the pain absence that the epicurism will define its concept of pleasure that is very different of the definition of who accused it with a vulgar hedonism. Epicurus, in the search of the calculation certain of the amount of to be reached pleasure, demands the indispensable position of the speculator and philosophical thought. For it the pleasure necessity is primordial and congenital. Thus, the search of the pleasure must be measured of rational and balanced form, therefore many times have pleasures that they generate future forts pains and pains that supported for some period are sources of great pleasure. Soon, the scholar is the individual that rationally denies the dynamic and unstable pleasures and looks for to desire what it sends it pleasure to a steady, carrying through a ataraxia act, looking for to live in balance with the nature and the too much beings leaving of the proper material and natural existence; demystifying the existence of god, denying immortality of the soul and placing the man as responsible for its choices. Of this form he inside has a differentiation of its philosophy that distinguishes the desires from two forms: natural and without bedding. When assuming the imperfection human being, the probabilistic possibility to anticipate the future and the suffering as primordial and congenital to the man, Epicurus, It associates the amount of sensible desires and the possibility to satisfy to all with the happy life. This comparative mating takes it a philosophy, in the theory, of the desire and, in the practical one, of the choice of the desires that can easily be satisfied or philosophy of the necessary desires. This movement to reduce the desires to the objects that if can have, or in last analysis to reduce the desires to the come back ones toward absolute the natural one, will take the scholar to an autarchy state (autarkéia) that it is given in the return the natural one, to the absolute one, the good, or either, to the one to be reconciled I obtain same. Thus, philosophy is the bridge between the individual and the happiness, is in that the scholar if puts exempts of the unstable and dynamic desires, and finds the true removal of pain. Keywords: Epicurus, epicurism, desire. 1 Aluno da Universidade Estadual do Ceará. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como responsabilidade abarcar a categoria Desejo dentro da filosofia epicurista. Os textos de Epicuro que restam hoje são: Epístola a Heródoto, trata da física; Epístola a Pítocles, trata dos fenômenos celestes; Epístola a Meneceu, trata dos meios de se viver feliz; As Máximas Principais, são 40 máximas que dão uma panorâmica do pensamento do autor. Essas três epístolas e as máximas estão contidas no livro de Diógenes Laércio (séc. III d.C.?) no livro X da obra: Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. (BRUN, 1987)2, em seu livro sobre o epicurismo, cita um manuscrito, descoberto em 1888 na Biblioteca do Vaticano, contendo oitenta e uma máximas, mas pelo estado da obra só algumas foram publicadas. Em português tem-se ainda a Antologia de Textos3, coletânea de algumas máximas escritas por Epicuro que deve ter sido4 tirada dos textos citados anteriormente. Existem também outras traduções de algumas das epístolas, é o caso da Carta sobre a Felicidade (a Meneceu) publicada pela editora Unesp5. Outro autor que sistematizou a filosofia epicurista é Tito Lucrécio (98?-55?a.C.). Ele, na sua obra Da Natureza, escreve sobre o epicurismo dividindo sua obra em seis livros. Mas Lucrécio é um discípulo que está um pouco distante cronologicamente do seu mestre e escreveu seus textos já em latim. A primeira parte deste artigo descreve um pouco da vida deste ilustre pensador da antiga Grécia e desenvolve a estrutura do pensamento epicurista de uma forma panorâmica. Nela são expostas a teoria do conhecimento e a física postulada por Epicuro em sua obra. Tanto a canônica como a física são de extrema importância na identificação e significação da ética epicurista e por conseqüência de como é entendido a relação do homem com seus desejos. No segundo momento deste texto a proposta de filosofia de Epicuro é entendida dentro dos critérios de uma filosofia materialista. Desta forma o homem é remetido a uma idéia de matéria e é a partir dessa primeira idéia que se desdobrará as demais posturas do pensamento epicurista. A parte três expõe a categoria desejo dentro do pensamento epicurista. O conceito de desejo é desenvolvido em Epicuro a partir da sua concepção materialista do mundo. Concepção essa que leva o homem a uma identificação com a natureza e a busca de um estado de autarquia – que se dá no retorno ao natural. A última parte é uma reflexão crítica sobre o pensamento epicurista. Nela as conseqüências do pensamento epicurista são observados a partir de uma concepção que 2 BRUN, J. 1987. O Epicurismo, Trad. Rui Pacheco, Editora Edições 70. Lisboa. Portugal. 11p. Texto publicado pela Editora Abril Cultural, na coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni e Jaime Bruna. 3ª edição. São Paulo, 1985. 4 A editora não deixa claro de que textos foram tiradas as máximas traduzidas no livro. 5 Texto baseado na edição de G. Arrighetti, Epicuro. Opere, Torino, 1973. 3 não aceita a estagnação da realidade em conceitos e a anulação das multiplicidades dos desejos particulares. Este último dito foge do pensamento epicurista realizando uma negação deste. 2 EPICURISMO Foi no ano terceiro da 109.a Olimpíada (341 a.C.), no mês de Gamelion, que o pai da Filosofia do Jardim nasceu. Não se sabe ao certo se em Atenas ou em Samos, o certo é que seus pais eram atenienses o que o tornara um legitimo cidadão. Epicuro, em 306, compra uma casa com um imenso jardim em Atenas e lá instala sua Escola Filosófica que ficou conhecida como o “Jardim de Epicuro”. Na Escola o mestre morava na casa com seus amigos mais próximos e os seus discípulos dormiam em barracas armadas no jardim, onde plantavam hortaliças e viviam em uma pequena comunidade harmonizada com a natureza. A filosofia de Epicuro é dividida em três partes: a canônica, a física e a ética. Segundo (LAÉRCIO, 1988) essas partes estão distribuídas nas seguintes obras: A canônica é uma introdução ao sistema doutrinário, e constitui o conteúdo de uma única obra intitulada Cânon; a física abrange toda teoria da natureza, e constitui a matéria dos trinta e sete livros Da Natureza e, em suas linhas gerais, das Epístolas; a ética trata dos fatos relacionados com a escolha e rejeição, constituindo a matéria das obras Dos Modos de Vida, Epístolas e Do Fim Supremo6. (BRUN, 1987) qualificará as três partes da filosofia epicurista da seguinte forma: (...) a canônica, que é o fundamento da ciência e nos ensina quais são os meios à nossa disposição para distinguir o verdadeiro do falso; a física, que trata da geração, da corrupção e da natureza das coisas; a ética, que nos ensina o que devemos procurar e o que devemos evitar para conduzir a uma vida feliz. A canônica e a física têm como fim exclusivo preparar a ética; elas são um estudo dos fundamentos que permitirão libertar-nos das opiniões enganadoras para chegar a uma vida livre feita de quietude e equilíbrio7. Na Canônica, Epicuro escreverá sobre os critérios de validade de uma afirmação, pois é só a partir desses critérios que o sábio saberá escolher, dentre todas as impressões, quais são as falsas e quais são as verdadeiras, podendo assim ser verdadeiramente feliz. E o primeiro critério epicurista, sobre o conhecimento das coisas, é a sensação. É só através das sensações que o indivíduo pode abrir as portas da sapiência. Epicuro escreve no 1ª fragmento da Canônica, contida na Antologia de Textos, 6 LAÊRTIOS, D. 1988. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2ª edição. Editora UNB. Brasília. Brasil. 289p. 7 BRUN, J. 1987. O Epicurismo, Trad. Rui Pacheco, Editora Edições 70. Lisboa. Portugal. 24p. que: “Se recusas todas as sensações, não terás mais possibilidade de recorrer a nenhum critério para julgar as que, entre elas, consideras falsa.” 8 O segundo critério de conhecimento é a antecipação, (LAÉRCIO, 1988) define esse conceito da seguinte forma: Por antecipação eles entendem uma espécie de cognição ou apreensão imediata do real, ou uma opinião correta,ou um pensamento ou uma idéia universal ínsita na mente, ou seja, a memorização de objeto externo que apareceu freqüentemente, como quando dizemos: “isto aqui é um homem”. De fato, logo que se pronuncia a palavra “homem”, sua figura se apresenta imediatamente ao nosso pensamento por via de antecipação, guiada preliminarmente pelo sentido (...) as antecipações são imediatamente evidentes. Também aquilo que constitui uma opinião nova depende de uma visão anterior imediatamente evidente, à qual já nos referimos, quando por exemplo dizemos: “como sabemos que isto é um homem?9 Mas para uma opinião ser verdadeira é preciso que o que seja afirmado pelo sujeito seja confirmado ou não infirmado pelas as sensações, do contrário, se a afirmação não é confirmada ou contradiz as sensações, ela será uma opinião falsa. O terceiro critério de conhecimento é a afecção (ou paixões, ou sentimentos) que são :o prazer e a dor. É a partir das afecções (páthos) que o sábio construirá seu caminho, sua história, pois, é escolhendo o prazer e rejeitando a dor que o sábio encontrará a felicidade. Porém a filosofia epicurista não propõe um hedonismo desregrado, trata-se de uma ataraxia. (BRUN, 1987) explica: “As afecções são as impressões que os sentidos fazem em nós e, conforme estas impressões são agradáveis ou não, procuramos ou rejeitamos os objetos que as provocam.” 10 Há um quarto critério citado por Epicuro em suas obras, mas que é de obscura compreensão. Trata-se de afirmar algo sobre um objeto não percebido imediatamente pelas sensações. Epicuro escreve sobre as “representações intuitivas do pensamento”. (BRUN, 1987) escreverá que: “Digamos apenas que é provável que esta representação intuitiva do pensamento designe as conclusões as que nos permite chegar a não infirmação das sensações e das combinações de noções fundadas sobre sensações” 11 Epicuro alicerça sua física partindo da idéia de que a natureza sempre existiu e que não é preciso recorrer a fenômenos sobrenaturais para entendê-la. Com isso ele nega qualquer tipo de religião. A natureza é composta de átomos (ser) e vazio (não ser), sendo que nada pode ser gerado pelo não ser, o vazio não tem qualidade alguma e apenas serve de suporte para o movimento do ser. 8 EPICURO 1985. Antologia de Textos. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni e Jaime Bruna. 3ª Edição. Editora Abril Cultural. São Paulo. Brasil. 14p. 9 LAÊRTIOS, D. 1988. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2ª edição. Editora UNB. Brasília. Brasil. 290p. 10 BRUN, J. 1987. O Epicurismo, Trad. Rui Pacheco, Editora Edições 70. Lisboa. Portugal. 55p. 11 Ibid. 55-56p. Os átomos são partículas indivisíveis e imutáveis e se compreendem como um mínimo pensado. Tanto a matéria quanto o vazio são infinitos, Epicuro escreve na epístola a Herôdotos, encontrada em (LAÉRCIO, 1988), que: (...) o todo é infinito (...) pelo o número enorme de corpos e pela grandeza do vazio, por tanto se o vazio fosse infinito e os corpos fossem finitos, os corpos não permaneceriam em lugar algum e se moveriam continuamente, dispersos pelo vazio infinito, nem teriam um suporte, nem um impacto para a volta ascendente; se por outro lado o vazio fosse finito, os corpos, que são infinitos, não teriam onde estar. 12 Os átomos estão em movimento contínuo por toda a eternidade e existem eternamente, não havendo uma gênese. Todos os átomos movem-se com a mesma velocidade, mesmo tendo diferentes qualidades de peso, forma e tamanho. A quantidade de átomos é infinita e suas qualidades mesmo sendo finitas são inconcebíveis. Eles possuem uma característica de se desviarem de sua queda – clinamen –, o que justificará a liberdade de escolha da consciência humana e negará um determinismo fatalista herdado pelos atomistas anteriores. É no conceito de clinamen que o epicurismo marcará seu conceito de homem livre e apto a escolher entre as sensações as que mais lhe convém para ser feliz. Assim, a natureza é composta de matéria e vazio e é regida pelo movimento e colisões dos átomos. Tudo é átomo e vazio. A alma então é mortal e material. Os deuses são materiais e vivem nos intermundos. Como o Todo é infinito há infinitos planetas. O intelecto humano é uma conseqüência de uma determinada seqüência e posição de determinados átomos. Os fenômenos não obedecem a uma ordem premeditada, eles acontecem pelo acaso. O homem, por causa da noção de clinamem, possui autonomia da vontade e liberdade de escolha. 3 EPICURISMO – UMA FILOSOFIA MATERIALISTA A filosofia epicurista surgiu na época da decadência das cidades-estados, período em que o povo grego vivia um grande sentimento pessimista em relação à vida em sociedade. Nesse tempo os indivíduos estavam desgastados e dispersos em sistemas filosóficos obscuros ou em fantásticas crenças mitológicas. Epicuro surge, então, com uma proposta de filosofia baseada em um único propósito: ser feliz. Assim, a concepção de homem no epicurismo é marcado por uma excessivo retorno à um individualismo que deseja um reconciliamento com a natureza. A partir da idéia de átomo de Demócrito os epicuristas formaram uma idéia de homem enquanto matéria. O homem é pensado individualmente e a partir de suas afecções. O homem é só desejo. E é dentro da recusa de determinados desejos que ele atinge um estado de autosuficiência (autárkeia). A felicidade, para Epicuro, consiste na escolha de uma vida que evite ao máximo a dor e o sofrimento corporal e a intranqüilidade ou perturbação espiritual. Sendo que as intranqüilidades espirituais são as mais preocupantes para o indivíduo, porque geram dores não só por causa do presente, mas também por antecipar o futuro e relembrar o passado, ao passo que os sofrimentos corporais só se dão no presente. Para Epicuro existem dois tipos de felicidade: a absoluta, que é uma característica das divindades e a outra a obtida pela escolha racional da adição e subtração de prazeres, própria dos humanos. É na ausência de dor que Epicuro definirá o seu conceito de prazer, que é muito diferente da definição de quem o acusava de um hedonismo vulgar. Sobre o conceito de Prazer Epicuro escreve, na Epístola a Meneceus, citada em (LAÉRCIO, 1988), que: Então, quando dizemos que o prazer é a realização suprema da felicidade, não pretendemos relaciona-lo com a voluptuosidade dos dissolutos e com os gozos sensuais, como querem algumas pessoas por ignorância, preconceito ou má compreensão; por prazer entendemos a ausência de sofrimento no corpo e a ausência de perturbação na alma. 13 Epicuro, na busca do cálculo certo da quantidade de prazer a ser alcançado reivindica a posição indispensável do pensamento especulador e filosófico. Para ele a necessidade de prazer é primordial e congênita, assim a busca dos prazeres deve ser medida de forma racional e equilibrada, pois muitas vezes há prazeres que geram fortes dores futuras e dores que suportadas por algum período são fonte de grande prazer. Logo, o sábio é o indivíduo que racionalmente nega os prazeres dinâmicos e instáveis e procura desejar aquilo que o remete a um prazer estável, realizando um ato de ataraxia. Como critério de descriminação de todos os bens é imposto um império dos sentidos em que as sensações de prazer e dor darão as variáveis a serem utilizadas pelo pensamento especulativo. Epicuro remete para a matéria toda e qualquer verdade que possa ser alcançada, negando as tradições filosóficas que impunham uma interiorização do bem e negavam uma realidade absoluta material. Esse deslocamento do absoluto do campo do pensamento para a realidade material fez com que toda a filosofia epicurista fosse alicerçada no retorno à natureza, ou em última análise em um retorno ao absoluto enquanto matéria. A natureza gerada pelo movimento ou pelo rompimento da inércia dos átomos (ser) dentro do vazio (não-ser), é o 12 LAÊRTIOS, D. 1988. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2ª edição. Editora UNB. Brasília. Brasil. 292p. 13 LAÊRTIOS, D. 1988. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2ª edição. Editora UNB. Brasília. Brasil. 313p. uno infinito, repleto e perfeito. Logo, o sábio racionalmente tentará levar uma vida natural volvendo-se para o absoluto e cobrando de si uma identificação com a natureza material. Assim, o cálice do Jardim é a declaração da posição primordial da natureza ou da matéria dentro do pensamento ontológico. Fazendo com que o sábio tenha uma atitude humilde diante de sua mãe absoluta e procure viver em equilíbrio com ela e com os demais seres partindo da própria existência material e natural. Desmistificando os deuses, negando a imortalidade da alma e colocando o homem como responsável por suas escolhas. 4 FILOSOFIA DOS DESEJOS Epicuro por afirmar a positividade da natureza – ou seja, a natureza é o Bem – fundará toda sua filosofia do desejo numa perspectiva naturalista. Dessa forma há uma diferenciação dentro da sua filosofia que distingue os desejos de duas formas: os naturais e os infundados. Pelo próprio entendimento do organismo humano, conseqüente da procura racional da identidade do homem com o absoluto (a natureza), ele observa que só alguns tipos de desejos naturais são necessários para o indivíduo. Por sua vez a necessariedade dos desejos se dá na busca da realização da felicidade. Assim, o desejo é o sintoma de uma falta, porém essa falta pode partir da natureza ou de uma opinião falsa. Na Carta Sobre a Felicidade há a seguinte diferenciação dos desejos: Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; há alguns que são fundamentais para felicidade, outros para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda a escolha e toda recusa para a saúde do corpo e a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo. 14 Observa-se que para Epicuro existem desejos naturais e necessários (que são os desejos que livram o corpo dos sofrimentos da fome e da sede), os naturais e não necessários (esses desejos surgem da vontade de variar o alimento ou a bebida para variar o prazer do corpo) e os não naturais e não necessários (são os que nascem de uma opinião falsa sobre o mundo; são os alimentos da vaidade e do orgulho). O desejo, em Epicuro, é a primeira ligação com o objeto que sugere a vontade de movimento, isto é visto em (LUCRÉCIO, 1985): “(...) daqui nasce a vontade, efetivamente nada começa a realizar-se senão aquilo que o espírito previu e quis(...)”15; mas esse 14 EPICURO 1997. Carta sobre a Felicidade (A Meneceu). Trad. Álvaro Lorencini. Editora UNESP. 2ª Edição. São Paulo. Brasil. 35p. 15 LUCRÉCIO 1985. Da Natureza. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni e Jaime Bruna. 3ª Edição. Editora Abril Cultural. São Paulo. Brasil. 90p. § (885) primeiro contato deve ser negado pela estrutura racional do espírito, quando esse desejo não é natural nem necessário. Mas como saber exatamente se o desejo é natural e necessário? No 9a. fragmento da Ética, na Antologia de Textos16, Epicuro escreve que: “Aqueles desejos que não trazem dor se não são satisfeitos não são necessários; o seu impulso pode facilmente ser posto a parte, quando é difícil obter sua satisfação ou parecem trazer consigo algum prejuízo.” Nas Máximas Principais de Epicuro, citada em (LAÉRCIO, 1988), mas exatamente na 30a. máxima, tem-se a seguinte afirmação sobre os desejos naturais: “Os desejos naturais não seguidos de sofrimento, quando não são satisfeitos, embora seus objetos sejam ardentemente perseguidos, devem-se também a uma opinião ilusória; e quando não nos livramos deles não é por causa de sua própria natureza, mas por causa da opinião ilusória do homem.” 17 Fica claro que é dentro da sua existência que o homem encontrará os limites de seu corpo e se identificará pertencente a uma ordem universal (a natureza) – baseada na representação da matéria na forma de átomo – que ditará as regras convenientes para o alcance da felicidade. Como toda filosofia dos desejos de Epicuro tem uma finalidade concreta que é a eliminação das dores e a busca dos prazeres, o sábio deverá desejar os objetos simples e naturais e saber que, por ser imperfeito, sentirá dor inevitavelmente. A dor, para os epicuristas, pode ser necessária ou não; assim, existem as dores necessárias e outras obtidas por obra do acaso. As demais são conseqüência das nossas escolhas. Porém as dores necessárias são sempre passageiras e de curta duração e podem ser postas de lado facilmente. Ao assumir a imperfeição humana, a possibilidade probabilística de antecipar o futuro e a necessidade de prazer como primordial e congênito ao homem, Epicuro, vincula sabiamente a quantidade de desejos sentidos e a possibilidade de saciar a todos, com a vida feliz. Esse emparelhamento comparativo leva-o a uma filosofia da escolha dos desejos que podem ser saciados facilmente ou filosofia dos desejos necessários. Esse movimento de reduzir os desejos aos objetos que se pode ter, ou em última análise de reduzir os desejos aos voltados para o absoluto natural, levará o sábio a um estado de autarquia (autarkéia) que se dá no retorno ao natural, ao absoluto, ao bem, ou seja, ao de estar reconciliado consigo mesmo. Assim esse movimento de auto-suficiência se dá quando o sábio, através de uma reflexão filosófica (razão), entende a estrutura da natureza e nega os desejos que objetivam o não-idêntico, o antinatural, livrando-o da dor e o remetendo a uma identidade com a natureza, ou numa perspectiva mais radical: 16 EPICURO 1985. Antologia de Textos. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni e Jaime Bruna. 3ª Edição. Editora Abril Cultural. São Paulo. Brasil. 18p. 17 LAÊRTIOS, D. 1988. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2ª edição. Editora UNB. Brasília. Brasil. 319p quando o homem se apropria do pensamento racional para entender e retornar ao Ser. Epicuro escreve nos fragmentos 13, 14 e 16 respectivamente, da parte intitulada Ética, contida na Antologia de Textos, da Coleção Os Pensadores, que: E consideremos um grande bem o bastar-se a si próprio, não com o fim de possuir sempre pouco, mas para nos contentarmos com pouco no caso que não possuamos muito, legitimamente persuadidos de que desfrutam da abundância do modo mais agradável aqueles que menos necessidades têm, e que é fácil tudo que a natureza quer e é difícil tudo que é vaidade. (...) Se queres enriquecer Pítocles, não lhe acrescenta riquezas: diminuilhe os desejos. (...) A quem não basta pouco nada basta. 18 Como paradigma de uma vida sábia o jardim descreve a vida dos deuses. Eles são completos e de nada precisam, são figuras plenas e eternas. Os deuses não carecem de nada, vivem um eterno prazer, sem medos e faltas, ou seja, uma vida sem desejos. Sobre a vida dos deuses Epicuro escreve na Epístola a Meneceus, que: Em primeiro lugar considera a divindade um ser vivo e feliz, de acordo com a noção da divindade impressa em nós pela natureza, e não lhe atribuas coisa alguma estranha à imortalidade ou incompatível com a felicidade. 19 O sábio, então, buscará divinizar-se ou absolutizar-se; no final da Carta Sobre a Felicidade20, Epicuro descreve o sábio como um deus entre os homens, “porque não se assemelha absolutamente a um mortal o homem que vive entre os bens imortais.” Logo, o sábio por bastar-se a si mesmo vive uma vida isolada e orgulhosa? Não, pois embora surja a tentação de compreender os epicuristas como indivíduos orgulhosos e vaidosos, vê-se em toda sua obra uma recusa de todo e qualquer desejo não natural. Não se pode confundir o momento de autarquia do sábio com uma autofilia ou autolatria, pois a escolha epicurista não é um movimento interno voltado para vaidade, e sim, um movimento de não-desejo ou de não objetivação do desejo conseqüente de uma opinião falsa. Mas como um indivíduo pode ser feliz amputando de si os desejos mais intensos que se pode viver? Ou como uma vida tão comedida não levará o sábio a uma vida mórbida e sem graça? Ou ainda, porque o medo da diferença? Na verdade não há uma amputação dos desejos e sim um redirecionamento deles para objetos verdadeiros e naturais, que podem ser saciados facilmente, não gerando dor. Para o Jardim, a vida feliz não é agitada e dinâmica, e sim, tranqüila e equilibrada, o sábio se entrega somente a desejos simples e naturais. Logo, o homem só não é feliz quando não compreende que a natureza possui tudo que ele necessita para saciar seus desejos naturais e necessários. 18 EPICURO 1985. Antologia de Textos. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni e Jaime Bruna. 3ª Edição. Editora Abril Cultural. São Paulo. Brasil. 18p. 19 LAÊRTIOS, D. 1988. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2ª edição. : Editora UNB. Brasília. Brasil. 311p. 20 EPICURO 1997. Carta sobre a Felicidade (A Meneceu). Trad. Álvaro Lorencini. Editora UNESP. 2ª Edição. São Paulo. Brasil. 51p. Assim, para os epicuristas, ser feliz é gozar com o simples, com o necessário e isso a natureza oferece facilmente. E o amor (eros), o mais intenso dos desejos, o que nunca se sacia, pelo próprio risco de não mais sê-lo? Pois se amar é desejar eternamente e o desejo é sintoma de dor, então, o maior dos males é o amor? Essa resposta pelo dever amar fica um pouco mais clara em Lucrécio, que no Da Natureza escreve: (...) é o amor o único objeto que, quanto mais possuímos, tanto mais incendeia nosso peito com terríveis desejos. De fato, a comida e a bebida são levadas para o interior do corpo e como podem ficar alojados em lugares determinados, é fácil satisfazer o desejo de líquidos e frutos.(...)(porém) Vênus, no amor, ilude os amantes com a imagem: não podem saciar-se olhando o corpo que lhe apresenta nem podem com as mãos arrancar seja o que for dos delicados membros, e incertos erram por todo corpo. Depois, quando, enlaçados os membros, gozam da flor da idade, já quando o corpo pressagia o prazer e já quando Vênus semeia os campos femininos, avidamente prendem o corpo, misturam a saliva das bocas e lhes inspiram o bafo, oprimindo os lábios com os dentes; e tudo inútil porque nada podem roubar a esse corpo e nele não podem, com todo o corpo, penetrar e aniquilarse. Realmente é isto o que parecem tentar fazer num esforço violento: a tal ponto se enleiam, desejosos, nos laços de Vênus, quando os membros desfalecem abalados pela força da paixão. Finalmente, quando irrompe o amor acumulado nos nervos, faz-se por algum tempo uma pequena pausa no violento ardor. Em seguida, volta a aquela mesma raiva, torna a vir aquele furor, visto que eles próprios procuram saber aquilo que desejam e não podem descobrir o meio de vencer aquele mal; de tal modo estão incertos acerca da invisível ferida que os põe doente.21 Nota-se neste trecho que o desejo a objetos imaginários é uma doença que leva o enfermo a uma busca inútil da felicidade. Desejo epicurista é, então, desejo do simples, do que se pode ter, do natural ou tomando uma posição filosófica: desejo epicurista é desejo de retorno ao ser (natureza). Desejo que pode ser consumado em prazer quando o sábio se remete a um estado de auto-suficiência. Mas o movimento mais importante da filosofia epicurista não é de negação, e sim, o de afirmação do desejo enquanto estático, ou seja, desejo de se manter idêntico à natureza. É necessário citar a importância do pensamento filosófico na procura da vida feliz. É através do esforço intelectual que o sábio emerge da multidão e vive o prazer, pois a sabedoria é a bússola que orientará o indivíduo pela estrada da vida e o conduzirá a felicidade. Ser sábio é ser racional e entender a natureza, é notar que não carecemos de nada quando nos harmonizamos com ela. Sobre a sapiência, Epicuro escreve na Epístola a Meneceus que: (...) a possessão mais preciosa da própria filosofia é a sabedoria, origem natural de todas as outras formas de excelências restantes; com efeito, ela ensina que não se pode levar uma vida agradável se não se vive com sabedoria, moderação e justiça, nem se pode levar uma vida sábia, moderada e justa se não se vive agradavelmente. 22 21 LUCRÉCIO 1985. Da Natureza. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni e Jaime Bruna. 3ª Edição. Editora Abril Cultural. São Paulo. Brasil. 93p. 22 LAÊRTIOS, D. 1988. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2ª edição. Editora UNB. Brasília. Brasil. 313p. A filosofia é a ponte entre o indivíduo e a felicidade, é nela que o sábio se põe livre dos desejos instáveis e dinâmicos, e encontra o verdadeiro afastamento da dor. O sábio antes de tudo é filósofo, pois é no seu filosofar que ele, racionalmente, aprende a gozar com a natureza, ou seja, a ter sapiência. É através da filosofia que o sábio descobre os critérios para entender os desejos, o prazer e a felicidade. Filosofar é querer ser feliz, é desejar em ato a felicidade, porém não se deve desejar filosofar como se não se estivesse ainda, pois, desejar filosofar porque não se filosofa ainda não é sábio e muito menos prazeroso, ainda é somente desejo, e filosofar não é só um desejo é também uma ação. Não que o tolo não possa desejar filosofar, pelo contrário, o desejo de saber é natural, já que se deseja o que se pode ter. Sobre a importância da filosofia, Epicuro, escreve, no 2ª e 1ª fragmentos, respectivamente, da parte intitulada A Filosofia e Seu Objetivo, que: Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz. E que: Todo desejo incômodo e inquieto se dissolve no amor da verdadeira filosofia.23 Fica entendido como é fácil ser feliz isoladamente, mas sabendo que o homem vive em sociedade, como é possível pensar numa moral epicurista? E mais, já que a filosofia de Epicuro baseia-se na ordem do átomo e do vazio – do ser e do não-ser – e ambos não possuem uma moral, então a proposta do Jardim desemboca num niilismo? Em hipótese alguma, pois apesar de Epicuro defender que não exista uma moral absoluta ele impõe um modo de vida que depende necessariamente de um convívio conveniente entre os indivíduos, para que estes façam pactos para não se prejudicarem na busca da felicidade. Assim, a justiça parte de um relativismo, porém acaba em um universalismo, em um pacto moralista em que os indivíduos procuram uma maneira útil de viver em harmonia com a natureza e entre si. O que a Filosofia do Jardim propõe não é uma anulação do justo, ou da justiça, mas a impossibilidade de uma justiça absoluta. Nos fragmentos 23 e 25, no que se refere à Ética, Epicuro escreve: A justiça não tem existência por si própria, mas sempre se encontra nas relações recíprocas, em qualquer tempo e lugar em que exista um pacto de não produzir nem sofrer danos.” E continua no fragmento 25: Das normas prescritas como justas, o que é considerável útil nas necessidades da convivência recíproca tem o caráter justo, embora no fim não seja igual para todos os casos. Se, pelo contrário, se estabelece uma lei que depois 23 EPICURO 1985. Antologia de Textos. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni e Jaime Bruna. 3ª Edição. Editora Abril Cultural. São Paulo. Brasil. 13p. não se revela conforme a utilidade da vida recíproca, então não se conserva o caráter de justo. 24 Logo, o único propósito da justiça é garantir a serenidade e a tranqüilidade da vida do sábio, ela depende da sua utilidade prática e quando ela já não é mais útil à vida em comunidade não é mais justa. A lei existe, então, para que os sábios não sejam perturbados em sua vida equilibrada e harmônica, ou seja, as leis existem para os tolos, para os que não entendem a vida simples e natural. Fica claro que o sábio não espera a paz, ou a justiça, ele vive em paz e como justo. Pois se o objetivo da vida é buscar a felicidade e se a felicidade é reflexo de uma vida serena e se o fruto máximo da justiça é justamente a serenidade do espírito, o sábio por ser sereno e feliz não precisa mais teoricamente do remédio contra a intranqüilidade e a perturbação, ou seja, de justiça. Na verdade a justiça é uma conseqüência da necessidade de uma lei que dê utilidade à convivência recíproca entre os indivíduos. O epicurista por ter encontrado a fórmula da felicidade e da vida justa – a autarquia – por isso não precisará mais de ninguém e viverá totalmente isolado e indiferente para com o resto da humanidade? Não, pois Epicuro mesmo escreve no fragmento 44, na Ética que: “O sábio que se pôs à prova das necessidades da vida, melhor sabe dar generosamente que receber: tão grande é o tesouro de íntima segurança e independência dos desejos que em si possui” 25. Mas com quem se deve compartilhar o prazer da vida tranqüila, ou seja, com quem se deve compartilhar a amizade? Com outros sábios ou com quem se dispõe a filosofar e aprender a ser feliz dirá Epicuro. Pois a amizade não deve ser entendida como carência da utilidade de alguém, mas sim como um sentimento que é desejável por si próprio. A amizade se dá em ato e não em expectativas, por isso, o sábio procura necessariamente a amizade de outro sábio, porque só esse irá também compartilhar do mesmo desejo. Observa-se, ainda, a importância da amizade para o sábio no 35ª fragmento: “De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade” 26. Aqui retomamos o amor, mas não como eros, e sim como philia, amor que se dá entre idênticos. O sábio tem amizade não pelo outro, mas pelo mesmo, por aquele que também reduziu sua existência ao comedimento e a vida natural. A amizade é um bem conseguido com a especulação racional que entende o que é natural. Isso fica claro na 27a. máxima, que diz: “De todos os bens que a sabedoria proporciona para produzir a 24EPICURO 1985. Antologia de Textos. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni e Jaime Bruna. 3ª Edição. Editora Abril Cultural. São Paulo. Brasil. 19p. 25 Ibid. p. 20 26 Ibid. p. 20 felicidade por toda vida, o maior sem comparação, é a conquista da amizade.” 27 A amizade é o regozijar-se com o idêntico, com o mesmo... Amizade é desejo estável, alegria, vida... é compartilhar a contemplação da natureza... é prazer de se enxergar idêntico a partir do mesmo. 5 CONCLUSÃO CRÍTICA O pensamento Epicurista parte da negação da dialética platônica e da afirmação da verdade como dada a partir dos critérios baseados na evidência imediata, a sensação. Esse movimento de positivação da matéria como suporte da absolutidade limita a filosofia epicurista a entender a natureza como um conceito imutável e absoluto, o que leva o sábio a uma condição de contemplação e não de transformação. Essa contemplação leva o indivíduo a encarar o mundo como inerte, ainda quando em movimento permanente do ponto de vista atômico, e não como passível de um processo de desenvolvimento histórico. Essa reivindicação filosófica agride o homem pensado na cultura, eliminando toda a possibilidade de multiplicidade e de transformação histórico-social que possa existir em uma comunidade, fazendo com que aja uma idealização de um sábio-deus, que nunca se entedia com o idêntico, com o mesmo. Então, o jardim, em última analise nega não só a multiplicidade dos desejos como também a ação transformadora do homem na natureza, a cultura. Assim, Filosofia do Desejo em Epicuro é desejar não desejar, é querer permanecer idêntico, é querer permanecer no bem, entendido a partir da sua idéia de natureza. O erro da filosofia epicurista é de não entender que a felicidade não será atingida isoladamente, negando as diferenças, mas entendendo o homem como construtor das suas experiências propriamente humanas, isto é, sociais e históricas. O mundo não precisa de um conceito de felicidade, mas de uma aceitação da multiplicidade da nossa experiência. Que se afirme a dúvida, porém que seja negada a alienação. 27 LAÊRTIOS, Diógenes 1988. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2ª edição. Editora UNB. Brasília. Brasil. 319p. 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRUN, J. 1987. O Epicurismo. Trad. Rui Pacheco. Editora Edições 70. Lisboa. Portugal. 11p. EPICURO 1997. Carta sobre a Felicidade (A Meneceu). Trad. Álvaro Lorencini. Editora UNESP. 2ª edição. São Paulo. Brasil. EPICURO 1985. Antologia de Textos. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni e Jaime Bruna. Editora Abril Cultural. 3ª edição. São Paulo. Brasil LAÊRTIOS, D. 1988. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2ª edição. Editora UNB. Brasília. Brasil. LUCRÉCIO 1985. Da Natureza. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni e Jaime Bruna. 3ª Edição. Editora Abril Cultural. São Paulo. Brasil.