SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE PROGRAMA DE APRIMORAMENTO PROFISSIONAL MILLA BERNAL ROSSI HEMOFILIA: O CUIDADO E A DIMENSÃO PSICOLÓGICA DO ADOECIMENTO Marília 2013 SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE PROGRAMA DE APRIMORAMENTO PROFISSIONAL MILLA BERNAL ROSSI HEMOFILIA: O CUIDADO E A DIMENSÃO PSICOLÓGICA DO ADOECIMENTO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Aprimoramento Profissional/SESFundap, elaborado na Faculdade de Medicina de Marília em Psicologia Hospitalar, sob a orientação da Profa. Silvana de Oliveira Cantu Área: Saúde Mental. Marília 2013 R833h Rossi, Milla Bernal Hemofilia: o cuidado e a dimensão psicológica do adoecimento. - - Marília, SP: [s,n,], 2013. Orientadora: Profª Ms. Silvana de Oliveira Cantu Trabalho de Conclusão de Curso (Programa de Aprimoramento Profissional) – Secretaria de Estado da Saúde-Fundap, elaborado na Faculdade de Medicina de Marília em Psicologia Hospitalar. Área: Saúde Mental. 1. Hemofilia A. 2. Psicologia. 3. Assistência à saúde. 4. Qualidade de vida. Milla Bernal Rossi Hemofilia: o cuidado e a dimensão psicológica do adoecimento Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Aprimoramento Profissional/SESFundap, elaborado na Faculdade de Medicina de Marília em Psicologia Hospitalar. Área: Saúde Mental. Comissão de Aprovação: ___________________________________ Profa. Ms. Silvana de Oliveira Cantu Supervisora/Orientadora ____________________________________ Profa. Ms. Camila Mugnai Vieira Coordenadora PAP (SES/Fundap) – FAMEMA Área: Saúde Mental ___________________________________ Profa. Dra. Roseli Vernasque Bettuni Coordenadora PAP (SES/Fundap) – Famema Data de Aprovação: ___________________ DEDICATÓRIA Gostaria de dedicar esse trabalho aos portadores de hemofilia e suas famílias, por vivenciarem as limitações impostas pela doença, mas sempre na busca por superação e na esperança de uma melhor qualidade de vida. Dedico também aos pacientes do HCI, Hemocentro, Oncoclínica e HMI, em que tive a oportunidade de atender e amenizar tal sofrimento, diante de tantas perdas causadas por uma doença crônica. AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer em primeiro lugar aos meus pais, por terem me proporcionado a oportunidade de ter realizado o aprimoramento e pela motivação, carinho e incentivo que sempre me deram ao iniciar essa profissão. Aos supervisores Noemi, Francelle, Priscila, Sônia, Danielle e Heraldo que contribuíram de forma significativa, cada um à sua maneira, para o meu aprendizado e para meu crescimento profissional e pessoal durante esse tempo, em especial a minha orientadora Silvana, que com muita paciência me ajudou a construir esse trabalho. Agradeço também aos meus amigos e ao meu namorado que estiveram sempre ao meu lado e a minha terapeuta, que possibilitou a compreensão de muitas coisas e me fortaleceu para continuar nessa jornada. Muito obrigada a todos! “Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro.” (Sigmund Freud) RESUMO O presente trabalho refere-se ao cuidado atual destinado à hemofilia, avanços ocorridos no tratamento e as implicações físicas, sociais e psicológicas que emergem deste processo relacionado ao adoecimento. Pretende-se ainda estudar os aspectos psicológicos do portador de hemofilia e de sua família, abordando esta dimensão e o papel do psicólogo no cuidado, junto da equipe multidisciplinar. A partir destes objetivos, utilizou-se a modalidade de pesquisa bibliográfica, através de consulta e análise de contribuições científicas existentes sobre esta temática. Autores descrevem que com a criação de novas ações terapêuticas e avanços no diagnóstico, a equipe multidisciplinar de saúde contribuiu de forma significativa no processo de tratamento, viabilizando o acompanhamento integral (biopsicossocial) e o vínculo com o portador de hemofilia e sua família. Os aspectos psicológicos suscitados no hemofílico necessitam de atenção e cuidado durante a aderência ao tratamento, pois as limitações impostas pela doença desencadeiam sentimentos como a angústia, ansiedade e temor não só no paciente, mas em sua família também, que se relaciona com o mesmo e vivência tal sofrimento. Conclui-se que, em geral, a revisão bibliográfica reforça a necessidade de atenção às vivências emocionais do portador de hemofilia e sua família, com a possibilidade da intervenção psicológica proporcionar o cuidado de todos os envolvidos na dinâmica do tratamento, considerando paciente, família e equipe no cuidado em saúde. Palavras-chave: Hemofilia A. Psicologia. Assistência à saúde. Qualidade de vida. ABSTRACT The present work refers to care for the current hemophilia, advances in the treatment and the implications of physical, social and psychological changes that emerge from this process related to the illness. The aim is also to study the psychological aspects of patients with hemophilia and their families, addressing this dimension and the role of psychologists in care, with multidisciplinary team. From these objectives, we used a form of literature, through consultation and analysis of existing scientific contributions on this topic. Authors describe that with the creation of new therapeutic and diagnostic advances in the multidisciplinary health team contributed significantly in the treatment process, enabling full monitoring (biopsychosocial) and the link to the carrier of hemophilia and their families. The psychological aspects raised in hemophilic need attention and care during their treatment, because the limitations imposed by the disease trigger feelings of distress, anxiety and fear not only the patient but also for his family, which relates to the same and experience such suffering. We conclude that, in general, the literature review reinforces the need for attention to the emotional experiences of patients with hemophilia and their families, with the possibility of psychological intervention to provide care to everyone involved in the dynamics of treatment considering patient, family and staff in health care. Keywords: Hemophilia A. Psychology. Health care. Quality of life. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 09 2. OBJETIVOS 12 2.1 Objetivo Geral 12 2.2 Objetivo Específico 12 3. MÉTODO 13 4. DESENVOLVIMENTO 14 4.1 A história da hemofilia 14 4.2 Hemofilia e tratamento clínico 17 4.3 Aspectos psicológicos e hemofilia 20 4.4 Avanços no tratamento e qualidade de vida 31 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 34 6. REFERÊNCIAS 36 9 1. INTRODUÇÃO A Organização Mundial de Saúde (1983) define saúde não apenas como a ausência de doença, mas como a condição de perfeito bem-estar físico, mental e social. Sabe-se que a prática regular de atividades físicas, hábitos alimentares, controle do stress, integração social e o reconhecimento do próprio corpo, podem ser comportamentos determinantes na promoção da saúde e qualidade de vida. O adoecer encontra-se etiologicamente ligado a alguns fatores: O fator predisponente pode ser constitucional, de natureza genética, transmitido através da herança cromossômica e pode também, ser adquirido, surgindo como resultado da modelagem que o meio ambiente (familiar, cultural, social, entre outros) exerce sobre a criança, particularmente no primeiro ano de vida. São os chamados mecanismos modeladores do temperamento e da personalidade. O fator desencadeante pode estar relacionado com as condições físicas do meio ambiente que cerca o indivíduo, como também, com o estilo de vida que ele adota para si (PINHEIRO, 1992, p.76). A doença pode ser desencadeada de duas maneiras, uma aguda que é transitória e breve e a outra, crônica, mais prolongada e lenta, que pode progredir, deter-se ou regredir até a cura. As doenças crônicas podem ser graves, com sintomas que persistem continuamente, sendo incomodativas, levando a limitações físicas, sociais e psicológicas, comprometendo assim, a qualidade de vida do indivíduo (MARTINS; FRANÇA; KIMURA, 1996). A hemofilia é uma doença hereditária e crônica, causada por uma mutação no cromossomo X, provocando deficiência na coagulação do sangue, sendo as mulheres portadoras e geralmente assintomáticas à doença. É caracterizada por hemorragias frequentes e involuntárias, que podem ocorrer em qualquer local do organismo, entretanto, os mais frequentes observados são as intra-articulares (hemartroses) e as musculares (hematomas) incapacitando o portador fisicamente no caso de crises não tratadas ou tratadas tardiamente (CARAPEBA; THOMAS, [2007?]). De acordo com o Ministério da Saúde (2009), a hemofilia é classificada nos tipos A e B. Portadores de hemofilia A são deficientes do fator VIII e, do fator IX os portadores de hemofilia B. As hemorragias ocorrem nos dois tipos, porém a gravidade dos sangramentos depende da quantidade de fator residual no plasma do paciente (líquido que representa 55% do volume total do sangue). 10 Durante os primeiro diagnósticos da doença, havia muitas pesquisas sobre o princípio dos sangramentos, mas ainda assim, os hemofílicos tinham uma vida curta e muito difícil, considerando os aspectos biopsicossociais suscitados diante da doença. Os avanços em relação ao tratamento da hemofilia ocorreram a partir da descoberta do concentrado de fator, quando Judith Pool (1965) apresentou o procedimento de obtenção do “crioprecipitado” à partir do plasma fresco, amplamente utilizado no tratamento da hemofilia, porém hoje substituído pelos concentrados e hiofilizados de fator VIII ou IX, isentos de risco de transmissão de doenças infecto- contagiosas. O plasma é a parte líquida do sangue e contém vários tipos de proteínas, sendo algumas destas proteínas os fatores de coagulação, incluindo o Fator VIII e Fator IX. Logo após tornou-se viável a separação do plasma dos outros componentes sanguíneos, permitindo assim um estudo mais aprofundado a respeito (SOPHIA, 2010). Historicamente, a contaminação dos pacientes hemofílicos por doenças infecto contagiosas, em decorrência da terapia de reposição em produtos derivados do plasma humano, apresentou dois grandes impactos caracterizados pela aquisição do vírus da hepatite C e pelo vírus da Imunodeficiência humana predominante nas décadas de 80 e 90, respectivamente. Tais fatos ocorreram porque naquela época não se disponibilizava de teste sorológico protocolado para pesquisa de vírus da hepatite C e por outro lado, o grande número de doadores em soro conversão para HIV que não eram detectados pelos testes disponíveis na ocasião. Felizmente nas ultimas décadas, houve um expressivo incentivo tanto na sensibilidade dos testes sorológicos de doadores quanto na tecnologia industrial do processamento de derivados plasmáticos hiofilizados. Com isso, hoje os pacientes hemofílicos, recebem tratamento de reposição de alta qualidade para o controle dos sangramentos e isenção do risco de aquisição de doenças infecto-contagiosas. Atualmente existe o tratamento profilático, feito em portadores de hemofilia A e B grave, de uma a três vezes por semana, antes que as hemorragias aconteçam e o tratamento por demanda, em que o hemofílico precisa ter um episódio hemorrágico para depois utilizar o fator. O Sistema Único de Saúde (SUS) garantiu a partir de 2011 a oferta de tratamento preventivo para crianças menores de três anos com hemofilia grave A e B, sendo caracterizado como o programa de profilaxia primária. O mesmo visa à prevenção do desenvolvimento da artropatia hemofílica, principal complicação da doença. O tratamento é através da infusão venosa do concentrado de fator deficiente (VIII ou IX) de uma a três 11 vezes na semana, independente da ocorrência de sangramento até os 18 anos de idade (PANHAM, 2012). Com a criação de novas ações terapêuticas e avanços no diagnóstico, a equipe multidisciplinar de saúde contribuiu de forma significativa no processo de tratamento, fazendo o acompanhamento integral (biopsicossocial), estabelecendo um vínculo com o portador de hemofilia e sua família, que depositam confiança nos Centros de Tratamento. Os aspectos psicológicos suscitados no hemofílico necessitam de atenção e cuidado durante a aderência ao tratamento, pois as limitações impostas pela doença desencadeiam sentimentos como a angústia, ansiedade e temor não só no paciente, mas em sua família que também vivencia sofrimento. O impacto do diagnóstico gera conflitos que podem afetar o convívio social, a dinâmica familiar, interferindo no desenvolvimento e na formação da personalidade. Diante dessa problemática, a inserção do psicólogo na equipe multidisciplinar contribuiu de forma importante no enfoque da integralidade proposta para o cuidado do portador de hemofilia. Romano (1999, p.79) destaca, “[...] o primeiro fator que identifica uma equipe multiprofissional passa a ser a percepção, a crença de seus integrantes, de que o conhecimento não é algo isolado e fragmentado”. O atendimento psicológico disponibilizou técnicas de intervenção que auxiliaram no enfrentamento das possíveis dificuldades, limitações e sentimentos que emergiram da confrontação do hemofílico com a própria doença, junto ao apoio e as orientações à família. Outra tarefa importante do psicólogo é a escuta singular, identificando as verdadeiras necessidades do paciente e implicá-lo em seu tratamento, facilitando a aderência, tornando-o mais seguro emocionalmente e compatibilizando-o com suas funções sociais dentro de seus limites, assim proporcionando uma melhor qualidade de vida. 12 2. OBJETIVOS 2.1 Objetivo Geral Este trabalho tem como objetivo geral a conclusão do curso de Aprimoramento Profissional em Psicologia Hospitalar, junto à Faculdade de Medicina de Marília. Propõe-se descrever os avanços ocorridos no tratamento da hemofilia e os aspectos psicológicos do portador e de sua família, intervindo junto da equipe multidisciplinar no processo de adoecimento e tratamento, com ênfase em uma visão biopsicossocial do cuidado. 2.2 Objetivo Específico Como objetivo específico, este trabalho visa realizar uma revisão de literatura existente acerca do tratamento da hemofilia e dos aspectos psicológicos do portador desta doença e de sua família, abordando esta dimensão e o papel do psicólogo no cuidado, junto da equipe multidisciplinar. 13 3. MÉTODO O método utilizado para a elaboração deste trabalho foi de pesquisa bibliográfica, através de consulta e análise de contribuições científicas já existentes, onde se fez o levantamento de literaturas publicadas, artigos, documentos eletrônicos, realizando buscas em bases de dados SCIELO e por meio da Biblioteca Virtual em Saúde – Sistema Bireme no diretório LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde) utilizando os seguintes descritores: hemofilia A, psicologia, assistência à saúde e qualidade de vida. Não foi delimitado um período de tempo referente ao ano de publicação para a busca da bibliografia, uma vez que os materiais existentes apresentavam dados importantes para o historicizar a doença e o cuidado da psicologia. O material foi selecionado conforme o preenchimento dos requisitos propostos e aproximado com o tempo proposto, findando em uma análise do material bibliográfico obtido. 14 4. DESENVOLVIMENTO 4.1 A História da Hemofilia A história da hemofilia começa no século II D.C. encontradas em textos judaicos, onde é descrita a decisão do patriarca Rabbi-Judah, que isenta um filho de uma mulher a realizar uma circuncisão (operação para remover a prega de pele que cobre a glande do pênis), quando os seus dois primeiros filhos morreram de hemorragia depois dessa tradição religiosa. Os rabinos descobriram que esta característica só se apresentava em algumas famílias, embora ainda não existisse um nome, nem sintomas claros da doença (SOPHIA, 2010). No século X, um homem chamado Albucasis, médico árabe, descreveu algumas famílias, em que meninos morriam após ferimentos leves ou simples cirurgias. Já no século XII, o médico judeu Moses Maimenides, descobriu que era a mãe quem transmitia a hemofilia aos filhos e aplicou a decisão rabínica, de isentá-los das circuncisões devido as hemorragias. No final do século XVIII, período denominado científico, iniciam as primeiras descrições aceitáveis e prováveis de serem relativas à doença (SOPHIA, 2010). Em 1791, foi divulgada a ocorrência de hemorragias fatais em seis irmãos da família Zoll. Este pode ter sido o primeiro registro sobre a doença. No ano de 1800, o médico americano John C. Otto estudou sua árvore genealógica e encontrou casos entre os anos de 1720 e 1730. Em 1803, o mesmo descobriu a genética da hemofilia tipo A, constatando que embora as mães não apresentassem sintomas hemorrágicos, poderiam transmitir a hemofilia aos seus filhos do sexo masculino e eles aos seus netos e bisnetos. Segundo Sophia (2010) até o ano 1828, a doença teve vários nomes, mais o tratado de Hopff a batiza com o estranho nome de Hemofilia, que significa “amor ao sangue”. Em 1840, a primeira transfusão de sangue é realizada em Londres, após o médico Samuel Lane, perceber que alguma coisa poderia estar faltando no sangue dessas pessoas, devido a uma hemorragia pós-operatória. A história da hemofilia também está ligada as famílias reais, mais diretamente à rainha Vitória da Inglaterra, que teve nove filhos, entre eles um hemofílico, chamado Leopoldo e duas filhas possivelmente portadoras. Estas se casaram e transmitiram a três de seus netos e seis bisnetos. Esses descendentes fizeram com que a hemofilia, sendo uma doença de ordem hereditária, disseminasse entre famílias reais da Espanha, Alemanha e Rússia (SOPHIA, 2010). 15 No ano de 1886, Sir Frederick Treves, médico da Rainha Vitória, descreveu sobre a ocorrência da hemofilia em mulheres de um casamento entre primos de 1° grau, realizando uma importante descoberta: a hemofilia na mulher pode acontecer, quando o pai dela for hemofílico e a mãe portadora de hemofilia, portanto, situação bastante rara. Em 1890, Koning descreve pela primeira vez, detalhadamente o envolvimento das articulações. A partir daí, ocorreram novos estudos e pesquisas sobre o tratamento, embora, até o início de 1900, a vida do hemofílico ainda fosse muito curta e difícil. Em 1901, os cirurgiões gerais dos Estados Unidos publicaram uma lista de tratamentos usados em hemofilia no livro de Referência, sendo eles: gás puro de oxigênio ou glândula tireoide, medula óssea, água oxigenada ou gelatina. Nessa ocasião vários trabalhos e experimentos foram realizados, como em 1934, onde o professor Hamilton Hartridge e R. G. MacFarlane descobriram que determinados venenos de cobra faziam o sangue coagular, testando venenos de mais de 20 espécies. Embora funcionasse para estancar o sangue em uma ferida superficial, seria muito perigoso usá-los em hemorragias internas e bem mais graves (SOPHIA, 2010). Nessa época, os profissionais de saúde já faziam a transfusão de sangue, em que o mesmo começou a ser analisado a partir da sua composição, entendendo-se que o plasma é a parte líquida do sangue, que apresenta vários tipos de proteínas. Algumas destas proteínas são os fatores de coagulação, incluindo o Fator VIII e o Fator IX. Descobre-se também, que o corpo possui dois sistemas de coagulação: o sistema extrínseco (corresponde ao sangramento de pequenos ferimentos) e o sistema intrínseco que corresponde às hemorragias internas como articulações e músculos. Estas últimas necessitam de maior atenção e cuidado, pois não se consegue controlar facilmente, já os ferimentos superficiais são geralmente bem manejados pelos hemofílicos. As pesquisas sobre a hemofilia foram caminhando para encontrar uma maneira de se separar o fator VIII (proteína existente no plasma) do plasma, pois já se sabia que a causa da doença estava na ausência de tal proteína. Foi em 1965 que a médica Judith Pool descobre uma maneira de isolar a fator VIII através da observação do plasma congelado em processo de degelo. Ela verificou que os flocos estavam sedimentados no fundo da bolsa, os quais receberam o nome de crioprecipitado, “Crio” – significa frio e “precipitado” significa algo que fica sedimentado, assim surgiu uma forma de isolar o fator VIII do plasma humano, sendo esse, um dos avanços mais importantes no tratamento da hemofilia (SOPHIA, 2010). Junto desses avanços, ocorreram transmissões do vírus da hepatite A, B e C e do vírus HIV através dos fatores nas transfusões de sangue dos doadores para o portador de 16 hemofilia, ou seja, não havia um controle sorológico até o ano de 1984, colocando em risco a vida do mesmo e provocando discriminações e atitudes preconceituosas ao associarem hemofilia a AIDS. 17 4.2 Hemofilia e Tratamento Clínico A hemofilia é uma doença congênita hemorrágica, que se caracteriza por uma deficiência na coagulação do sangue. Todo homem (XY) herda um cromossomo X de sua mãe e um cromossomo Y de seu pai. O gene que causa a hemofilia está localizado no cromossomo X, portanto a mãe é portadora da doença e transmite ao filho. Apesar de ser muito raro, uma menina pode nascer com hemofilia, se no caso o pai for hemofílico e mãe for portadora, ou caso haja duas mudanças nos cromossomos sexuais X ao mesmo tempo, o que é muito difícil (RODRIGUES, 2005) Existem dois tipos de hemofilia, que são classificadas de acordo com a deficiência de fator plasmático VIII ou IX, respectivamente. Clinicamente ambos podem ser leve, quando o fator residual está entre 5% a 30%, moderada, quando há a presença de 1% a 5% e grave, quando há menos de 1% de fator no sangue. Os primeiros sintomas podem ser diagnosticados já nos primeiros meses de vida e podem ser desde bem leves até manifestações mais graves. Os sangramentos podem ser espontâneos, ou seja, sem que ocorra um trauma ou lesão, causando aumento da temperatura local, formigamento, edema, inchaço e dor, trazendo danos constantes e incapacitantes se não forem tratados rapidamente e adequadamente (RODRIGUES, 2005). As hemartroses são as hemorragias mais frequentes no portador de hemofilia. Podem ocorrer repentinamente, ficando a articulação cheia de sangue, rígida, quente e assim tornando-se dolorosa. As articulações mais atingidas são o joelho, cotovelo, tornozelo, fémur e demais articulações (RODRIGUES, 2005). Os hematomas localizados na pele causam desconforto e podem provocar febre e infecções, mas não têm significado clinico importante. Os hematomas profundos são intramusculares e provocam dor e edema, podendo ser graves dependendo de sua extensão e localização e os hematomas muito volumosos podem provocar anemia aguda ou problemas neurovasculares. Os sangramentos ainda podem acometer as cavidades oral, nasal e pescoço, assim como o sistema nervoso central (RODRIGUES, 2005). O tratamento da hemofilia é realizado com a reposição intravenosa dos fatores VIII ou IX ausentes, que são derivados de plasma ou desenvolvidos através de tecnologia recombinante. O tempo que os fatores ficam no organismo é muito curto e em poucos dias ou horas eles já se foram. Devido a grande contaminação do vírus da AIDS em portadores de hemofilia, os estudiosos voltaram-se para a descoberta de processos inativadores que permitiam um tratamento com mais segurança e eficácia. 18 O controle sorológico dos doadores de sangue só passou a ser feito no início dos anos 80 nos países desenvolvidos, e a partir de 1985 no Brasil. Com isso grande número de hemofílicos foram contaminados com o HIV nesse período. Trabalhos americanos apontam que em 1984 aproximadamente 94% dos hemofílicos A apresentavam anti-HIV positivo. No Brasil, os primeiros levantamentos, realizados e, 1985, apontavam para uma estatística de pouco mais de 80% de contaminação nos grandes centros (NICOLETTI, 1996, p. 42). A aplicação do fator pode ser feita por demanda, isto é, quando ocorrer um episódio de sangramento, já que todos os portadores de hemofilia quando sujeitos a pequenos golpes, movimentos bruscos, ou até contrações musculares violentas podem provocar hemorragias, sendo necessário serem tratados rapidamente. Se a frequência dos episódios hemorrágicos aumentar, é indicado o tratamento em profilaxia, realizado regularmente, de duas a três vezes por semana, a fim de prevenir os sangramentos. O tratamento profilático não é a cura da hemofilia e nem evitará todas as hemorragias, mas permitirá a diminuição da mesma nas articulações, menor tempo de internações em hospitais, menor intensidade de dor e por consequência menor número de faltas na escola/emprego, melhorando a qualidade de vida. Normalmente a profilaxia é indicada para crianças com hemofilia A e B, tornando-se mais eficaz quanto mais cedo for iniciada. A aplicação do fator também é indicada em situações especiais, em que a pessoa encontra-se exposta ao risco de hemorragia, como antes de um procedimento cirúrgico, extrações dentárias e em algumas situações na fisioterapia (RODRIGUES, 2005). Um dos problemas encontrados no tratamento da hemofilia é o inibidor, ou seja, um anticorpo que se desenvolve após os primeiros contatos com os concentrados de fator e consequentemente anula esse efeito terapêutico. O programa de imunotolerância para erradicar os inibidores consiste na aplicação de injeções com doses altas do fator VIII e IX, geralmente todos os dias ou de 2 em 2 dias por vários meses ou anos, associados ou não a medicamentos que intervêm sobre o sistema imunitário (RODRIGUES, 2005). A atividade física é de extrema importância no tratamento da hemofilia, pois além de contribuir no desenvolvimento da musculatura e proteger as articulações de sangramentos espontâneos, prepara-os para uma vida longa, na superação de dificuldades, na socialização, na descoberta de novas potencialidades e na recuperação da autoestima. Os Centros de Tratamento de Hemofilia (CTH) no Brasil são localizados, a maioria deles, em Hemocentros, hospitais universitários, entre outros. Contam com uma equipe multidisciplinar composta por médicos, enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas e dentistas (CARAPEBA; THOMAS, [2007?]). 19 O enfoque multidisciplinar é de extrema importância para que os portadores de hemofilia sejam cuidados de forma integral, com o direito de receber o cuidado de forma digna, ética e biopsicossocial, proporcionando melhoras em sua qualidade de vida. Por isso, o tratamento em hemofilia é muito mais do que a infusão do fator, é necessário conhecer a singularidade de cada portador, compreendendo o diagnóstico, o acesso e adesão ao serviço médico, a importância da fisioterapia e os aspectos emocionais que emergem da descoberta e da convivência com a doença. Pesquisas vêm sendo feitas e métodos cada vez mais eficazes vem sendo descobertos, fazendo com que o tratamento clínico seja cada vez mais oportunizado às pessoas com hemofilia, em prol de uma vida longa, produtiva e repleta de saúde, sem dores ou hemorragias frequentes, diminuindo alterações psicossociais, profissionais e aumentando a sua qualidade de vida (BELTRAME, 2007, p. 20). 20 4.3 Aspectos Psicológicos e Hemofilia O adoecimento compromete significantemente a vida do ser humano. Desde os primórdios das sociedades humanas, adoecer traz a idéia de finitude, no qual, o temor à morte sobrepõe-se muitas vezes de forma imperiosa. Entende-se por doença a desarmonia orgânica ou psíquica, que, através de sua manifestação, quebra a dinâmica de desenvolvimento do indivíduo como um ser global, gerando desarmonização da pessoa; compreende-se esse desequilíbrio como um abalo estrutural na condição de ser dentro de sua sociocultura (SANTOS; SEBASTIANI, 1996, p. 150). O componente desagregador da doença impõe obstáculos para o curso de vida normal e não só o corpo se vê ameaçado, a mente sofre o impacto dessa nova realidade. Conforme destacam Santos e Sebastiani (1996) quando um indivíduo encontra-se numa situação de conflito diante de uma doença crônica, deve-se considerá-lo como uma unidade soma-psique, buscando, dessa maneira, manter sua integridade como um todo. Historicamente, uma das definições de doença crônica mais amplamente aceita é aquela proposta em 1957 pela Comissão de Doenças Crônicas de Cambridge, na qual se incluíam todos os desvios do normal que tinham uma ou mais das seguintes características: permanência, presença de incapacidade residual, mudança patológica não reversível no sistema corporal, necessidade de treinamento especial do paciente para a reabilitação e previsão de um longo período de supervisão, observação e cuidados (MARTINS; FRANÇA; KIMURA, 1996, p. 6). A doença crônica é considerada como incurável e pode começar de maneira aguda, podendo ocorrer à progressão dos sintomas através de episódios de exacerbação e remissão, exigindo tratamento prolongado e podendo se tornar grave. Os indíviduos desenvolvem uma doença crônica por apresentarem importantes somatizações, pois a mesma instala-se de uma maneira abrupta, não permitindo uma adaptação gradativa a nova realidade e demonstram necessidade de cuidados constantes (SANTOS; SEBASTIANI, 1996). Do ponto de vista psicológico, portanto, o doente crônico deve ser definido por outros critérios diferentes dos que se relacionam diretamente com a afecção que sofre ou com as sequelas das doenças ou enfermidades que apresenta. Um indivíduo somaticamente “são” ou “normal” pode ser um doente crônico grave, enquanto outro indivíduo que apresenta alterações funcionais e lesionais importantes não o é: Ao que parece, entrar na cronicidade implica uma elaboração psicólogica existencial. O indivíduo vai entrar em alguma coisa que vai se tornar um “estado” duradouro; essa extensão, no tempo dos distúrbios da saúde acarretará 21 consequências modeladoras da vida psicológica (SANTOS; SEBASTIANI, 1996 apud SCHNEIDER, 1976 p. 149).1 O impacto do diagnóstico de uma doença crônica pode comprometer o desenvolvimento funcional do indivíduo, no qual o temor à morte é predominante, pois na maioria dos casos não há uma perspectiva de recuperação, forçando-o a se adaptar e se reestruturar quase que por completo para poder assim viver com qualidade, apesar das perdas impostas pelo adoecimento. Segundo Santos e Sebastiani (1996) o doente crônico está lutando constantemente no sentido de compreender e aceitar a doença para de certa forma, conseguir vivenciá-la. Desse modo, a doença, dependendo de sua gravidade, pode contribuir para o afastamento do enfermo de seu convívio familiar, do trabalho, isolando-o do seu meio social. As mudanças acarretadas no cotidiano, como a necessidade de passar por procedimentos médicos aversivos e as hospitalizações, provocam alterações psicológicas importantes e mobilizam fantasias e sentimentos de medo, angústias e ansiedades sendo que, muitas vezes, no caso da criança portadora de doença crônica, que não possui recursos cognitivos suficientes para compreender o que se passa em seu corpo, as angústias são intensificadas quando os pais tentam esconder da mesma sua real condição (LEPRI, 2008 apud ABERASTURY, 1984). 2 Em contrapartida, mesmo obtendo informações sobre sua condição de saúde, não impede que a criança fantasie como forma de enfrentamento da situação, que pode ser percebida como consequência dos impulsos destrutivos direcionados aos seus objetos internos. Segundo Isaacs (1986) a fantasia representa o conteúdo particular dos impulsos ou sentimentos de medo, ansiedade, triunfo, amor ou raiva, assim como os desejos que dominam a mente no momento. Assim, pode haver o aparecimento de sentimentos de ser ruim, ou que a doença é uma punição a esses impulsos. Mecanismos de defesa primitivos podem emergir diante de situações nas quais a integridade do eu (corpo e psiquismo) são concretamente ameaçados e 1 ANGERAMI-CAMON, V. A. (Org.) E a psicologia entrou no hospital. São Paulo: Cengage Learnig, 1996. 2 LEPRI, P. M. F. A criança e a doença: da fantasia à realidade. Rev. SBPH, Rio de Janeiro, vol.11, n.2, p. 15-26, dez. 2008. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S151608582008000200003&script=sci_arttext> Acesso em: 29 out. 2012. 22 desse modo fantasiar é um recurso essencial para a integridade do ego, fazendo com que a criança possa enfrentar melhor a realidade do adoecimento (LEPRI, 2008). De acordo com Rannã (1998) a fantasia não é apenas a realização alucinatória de desejos ou uma forma de enfrentar ou defender-se da uma realidade traumática, mas também uma maneira de estabelecer relações criativas com o mundo externo. A criança enfrentará o adoecimento de acordo com seu desenvolvimento cognitivo, encontrando seu determinado conceito de saúde e doença. Essa concepção poderá afetar a percepção dos sintomas, da sua experiência de dor e incômodo, sua aceitação de cuidados médicos e aderência ao tratamento. Crianças de 18 meses até 3 anos de idade, tendem a sentir-se culpadas pelas hospitalizações, devido ao seu egocentrismo e sua percepção de doença está relacionada com a interferência que a mesma provoca em sua vida. Episódios de doença na infância podem proporcionar aprendizado sobre o conceito de saúde e doença para a criança (CASTRO; PICCININI, 2002 apud WALKER & ZEMAN, 1992, p. 628). Entretanto, quando se trata de crianças cronicamente doentes, o longo processo de adaptação à enfermidade exige que ela se adapte a uma experiência difícil de enfrentar (CASTRO; PICCININI, 2002 apud HAMLLET & cols., 1992, p. 628).3 Outra alteração psicológica importante decorrente da doença crônica é a depressão infantil, que pode estar associada a outros fatores de risco, como eventos estressores do ambiente e história psiquiátrica na família, além das próprias características do adoecimento. O estilo repressivo adaptativo caracteriza-se pela forma defensiva e dissociativa em lidar com a doença, provocando efeitos negativos para a saúde da criança, tais como dores de cabeça, hipertensão, alergias, na tentativa de reprimir seus sintomas e a ansiedade. Castro e Piccinini (2002) referem que quando a criança adquiriu a função simbólica, representação mental e a linguagem, ela torna-se capaz de entender o conceito de doença com maior clareza. Estudos relatam que existem diferentes maneiras para o enfrentamento do processo de adoecer, em relação aos hemofílicos existem aspectos pertinentes ao processo de adoecimento que devem ser considerados. Na medida em que a criança portadora de hemofilia começa a se desenvolver, aprendendo a caminhar e mover-se com autonomia, aumentará a probabilidade de se machucar e gerar sangramentos, impossibilitando, muitas vezes, de praticar algumas atividades que lhe traga prazer e satisfação. A criança então se 3 CASTRO, E. K.; PICCININI, C. A. Implicações da doença orgânica crônica na infância para as relações familiares: algumas questões teóricas. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 15, n. 3, p. 625635, 2002. 23 depara com as limitações impostas pela doença, alterando seu funcionamento físico e mental, bem como sua interação com o meio social. [...] quando o início da doença crônica ocorre em períodos específicos do seu desenvolvimento, como no período de aprendizagem do caminhar, isto pode prejudicá-la de forma particular, podendo, por exemplo, restringir sua autonomia. Os inúmeros cuidados com remédios, alimentação e horários podem interferir no desejo de controle da criança, gerando apatia e passividade. Além disso, as mães e pais, muitas vezes, têm dificuldades em impor limites necessários aos comportamentos das crianças, que pode interferir também no controle dos seus impulsos (CASTRO; PICCININI, 2002, apud WASSERMAN, 1992, p. 628).4 As hospitalizações são frequentes em casos de doenças crônicas como a hemofilia, nas quais são necessárias no momento do diagnóstico ou durante o tratamento e, ainda, em procedimentos cirúrgicos recorrentes, causando sentimentos de medo e ansiedade na criança, que sente o ambiente como ameaçador e totalmente estranho a ela, provocando uma situação traumática. [...] existem vários fatores inerentes a hospitalização e várias consequências nociva dessa medida que contribuem para o aparecimento de agruras existenciais e de problemas emocionais graves, adversos ao desenvolvimento da criança hospitalizada e doente. Temos então, entre outros, o desmame agressivo, o transtorno da vida familiar, a interrupção ou retardo da escolaridade, do ritmo de vida e desenvolvimento, as carências afetivas e agressões psicológicas e físicas, despesas elevadas e ainda as mais variadas iatrogenias, entre as quais a mais importante se refere às infecções hospitalares (CHIATTONI, 1988, p. 44). A criança hospitalizada, além de sentir-se amendrontada diante de uma situação desconhecida, pode ter a sensação de estar sendo punida e culpar-se, relacionando o aparecimento da doença a fatores externos, como não ter sido obediente aos pais ou não ter se alimentado direito, por exemplo. Além das limitações impostas pela doença, o hospital traz a falta de espaço físico, gerando uma diminuição das atividades rotineiras, substituídas pela rotina diária da enfermaria e o aparecimento ou intensificação do sofrimento físico (SANTOS; SEBASTIANI, 1996). As hospitalizações provocam alterações não só no desenvolvimento psicossocial da criança, mas atinge também as relações sociais na psicodinâmica familiar, pois a rotina é modificada também por inúmeras consultas ao médico e às visitas aos centros de tratamento para receber as medicações. 4 CASTRO, E. K.; PICCININI, C. A. Implicações da doença orgânica crônica na infância para as relações familiares: algumas questões teóricas. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 15, n. 3, p. 625635, 2002. 24 De acordo com Santos e Sebastiani (1996) para a maioria das pessoas, a família representa uma base importante, tanto no que tange à estruturação de seus vínculos afetivos quanto nos referencias de apoio e segurança. Os aspectos psicológicos que acometem o paciente, o coloca em condições emocionais primitivas e diante da necessidade de sentir-se protegido e amparado por seus familiares. O impacto do diagnóstico de hemofilia na família provoca repercussões emocionais, tais como fantasias de morte e sentimentos de negação, raiva, culpa, punição e medo do futuro. As reações de descontrole e despreparo dos pais frente à doença, durante situações angustiantes como os episódios hemorrágicos, podem provocar na criança sentimentos de tristeza, culpa e agressividade (SHIKASHO; BARROS; RIBEIRO, 2009). A família é um sistema de relações fechado e interdependente; nesse sentido, podese comparar de forma alegórica a uma balança com diversos pratos, cada um com um tamanho e com um peso específico, mas que a posição que cada um desses pratos ocupa ao longo dos braços da balança possibilita a esta um estado de equilibração. Tirar um prato do seu lugar, acrescentar ou subtrair um deles implicará num desequilíbrio em relação ao seu estado anterior. Assim, da mesma forma, quando uma família se vê privada de um de seus componentes, privação essa imposta pelos limites que a doença provocou, esta se desequilibra, pois perde (temporária ou definitivamente) um dos seus pontos de referência e sustentação. Essa crise que se instala passa a provocar grande mobilização no sistema familiar, e este, assim como o paciente, tentará buscar formas adaptativas para se reorganizar frente à crise e criar uma situação temporária de reequilíbrio com o objetivo de superar a crise e resgatar o seu status quo anterior. (SANTOS; SEBASTIANI, 1996, p. 164). Portanto, a sensação de que a identidade e integridade do sistema familiar encontram-se ameaçadas pode ser tanto objetiva quanto subjetiva e mobiliza seus integrantes a gerar comportamentos os mais diversos em relação à pessoa que adoeceu, à equipe de saúde, ao tratamento e a eles próprios (SANTOS; SEBASTIANI, 1996). Como pode-se observar, a família tem um papel importante no processo de relação do hemofílico com sua doença e isso pode ser observado desde o ínicio, no nascimento. A relação mãe/bebê começa a se constituir desde a gravidez, em que a mãe cria uma representação psíquica da imagem ideal de seu bebê (bebê imaginário), projetando todas as suas expectativas, para ao mesmo tempo, realizar desejos e curar feridas narcísicas. Quando o bebê não corresponde às expectativas da mesma devido a alguma alteração física e possível enfermidade, provoca intenso sofrimento e dificuldade em prestar os cuidados necessários à criança (CASTRO; PICCININI, 2002). O estreito vínculo entre um bebê e a mãe tem por centro a relação com o seio. Embora, desde os primeiros dias de vida, o bebê também reaja a outras 25 características maternas – a voz, o rosto, as mãos – as experiências fundamentais de felicidade e amor, de frustração e ódio, estão inextrincavelmente ligadas ao seio da mãe. Esse vínculo primitivo, que é fortalecido à medida que o seio é firmemente estabelecido no mundo interior da criança, influi basicamente em todas as outras relações, em primeiro lugar com o pai; está subentendido na capacidade para formar qualquer ligação profunda e sólida com uma pessoa (KLEIN, 1986, p. 262). A mãe de uma criança portadora de hemofilia, pode apresentar sentimentos de culpa, pelo fato da mesma ser a transmissora do gene da hemofilia e como consequência, recorre à superproteção. O medo diante da situação de risco e a ambivalência afetiva são frequentemente presentes e comuns na situação. O cuidado excessivo por parte dos pais reforça a dependência no hemofílico, emergindo sentimentos de impotência, insegurança e incapacidade no mesmo (SHIKASHO; BARROS; RIBEIRO, 2009 apud NICOLETTI, 1997).5 Os sentimentos de desamparo, desesperança, medo, ansiedade, ameaça são frequentemente constatados. A família torna-se um fardo para o paciente, que tentando poupá-lo, pode omitir dados sobre seu estado real a estes e até mesmo à equipe de saúde, com o intuito de obter a alta para voltar a “cuidar” dos seus. Atitudes de rebeldia e refratariedade ao tratamento por parte do paciente podem ser encontradas também nesses casos, não raro acompanhadas de solicitação de alta a pedido (SANTOS; SEBASTIANI, 1996, p. 166). Segundo Almeida (2006), num primeiro momento a família tende a se desorganizar diante de um diagnóstico de uma doença, acarretando mudanças em sua rotina e dinâmica habitual, sendo necessário buscar os recursos disponíveis para se reorganizar e readquirir o equilíbrio novamente. Desse modo, pais que conseguem enfrentar essa ansiedade, se adaptando a nova realidade, demonstrando atitudes mais confiantes e positivas diante da doença, facilitam o processo de construção da personalidade da criança, do convívio e interação com o ambiente social e garantindo assim, uma melhor qualidade de vida. A criança portadora de hemofilia, vivencia as limitações de funções e atividades, tendo prejuízo em suas relações sociais, quando comparadas com outras crianças saudáveis da mesma idade, tanto em relação ao nível físico, cognitivo, emocional e de desenvolvimento geral. A mesma passa a depender de medicações, dieta especial, tecnologia e aparelhos específicos, assistência singular, necessidade de cuidados médicos, psicológicos e educacionais ou ainda, de acomodações especiais em casa ou na escola. Cabe aos pais a 5 SHIKASHO, L.; BARROS, N. D. V. M.; RIBEIRO, V. C. P. Hemofilia: o difícil processo de aceitação e auto-cuidado na adolescência. Rev. CES, Juiz de Fora, v. 23, p. 187-193, 2009. 26 percepção e a realização desses cuidados de maneira adequada, sem comprometer o desenvolvimento natural da criança hemofílica (SILVA, 2001). O período da adolescência do portador de hemofilia, onde os episódios hemorrágicos tornam-se mais frequentes, é marcado por intensos conflitos internos. Esse período é caracterizado pela construção da identidade, frente a mudanças físicas e psicológicas e tendo como função fundamental a elaboração de três lutos: o luto pelo corpo infantil, pelos pais da infância e pelo papel e identidade infantil. A fase destaca-se pela intensificação do complexo de Édipo, ligado às modificações corporais, em que o adolescente deve se habituar e são acompanhadas por demandas pulsionais e sociais (SILVA, 2001). Os aspectos psicológicos podem estar subjacentes à doença orgânica, configuraremse como fatores desencadeantes ou se apresentarem como consequências do próprio tratamento, internação ou da doença em si mesma. É possível identificar aspectos característicos desse processo através dos mecanismos de defesa suscitados diante da doença. Kluber-Ross (1981) refere sobre os estágios que iniciam-se nesse processo, vale lembrar que estes não ocorrem necessariamente nessa ordem. O primeiro estágio é marcado pela negação e o isolamento, no qual a maioria dos pacientes utilizam logo após a constatação da doença, ou às vezes numa fase posterior. O sentimento de negação funciona como um mecanismo de defesa, para que o mesmo encontre recursos para o enfrentamento do processo de adoecer. No segundo estágio, a raiva aparece quando não há mais possibilidade de manter a negação, sendo substituído pelo sentimento de revolta, inveja e de ressentimento. Nessa fase o paciente irradia sua raiva em todas as direções e projeta nos outros sem justificativa plausível. O terceiro estágio é a barganha, uma defesa muito útil, pois é uma tentativa de troca, uma promessa, tem de incluir um prêmio oferecido por um bom comportamento. Psicologicamente, as promessas podem estar associadas a uma culpa recôndita. O quarto estágio é caracterizado pela depressão, em que o paciente não pode mais negar sua doença e passa por diversos procedimentos como cirurgias, hospitalizações, sentindo-se mais debilitado e começando a perder coisas importantes, como sua própria identidade. O quinto estágio é denominado como a aceitação da doença e não mais sentirá raiva quanto ao seu futuro, conseguindo entrar em contado seus sentimentos e expressá-los. No caso do hemofílico, a não aceitação da doença e de seu próprio físico, comprometem sua autoestima, a autoconfiança e o levam a apresentar comportamentos de 27 risco e lançar-se em desafios contra seu próprio corpo, acometido pela doença. A autoimagem também fica comprometida, já que a deficiência traz a marca de um corpo imperfeito, provocando autocríticas em relação ao seu desempenho e habilidades para atividades esportivas (SHIKASHO; BARRO; RIBEIRO, 2009). Conforme coloca Eksterman et al., (1992) diante da não aceitação de suas limitações e se sentirem a margem, é comum os adolescentes hemofílicos desenvolverem atitude de negação e ocultação da hemofilia, vislumbrando, assim, uma maior possibilidade de socialização. Dessa maneira, adolescentes hemofílicos tendem a vivenciar o processo de transição com maior angústia, agressividade e revolta, podendo se aventurar em atividades de risco, buscando a aprovação de um grupo para sentir-se aceito pelo mesmo. Em algumas culturas, as pessoas com distúrbios hereditários de coagulação podem vir a ser estigmatizados ou mesmo enfrentar dificuldades para serem aceitas como membros capazes e importantes da comunidade. O isolamento social pode vir então a prejudicar sua participação social, seu bem-estar psicológico e de sua qualidade de vida (WORLD FEDERATION OF HEMOPHILIA, 2007, p. 21). O sentimento de ser diferente e integrar-se ao ambiente social abrangem até os relacionamentos amorosos, devido à transmissão da hemofilia pelo fator genético, o que os angustia e deprime. [...] a adolescência, apesar de dolorosa, individual e conflitante, principalmente quando há uma doença crônica associada, é uma fase fundamental na construção da identidade. Para superar essa etapa é imprescindível que o adolescente portador de hemofilia compreenda que amadurecer inclui aceitar suas limitações e apoderar-se de responsabilidades frente à vida (SHIKASHO; BARROS; RIBEIRO, 2009, p. 189). Outro desafio de grande importância na vida dos hemofílicos é a preparação para o mercado de trabalho, em que os mesmos necessitam de orientações quanto às escolhas de cursos acadêmicos que se identificam mais e que lhe proporcionem satisfação, desenvolvendo seus talentos de acordo com suas limitações, sem o risco de ocorrer episódios hemorrágicos. Compreende-se, assim, a dificuldade encontrada pelo hemofílico para ter um equilíbrio emocional e uma vida independente. Muito embora a gravidade da hemofilia seja classificada baseada no nível de fator circulante no sangue, é sabido que em fases de stress, ansiedade ou angústia, o hemofílico está muito mais sujeito a sangramentos (NICOLETTI, 1996, p. 43). A condição de estar doente e suas repercussões físicas, sociais e emocionais podem dificultar a elaboração do processo e colocar a criança ou o adolescente numa situação de 28 desamparo interno. A doença implica em uma série de conflitos na vida do hemofílico e de sua família, portanto é possível planejar estratégias e realizar programas de educação terapêutica específicos, como a escuta singular, a dessensibilização, a prevenção, informações acerca da doença, promovendo o bem estar biopsicossocial do paciente e compreendendo-o em seu contexto. A equipe multidisciplinar desempenha um papel importante na atenção e nos cuidados dos portadores de hemofilia, realizando um acompanhamento sistemático, integral e diversificado. A idéia proposta é a soma dos diversos conhecimentos e saberes que a equipe possui, podendo assim, ter uma visão integral do paciente. Com o avanço dos conhecimentos na área das Ciencias da Saúde, particularmente nesse último século, o aparecimento de diversas especialidades profissionais na área e de inúmeras subespecialidades tornou-se imperativo. Hoje em dia é impossível para um único profissional englobar todos os conhecimentos produzidos em sua área de atuação, o que impôs aos especialistas dedicarem-se cada vez mais no aprofundamento de seus conhecimentos específicos (SANTOS; SEBASTIANI, 1996, p. 169). A boa relação entre equipe-paciente-família proporciona benefícios para todas as partes, por um lado ocorrendo a qualidade do trabalho da equipe junto do auxílio, participação e aderência positiva do paciente e sua família. De outro lado, a família e o paciente sentem-se acolhidos, seguros e estabelecem uma relação de confiança com a equipe, melhorando assim os aspectos relacionados ao processo da doença, sendo um ganho valioso para todos. [...] uma doença crônica implica em um contato contínuo com a equipe de saúde, o que passa a criar condições de vinculação entre as partes bastante especiais e diferentes daquelas observadas nas enfermarias, onde o paciente passa um breve período de tempo internado para depois da alta voltar à sua vida normal, e talvez nunca mais encontrar os profissionais que cuidaram dele novamente. Essa condição especial de vínculo, salientada acima, significa que viremos a conviver com esse paciente nm grau de profundidade intenso, e que passaremos a fazer parte de sua vida, conhecendo mais a pessoa, sua família, sua história, seu cotidiano, vivenciando junto com ela as perdas e conquistas no seu enfrentamento da enfermidade. O distanciamento do paciente, como mecanismo de defesa, fica mais difícil, obrigando os componentes da equipe a se aproximarem mais da pessoa (SANTOS; SEBASTIANI, 1996, p. 170). A inserção do psicólogo na equipe multidisciplinar proporcionou contribuições importantes nesse sentido, pois possibilitou a atuação junto dos demais profissionais da saúde, na forma de enfrentamento das limitações impostas pela doença, disponibilizando ao paciente hemofílico o desenvolvimento de uma identidade mais saudável de si mesmo, através de intervenções psicoterápicas. 29 A entrada do profissional da área de psicologia no hospital, propôs adaptações teórico-práticas, pois houve a necessidade de diferenciar as tarefas exercidas pelo psicólogo em hospitais das demais atividades, já que por algum tempo a atuação se pautava no modelo clínico tradicional. Mesmo em áreas tradicionais, como a área clínica, atualmente constata-se a necessidade de atender a novas demandas advindas de transformações sociais, econômicas, de valores e relacionais entre os indivíduos, o que define especificamente nas solicitações de serviços psicológicos, novas formas de atendimento, novas estratégias, exigindo adaptação dos modelos tradicionais de atuação (CHIATTONE, 2011, p. 169). Camargo-Borges e Cardoso (2005, p. 28) colocam que “A psicologia, num processo de revisão dessas práticas e busca por melhores formas de responder às necessidades dos diferentes locais de atuação, foi gerando novos campos de saber e ampliou sua inserção na saúde” Sabe-se que anteriormente as equipes de saúde tinham como referencial assistencial o saber biomédico, pois o próprio hospital, enquanto estrutura institucional, reforçavam esse modelo verticalizado. Chiattone (2011) relata que o saber médico e o saber psicológico podem e devem ser complementares dentro do modelo biopsicossocial. Frequentemente é utilizada no hospital a abordagem em Psicoterapia Breve de Apoio e/ou de Esclarecimento, caracterizada por uma postura mais ativa e flexível do terapeuta, estabelecendo um vínculo terapêutico encorajador, orientador, protetor e utilizando técnicas de intervação do tipo sugestivo-diretivo. Dependendo da motivação do paciente e de sua capacidade de insight, poderão ser realizadas interpretações no sentido de esclarecer alguns fatores, proporcionando uma compreensão do significado de seus distúrbios. Esse tipo de psicoterapia auxilia na superação dos sintomas e conflitos atuais do paciente, contribuindo no enfrentamento das situações e recuperando a sua capacidade de autodesenvolvimento (MACIEL, 2002). Partindo desse contexto, o atendimento psicológico ao portador de hemofilia propõe a compreensão de sua relação com a doença e com o tratamento, auxiliando-o no manejo da dor e considerando as possíveis dificuldades existentes em outros aspectos de sua vida, melhorando dessa forma, sua qualidade de vida. O psicólogo hospitalar que trabalhar com paciente portador de doença crônica atuará junto ao Ser Doente no sentido de resgatar sua essência de vida que foi interrompida pela ocorrência do fenômeno doença. Além disso ele se baseia numa visão humanística com especial atenção aos pacientes e familiares. A psicologia hospitalar considera o ser humano em sua globalidade e integridade, única em suas condições 30 pessoais, com seus direitos humanamente definidos e respeitados (SANTOS; SEBASTIANI, 1996, p. 172) O psicólogo exerce um papel importante no processo de aderência ao tratamento. Pode favorecer as estruturas psicológicas para o enfretamento dos sangramentos, das complicações em seu aparelho locomotor e na capacidade de movimentação no futuro. Portanto, o psicólogo e os demais profissionais da saúde, atuam como facilitadores, através da educação para adoção de um estilo de vida ativo, socializador e independente. [...] uma dependência extrema faz parte da personalidade do hemofílico, havendo necessidade e um cuidado especial para que se evite entrar em conflitos com a família do paciente. A abordagem deve ser feita de maneira suave e gradual, permitindo que o paciente adquira confiança no terapeuta e consiga externar suas emoções. Qualquer tentativa mais brusca poderá traumatizar o paciente, que provavelmente se fechará e dificultará o processo terapêutico e o próprio tratamento médico (NICOLETTI, 1996, p. 44). O psicólogo é um agente de humanização no hospital, ampliando o seu modelo assistencial ao paciente, aos familiares, às equipes de saúde e a própria instituição, sendo importante destacar que essa humanização propõe sempre, em primeiro lugar, o bem-estar biopsicossocial do paciente. Constata-se que a psicologia cada vez mais tem adentrado o terreno da saúde, incrementando a compreensão do processo saúde-doença-cuidado, principalmente na área da saúde mental, tendo crescido, quantitativamente, em hospitais e postos de saúde (CAMARGO-BORGES, CARDOSO, 2005, p. 29). A interação do portador de hemofilia e sua família com a equipe multidisciplinar dos Centros de Tratamento da Hemofilia (CTH), onde há o cuidado, o apoio, as informações e orientações, proporciona a construção de um vínculo importante com os profissionais envolvidos diante de tal sofrimento, mantendo uma relação de confiança e segurança em seu tratamento que perdurará por toda a vida (CARAPEBA; THOMAS, [2007?] 31 4.4 Avanços no Tratamento e Qualidade de Vida Desde a descoberta da hemofilia até os dias atuais, muitos avanços ocorreram no tratamento da hemofilia, começando pela introdução do fator, que previne e diminui os episódios hemorrágicos, proporcionando um melhor manejo da doença e qualidade de vida. D e acordo com Martins, França e Kimura (1996, p. 7) “A qualidade de vida é um conceito intensamente marcado pela subjetividade, envolvendo todos os componentes essenciais da condição humana, quer seja físico, psicológico, social, cultural ou espiritual”. O cuidado a ser prestado no tratamento dependerá da percepção que o portador de hemofilia e sua família têm da doença e do significado que a experiência possui para eles. Durante algum tempo, os hemofílicos tinham que se deslocar de suas residências até os Centros de Tratamento de Hemofilia (CTH) mais próximos, logo que ocorria um episódio de sangramento, o que causava um transtorno relacionado às condições de locomoção até o local e os horários de funcionamento. Com o tratamento domiciliar, disponível hoje para essas situações de emergência, o hemofílico consegue conter as hemorragias e desenvolver sua autonomia ao realizar a auto-infusão, isto é, o mesmo aplicará a injeção na própria veia. A Dose Domiciliar (DD) foi criada no Brasil pelo Ministério da Saúde, para que o tratamento por demanda fosse realizado logo que surgissem os primeiros sintomas de uma hemorragia, permitindo assim, a redução das possíveis complicações no futuro, como por exemplo, menor número de faltas na escola ou no trabalho, menor tempo de dor e incapacidade física, maior liberdade para realização de atividades de lazer e consequentemente, reduzindo as visitas ao Centro de Tratamento e o número de aplicações de fator. Outro avanço importante é o tratamento profilático, realizado com os portadores de hemofilia grave, de uma a três vezes por semana, antes que os sangramentos ocorram, através da aplicação dos fatores de coagulação. A hemorragia destrói os ossos e as articulações, sendo necessário o tratamento preventivo para que mais tarde não sofram um dano evitável. Em 2011, o Ministério da Saúde lançou o programa de profilaxia primária, em que são tratadas no Sistema Único de Saúde (SUS), crianças de zero a três anos com hemofilia A e B grave. O programa consiste na prevenção do desenvolvimento de artropatia hemofílica, principal complicação da doença, além das hemorragias intra-articulares (hermatroses) que se apresentam com muita frequência, caracterizando clinicamente a hemofilia. O tratamento é feito através de infusão venosa do fator VIII ou IX ausente no sangue, de uma a três vezes 32 na semana, independente da ocorrência de sangramento até a maior idade (PANHAM, 2012). A profilaxia primária é recomedada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e já é pradrão em países como Estados Unidos, Canadá, e Dinamarca. Além disso, o Brasil é o terceiro País com maior número de pacientes com hemofilia depois dos Estados Unidos e Índia, segundo dados da Federação Mundial de Hemofilia (WFH sigla em inglês) (PANHAM, 2012, p. 17). Apesar das dificuldades suscitadas nos familiares diante do tratamento, devido as crianças ainda serem muito pequenas e não compreenderem os benefícios do mesmo, tornando muitas vezes, traumático pelas inúmeras infusões intravenosas, haverá a possibilidade no futuro de realizar atividades que não seriam capazes, melhorando a qualidade de vida. A avaliação dos profissionais da equipe multidisciplinar envolvidos no cuidado é de grande importância, no sentido de poder acompanhar e esclarecer sobre os procedimentos, vantagens e riscos a família, auxiliando-os (hemofílico e familiares) a aplicar o fator em domicílio. Os investimentos realizados no tratamento, proporcionando o acesso e a disponibilidade dos fatores em todas as regiões brasileiras foi uma conquista para o portador de hemofilia, em contrapartida ainda encontram-se dificuldades e diversidades em algumas regiões por falta de estrutura. Levantamento realizado pelo Ministério da Saúde apontou que mais de 17 mil pessoas com hemofilia são assistidos pela rede pública de saúde e, desse total, 8.700 são cadastrados como do tipo A, e 1.681 do tipo B. Para atender a demanda, o Ministério da Saúde adquiriu 304 milhões de Unidades Internacionais (UI) de Fator VIII para utilização em 2011 e 850 milhôes para os próximos dois anos, aproximadamente 640 milhões de unidades para 2012 e 210 milhôes de UI para o primeiro trimestre de 2013,, O investimento financeiro total chegará a R$ 522 milhões (PANHAM, 2012, p. 17). Embora ainda não se tenha a cura da hemofilia, novas pesquisas podem tornar possível essa realização daqui alguns anos, pois os avanços estão ocorrendo no sentido de encontrar uma maneira de inserir o gene responsável pela produção do fator VIII ou IX dentro das células do portador, na expectativa de que seu próprio organismo produza uma determinada quantia do fator (RODRIGUES, 2005). Atualmente, os portadores de hemofilia dispõem de vários recursos, pois a doença carrega consequências biopsicossociais, sendo necessária a inserção desses indivíduos no meio social, motivando-os ao estudo, esportes e incorporando-os no mercado de trabalho. 33 Traçar programas específicos de tratamento com uma abordagem integral e desenvolvendo ações preventivas e de promoção à saúde, proporcionará sem dúvida, uma boa qualidade de vida (WORLD FEDERATION OF HEMOPHILIA, 2007). 34 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo permitiu compreender quais as possíveis implicações e repercussões físicas, emocionais e sociais que acarreta a hemofilia, uma doença crônica que carrega o significado das limitações no desenvolvimento esperado na infância e adolescência, ao necessitar de tratamento constante para garantir qualidade de vida. A hemofilia, caracterizada por sua cronicidade e transmitida geneticamente, gera conflitos e desafios, não só ao hemofílico, mas também a sua família, em que o medo da morte é iminente e as complicações provocadas pelas frequentes hemorragias, suscitam sentimentos como a ansiedade, angústia, insegurança e muitas vezes, a impotência diante da situação. Nota-se que as relações familiares são fundamentais para o adequado enfrentamento da doença e do longo período de tratamento, sendo necessária a adaptação a essa nova realidade. Frente às situações que permeiam o adoecimento é fundamental uma abordagem multidisciplinar, com o enfoque no cuidado integral do paciente envolvido e de sua família. O psicólogo inserido na equipe desempenha um importante papel na atenção e no cuidado do portador de hemofilia, utilizando intervenções psicológicas que buscam amenizar as fantasias e sentimentos emergentes, contribuindo para um melhor manejo da doença e aderência ao tratamento, junto de ações terapêuticas promovidas pelos demais profissionais de saúde. Além disso, o bom vínculo estabelecido entre paciente, família e equipe facilita a tomada de consciência sobre a extensão e a gravidade da doença, especialmente quanto as informações e orientações sobre o tratamento, que muita vezes, são dolorosos e prolongados, com a possibilidade de abandono ou uma proteção exagerada à criança. Atualmente, os portadores de doenças crônicas têm uma sobrevida maior, devido as novas técnicas médicas e aparelhos específicos para o tratamento. Os avanços no tratamento da hemofilia proporcionaram melhorias nas condições de vida dos hemofílicos e criaram a expectativa de um melhor desempenho nas diversas áreas de seu contexto e na construção da identidade, promovendo seu bem-estar biopsicossocial. Além do tratamento por demanda, com a dose domiciliar e o tratamento profilático que visa a prevenção das hemorragias, outro avanço importante nesse processo foi a profilaxia primária, um programa lançado pelo Ministério da Saúde, em que são tratadas crianças de zero a três anos com hemofilia A e B grave, proporcionando a prevenção do desenvolvimento de artropatia hemofílica, garatindo assim, uma boa qualidade de vida no futuro. 35 Diante do que foi exposto faz-se necessário um novo olhar relacionado à abordagem da criança e do adolescente portador de hemofilia, principalmente em relação à integralidade do cuidado proposto pelas equipes interdisciplinares e aos gestores responsáveis pelo planejamento de políticas de saúde, a fim de garantir recursos adequados aos serviços que prestam assistência a essa população. 36 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, M. I. et al. O ser mãe de criança com doença crônica: realizando cuidados complexos. Esc Anna Nery Rev. 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