Residência e ensino médico As aulas mágicas do professor Décourt Olavo Pires de CamargoI, Luiz Eugênio Garcez LemeII Departamento de Ortopedia e Traumatologia Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Em maio de 2012, completam-se cinco anos da morte de Luiz Venere Décourt, que teria completado 100 anos em dezembro de 2011. Para muitos dos que nos leem, talvez os menos jovens, este nome certamente provoca uma sensação de respeito quase reverencial. Por outro lado, os mais jovens podem não ter as informações sobre aquele que foi, com certeza, um dos grandes ícones do ensino médico no Brasil. Efetivamente, ao morrer, aos 95 anos, o professor Décourt deixou órfãs várias gerações de discípulos que puderam se abeberar em sua habilidade quase mágica de ensinar, não apenas nas aulas incrivelmente interessantes — em uma época em que os recursos didáticos, agora superlativos, restringiam-se ao giz, ao quadro negro, a alguns poucos slides com imagens ilustrativas —, mas, e principalmente, em seu exemplo de médico e de humanista. Décourt era membro de uma ilustre linhagem de educadores. Seu pai, professor Paulo Décourt, botânico de expressão, lecionou até após os 80 anos. Seu irmão, Luciano Décourt, foi, junto a José Ignácio Lobo, um dos pioneiros da endocrinologia brasileira na Escola Paulista de Medicina, deixou também imagem de grande didata e de humanista. Luiz Venere Décourt nasceu em Campinas, em 7 de dezembro de 1911. Completou seu curso médico na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e, nessa mesma faculdade, obteve seus títulos acadêmicos de Doutor em Medicina e de professor livre-docente, tornando-se, em 1950, professor catedrático de Clínica Médica. Junto a Euryclides de Jesus Zerbini criou as disciplinas de Cardiologia Clínica e de Cirurgia Cardíaca da Faculdade de Medicina e, em 1977, o Instituto do Coração. Entre muitas outras láureas, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra mostra o impacto de seus ensinamentos em muitas partes do mundo. Apesar de seus méritos como cientista e pesquisador em áreas como a febre reumática e as peculiaridades eletrofuncionais do coração, Luiz Décourt marcou sua época como didata imbatível. O professor Décourt conseguia tornar interessante qualquer aula. Alguns de nós às vezes entrávamos em aulas sobre temas aparentemente áridos para ver como ele os apresentava e era sempre o mesmo. Após alguns momentos de uma análise didática crítica, todos os ouvintes, nós inclusive, ficávamos fascinados pelo tema que ganhava novos brilhos em sua apresentação. Era mágico! Tinha um método muito apurado. Apresentava-se de maneira simples, usava lousa e giz e os diapositivos continham apenas as imagens que ilustravam seu tema, sem recursos teatrais. Era curiosamente trinitário. Sempre dividia os temas em três partes e as enumerava de maneira lógica, acrescentando informações e exemplos oriundos de uma prática clínica enorme e de uma cultura humanística que seria acachapante se seu proprietário a não dosasse com sabedoria, expondo-a apenas o suficiente para ilustrar seus ensinamentos e procedimentos, fugindo da glória vã e da jactância. O sonho de muitos de nós foi e continua sendo conseguir, algum dia, dar uma aula comparável às deste querido mestre. O melhor, no entanto, é que o professor Décourt, como os verdadeiros professores, ensinava ainda melhor com seu exemplo do que com suas aulas. Dificilmente se encontram unidas de maneira tão equilibrada as virtudes necessárias ao professor e ao médico como nele. Homem profundamente caridoso e humilde, com uma paciência com os enfermos e com alunos que era proverbial, suas discussões de beira de leito eram produtivas na medida exata, respeitosas com o paciente e extremamente elaboradas do ponto de vista intelectual. Grande humanista, o professor Décourt morreu pobre; no entanto, felizmente nos deixou entre muitas outras pérolas, um texto de 1970 em que expõe sua crença na Medicina quanto à formação do médico, quanto à sua inserção social e quanto seu contato com o paciente. Trata-se de um texto1 que todos os interessados em ensinar e praticar a medicina deveriam conhecer e meditar e parece-nos uma boa lembrança neste centenário. CREDO Luiz Venere Décourt CREIO na Medicina que é ato contínuo de aprimoramento; que evita, na sucessão dos dias, o aniquilamento de um patrimônio cultural que é a própria razão de seu mister; que não cessa de buscar, nos homens e nos livros, a forma correta de se exercer. Professor titular e chefe do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Professor associado, Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). I II Diagn Tratamento. 2011;17(4):190-1. Olavo Pires de Camargo | Luiz Eugênio Garcez Leme Na Medicina que exige o fato atual, mas não o recebe com passividade; que analisa o dado novo pela segurança das medidas que o forneceram e através da experiência conseguida. Medicina que defende, mas não reverencia a própria opinião; e que aceita a informação, se adequada, provenha ela de autoridades consagradas ou de humildes trabalhadores. Na Medicina que procura não apenas o combate à doença e sua prevenção, mas também o avanço do conhecimento científico; que investiga, compara, discute e conclui. Não tanto para a exaltação do próprio prestígio, como para o progresso do homem, porque sabe que a recompensa do investigador não é a obtenção de prêmio, mas o privilégio de ter trazido seu grão de areia ou seu tijolo ao sempre renovado edifício da verdade científica. CREIO na Medicina que é ato de resposta às necessidades da Pátria. Medicina lúcida e vigilante, atenta aos problemas nacionais e apta para intervir. Medicina responsável e solucionadora, que não aguarda o chamado da coletividade, mas procura atuar antes desse apelo. Nunca deformada por estreita visão do local em prejuízo do universal; nunca amesquinhada por demagogia ou por interesses pessoais; nunca aviltada por ideologias políticas corruptas e corruptoras. CREIO na Medicina que, sendo técnica e conhecimento, é também ato de solidariedade e de afeto; que é dádiva não apenas de ciência, mas ainda de tempo e de compreensão; que sabe ouvir com interesse, transmitindo ao enfermo a segurança de que sua narração é recebida como o fato mais importante desse momento. Medicina que é amparo para os que não têm amparo; que é certeza de apoio dentro da desorientação, do pânico ou da revolta que a doença traz. Na Medicina que serve os doentes e nunca se serve deles. REFERÊNCIA 1. Decourt LV. A medicina em meu credo. Disponível em: http://www.incor.usp. br/conteudo-medico/decourt/a%20medicina%20em%20meu%20credo. html. Acessada em 2012 (5 mar). EDITOR RESPONSÁVEL POR ESTA SEÇÃO: Olavo Pires de Camargo. Professor titular e chefe do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). INFORMAÇÕES Endereço para correspondência: Olavo Pires de Camargo Rua Barata Ribeiro, 490 – 3o andar — conj. 33 Bela Vista — São Paulo (SP) CEP 01308-000 Tel. (11) 3123-5620 E-mail: [email protected] Fonte de fomento: nenhuma declarada Conflitos de interesse: nenhum declarado Data de entrada: 17 de fevereiro de 2012 Data da última modificação: 17 de fevereiro de 2012 Data de aceitação: 9 de março de 2012 Diagn Tratamento. 2011;17(4):190-1. 191