Apresentação

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1
Organizadoras
Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo
Sílvia Ancona-Lopez
Autores:
Adriana Cabello; Ana Gabriela Pinheiro S. Annicchino; Andréa Lucas Alves Calvi;
Anna Elisa Villemor-Amaral; Carolina Leonidas; Cicera Andréa Oliveira Brito Patutti;
Eliane de Albuquerque Drullis; Élide Dezoti Valdanha; Érika Arantes de OliveiraCardoso; Evandro Gomes de Matos; Fabio Scorsolini-Comin; Fernanda Kimie
Tavares Mishima-Gomes; Gisele M. Sampaio; Iraní Tomiatto Oliveira; Jaíne Meireles
Rocha; José Vicente Angelo da Rocha; Larissa de Aguirre Silva; Leliane Maria
Aparecida Gliosce Moreira; Leonardo Lopes da Silva; Ligia Corrêa Pinho Lopes;
Lilian L. Ceregatti; Lilian Regina de Souza Costa; Lionela Ravera Sardelli; Lucas
Gobato; Maria Cristiane Nali;
Manoel Antônio dos Santos; Maria da Piedade
Romeiro de Araujo Melo; Marilda Gonçalves Dias Facci; Marilia Ancona Lopez;
Marina Vieira Madeira; Marizete Gouveia Alves Dos Santos; Marizilda Fleury
Donatelli ; Mônica Cintrão França Ribeiro; Nádia Giuliese; Raul de Freitas Dias;
Regina Célia Calil Ciriano; Rosa Maria Rodrigues de Oliveira; Wolgrand Alves Vilela;
Yurín Garcêz de Souza Santos.
DEMANDAS ATUAIS EM PSICOLOGIA
Formação e Atuação Profissional
São Paulo / SP – Universidade Paulista
2015
2
Ficha Catalográfica
159.9
Demandas atuais em psicologia [livro eletrônico]: formação e
D371 Atuação profissional / organizadoras: Maria da Piedade Romeiro de
Araujo, Sílvia Ancona-Lopez. – São Paulo, SP: Universidade Paulista – UNIP,
2015; 346 p.
1 livro digital
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-68793-00-8
1. Psicologia. 2. Psicodiagnóstico. 3. Psicoterapias. 4. Formação. 5. Práticas
profissionais. 6. Serviços-Escola I. Melo, Maria da Piedade Romeiro de
Araujo. II. Ancona-Lopez, Sílvia. III. Título. Demandas Atuais em Psicologia
IV. Título: formação e atuação profissional.
CDU 159.9
3
"Não queremos trancar o que dissemos... Olharemos para a
frente; nossas últimas páginas não serão recapitulação do que
fizemos,
mas interrogações sobre o tema que, percorrendo surdamente
nosso trabalho, abre
um campo no qual prosseguir..."
Renato Mezan
4
SUMÁRIO
Apresentação..........................................................................................................................09
Parte I
A ADOÇÃO NO CENÁRIO DOS NOVOS ARRANJOS FAMILIARES: A FAMÍLIA
HOMOSSEXUAL EM PAUTA
Manoel Antônio dos Santos....................................................................................................10
A FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE: DUAS VISÕES, MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES
NO CENÁRIO DA DIVERSIDADE SEXUAL
Yurín
Garcêz
de
Souza
Santos;
Fabio
Scorsolini-Comin;
Manoel
Antônio
dos
Santos.....................................................................................................................................15
LUDOTERAPIA PSICANALÍTICA NO CONTEXTO DE UM ESTÁGIO CURRICULAR EM
ADOÇÃO
Marina Vieira Madeira; Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes; Manoel Antônio dos
Santos.....................................................................................................................................29
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
IMPLICAÇÕES
NAS
SOBRE
QUESTÕES
A
DEPRESSÃO
VINCULARES
PÓS-PARTO
MÃE-FILHA:
RELATO
E
SUAS
DE
UM
ATENDIMENTO EM PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO
Eliane Albuquerque Drullis Cifali; Regina Célia Ciriano; José Vicente Angelo Rocha; Lionela
Ravera Sardelli.......................................................................................................................42
DANIEL, QUE ACREDITA QUE UM DIA PODERÁ SER O QUE SEMPRE FOI, OU SEJA,
UMA MULHER: TRANS-FORMAÇÕES NO PROCESSO TERAPÊUTICO DE UMA
TRANSEXUAL
Yurín Garcêz de Souza Santos; Manoel Antônio dos Santos................................................74
5
Parte II
POR UMA CLÍNICA-ESCOLA AMPLIADA: EXPERIÊNCIA DE INSERÇÃO DA PSICOLOGIA
NO ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR EM BULIMIA E ANOREXIA JUNTO AO SISTEMA
ÚNICO DE SAÚDE
Érika Arantes de Oliveira-Cardoso; Manoel Antônio dos Santos ..........................................88
DIRETRIZES PSICOTERAPÊUTICAS PARA INTERVENÇÃO COM PACIENTES COM
TRANSTORNOS ALIMENTARES
Manoel Antônio dos Santos, Érika Arantes de Oliveira-Cardoso, Carolina Leonidas, Élide
Dezoti Valdanha, Lilian Regina de Souza Costa ..................................................................97
POR UMA PSICOLOGIA SOCIALMENTE ÚTIL:
DIÁLOGOS
ENTRE
PSICOLOGIA
ESCOLAR E PSICOLOGIA CLÍNICA
Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira; Mônica Cintrão França Ribeiro;
Nádia Giuliese .....................................................................................................................103
REFLEXÕES ACERCA DA RELEVÂNCIA SOCIAL-COMUNITÁRIA DAS RESIDÊNCIAS
MULTIPROFISSIONAIS EM SAÚDE
Leonardo Lopes da Silva......................................................................................................113
A
MULTIPROFISSIONALIDADE
NA
FORMAÇÃO
E
NA
PÓS-GRADUAÇÃO
EM
PSICOLOGIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE
Leonardo Lopes da Silva .....................................................................................................117
ESTÁGIO EM PSICOLOGIA ESCOLAR: COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO
Marilda Gonçalves Dias Facci .............................................................................................130
ESTÁGIOS EM PSICOLOGIA E SERVIÇOS-ESCOLA
Iraní Tomiatto Oliveira.........................................................................................................146
6
OS SINTOMAS DE NOSSO TEMPO E A APOSTA DO E NO SERVIÇO ESCOLA
Maria Cristiane Nali ............................................................................................................153
IMPLANTAÇÃO DO SERVIÇO DE ORIENTAÇÃO AOS PAIS NO CENTRO DE
PSICOLOGIA APLICADA: UM PROTOCOLO COMPORTAMENTAL
Ana Gabriela Pinheiro S. Annicchino; Jaíne Meireles Rocha; Larissa de Aguirre
Silva......................................................................................................................................158
PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO: PRÁTICA CLÍNICA E PROCESSO ENSINOAPRENDIZAGEM
Marizilda Fleury Donatelli; Ligia Corrêa Pinho Lopes...........................................................171
OS CUIDADOS DA SAÚDE MENTAL DO PSICÓLOGO: RELATOS DE PROFISSIONAIS
DA SAÚDE PÚBLICA
Andréa Lucas Alves Calvi; Jaíne Meireles Rocha; Marizete Goveia Alves Dos Santos; Raul
De Freitas Dias; Maria da Piedade R. de Araujo Melo.........................................................187
Parte III
PSICOLOGIA E ESPIRITUALIDADE
Marilia Ancona-Lopez...........................................................................................................221
CIÊNCIA E RELIGIÃO: O ESTUDANTE DE PSICOLOGIA DIANTE DO FENÔMENO
RELIGIOSO
Eliane de Albuquerque Drullis; José Vicente Angelo da Rocha; Rosa Maria Rodrigues de
Oliveira; Maria da Piedade R. de Araujo Melo......................................................................232
7
Parte IV
O MODO DE SER PARANÓIDE NO PRIMITIVO E NO PSICÓTICO: UMA ABORDAGEM
FENOMENOLÓGICA
Wolgrand Alves Vilela...........................................................................................................260
ESQUIZOFRENIA NA VOZ DE QUEM A VIVENCIA
Adriana Cabello; Lucas Gobato; Lilian L. Ceregatti; Gisele M. Sampaio; Maria da Piedade
Romeiro de Araujo Melo.......................................................................................................275
GRUPO
PSICOTERAPÊUTICO
PARA
PACIENTES
DIAGNOSTICADOS
COM
TRANSTORNO ALIMENTAR: O PAPEL DO PSICÓLOGO
Élide Dezoti Valdanha; Manoel Antônio dos Santos ...........................................................311
TRANSTORNO
DE
PÂNICO
E
IDEAÇÃO
SUICIDA:
CARACTERÍSTICAS
DE
PERSONALIDADE ATRAVÉS DO TESTE DE PFISTER
Cicera Andréa Oliveira Brito Patutti; Evandro Gomes de Matos; Anna Elisa VillemorAmaral..................................................................................................................................319
GRUPO DE APOIO MULTIFAMILIAR EM HOSPITAL-ESCOLA: TRABALHANDO A
DINÂMICA FAMILIAR NO TRATAMENTO DA ANOREXIA E BULIMIA
Carolina Leonidas; Lilian Regina de Souza Costa; Manoel Antônio dos Santos.................338
8
Apresentação
A ideia da publicação desse livro digital surgiu a partir do 21º Encontro de Serviços –
Escola de Psicologia do Estado de São Paulo e 4º Encontro Nacional de
Supervisores de Estágio em Psicologia ocorridos em 2013 na UNIP – Campinas.
O objetivo foi reunir um conjunto de artigos sobre temas diversos e atuais em
Psicologia que trouxessem reflexões sobre questões contemporâneas, a
formação do psicólogo e o exercício profissional.
Neste e-book os autores, oriundos de várias universidades brasileiras, apresentam
artigos de diferentes campos de pesquisa em Psicologia. Não houve, nesta
publicação, a preocupação com a homogeneidade, já que o escopo foi discutir a
diversidade e a riqueza do fazer psicológico com contribuições que reflitam o seu
desenvolvimento e abram possibilidades de novos fazeres.
Esperamos provocar questionamentos que resultem num processo contínuo de
reflexão e produção de novos saberes, atendendo a um aspecto importante da
universidade que é o de constituir-se em um centro de geração e difusão do
conhecimento, articulando as atividades de ensino, pesquisa e extensão, em
consonância com as demandas atuais da sociedade.
Maria da Piedade R. de Araujo Melo
Sílvia Ancona-Lopez
Organizadoras
9
ARTIGOS
Parte I
A ADOÇÃO NO CENÁRIO DOS NOVOS ARRANJOS FAMILIARES: A FAMÍLIA
HOMOSSEXUAL EM PAUTA
Manoel Antônio dos Santos
Resumo
No cenário contemporâneo têm emergido novos arranjos familiares. Dentre as novas
possibilidades de configuração familiar tem chamado atenção a família constituída
por meio da adoção de crianças por casais homoafetivos masculinos e femininos.
Considerando-se que este tema é bastante sensível e que comumente desperta
opiniões apaixonadas, tanto favoráveis quanto contrárias à prática da adoção sob
essas condições, é necessário aproximar-se de tais contextos familiares a fim de
investigar suas potencialidades a partir de uma abordagem psicológica. Nesta
conferência
pretende-se
abordar
os
significados
que
casais
homoafetivos
masculinos atribuem à família e à adoção. São elaboradas reflexões a partir dos
relatos obtidos com casais que viviam em união estável havia mais de uma década
quando adotaram. As entrevistas permitiram elucidar a trajetória do casal, desde o
encontro e decisão de constituírem uma vida em comum, até o surgimento do desejo
de constituírem família pela via da adoção. Também são enfocadas questões como
a transição para a parentalidade e as mudanças instauradas no cotidiano familiar
com a chegada das crianças. Os casais têm nítida consciência de seu protagonismo
social e da posição que ocupam como pioneiros na prática da adoção formalizada
com os nomes dos dois pais (e não apenas no nome de um dos parceiros). Apesar
de não haver ainda uma legislação específica que dê respaldo aos casais
homossexuais que desejam adotar, nota-se uma disposição em buscar as “brechas”
do estatuto legal e contribuir para criar jurisprudência nessa área. Os núcleos
familiares constituídos são ancorados em tradições e valores tradicionais,
10
reproduzindo em vários aspectos o modelo hegemônico da família nuclear burguesa.
Os casais parentais trazem um claro anseio de serem reconhecidos socialmente
como “uma família normal”. Os pais fazem questão de mostrarem que são “iguais,
embora diferentes” em relação às outras famílias, demonstrando a diversidade que
caracteriza qualquer configuração familiar. Conclui-se que a família constituída por
casais
homoafetivos
e
seus
filhos
adotivos
evidencia
continuidades
e
transformações que vêm ocorrendo nas relações de parentesco, conjugalidade e
filiação.
Palavras-chave: Adoção; Homossexualidade; Família.
As configurações familiares discrepantes do padrão tradicional de família
questionam aspectos fundamentais associados às formas de união e relações de
parentesco. As transformações que vêm ocorrendo nas últimas décadas questionam
as fundações culturais e sociais segundo as quais a responsabilidade pela educação
e cuidados dos filhos é tida como tipicamente feminina (Ramires, 1997). O fato é que
cada vez mais se reconhecem e valorizam os vínculos socioafetivos que
sedimentam as relações familiares, em detrimento da vinculação estritamente
biológica dos laços consanguíneos. Isso tem contribuído para uma progressiva
desnaturalização da família, que evidencia o quanto ela é uma criação humana
mutável e contingente, que está reinventando-se e alterando-se a cada época.
A construção de arranjos divergentes dos padrões normativos da sociedade
ocidental tem atraído a atenção de psicólogos, antropólogos, cientistas sociais e
profissionais de Direito.
A construção da conjugalidade homossexual, base para a formação da família
homoafetiva, enfrenta diversos desafios e obstáculos (Mello, 2005; Moscheta, 2004).
No plano jurídico, a entidade familiar ainda é reconhecida pelo Código Civil Brasileiro
como a união estável ou em matrimônio entre um homem e uma mulher, ou pela
comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes. Não há
imposição do casamento, mas permanece ainda a restrição quanto à existência de
11
dois sexos diferentes para o reconhecimento de um casal, ainda que alguns juristas
apontem a contradição legal existente, que priva os indivíduos homossexuais de
seus direitos. Nesse sentido, são buscadas algumas brechas na lei para que se
possa considerar o par do mesmo sexo como entidade conjugal e base para uma
unidade familiar.
Apesar de corresponder a uma prática milenar, a adoção ainda hoje é
atravessada por inúmeros mitos, tabus, preconceitos e estereótipos que se
encontram enraizados no imaginário coletivo (Schetini, 1998). A prática da adoção
de crianças por casais homoafetivos suscita diversos temores, questionamentos e
estranhamento por parte das pessoas.
Os dispositivos legais que regulam a adoção no Brasil (Estatuto da Criança e
do Adolescente – Lei 8.069, de 1990, complementado pela Nova Lei da Adoção, Lei
12.010, de 2009), são omissos e silenciam em relação à família homossexual. Por
outro lado, não há nos documentos legais qualquer restrição à orientação sexual do
requerente solteiro no processo de adoção. Solteiros podem adotar, assim como
casais, se estiverem em união civil ou união estável. Mas o casal, aos olhos da lei, é
entendido como formado pela união entre um homem e uma mulher, e não entre
dois homens ou duas mulheres.
Estudos no Brasil mostram que são inúmeros os casos de homossexuais que
têm filhos: casais que recorrem às técnicas de reprodução assistida (inseminação
artificial, barriga de aluguel), filhos de relações heterossexuais anteriores, adoção
por um dos parceiros ou adoções à brasileira, adoções por homossexuais solteiros
(Grossi, 2003; Uziel, 2008). Atualmente, já são diversos casais homoafetivos que
tiveram a adoção deferida pelo Judiciário.
Por isso é imprescindível compreender os significados que casais
homoafetivos masculinos atribuem à família e à adoção. As reflexões aqui
elaboradas advêm dos relatos de pesquisa obtidos com casais que viviam em união
estável havia mais de uma década quando adotaram. As entrevistas permitiram
elucidar a trajetória do casal, desde o encontro e decisão de constituírem uma vida
em comum, até o surgimento do desejo de constituírem família pela via da adoção.
12
Os casais têm nítida consciência de seu protagonismo social e da posição
que ocupam como pioneiros na prática da adoção formalizada com os nomes dos
dois pais (e não apenas no nome de um dos parceiros). Apesar de não haver ainda
uma legislação específica que dê respaldo aos casais homossexuais que desejam
adotar, nota-se uma disposição em buscar as “brechas” do estatuto legal e contribuir
para criar jurisprudência nessa área.
Os núcleos familiares homoafetivos constituídos são ancorados em tradições
e valores tradicionais, reproduzindo em vários aspectos o modelo hegemônico da
família nuclear burguesa. Os casais parentais trazem um claro anseio de serem
reconhecidos socialmente como “uma família normal”. Os pais fazem questão de
mostrarem que são “iguais, embora diferentes” em relação às outras famílias,
demonstrando a diversidade que caracteriza qualquer configuração familiar.
Conclui-se que a família constituída por casais homoafetivos e seus filhos
adotivos evidencia continuidades e transformações profundas que vêm ocorrendo
nas últimas décadas nas relações de parentesco, conjugalidade e filiação.
Considerações Finais
Vimos que no cenário contemporâneo têm emergido novos arranjos
familiares. Dentre as novas possibilidades de configuração familiar tem chamado
atenção a família constituída por meio da adoção de crianças por casais
homoafetivos masculinos e femininos. Considerando-se que este tema é bastante
sensível e que comumente desperta opiniões apaixonadas, tanto favoráveis quanto
contrárias à prática da adoção sob essas condições, é necessário aproximar-se de
tais contextos familiares a fim de investigar suas potencialidades a partir de uma
abordagem psicológica.
Percebeu-se que os significados que os casais homoafetivos masculinos
atribuem à família e à adoção são pautados em valores convencionais, e que esses
13
protagonistas do cenário da adoção desejam “naturalizar” essa prática, buscando
legitimidade junto à população, assim como o reconhecimento de seus direitos.
Referências
Mello,
L.
(2005).
Novas
famílias:
Conjugalidade
homossexual
no
Brasil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond.
Moscheta, M. S. (2004). Construindo a diferença: A intimidade conjugal em casais
de homens homossexuais. Dissertação de mestrado não-publicada, Universidade
de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.
Ramires, V. R. (1997). O exercício da paternidade hoje. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos.
Schettini, L. F. (1998). Compreendendo os pais adotivos. Recife: Bagaço.
Uziel, A. P. (2008). Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond.
Sobre o autor
Manoel Antônio dos Santos: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação
em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPSUSP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).
E-mail: [email protected]
Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP.
14
A FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE: DUAS VISÕES, MÚLTIPLAS
POSSIBILIDADES NO CENÁRIO DA DIVERSIDADE SEXUAL
Yurín Garcêz de Souza Santos
Fabio Scorsolini-Comin
Manoel Antônio dos Santos
Introdução
Este estudo insere-se no quadro de transformações recentes que atravessam o
campo social e jurídico (Dias, 2003) e impactam especialmente a família. Antes
restrita ao arranjo conjugal clássico, base da família nuclear, hoje a família deixa de
ter um único modelo proeminente para ser monoparental, recomposta, homossexual,
entre outras configurações possíveis, abrigando padrões de parentalidade e
conjugalidade alternativos.
A família homoafetiva é uma modalidade de arranjo familiar que vem
conquistando crescente visibilidade nos últimos tempos. As recentes transformações
ocorridas na relação família-indivíduo-sociedade são ressignificadas nessa nova
possibilidade de configuração familiar, que destoa do princípio fundamental que rege
o conceito de família: a diferenciação sexual, isto é, a diferença anatômica entre os
sexos (Passos, 2005; Perelson, 2006; Perroni & Costa, 2008).
Em contrapartida, a família constitui a instituição mais antiga da sociedade,
sendo, também, o primeiro espaço que promove a satisfação das necessidades
básicas dos indivíduos e, ao mesmo tempo, o lugar que propicia o desenvolvimento
da personalidade e da socialização (Salomé, Espósito & Moraes, 2007). Contudo,
tratando-se da família homoparental, deve-se levar em consideração que tanto a
noção de homossexualidade quanto de família são categorias socialmente
construídas e, por conseguinte, produtos históricos resultantes de embates políticos,
sociais e culturais que definem e redefinem seus contornos a cada época.
Ainda que a família nuclear, modelo inspirador da sociedade ocidental, esteja
tornando-se, cada vez mais, uma experiência minoritária (Uziel et al., 2006), com o
surgimento e disseminação de arranjos familiares distintos, a ideia tradicional de
família formada exclusivamente a partir de uma relação heterossexual, monogâmica
e procriadora do casal parental acaba por fixar, no imaginário social, uma norma que
15
serve de fundamento para a classificação de qualquer outra forma de constituição
familiar.
Nesse sentido, a família nuclear tende a ser vista como natural, imutável e
inequívoca, descaracterizando o conceito de família como entidade socialmente
construída, assim como ocorre, mutatis mutandis, com a homossexualidade (Santos
& Moscheta, 2006). As famílias constituídas a partir de uniões homossexuais e,
especificamente, por homens homossexuais, contestam a heteronormatividade e
representam um desafio para as disciplinas que tratam da parentalidade, como a
Antropologia, o Direito e a Psicanálise, tornando necessário rever conceitos e
concepções consagradas desses campos de saber.
No que concerne à parentalidade, Zorning (2010) afirma que este é um termo
de uso relativamente recente, que foi empregado inicialmente na literatura científica
francesa a partir da década de 1960 com o intuito de marcar a dimensão do
processo de construção do exercício da relação dos pais com os filhos. Quando se
leva em consideração a homoparentalidade masculina – neologismo criado pela
Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas em Paris, em 1997 (Perroni &
Costa, 2008) – deve-se atentar para o fato de que a homossexualidade refere-se
unicamente ao exercício da sexualidade por determinado indivíduo e que a prática
das funções parentais não exige, em absoluto, esse exercício. Ou seja, para os
referidos autores, não existe relação entre orientação afetivo-sexual ou práticas
sexuais de um indivíduo e sua capacidade para exercer a parentalidade.
Contudo, o desejo de inserir-se em um modelo de família que esteja baseado
nos moldes da família nuclear, por meio da conjugalidade homoafetiva, acaba por
gerar resistências em alguns segmentos sociais, que são ratificadas pela
inexistência de leis que legitimem a parceria civil e a conjugalidade entre indivíduos
do mesmo sexo. A questão torna-se ainda mais complexa quando existem filhos
envolvidos nesse processo, isto é, quando a questão extrapola os limites da
conjugalidade e adentra o campo da parentalidade (Perroni & Costa, 2008). Na
sociedade contemporânea, como mostra Manzi-Oliveira (2009), a função de pai está
estritamente relacionada à figura de provedor das condições materiais de
subsistência, sendo aquele membro que oferece suporte material e proteção à
família e que não geralmente não tem envolvimento direto no cuidado com os filhos.
16
Assim, os homens mais afastados das tarefas domésticas desempenhariam um
papel importante para a constituição do caráter da criança, funcionando como
modelo de poder e autoridade a ser internalizado.
Seguindo essa linha de raciocínio, Perroni & Costa (2008) afirmam ser
recorrente, no imaginário social, a curiosidade sobre as distinções de papéis
parentais em arranjos formados por pares homoafetivos. Afinal, quem seria o “pai” e
quem seria a “mãe” em uma família homoparental? Entretanto, ainda segundo esses
autores, esse seria um falso dilema, uma vez que esse questionamento
desconsidera o fato de que um homem gay não se transforma em uma mulher
devido à sua inclinação afetivo-sexual ser orientada para alguém do mesmo sexo
biológico que o seu, da mesma maneira que uma mulher lésbica não se converte em
um homem pelo mesmo motivo. Em se tratando da função parental, a função
“paterna” ou “materna” pode ser desempenhada por qualquer um dos parceiros,
mesmo que seja, por vezes, exercida de forma mais evidente por um ou outro dos
membros da parelha que compartilha um projeto de vida afetiva, sem que isso os
transforme em alguém do sexo oposto ao seu (Perroni & Costa, 2008).
Complementando essas ideias, Saffioti (1987) mostra que a paternidade deve –
ou ao menos deveria ir – além da função tradicional de provedor, que é um legado
da sociedade patriarcal e sexista. E mais: o homem deveria refletir sobre essa
dimensão da vida e da paternidade que é o cuidado parental, que não se resume
apenas ao trabalho de alimentar, banhar ou trocar as fraldas de um bebê, por
exemplo, mas inclui também o compartilhamento de atividades prazerosas a partir
da convivência com os filhos. O cuidado parental implica, ainda, em observar e
contribuir para com o processo de desenvolvimento do ser em desenvolvimento,
apreender a perspectiva peculiar da criança, seus medos, ansiedades, angústias e
preocupações, assim como sua espontaneidade, sua maneira direta de expressar
emoções e demonstrar suas necessidades. Isso mostra-se importante, segundo a
referida autora, uma vez que possibilita ao homem pai uma oportunidade para
repensar sua própria vida e reavaliar os valores que a pautam, o que o auxilia a
desnaturalizar o modelo de paternidade enraizado no imaginário da sociedade
heteronormativa e homofóbica.
17
Desse modo, o convívio entre pais e filhos não seria benéfico apenas para as
crianças, mas traria elementos valiosos e ricos, sobretudo, para o homem
empenhado no exercício da função paterna, sendo essa atitude não apenas um
dever, mas antes um direito do homem (Saffioti, 1987). Entretanto, em que pesem
as mudanças e transições operadas na noção de família, ainda prevalece a visão
tradicional. Sendo moldada por elementos culturais, econômicos, sociais, de gênero
e de etnia, a maneira pela qual um homem relaciona-se com seus filhos estabelece
e atesta o que é ser homem, além de definir qual é a sua função e seu papel dentro
de um determinado contexto interacional. No marco definido pelos elementos aqui
arrolados, a paternidade já foi descrita como função masculina, “coisa de homem”,
que delineia a identidade no sentido de que, se esse homem é pai, ele é, de fato,
homem. A paternidade, dessa maneira, afirma e confirma a posse da masculinidade,
na medida em que oferece um dos caminhos mais desejados para levar um homem
a aceder ao universo masculino adulto, enquanto na mulher a condição feminina é
reafirmada pela maternidade. Por ser contestado com certa facilidade no caso do
homem, esse caminho de mostrar ao mundo que se é homem via paternidade é um
tanto quanto mais complexo, ainda mais quando o homem em questão tem uma
orientação homossexual (Moris, 2008).
Objetivos
O presente estudo teve como objetivo apresentar novas possibilidades de ser
família – colocando em cena a família homoafetiva, a partir da perspectiva de seus
próprios protagonistas. Como fundamentação teórica também se tece uma
discussão do contexto de construção histórica dos conceitos de paternidade,
parentalidade e homossexualidade, mais especificamente na conjunção desses três
elementos, que aqui aparece representada no construto da homoparentalidade
masculina. Ademais, se objetivou compreender de que modo a homoparentalidade é
construída e vivida em uma sociedade heteronormativa. A hipótese a ser investigada
é se esse tipo de parentalidade pode ser visto como uma busca pela
desnaturalização do modelo tradicional de família – a família nuclear – que é
apresentado como norma, enraizada no imaginário social como única possibilidade
correta e possível de constituição familiar.
18
Método
Este estudo de caso é um recorte de uma investigação mais ampla, que visa
investigar a homoparentalidade masculina. Tendo em vista as novas configurações
familiares que, a cada dia, têm ganhado visibilidade no contexto brasileiro e global,
entende-se ser o estudo de caso uma opção metodológica pertinente, uma vez que
permite conhecer em profundidade determinada realidade pouco explorada.
O caso aqui relatado diz respeito às histórias de Paulo e Vinícius (nomes
fictícios), dois homossexuais solteiros e pais. O contato com os participantes deu-se
por meio da rede de contatos profissionais dos pesquisadores. Ambos são
integrantes de um grupo de reflexão comunitário, voltado para a discussão da
temática da diversidade sexual.
No caso de Paulo, a experiência da paternidade deu-se por meio de uma
relação heterossexual anterior, da qual resultou um filho biológico, Gustavo, hoje
com 16 anos. A entrevista foi realizada na sala da residência do participante, onde
também vive a mãe do entrevistado e, eventualmente, seu filho.
Já no caso de Vinícius, o processo de filiação deu-se por meio da adoção. O
participante adotou a filha de uma prima, que na época em que engravidou tinha 17
anos e não apresentava condições nem desejo de cuidar da criança. A entrevista foi
realizada na sala da casa do participante, que mora sozinho e, eventualmente,
recebe sua filha, Marina, de cinco anos, que vive com uma tia-avó, irmã da mãe de
Vinícius.
Tabela 1.
19
Características sociodemográficas dos participantes e dos filhos
Participantes
Idade Profissão
Filho(a),
idade
(anos)
Paulo
40
(anos)
Auxiliar
de Gustavo, 16
Enfermagem
Vinícius
39
Fotógrafo
Marina, 5
As entrevistas se basearam no método de História de Vida. Foi solicitado aos
participantes que contassem, de forma livre e como melhor lhes parecesse, suas
histórias de vida, sem que houvesse a necessidade de obedecer uma sequência
cronológica dos fatos para construir esse relato. Esse recurso metodológico tem o
propósito de permitir alcançar uma visão ampliada da vida dos entrevistados, no
intuito de que se permita conhecer aspectos gerais de suas histórias que possam
ser relevantes para a análise do material do estudo. Ao final, foi pedido que os
participantes respondessem a algumas questões adicionais elaboradas pelos
pesquisadores com base na literatura da área, com o propósito de complementar os
dados fornecidos. Assim, caso não tivessem emergido espontaneamente no
discurso dos participantes, eram formuladas questões relativas a pontos específicos
de suas trajetórias de vida, principalmente no que se refere à assunção da
homossexualidade, aspectos da vida familiar, suas noções de paternidade e o que
eles entendem por família. Esse segundo momento da entrevista teve a função de
aprofundar os aspectos já relatados pelos participantes na primeira parte, além de
complementar informações relacionadas diretamente aos objetivos do estudo.
As entrevistas foram audiogravadas e tiveram duração de 1h40 e 40 minutos,
respectivamente. Posteriormente, os registros foram transcritos na íntegra e
literalmente, constituindo, assim, o corpus de análise. Em seguida, o material foi
submetido à análise de conteúdo na modalidade temática, que permitiu elencar os
núcleos de significado que emergiram nos relatos.
Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a
fim de que um acordo de confidencialidade fosse firmado entre pesquisadores e
participantes, garantindo, assim, o sigilo em relação às informações fornecidas e o
20
princípio de que os dados obtidos no estudo serão utilizados apenas para fins
acadêmicos.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição à qual
os pesquisadores são vinculados.
Resultados e discussão
A partir do corpus de análise, constituído pelas transcrições literais das
entrevistas realizadas, foi possível identificar três eixos temáticos: (1) a construção
da sexualidade; (2) as relações familiares constituídas ao longo da vida de cada um;
e (3) a forma como cada participante se constituiu como pai.
A história de Paulo: identificar-se para diferenciar-se
No que se refere à construção de sua sexualidade (categoria temática 1), Paulo
afirma que, na tentativa de ser um homem diferente daquele modelo que estava
colocado em sua realidade familiar, começou a se relacionar com homens, afetiva e
sexualmente, buscando com isso “aprender a ser homem”. Assim, por meio da
imitação, Paulo buscava identificar-se com os homens com os quais se relacionava
afetiva e sexualmente, conseguindo, assim, se distanciar do jeito de ser de seu “pai
de criação”. Paulo queria aprender, com os homens, a como se relacionar com as
mulheres, ainda que afirme sentir-se atraído por pessoas do mesmo sexo desde os
seis anos de idade. Desse modo, Paulo acabou por se envolver afetivamente com
outros homens e “apaixonando-se” pelo masculino, até que decidiu assumir sua
orientação homoafetiva.
Outro fator relevante na história de vida de Paulo e que é passível de análise
diz respeito às relações familiares estabelecidas pelo entrevistado (categoria
temática 2). Paulo foi criado por sua mãe biológica e seu marido, mesmo sendo filho
biológico do primogênito dos patrões de sua mãe. O entrevistado afirma que não
conseguia identificar-se com seu pai de criação e, concomitantemente, não era
reconhecido como filho de seu pai biológico, tendo, assim, dois pais e nenhum, pois
não se reconhecia em nenhum deles.
21
Em contrapartida, Paulo afirma que a figura de sua mãe foi o elemento vital
que lhe inspirou “força e caráter”, além de ser a pessoa que o auxilia, hoje em dia,
na relação com seu filho, Gustavo. De acordo com o relato do participante, esses
aspectos de sua relação com seus pais foram de extrema importância para a
construção de sua sexualidade, sendo possível, então, encontrar um paralelo entre
os dois primeiros eixos temáticos selecionados para a presente análise. Em outras
palavras, a relação de Paulo com seus pais tem, de acordo com o entrevistado,
consonância com a sua constituição como pai. Dessa forma, o participante afirma
tentar transmitir para Gustavo os valores que aprendera em casa, principalmente
com sua mãe. Assim, pode-se identificar, em seu relato, a transmissão
intergeracional que marcou sua trajetória, dando continuidade à história herdada de
sua família de origem. Por outro lado, o fato de ele não dividir o mesmo teto com o
filho, que apenas visita-o em alguns momentos, parece reeditar sua história de
desamparo pelas figuras paternas (o pai biológico e de criação).
Em relação à forma como se constituiu como pai (categoria temática 3), podese afirmar que, para Paulo, ser pai transcende o modelo que está impresso no
imaginário social sobre o conceito de paternidade, sendo esta uma experiência única
para cada indivíduo. Seguindo o fio dessa argumentação, o participante reconhece,
na paternidade, um elo, uma conexão profunda entre pai e filho, que se aproxima, de
acordo com sua percepção algo idealizada acerca dessa relação, à “magia”, ao
encantamento. Biologicamente, afirma o participante, todos os homens apresentam
a capacidade de serem pais, contudo, considera que qualquer tentativa de
explicação do sentido de paternidade é muito pobre para significar o que consiste
essa experiência de fato. Ademais, para o entrevistado só se aprende a ser pai
quando se está imerso em uma relação de afinidade com o filho, evidenciando, em
sua fala, o caráter de construção compartilhada do significado de parentalidade,
sendo este unicamente estabelecido na relação pai-filho. Para Paulo, em seus
aspectos básicos, não existem diferenças significativas entre a parentalidade
exercida por um homem gay e a parentalidade exercida por um homem
heterossexual, embora este último seja o modelo reconhecido e legitimado como
verdadeiro, único e respeitável em uma sociedade heteronormativa.
22
A história de Vinícius: o despertar de um desejo
Os mesmos três eixos temáticos puderam ser identificados a partir da análise
da entrevista realizada com Vinícius. Assim, no que diz respeito à construção de sua
sexualidade (categoria temática 1), é possível depreender do relato do participante
que esta deu-se como um despertar. Vinícius conta que, até seus 21 anos, não tinha
se dado conta de seu desejo por homens, afirmando, ao mesmo tempo, que não
entendia a reação de seus amigos heterossexuais ao se depararem com uma
mulher. Mesmo tendo mantido alguns relacionamentos heterossexuais de longa
duração, o entrevistado afirma que só foi entender, de fato, a força e o significado do
desejo quando olhou para um homem com intenções que iam além de uma relação
de amizade. O participante indaga-se sobre a origem desse desejo por homens,
reconhecendo seus vários relacionamentos anteriores com mulheres como
expressão de uma possível repressão de seu desejo homossexual.
Para
Vinícius,
as
dificuldades
em
relação
à
assunção
de
sua
homossexualidade não estão diretamente relacionadas à orientação sexual, mas
sim, ao fato de ser negro. O participante afirma que tinha dificuldade em entender a
aproximação
das
pessoas,
se
estavam
procurando
sexo
casual ou
um
relacionamento sério, e atribui essa confusão mais à cor de sua pele do que ao seu
desejo por pessoas do mesmo sexo. Essa dúvida em relação às reais intenções do
outro tem como pano de fundo a crença disseminada na cultura de que o homem
negro é um prodígio de virilidade, encarnação da potência, graças ao seu vigor e
compleição física. Séculos de relações promíscuas, muitas vezes abusivas, entre
senhores e escravos na sociedade colonial, certamente contribuíram para reforçar
esse estereótipo sexual que cerca o corpo negro no imaginário social.
As relações familiares estabelecidas por Vinícius ao longo da vida (categoria
temática 1) e a forma como ele entende família podem ser relacionadas diretamente
ao modo como construiu o “ser pai” em sua experiência pessoal (categoria temática
3), o que permite estabelecer uma aproximação entre esses eixos temáticos
selecionados para análise.
O participante afirma, em seu relato, que o mais importante em uma família é o
amor, derivando desse sentimento básico o respeito e o carinho, que seriam as
bases para as trocas afetivas estabelecidas entre os membros da célula familiar.
23
Nesse sentido, Vinícius atribui o seu desejo de ser pai às suas relações familiares
solidamente constituídas. Isso fica evidenciado quando Vinícius percebe-se, no
decorrer de seu relato, como uma pessoa “egoísta”. Afirma que tem muito medo da
solidão e atribui esse fato à forma pela qual os relacionamentos em sua família são
estabelecidos, sempre pautados em estreita proximidade e contato afetivo,
derivando daí o seu desejo pela paternidade.
É interessante notar que, no caso de Vinícius, parece não existir, até o
momento da entrevista, a preocupação por parte do participante quanto à assunção
de sua homossexualidade. O entrevistado afirma que seu núcleo familiar mais
próximo, formado pela mãe e irmã, é consciente de seu desejo e de suas relações
com outros homens, entretanto, o resto da família não tem conhecimento sobre esse
aspecto de sua vida, incluindo sua filha. Vinícius tampouco mostra preocupação com
a eventual descoberta de sua condição homossexual por parte da filha, afirmando
que, para ele, a revelação acontecerá naturalmente com o passar dos anos. Assim,
um aspecto relevante que emerge na entrevista com Vinícius é a forma particular
que o assumir-se gay (“sair do armário”) pode adquirir em sua trajetória de vida.
Esse participante revela sua condição homossexual apenas para algumas pessoas
seletas de sua rede social, de modo que o modo como ele exerce os cuidados
parentais está atravessado por esse “segredo” guardado a sete chaves e que é
mantido na relação com a filha.
Considerações finais
A partir da análise empreendida, pôde-se constatar que o contexto da família
homoparental exibe diferenças em sua forma de organização e funcionamento, isto
é, dentro de uma das várias possibilidades de arranjos familiares existem variadas
formas de composição da família. Nesse sentido, como afirma Zambrano (2006),
existem três maneiras de se exercer a homoparentalidade. A primeira mostra-se
quando existem filhos concebidos em relações heterossexuais anteriores, como no
caso de Paulo, que teve seu filho, Gustavo, a partir de uma relação heterossexual
anteriormente estabelecida. A segunda possibilidade de estruturação da família
homoparental diz respeito à adoção legal que, contudo, frequentemente é feita em
nome de apenas um dos parceiros devido às barreiras decorrentes da inexistência
24
de uma legislação brasileira que proteja os direitos da família homoafetiva, em face
dos preconceitos que circundam a homossexualidade. Essa segunda forma de
configuração familiar pode ser exemplificada com o caso de Vinícius que, por meio
da adoção, hoje é pai de Mariana. A terceira maneira de formação da família
homoparental vem acompanhada por inovações tecnológicas, como a inseminação
artificial no caso de casais de mulheres que têm como doador de sêmen geralmente
um amigo gay ou um desconhecido (Zambrano, 2006).
Existe ainda, de acordo com Grossi (2003), uma quarta maneira de exercício
da homoparentalidade: a chamada coparentalidade entre gays e lésbicas, que pode
se dar entre dois casais, entre um casal de lésbicas e um gay ou entre um casal de
gays e uma lésbica. Em relação a essa quarta possibilidade de ser família, pode-se
considerar o exemplo de Paulo. A mãe de seu filho biológico, após a separação do
casal, acabou por se envolver afetivamente com mulheres e, atualmente, vive em
união estável com outra mulher, o que faz com que Gustavo tenha a guarda
compartilhada entre seu pai e sua mãe e ainda receba os cuidados parentais por
parte da companheira da mãe.
Se analisados os significados que os entrevistados atribuem à experiência da
paternidade, pode-se notar que, mesmo com diferenças apreciáveis, tanto Paulo
quanto Vinícius apresentam uma visão um tanto quanto ampliada do conceito de
parentalidade, quando comparados a outros pais. Nesse sentido, em estudo
realizado por Freitas et al. (2009), foram analisados os significados que homens
homossexuais atribuíam à experiência da paternidade. Por meio da análise do
discurso dos entrevistados pôde-se entender que os participantes concebiam a
paternidade como um novo encargo social, vinculando-a mais à provisão material da
família do que ao espaço de envolvimento afetivo com os filhos.
Já em outro estudo, realizado por Moris (2008), com pais homossexuais que já
haviam vivenciado anteriormente um relacionamento heterossexual estável nos
quais desempenharam o papel de pai, a concepção de paternidade para os 15
homens entrevistados estava intimamente inserida no contexto desses antigos
relacionamentos heterossexuais. Ou seja, a concepção de paternidade desses
homens era tradicional, própria do modelo nuclear de família que fora constituído
com a complementaridade de um pai e de uma mãe. Assim, depois de aceitarem
25
sua homoafetividade e de separarem-se dos respectivos parceiros heterossexuais
anteriores, esses pais viam-se (e agiam) no pleno exercício de sua paternidade
como homens pais divorciados. Pode-se depreender, então, comparando os dois
estudos, que ao se reconhecerem seja como heterossexuais ou homossexuais, os
homens que são pais acabam por considerar sua função do mesmo modo, isto é,
percebem-se como responsáveis pelo sustento da família. Portanto, ainda se
mostram muito apoiados no modelo tradicional de família vigente em nossa
sociedade.
Entretanto, ainda que os achados das referidas pesquisas tenham sido
corroborados de um modo geral pelos participantes do presente estudo, tanto Paulo
quanto Vinícius apresentaram, ao mesmo tempo, uma visão ampliada do conceito
de paternidade, uma vez que, para eles, a paternidade extrapola o simples
desempenho do papel de provedor e mantenedor das condições materiais que
medeiam a relação pai-filho. Mais do que isso, a paternidade está baseada nas
relações afetivas estabelecidas nessa díade. Assim, levando-se em consideração os
relatos apresentados pelos entrevistados e a multiplicidade atual de configurações
familiares – família conjugal clássica, monoparental, recomposta, homossexual – fica
evidente que a paternidade na contemporaneidade deixou de ser estritamente
biológica para se tornar socioafetiva.
A partir das análises das entrevistas e das discussões com a literatura, apontase a necessidade de maior emprenho das disciplinas que versam sobre a
parentalidade, como a Psicanálise, o Direito e a Antropologia, no sentido de que os
discursos dos que vivem em contextos de configurações familiares distintas
daqueles modelos estabelecidos como norma na sociedade possam também ser
legitimados como válidos e possíveis. Dar visibilidade a essas novas possibilidades
de ser família faz com que elas alcancem notoriedade e, assim, possam contribuir
para desconstruir conceitos enraizados no imaginário social. O caráter socialmente
construído da noção de família, da parentalidade e da própria homossexualidade
pode ser evidenciado nos relatos produzidos pelos protagonistas incluídos no
presente estudo, refletindo a construção de um novo conceito, a homoparentalidade,
que por sua vez está ancorado na percepção dos próprios indivíduos que a
26
exercem. Ademais, os relatos obtidos nesta investigação dão testemunho da
necessidade de desnaturalização dos discursos hegemônicos.
É importante salientar que afirmar a existência de novas formas de ser família
não significa o mesmo que dizer que o modelo tradicional de família – a família
nuclear – esteja deixando de existir, mas apenas que novas possibilidades estão
surgindo no cenário contemporâneo (Passos, 2005) e que estas demandam o olhar
das disciplinas que se propõem a discuti-las. Ou seja, a teoria deve estar pautada na
prática individual, na singularidade que compõe cada caso, para que a legitimação
da diferença prospere, facilitando, assim, o florescimento de padrões menos
estereotipados de pensamento. O importante é que se atente para o fato de que os
novos arranjos familiares devem ser examinados, assim como o padrão tradicional
de família, como possibilidade legítima para aqueles que o vivenciam, deixando de
lado os discursos patologizantes e preconceituosos sobre essas formas de ser
família.
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rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago.
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Bacharelado em Psicologia – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
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desafios contemporâneos. Fazendo Gênero 8: Corpo, violência e poder.
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travestis e transexuais. Horizonte Antropológico, 26(12), 123-147.
Zorning, S. M. A. (2010). Tornar-se pai, tornar-se mãe: o processo de construção da
parentalidade. Tempo Psicanalítico, 42(2), 453-470.
Sobre os autores
Yurín Garcêz de Souza Santos: Graduando em Psicologia pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Membro do
Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Bolsista de Iniciação
Científica da FAPESP. E-mail: [email protected]
Fabio Scorsolini-Comin: Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro (UFTM). Pós-doutorando da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Pesquisador do Laboratório de Ensino e
Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq) e do grupo A Análise do Discurso e suas
Interfaces (AD-USP-CNPq). E-mail: [email protected]
Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPSUSP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected]
28
LUDOTERAPIA PSICANALÍTICA NO CONTEXTO DE UM ESTÁGIO
CURRICULAR EM ADOÇÃO
Marina Vieira Madeira
Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes
Manoel Antônio dos Santos
Introdução
A adoção, de um modo geral, é uma prática realizada desde os primórdios da
humanidade. Seus objetivos e motivações foram estabelecidos e remodelados de
acordo com os costumes e crenças de cada época. O contexto histórico da adoção
passa, portanto, por momentos em que foi supervalorizada, como no Antigo Egito,
assim como por momentos em que foi praticada de forma descontrolada e
desrespeitosa, como por meio do tráfico de crianças que perderam os pais no pósSegunda Guerra Mundial (Pereira, 2011).
Recentemente, em 2009, foi promulgada a Nova Lei de Adoção (Lei n.
12.010/2009), que tem como foco o bem-estar e o desenvolvimento da criança,
sendo também um meio legal de proteção à família que vai se formar a partir da
adoção (Costa et al., 2011). Essa lei vai ao encontro do conceito de “adoção
moderna” (Pilotti), que denota a busca por uma família para a criança, ao invés de
uma criança para a família, como na adoção clássica. Contudo, Paiva (2004)
ressalta que, apesar dessa atual mudança de concepção geral, a realidade é que
aspectos histórico-culturais muitas vezes ainda interferem prejudicialmente no olhar
para os interesses da criança, nem sempre garantindo a proteção da mesma ao
colocá-la em uma família substituta. Nesse sentido, é importante pensar que a Nova
Lei de Adoção é um ponto de partida fundamental para uma mudança significativa
das percepções acerca desta prática, mas é necessário cuidado e atenção
constantes na hora de transformar os preceitos legais em ação.
França (2001) define adoção como um encontro de necessidades, ou seja, é
o “encontro da necessidade da criança de estabelecer um campo psíquico (entre a
imediatez biológica e a perenidade) e da necessidade do adulto de transcender sua
29
condição mortal através da filiação psíquica” (p. 79). Além disso, ao viver o caos
desintegrador do pós-nascimento, a criança precisa de um ambiente acolhedor,
sendo o adulto, no caso os pais adotivos, o responsável por oferecer esse ambiente
ao recém-nascido e, de alguma forma, dar sentido à experiência vivida (Maggi,
2009). Hamad (2001) segue a mesma direção, colocando a vida da criança como
fruto de desejos, tanto daqueles que a aceitaram como ela é, quanto dela mesma
que aceitou viver, mesmo com as condições complicadas, considerando
fundamental valorizar a escolha da própria criança para que a adoção não se torne
algo difícil e imprevisível.
A família adotiva é permeada por fantasias inconscientes, assim como todas
as famílias, mas, na primeira, a quantidade de emoções envolvidas é ainda maior
(Rosa, 2008). Como exemplo de fantasias inconscientes presentes na criança
adotada, a referida autora menciona a existência de uma crença de que foi por não
merecer o amor da mãe que ela foi colocada para adoção, de que a culpa por ter
sido abandonada é dela e não das dificuldades ou impossibilidades dos pais, o que
provoca na criança o sentimento de que não merece ser amada. Outro exemplo é a
fantasia inconsciente referente ao medo da perda, sendo comum a utilização de
estratégias para se proteger contra novas perdas, contra um novo abandono, por
meio da evitação de emoções fortes e do engajamento em relacionamentos mais
profundos. Isso pode ser sentido pela mãe adotiva como uma rejeição. Se não
houver o devido preparo para lidar com essa situação, pode acarretar uma
permissividade diante do filho, em uma falta de apropriação, que pode ser por ele
sentida como uma nova rejeição. Essa permissividade, ou até mesmo a ideia
incorporada de que se devem evitar novas separações e sofrimentos à criança
adotada, vai ao encontro do que Hamad (2001) assinalou sobre não permitir dar à
criança seu estatuto de criança como qualquer outra.
Em contrapartida, segundo Gomes (2006), para Winnicott a questão das
fantasias inconscientes ou desejos dos pais não é tão relevante para o desfecho da
adoção, sendo, porém, realmente fundamental que exista uma capacidade da
família de cuidar da criança, estando dispostos a adaptarem-se às necessidades da
mesma ao longo de seu processo de amadurecimento. Winnicott (1997) acredita que
uma história de adoção pode ser uma adoção humana comum, desde que o
30
processo de adotar transcorra bem, ou seja, depende fundamentalmente da história
inicial do bebê.
Com
a
vivência
de
muitas
falhas
básicas
iniciais,
envolvendo
necessariamente um fracasso em relação ao que Winnicott denominou preocupação
materna primária e holding por parte da mãe biológica, a criança que foi abandonada
busca, ao longo de sua vida, recursos para a reparação de tais falhas. O encontro
com a mãe adotiva pode ser muito bem-sucedido, haja vista que, segundo Briani
(2007), a mãe adotiva pode suprir necessidades básicas da criança, à medida que
estabelece com ela uma relação íntima, calorosa, regular e constante. Além disso,
pode desenvolver também uma capacidade de holding, ajudando seu filho a sentirse compreendido e contido em suas angústias e agonias primitivas. A angústia de
separação é muito presente na prática clínica com pessoas adotadas, sendo que os
mecanismos de defesa mais frequentemente percebidos nessas pessoas são:
repressão, deslocamento e negação dos afetos (Briani, 2007).
Em consequência do exposto, e mais ainda como parte do próprio
desenvolvimento tanto de crianças adotadas como não adotadas, a criança pode
apresentar uma
agressividade
aparentemente
sem
motivos,
ou
de
difícil
compreensão. Contudo, o olhar winnicottiano traz a ideia de que é pela destruição
dos objetos que o bebê descobre o mundo como estando lá desde sempre, sendo
que ocorre a transição do mundo dos objetos subjetivos para os objetos
objetivamente percebidos (Tomassi, 1997). A partir dessa percepção é possível
pensar na agressividade de uma forma mais positiva, voltada para uma questão de
motilidade, de busca por compreensão e adaptação ao ambiente.
Descrição do paciente
Lúcio (nome fictício) é um menino de 10 anos, filho de Cláudia, que o adotou
quando ele ainda era recém-nascido. Lúcio tem um irmão mais velho, também
adotivo (Vinícius), que apesar de mais velho foi adotado depois de Lúcio, quando
este tinha 5 anos. Segundo a mãe, a segunda adoção foi um pedido do próprio filho,
que dizia querer um irmão. Cláudia conta que é mãe solteira e que Lúcio costumava
ser um menino tranquilo e carinhoso, mas que após a chegada do irmão passou a
31
apresentar comportamentos agressivos e distanciou-se da mãe. Ano passado
(2012), por incentivo do irmão, Lúcio quis conhecer a mãe biológica. Cláudia
atendeu seu pedido e em dezembro ele foi apresentado à família biológica
(descobriu que tem três irmãos, sendo dois mais velhos e um mais novo). A mãe
relata que esse contato foi tranquilo e, apesar de serem acontecimentos
aparentemente marcantes, a mãe não entra muito em detalhes sobre o que se
sucedeu.
Outra questão que se apresenta nessa família é referente à cor da pele, visto
que Cláudia e Vinícius são negros e Lúcio é branco. Na entrevista inicial Cláudia
falou brevemente a respeito disso, mas Lúcio raramente traz essa questão na
terapia. Trata-se, assim, de uma família adotiva que vive uma situação peculiar de
adoção inter-racial.
Atualmente, Lúcio está cursando o 5º ano em uma escola pública, sendo que
até o ano passado ele e seu irmão estudavam em escola particular. Os dois estão
na mesma sala, por questões estruturais da própria escola (há uma única classe no
período da tarde). Lúcio tem trazido às sessões muitos assuntos referentes à escola,
contando sobre as diferenças que vem percebendo entre a atual escola e a antiga,
sobre seus amigos e algumas dificuldades que encontra (está de recuperação esse
semestre). É importante destacar aqui que sua mãe encontra-se em atendimento
psicológico por outra estagiária, no mesmo serviço clínico, e que buscou
atendimento também para Vinícius, sendo que, possivelmente, este vai ser iniciado
no segundo semestre desse ano.
Durante o ano de 2012, Lúcio esteve em atendimento na clínica-escola por
outro estagiário. Após as férias deu-se a mudança de estagiário-terapeuta. Assim,
está sendo acompanhado pela atual terapeuta desde março de 2013, com
frequência de duas vezes por semana. Os dias da semana em que ele vem ao
atendimento foram mantidos, tendo mudado apenas o horário de um deles (ao invés
das 8h00 passou para as 9h00), o que pode ter influenciado no que diz respeito à
redução dos atrasos, que eram muito mais frequentes no ano anterior. No total
foram realizadas 32 sessões ludoterápicas, tendo havido 10 atrasos (que variaram
entre 5 e 35 minutos) e uma falta, justificada devido à morte da avó.
32
Resultados e discussão
Para apresentar o processo percorrido no atendimento de Lúcio até o
momento foram organizados quatro momentos principais, divididos de acordo com o
que predominava nas diferentes fases vividas por Lúcio em terapia, sendo elas:
Testes à Capacidade de Tolerância da Terapeuta e Formação do Vínculo;
Exposição Clara de Conteúdos Internos; Introspecção; Relativa Estabilidade.
1º Momento: Testar a Capacidade de Tolerância da Terapeuta e Formação do
Vínculo: Este foi um momento bastante desafiador, Lúcio parecia desconfiado e
desanimado com o processo que se estava iniciando, e por diversos momentos
tentava alguma forma de ataque à terapeuta. Iniciaram-se, então, extensas
conversas a respeito de brinquedos falsos ou verdadeiros, pessoas pobres ou ricas,
apresentando uma angústia referente ao quanto tem dúvida não só em relação a
sua própria existência (falsa ou não), mas também do quanto o que chega pra ele, o
que é oferecido a ele é falso, é pobre, o que pode ser estendido para a área dos
afetos recebidos por Lúcio, ou seja, uma dúvida do quanto o amor que chega até ele
é de fato real, ou se é falso, temporário, ou passível de ser destruído. Analisando a
entrevista inicial realizada com a mãe, foi possível identificar algumas falas que
podem ser relacionadas com esses sentimentos da criança, principalmente quando
a mãe conta como foi o encontro do filho com sua mãe biológica, ocorrido em
dezembro do ano passado por pedido do próprio Lúcio, devido à influência e
provocação do irmão, segundo Cláudia. No decorrer do relato, a mãe disse frases
como:
Cláudia: “Eu disse a ele que se ele quisesse podia chama-la de mamãe, ele
disse que tudo bem, mas por fim acabou não chamando... Mas eu falei pelo menos,
até porque é mãe dele também né?”
Diante disso, o amor e a preocupação da mãe ficam em um nível de
racionalidade extremo, o que faz com que pareçam muito frágeis e dispensáveis,
podendo Lúcio acreditar que reencontrar a mãe biológica não gera nenhum receio
em sua mãe adotiva, o que se relaciona diretamente com seus anseios a respeito da
veracidade dos afetos que o rodeiam. Segundo Levinzon (2006), para os pais
adotivos o medo de perder o filho aparece como um fantasma permanente, em
graus diferentes em cada família, como se a falta de um elo consanguíneo não
33
garantisse a solidez do vínculo que liga os pais a criança. Lúcia pode, portanto,
acreditar de alguma forma que os laços de sangue são fortes o suficiente para suprir
qualquer laço que ela criou com Lúcio desde seu nascimento e, diante disso, viu-se
sem recursos para lutar ou sentir merece mais o amor de seu filho do que a mãe
biológica dele.
Em sua primeira sessão, Lúcio mostrou-se muito inseguro, quis que sua mãe
entrasse junto, e só quando eu o chamei para me apresentar e para ver o que tinha
na sua caixa lúdica (mantida da terapia do ano passado) é que foi possível que sua
mãe saísse da sala. Disse por diversas vezes que não gostava de nada que tinha
ali, trazendo para a sessão uma sequência de “nãos”, para os brinquedos, para mim
e para a terapia como um todo. Tentou de diferentes formas atacar os limites do
setting terapêutico, jogando bolinhas de papel no ventilador e massinha molhada no
teto, de forma bastante impulsiva, e, por fim, usou tanta força com sua caixa lúdica
que esta quebrou. Tudo isso transparece a maneira como os impulsos agressivos de
Lúcio estavam dominando seu mundo interno, de forma a ser difícil controlar e
necessário haver um espaço para expressá-los.
Na quinta sessão, Lúcio já estava criando um pouco mais de confiança e
segurança naquele ambiente, e foi então que em meio a uma brincadeira de caça ao
tesouro ele fez uma pergunta muito significativa. Ao esconder um soldado em um
lugar muito difícil percebeu que a terapeuta não estava encontrando, e então
começou a dificultar ainda mais colocando tempo limite, até disse sucessivas vezes:
“Você vai desistir? Vai desistir é?”. Parecia que ele estava testando até onde a
mesma daria conta de encontrar aquilo que ele tanto escondia, e então a mesma
respondeu: “Eu não! Eu não vou desistir”. Os aspectos simbólicos envolvidos por
detrás dessa brincadeira foram muito significativos tanto para a terapeuta quanto pra
o paciente, representando confiança e segurança.
Apesar dessa aproximação, Lúcio continuou seus testes ao ambiente
terapêutico, fazendo misturas com cola, massinha e outros objetos, as quais dizia
ser macumba, ou algo que não sabia o que era e nem porque fazia, e pedindo para
guardar até a próxima sessão, repetiu isso por três sessões, e na quarta deixou
apenas água no pote, e na sessão seguinte colocou sua mão na água e disse:
“Olha, ainda está gelada”. Esse último acontecimento pode caracterizar um final dos
34
testes iniciais à terapeuta e uma formação de vínculo com a mesma, visto que além
de ter deixado água ao invés de macumba para que a terapeuta guardasse, ainda
reconheceu o quanto havia sido bem guardado e conservado do jeito que ele deixou
até a próxima sessão, tendo o setting terapêutico transformado-se em um ambiente
confiável.
2º Momento: Exposição clara de conteúdos internos: Nesse segundo
momento, Lúcio começou a falar abertamente sobre suas angústias, raivas e sobre
desejos bastante profundos, quase que em um movimento catártico. Na 7ª sessão
Lúcio estava parecendo nervoso. Havia trazido um conjunto de Lego, mas não se
interessou por ele, deixou em cima da mesa e sentou-se na poltrona, sendo que foi
nesse momento que ouviu a voz de sua mãe na sala de espera, o que foi o estopim
para que tudo começasse a ser dito e sua agressividade começasse a tomar forma.
Após um breve silêncio Lúcio diz que sua mãe chegou na sala de espera, e que
estava ouvindo sua voz (ela estava estacionando o carro), quando questionado
sobre como ele se sentia em saber que a mãe dele o aguardava lá, ele responde:
Lúcio: Me irrita!
T: O que mais te irrita?
Lúcio: O menino da minha escola que me bate e me chama de filho da puta.
Mas eu pego ele, bato nele, estrangulo ele e jogo ele no lixo [...] [Nesse momento
está sentado de costas para mim]. Às vezes eu tenho vontade de matar ela, tenho
muita raiva, não gosto dela, ela é muito chata, não queria ter sido adotado por ela,
queria ter sido adotado por alguém que quisesse ser mãe [...] É uma bosta ter
parente, não queria ter, só gosto do meu tio [...].
Faz um desenho na lousa de um rosto sem boca, como se a mesma
estivesse tampada com um lenço, e diz: “Não conta pra ela se não ela me bate”.
[Então eu reforço que ali é nosso espaço, que o que acontece ali só nós sabemos e
que nada do que ele dizia ali eu contaria para a mãe dele].
As críticas que Lúcio fez à mãe são fortes e cheias de conteúdo para serem
refletidos, e chamam atenção, principalmente por terem sido ditas por uma criança
de 10 anos. Em relação a este trecho, é possível associar a ideia de Winnicott
(1997) de que muitas crianças adotadas, à medida que vão crescendo começam a
pensar que se tivessem podido escolher, não teriam escolhido os pais que lhe foram
35
destinados, porém, na adoção, assim como os pais adotivos se arriscam, também se
arriscam as crianças adotadas.
Na 9ª sessão fica claro como Lúcio usou do mundo externo para tentar dar
sentido para tudo o que estava sentido, para tentar transformar isso em algo que
possibilitasse seu desenvolvimento. Nesta sessão ele criou os personagens que
passou a utilizar constantemente nas sessões, são eles: a Burra (boneca Barbie), o
Burrinho (bebê da família lúdica) e o Zé Ninguém (homem da família lúdica). O
manuseio que Lúcio fez baseou-se em encher a Burra de cola e colar o Burrinho no
peito dela, e ao tentar me explicar disse: “O bebê cagou ela”, depois amarrou bem
firme com um barbante e escreveu “SOCORRO” no peito do bebê. Sobre o Zé
Ninguém disse que ele era filho das drogas, e fez um outro rosto para ele, para que
ele ficasse mais feio ainda. Vale ressaltar que os nomes foram dados no final, após
tudo já estar pronto, e que ele queria grudar no corredor da clínica para que todos
vissem a Burra, mas como isso não era possível acabou grudando na tampa de sua
caixa lúdica (apenas a Burra e o Burrinho). Essa pode ter sido a maneira que ele
encontrou de tentar elaborar esses conteúdos ainda muito primitivos e sem forma
dentro dele, e apesar de nessa sessão tudo ainda ter ficado muito confuso e intenso,
é importante dizer que no decorrer do atendimento ele foi desconstruindo um pouco
do desespero passado por essa cena inicial, visto que em diferentes sessões foi
desfazendo a colagem que realizou na caixa lúdica, e foi deixando tudo guardado na
caixa, sendo que atualmente quase não usa mais, exceto o Zé Ninguém que ele
frequentemente diverte-se jogando-o contra a parede, de forma bastante agressiva e
violenta.
3º Momento: Introspecção: Após toda a agitação do segundo momento, Lúcio,
em determinada sessão, organizou a sua caixa lúdica, como quem organiza seu
mundo interno, limpando e criando espaço para o que ele realmente usava dali. E
depois disso, entrou num momento mais introspectivo, mais silencioso e
aparentemente calmo, no qual fez muitos desenhos e que evitou falar mais do que
explicações sobre o que tinha desenhado. Apesar da tranquilidade que Lúcio
passava, os conteúdos de seus desenhos eram bastante agressivos, trazendo
sempre diabos, zumbis, morte, dragões, entre outros. O mais impactante foi um que
cabeças mortas nasciam das árvores, o que pode em determinada instância ser
36
associado com a história de Lúcio, que passou por muitas tentativas de aborto, e
também viveu na pele o abandono, permitindo refletir sobre o quanto ele não podia
mesmo sentir que nasceu morto, que já nasceu num contexto de rejeição e o quanto
ele não compreende isso, o quanto isso ainda é angustiante para ele. Parece que
muito desse potencial destrutivo vivido logo no início de sua vida foi introjetado por
Lúcio, de forma a deixá-lo perdido em meio a seus impulsos agressivos, sendo que
a terapia passou a desenvolver o papel do espaço em que tudo isso pode aparecer
para que seja transformado em algo que vá em direção a uma melhor convivência
com todos esses conteúdos e com toda sua história.
Isso perdurou por aproximadamente um mês, sendo que na 24ª sessão esse
momento foi radicalmente finalizado. Lúcio chegou na sala de espera 20 minutos
atrasado, dizendo que não queria entrar, que não gostava de nada ali, e sua mãe
mostrou-se muito irritada com essa situação, forçando-o a entrar na sala, primeiro
fisicamente e depois em forma de “chantagem”. Ele entrou, permaneceu os 20
minutos restantes, porém em silêncio, produzindo muito barulho com as mãos e com
os pés continuamente até o fim da sessão. Apesar dessa sessão ter parecido
ameaçadora à continuidade da terapia, na sessão seguinte Lúcio compareceu e o
processo continuou sem que voltassem no que aconteceu na sessão anterior.
4º Momento: Relativa Estabilidade: Nesse momento, a influência de Cláudia
como participante indireta do contexto terapêutico de Lúcio fica evidente, sendo que
o aspecto estável desse momento foi justamente a experiência com Lúcio, que
parecia estar mais confiante na terapia, mais à vontade e mais preparado para lidar
com seus conteúdos internos. O que estava relativizando essa estabilidade era
Cláudia, que passou a fazer sutis ataques à terapeuta e ao contexto geral da terapia
de Lúcio.
Com Lúcio esse momento está sendo de muita conversa, e de alguns
“rituais”. Um deles é pegar o Zé Ninguém em algum momento da sessão
(geralmente no início) e chutá-lo ou jogá-lo contra a parede, sem grandes
explicações, e como algo que transmite uma sensação de alívio. Às vezes Lúcio me
chama para participar desse ritual, e parece se divertir muito em ver o Zé Ninguém
nessa situação em que ele o coloca. Acredito que isso possa se relacionar à
percepção que Lúcio tem sobre o setting, como um espaço no qual ele pode expor
37
sua agressividade, e agora ele está conseguindo dosar melhor essa agressividade
de modo a precisar expressá-la, porém conseguindo fazer isso de maneira menos
explosiva. Outro ritual seria o de soltar puns na sessão, pois Lúcio por três vezes
soltou pum na sessão, e fala disso de modo divertido e espontâneo. Isso pode ser
muito significativo para o contexto terapêutico, visto que o pum pode ser interpretado
de diferentes formas pela psicanálise, e uma delas é como uma expressão de
agressividade, como uma falta de controle dos impulsos agressivos, o que pode ser
visto como uma evolução vivida pelo paciente de modo a estar se dispondo a entrar
em contato com essa agressividade, com esses impulsos, e também estar fazendo
isso de uma forma menos confusa e desorganizada como era no início de todo esse
processo.
Simultaneamente a esse momento de Lúcio, aconteceram alguns ataques por
parte de Cláudia à própria terapia do filho, ataques que em alguns momentos
ficaram bem evidentes. Como exemplo, em uma sessão Cláudia deu o cartão de
presença do terapeuta antigo de Lúcio para que o filho levasse para a atual
terapeuta, o que de alguma forma estaria gerando uma instabilidade dentro do
setting terapêutico ao fazer com que não só a terapeuta, mas também Lúcio
lembrasse da experiência vivida no ano anterior, a qual levou muito tempo para ser
elaborada e para que fosse possível dar um lugar à mesma e construir o atual
vínculo.
Em outro momento, no dia que Lúcio não quis entrar na sala de atendimento,
a mãe trocou o nome da terapeuta do filho com o de sua própria terapeuta, o que
pode ser visto como muito mais que um ataque, mas também um sinal do quanto os
dois estão misturados dentro dela, e o quanto é difícil pra ela separar até mesmo o
momento da terapia, sendo fundamental considerar como Lúcio sente tudo isso,
como pode se perceber misturado e até mesmo desenvolvendo papéis para essa
mãe que na realidade não são de sua responsabilidade. Por fim, em outra sessão
Lúcio chegou um pouco manhoso, dizendo que não queria entrar na terapia porque
estava com vontade de vomitar; a mãe, numa tentativa de descontração, comentou
sobre o novo corte de cabelo dele, e disse “Nossa filho, você tá parecendo mais filho
da tia do que da mamãe” (como tia ela estava se referindo à terapeuta). Isso causou
bastante incômodo na terapeuta, pois, mais uma vez, tratou com certo descaso a
38
possibilidade de o filho ser mais filho de outra pessoa do que dela, ou outra pessoa
merecer mais que ela ser mãe dele, enfim, pode ter reforçado dentro dele a
diferença entre os dois, e ter contribuído para a angústia de Lúcio a respeito da
veracidade do amor que ele recebe de sua mãe. Apesar de tudo, essas falas da mãe
contribuem para que a terapeuta possa conhecer um pouco melhor as relações do
filho com a mãe, possibilitando compreender as influências desses conteúdos para o
que é trazido na terapia, e também compreender um pouco do que a terapia pode
estar provocando nessa relação.
Considerações finais
Lúcio, ao longo de todo o processo terapêutico, apropriou-se muito bem do
espaço que lhe era oferecido para expressar seus conteúdos mais íntimos e
inquietantes. A partir do panorama traçado no presente trabalho é possível notar
claras mudanças em Lúcio, e isso é confirmado pelo discurso da mãe em uma
conversa de acompanhamento realizada no final do semestre, quando a mesma diz
que este passou por um momento em que não tinha paciência com ela,
demonstrando muita raiva, mas que naquele momento estava tudo mais tranquilo,
que melhorou seu desempenho na escola, não tendo recebido mais reclamações e
que Lúcio tem obedecido mais os horários que ela coloca para que ele e o irmão
façam tarefas. Cláudia mostrou-se muito disposta e atenta ao filho, inclusive quando
a conversa foi sobre momentos difíceis da terapia, como o dia em que Lúcio não
quis entrar.
Diante do exposto, no intuito de compreender a evolução do processo
terapêutico, é possível supor que a psicoterapia está exercendo a função de holding,
ao sustentar angústia veiculadas por meio das falas, ações, criações e brincadeiras.
Aos poucos a mente da terapeuta, pensando junto com a mente do paciente sobre o
que é trazido para dentro do setting, tem permitido que os impulsos reconfigurem-se,
de forma a permitir que ele conviva mais tranquilamente com esses aspectos, o que
39
parece estar refletindo-se em suas relações familiares e em seu desempenho
escolar.
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Winnicott, D. W. (1997). Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artmed.
Sobre os autores
Marina Vieira Madeira: Graduanda em Psicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Membro do Laboratório de Ensino e
Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Departamento de Psicologia da FFCLRPUSP. E-mail: [email protected]
Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes: Psicóloga da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), responsável pelo Serviço de Triagem e Atendimento Infantil
e Familiar da Clínica de Psicologia. Doutora em Ciências, área Psicologia Clínica e Psicodiagnóstico
Interventivo, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP).
E-mail: [email protected]
Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPSUSP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected]
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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEPRESSÃO PÓS-PARTO E SUAS
IMPLICAÇÕES NAS QUESTÕES VINCULARES MÃE-FILHA: RELATO DE UM
ATENDIMENTO EM PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO
Eliane Albuquerque Drullis Cifali
Regina Célia Ciriano
José Vicente Angelo Rocha
Lionela Ravera Sardelli
Introdução
O presente trabalho resultou de um estudo de caso atendido segundo
parâmetros
do
processo
Psicodiagnóstico
Interventivo,
tradicionalmente
de
abordagem fenomenológica, mas, nesse caso, com utilização também de pontos de
compreensão baseados na teoria psicanalítica. O atendimento foi realizado em
Clínica-Escola de Psicologia da Universidade Paulista, em Campinas, e tratou da
depressão pós-parto e de suas implicações nas questões do vínculo mãe-filha, bem
como de sua influência no desenvolvimento infantil da criança acompanhada neste
caso.
Tivemos como objetivo estudar o processo Psicodiagnóstico realizado em
uma menina de 4 anos acompanhada primeiramente de sua mãe, no que concerne
a compreender a influência das relações primitivas estabelecidas entre ambas no
desenvolvimento
psicológico dessa criança, em decorrência de quadro de
depressão pós-parto, reconhecendo a importância do contexto familiar na
constituição dos conflitos. Buscou-se, ainda, refletir sobre o processo do
Psicodiagnóstico Interventivo e sobre as mudanças ocorridas na relação mãe-filha
durante o procedimento.
O atendimento do caso estudado foi composto de nove encontros realizados
no espaço da clínica-escola e de uma visita domiciliar. Os dados foram coletados
por meio da observação participante em entrevistas clínicas, horas de jogo
diagnósticas, realização de testes na criança, atividade de colagem em família,
tendo todas essas atividades gerado relatórios clínicos que continham relatos dos
42
fatos observados e suas análises teórico-clínicas. Utilizou-se, portanto de método
clínico qualitativo para estudo de caso.
Durante todo o processo de psicodiagnóstico, a mãe permaneceu próxima à
sala de atendimento, a pedido da menina, parecendo ser essa proximidade
conveniente a ambas. Levantou-se a hipótese de que as dificuldades na separação
mãe-filha provavelmente existiram em consequência do grave quadro de depressão
pós-parto vivenciado pela mãe no início da vida da criança.
Com o decorrer das sessões, a criança demonstrou um movimento
progressivo de independência, como se ela estivesse sendo, a cada passo,
preparada para iniciar o processo de separação-individuação, porém mostrando a
necessidade de que a mãe a acompanhasse nesse desenvolvimento. Do ponto de
vista da dinâmica mãe-filha pode-se dizer que o caso denuncia, a priori, dificuldades
da mãe em perceber as necessidades de seus bebês, denotando problemas no
estabelecimento dos vínculos primários.
A devolutiva conjunta para criança e pais foi permeada pela presença de
comportamentos não observados anteriormente no que diz respeito ao processo de
construção da autonomia, por parte da menina, e do respeito, por parte dos pais, às
peculiaridades que compunham seu universo psíquico, evidenciando, ao final, o
aspecto terapêutico do processo pela evolução do caso.
Discussão crítica reflexiva sobre os dados encontrados
Luiza é uma garota de quatro anos que, segundo sua mãe, Julia, não
permanece longe dela e apresenta problemas de comportamento na escola.
Ao considerarmos as queixas trazidas na primeira entrevista em relação ao
“motivo
manifesto” (Arzeno,
1995) pelo qual a
mãe
traz sua filha ao
psicodiagnóstico, nota-se uma série de ambivalências em seu discurso, a saber:
coloca seu desejo ardente de amamentar o filho mais velho, mas fala ao mesmo
tempo suas impossibilidades em fazê-lo; coloca que a filha possui baixa autoestima,
mas diz, em outro momento, que Luiza possui espírito de liderança (característica
comum aos seus dois filhos, conforme relato de Julia); mais adiante fala sobre a
43
timidez de Luiza que chora na ausência da mãe: “Ela não fica com ninguém além de
mim” (sic mãe). Mas, depois, cita que ela participa das atividades com os monitores
de hotéis em tempo integral, durante viagens com os pais e, ainda, que é de fácil
adaptação à escola; coloca também que o pai possui pouco tempo disponível para
dar atenção aos filhos, mas, segundo seu próprio relato, o pai sacrifica-se saindo
uma hora mais cedo de casa de manhã para poder deixar Luiza na escola e, ao final
da tarde, busca a filha e leva-a para casa todos os dias; diz que há pouca
convivência com a avó materna de Luiza, devido a esta morar muito longe e, depois,
coloca que a distância entre as duas residências resulta em um percurso de cerca
de trinta minutos de carro.
Tais ambiguidades e dificuldades de discriminação, evidenciadas no discurso
materno, nos conduziram à hipótese de haver outros motivos subjacentes, latentes e
inconscientes que poderiam estar nesse caso ligados à relação confusional,
simbiótica e ambígua no âmbito da relação pais e filhos, já que se sabe que a falta
de discriminação da realidade pelos progenitores
pode dificultar o bom
desenvolvimento afetivoemocional e mesmo perceptivo e cognitivo da criança,
desde bebê (Arzeno, 1995, p. 23).
Os dois episódios de depressão pós-parto da mãe Júlia compreendidos à luz
da Psicanálise apontam para ausência de investimento libidinal em seus bebês, ou
seja, tanto Luiza quanto o irmão Caio, após cinco dias de vida, passaram a ser
cuidados pela avó materna e pelo pai, destacando-se nesse período a internação
em hospital psiquiátrico da mãe para tratamento do quadro depressivo, tanto na
primeira quanto na segunda gestação, sendo os bebês privados, portanto, dos
cuidados relativos ao holding e handling, bem como do aleitamento materno.
Em “Sobre o Narcisismo: Uma introdução”, Freud descreve que a
manutenção do investimento em si mesmo indica a dificuldade que envolve o ato de
abrir mão do autoinvestimento: "como acontece sempre que a libido está envolvida,
mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação que
outrora desfrutou" (Freud, 1914, p.100). Nesse sentido, a mãe pode ter tido muita
dificuldade em abandonar a posição de filha (posição narcísica) para tornar-se mãe,
mantendo seus investimentos narcísicos primários, num processo inconsciente.
44
A mãe Julia relatou ter cuidado de seu próprio irmão mais novo durante a
depressão pós-parto de sua mãe, o que pode tê-la feito registrar de forma primitiva e
inconsciente,
permanecendo,
portanto,
inacessíveis
à
memória
consciente
sensações e sentimentos como, por exemplo, o desejo de uma apropriação indevida
do filho de sua mãe, desejo este frustrado após a melhora de sua progenitora. Júlia
“apropriou-se” do filho de sua mãe, da mesma maneira que sua mãe (e outros)
precisaram apropriar-se de seus filhos Luiza e Caio, para que estes fossem
cuidados durantes os primeiros meses de vida. Julia relatou recordar-se da
depressão pós-parto de sua própria mãe, lembrando-se dela na cama, prostrada,
parecendo “estar morta”, identificando-se, dessa forma, com “a mãe morta” e
repetindo em si, por ocasião do nascimento de seus filhos, o estado depressivo e
sem vida de sua mãe.
A rejeição de Julia para com os filhos Luiza e Caio pôde ser também
observada nos atos falhos cometidos em seus relatos durante o grupo de mães do
qual participou, ocasião em que disse: “a depressão que eu tive contra o Caio” ou
em “eu tentava fazer coisas ruins para o Caio”, quando quis dizer ao grupo de pais
e aos coordenadores que tentava fazer coisas boas (negritos nossos). Tais falas
ilustram os sentimentos inconscientes de agressividade dirigidos contra os filhos
bebês, que pode ser compreendido da seguinte maneira: ao considerarmos a raiz
narcísica da escolha de objeto e o aspecto econômico do aparelho psíquico, temos
que o investimento libidinal no outro implica em um dispêndio de energia que não
poderá ser investida no ego, donde inicialmente o outro pode representar uma
ameaça à própria soberania do indivíduo (Freud, 1930 [1929]) – nesse caso, da
mãe. No momento de tornar-se progenitora, algo relatado como desejado, ela passa
a requerer cuidados, tornando-se ela própria o bebê, o centro das atenções,
apresentando aí uma vivência regressiva.
Também, durante o grupo de pais ela, em certo momento, disse referindo-se
ao filho de 11 anos e à filha de quatro: “eu trato eles como meus bebês”, “eu ponho
comida no prato”. Ao dizer isso a mãe mostra o quanto possivelmente busca
compensar o momento em que, na infância primitiva, não lhe foi possível tratá-los a
contento, estando subjacente nessa comunicação um vestígio de um sentimento de
culpa. Todavia, há que se diferenciar o bebê “real” do “ideal”: segundo relato de
45
Julia, Luiza ficava “horas no bebê conforto, dormindo quietinha”, o que permitia que
a mãe fosse a lugares públicos como restaurantes, por exemplo, sem ser
incomodada, indicando que havia momentos de harmonia entre mãe bebê.
Julia relatou que precisou durante sua depressão ser internada em hospital
psiquiátrico por um mês, deixando Luiza aos cuidados do pai e dos avós. Informou
que, nesse período, após seu retorno da internação, ao ver Luiza sendo cuidada
pelo marido e pelos demais familiares, não sentia nada por ela: “meu coração não
batia”, dizia ela. Observou-se mais um exemplo de retirada do investimento libidinal,
que pode ser entendido como mecanismo de defesa (Freud, 1914) contra o
sofrimento.
De acordo com Winnicott (1956), o bebê encontra-se em uma situação de
dependência desde a gestação e após o nascimento, o que tende a diminuir à
medida que a mãe consegue auxiliá-lo em seu processo de integração do self. Nos
últimos meses de gestação até alguns meses após o parto a mãe deve experimentar
o estado de “preocupação materna primária”, que consiste em saber atender às
necessidades vitais de seu filho, o que é possível dada uma sintonia sutil que esta
estabelece com o bebê. Segundo o autor, a mãe passa a sentir o que o bebê sente
e necessita, constituindo uma relação considerada recíproca e complementar.
O estudo de Esteves (2011) sobre a preocupação materna primária na
gestação e parto pré-termo ressalta que:
O processo de tornar-se mãe envolve mudanças significativas na vida da
mulher, sendo considerado uma transição, que tem inicio na gestação e
prolonga-se até os primeiros anos da criança. Nesse sentido, muitos autores
têm destacado que os primeiros contatos entre a mãe e o bebê, que
acontecem ainda na gestação e seguem após o nascimento, determinam a
natureza das suas relações subsequentes [...] nesta época, são estabelecidos
os padrões individuais de interação, os quais passariam a ser relativamente
duradouros (Esteves, 2011, p. 76).
Dado o estado de depressão pós-parto da mãe de Luiza, estes primeiros
contatos descritos por Winnicott e ressaltados em Esteves não puderam ser
vivenciados pela díade mãe-bebê, o que em parte, auxilia o entendimento da
natureza das relações que se estabeleceram a partir de então.
46
Além disso, há que se considerarem os aspectos que envolvem a
triangulação edípica uma vez que Luiza, segundo a teoria freudiana, encontrava-se
na fase em que deveria encaminhar-se para a dissolução do complexo de Édipo,
que resulta na introjeção da lei, sendo um momento determinante para constituição
do sujeito (Freud, 1912).
E, a este respeito, notou-se que a progressão para o Édipo ainda não havia
ocorrido nessa criança. A mãe relatou que atualmente o pai era responsável por
buscar Luiza na escola ao final da tarde e que a menina permanecia acordada
conversando com o pai durante o trajeto de volta, e que no ano anterior, quando os
dois filhos eram trazidos pela mãe, pois estudavam no mesmo período, voltavam
para casa agitados, brigando durante o mesmo percurso.
O relato do contato entre o pai e Luiza denotava uma vez mais a ambiguidade
no discurso da mãe, pois ao mesmo tempo referia que a criança recusava-se a sair
sozinha com o pai, nem mesmo para passear, caso a mãe não estivesse presente. A
aproximação da menina para com o pai (momento esperado na fase edípica) parece
estar ocorrendo longe dos olhos da mãe, embora o relato da mãe Julia aponte para
a predominância do vínculo mãe-bebê, sem ainda ter ocorrido a entrada do terceiro
elemento, o pai.
No caso de Luiza, dando prosseguimento ao psicodiagnóstico, foi realizada
junto à mãe a anamnese clínica. A anamnese “tem por objetivo primordial o
levantamento detalhado da história de desenvolvimento da pessoa.” Trata-se de
uma técnica de entrevista estruturada cronologicamente, cuja utilidade destaca-se
no atendimento psicológico infantil, sendo usada por muitas abordagens. (Tavares,
2000, p.50).
Segundo Cunha, “a história e o exame do estado mental do paciente também
constituem os recursos básicos de um diagnóstico”, pois estes “permitem a coleta de
subsídios introdutórios que vão fundamentar o processo psicodiagnóstico” bem
como alerta que o simples acúmulo de dados, mesmo que colhidos sistemática e
formalmente podem não contribuir para o “entendimento do caso.” (2000, p.57).
A coleta completa de dados é difícil, pois o cliente pode não saber todas as
informações ou omiti-las por mecanismos defensivos. Cunha também salienta que é
47
“importante associar a perspectiva histórica a uma abordagem dinâmica” (Cunha,
2000, p.60).
Azevedo
(2002)
destaca
que
o
“psicólogo
é
um
profissional
do
desenvolvimento humano.” Disto decorre a importância da investigação diacrônica.
Sob o olhar fenomenológico-existencial, considera que esse profissional precisa
levar em conta o desenvolvimento como movimento, atentando-se para alguns
postulados, como a temporalidade e a existência que precede a essência.
Ao retomarmos o conceito de Inconsciente freudiano, temos que ao homem é
revelado o desconhecimento de si mesmo e com isso o descontrole das ações que
se pensava anteriormente controladas e entendidas. Isto abre caminho para
pensarmos que sempre haverá em nossas atitudes falhas que nos escapam, ou
seja, conteúdos recalcados que surgem colocando-nos em desajuste diante de
diversas situações e, assim, interferindo na forma como nos relacionamos com os
outros (Freud, 1905).
Estes conteúdos recalcados, capazes de provocarem os desajustes citados
por Freud em sua teoria sobre o Inconsciente, foram evidenciados durante a
anamnese de Luiza, colocando em risco o tempo determinado para a entrevista, não
fosse o empenho dos estagiários em redirecionar a mãe para que esta respondesse
às questões sobre Luiza, impedindo-a de deter-se sobre longos e exaustivos
detalhes relativos ao filho de doze anos Caio, irmão de Luiza. Ao observarmos as
sucintas respostas de Julia (mãe), como: “foi ótimo”, “foi tranquila”, “foi super bem”,
“muito bom”, “sim”, “não” às questões sobre a menina, há que se computar uma
segunda resposta imediata a estas e mais detalhada, carregada de emoção, com
informações relativas ao filho Caio, como se a história que Julia desejasse contar,
por ocasião da anamnese da filha, fosse a do menino e não da garota, ou mesmo
como se confundisse as duas histórias, fusionando-as.
Silva (2009, p.267) apresenta o sujeito da psicanálise como pertencente a
uma classe paradoxal: “faz parte de um conjunto, sem render-se a ele”. A família
como um grupo “forja uma identificação para o sujeito”. Porém, se o sujeito resumirse a apenas isto poderá sofrer um apagamento de si mesmo. Luiza possui uma não
imagem, não é configurada em sua individualidade em sua família por sua mãe, a
figura de Caio é quem ocupa o discurso desta, causando o apagamento de Luiza, ou
48
fusionando-os
em
uma
única
imagem,
indicando
sérias
dificuldades
de
discriminação.
Freud (1911), em seus estudos, trata do esquecimento temporário de nomes
próprios, sendo que o principal motivo disso seria o conteúdo recalcado: “Sou
forçado a reconhecer a influência de um motivo nesse processo [...] Eu queria,
portanto, esquecer algo; havia recalcado algo.” Tomando esse princípio como
referência, poderíamos inferir que conteúdos recalcados da mãe a respeito de sua
filha Luiza ou relativos à experiência da maternidade fizeram-na desviar o assunto
inconscientemente para o filho, fusionando as experiências em uma só.
Um outro ponto de dificuldade de discriminação foi observado quando a mãe,
nas primeiras entrevistas, relatou traços marcantes de liderança existentes em Luiza
em seus relacionamentos. Observamos que esta liderança não se configurou
durante a realização das sessões de hora de jogo em grupo com a garota, sendo
estas marcadas pela presença de um movimento resistencial progressivo por parte
da mesma, o que remetia à relação de dependência existente na díade mãe-criança,
caracterizada por rejeitar a entrada de terceiros como os terapeutas e outras
crianças do grupo de psicodiagnóstico.
Há que se considerar que a influência exercida sobre o comportamento,
pensamento ou opinião no outro, esperada de um líder, de fato pôde-se fazer
presente mormente na relação simbiótica mãe-criança, sendo que para a mãe, Luiza
se constituía como representante simbólico da figura de líder, na medida em que
exercia influência no comportamento, pensamento e opinião da mãe, passando a
comandá-la – ou seja, para a mãe Julia, Luiza exercia o papel de líder, o que
possivelmente em outras esferas não se mostrava, a exemplo do que se observou
durante nas horas lúdicas grupais.
Ao tomarmos o conceito kleiniano (1946) de identificação projetiva, típica da
posição esquizo-paranóide, temos que, dentre os objetivos dessa identificação,
encontram-se a projeção do self para dentro de um objeto a fim de controlá-lo,
evitando assim qualquer sentimento de separação. Invade-se assim um objeto para
apoderar-se de suas capacidades. Tais mecanismos buscam evitar a separação, a
dependência, a admiração excessiva e as sensações de inveja, raiva e perda
(Joseph, 1983).
49
Joseph enfatiza dois pontos importantes com relação ao indivíduo que utiliza
estes mecanismos:
Primeiro, o poder onipotente desses mecanismos e fantasias; segundo, como,
na medida em que se originam numa constelação particular, profundamente
interligada, não podemos, em nosso pensamento, isolar a identificação
projetiva da onipotência, da cisão e das ansiedades resultantes que a
acompanham. Na verdade, veremos que são todas partes de um equilíbrio,
rígida ou precariamente mantido pelo indivíduo, a seu próprio modo (Joseph,
1983, p. 174).
Observamos na mãe Julia a presença da onipotência, da eminente ameaça
de cisão e das ansiedades, resultantes do processo de identificação projetiva,
formando um precário equilíbrio mantido também pela filha Luiza, provavelmente em
resposta defensiva aos sentimentos de rejeição sofridos durante a depressão pósparto que acometera sua mãe, e que ressurgia, por exemplo, numa das falas que a
progenitora costumava usar quando a garota não agia como ela queria: “vou trocar
você por outra menina”.
Segundo Klein, a passagem da posição esquizo-paranóide para depressiva
reflete a diminuição dessas projeções, fazendo com que o indivíduo seja capaz de
tolerar sua dependência dos objetos. Este processo pode ser facilitado com a
presença de uma mãe que seja capaz de tolerar e conter as projeções da criança,
compreendendo seus sentimentos, favorecendo a integração do ego, levando-a à
diminuição da projeção e a uma maior preocupação com o objeto (Klein, 1959).
Segundo Joseph, “nas suas formas iniciais, a identificação projetiva não tem
consideração pelo objeto e, na verdade, frequentemente ela é autoconsideração,
quando se destina a dominar, independentemente do custo para o objeto” (Joseph,
1983, p. 174). Notou-se que Luiza exercia o domínio sobre o objeto, apresentando
autoconsideração e consequente não consideração pela mãe, retribuindo a esta, por
meio de suas atitudes, o mesmo sadismo impresso na fala da mãe ao dizer que iria
trocá-la por outra menina. Como na brincadeira “cabo de guerra”, encontram-se as
duas a medirem forças, estando no momento, empatadas e, ao que nos parece
ambas perdendo, pois a queixa trazida pela mãe deflagra a presença de sofrimento
psíquico para ambas. Numa relação de amor e ódio controlador, nenhuma pode
50
deixar a brincadeira (vínculo simbiótico), ora por medo de ser a que é abandonada,
ora por culpa de ser a que abandona.
Observou-se em vários momentos das sessões de hora e jogo com a criança
que Luiza desfazia-se dos brinquedos da caixa de maneira displicente,
demonstrando superficialidade e ausência de envolvimento pessoal; seu referencial
era a mãe que permanecia ao corredor, do lado de fora da sala de atendimento
psicológico, sob o olhar vigilante, furtivo e intermitente da filha. Ficara a mãe do lado
de fora da sala e, portanto, fora de seu controle imediato, segundo uma possível
fantasia de Luiza, como quando ela própria bebê ficou excluída dos primeiros
cuidados pela mãe, devido à depressão pós-parto da progenitora. Luiza, face à
frustração de ter sido separada da mãe na sessão, mostra-se de maneira superficial,
desinvestindo libidinalmente no encontro com outros do grupo, uma vez que suas
relações parecem estar baseadas na dualidade: ela e a mãe, ela e o irmão, ela e o
pai, ela e a professora, ela e a melhor amiga.
Muitos autores destacam que os primeiros contatos entre mãe e bebê, que
começam na gestação, prolongando-se até os primeiros anos de vida da criança,
são determinantes da natureza das relações subsequentes, estabelecendo modos
de interação que podem tornar-se duradouros, o que pode explicar, em parte, as
vivências entre Luiza e sua mãe.
Quanto às produções gráficas da menina, temos que as crianças em idade
pré-escolar podem expressar-se por meio da arte: “as mudanças nos desenhos
feitos por crianças pequenas parecem refletir o amadurecimento cerebral, tanto
quanto o dos músculos.” (Kellogg apud Papalia et al., 2006, p. 244). As
representações são funções do desenvolvimento psíquico, juntamente com as
funções cognitivas e afetivas; as representações são funções com “as quais
representamos um significado qualquer (a um objeto), usando um significante
determinado: imitação diferida, jogo, desenho, linguagem e a imagem mental”
(Goulart, 2009, p.23).
Crianças com dois anos de idade rabiscam – não aleatoriamente, mas em
padrões como linhas verticais e em zigue-zague. Com três anos, as crianças
desenham formas – círculos, quadrados, triângulos, cruzes e X – e depois
51
começam a combinar as formas em desenhos mais complexos. A fase
pictográfica normalmente se inicia entre quatro e cinco anos. (Papalia et al.,
2006, p.244, itálicos do autor).
Os desenhos realizados por Luiza durante os atendimentos apresentaram
inconformidade com o esperado para a idade, assemelhando-se aos desenhos de
crianças entre dois e quatro anos.
Goulart (2009) destaca que, de acordo com Piaget, em sua análise do
desenho infantil, baseada nos estudos da obra de Luquet, o desenho desempenha
uma função semiótica entre o jogo simbólico e a imagem mental, podendo-se
concluir, segundo ele, que o desenho desenvolve-se em consonância com o
desenvolvimento da imagem mental da criança.
Todavia, a partir de uma perspectiva fenomenológica é peremptório observar
um desenho sem “ideias preconcebidas”, devendo-se ouvir as interpretações da
criança sobre seu desenho enquanto desenha e depois de desenhar, o que
“possibilita penetrar em todo um campo de conexões associativas, semânticas e
afetivas” (Aguiar, 2004, p.23 e 24). A criança, deste modo, não é mero objeto de
estudo, mas “ser-no-mundo”, capaz de receber e entender informações, e dotada de
direitos. O conhecimento psicológico fica em suspenso, busca-se o conhecimento do
outro a respeito de si mesmo. Assim, o que se pode inferir sobre os desenhos,
usando-se da base teórica respectiva, precisa ser suspendido, a fim de que seja
possível verificar com Luiza os significados que esta atribui aos seus desenhos.
Em um dos desenhos feitos por ela, parece haver um esboço do que seria
uma figura humana, embora disforme. O conjunto de sua produção pode refletir o
universo em que vive, onde não há integração de ego suficiente que proporcione
segurança para que ela dirija-se ao outro, permanecendo na relação dual. Ao
terminar cada desenho, com exceção de um deles, dirigia-se até a mãe para mostrar
sua produção, denotando a necessidade de reafirmar a relação dual.
Porém, em uma sessão posterior, o desenho de Luiza difere das suas
produções gráficas realizadas nas horas lúdicas anteriores. Nele verifica-se
aspectos da fase pictográfica inicial, que surge entre quatro e cinco anos.
52
Mèridieu (2006, p.09,14,17-18) define o desenho como “modo de expressão
próprio da criança [e que se] constitui uma língua que possui seu vocabulário e sua
sintaxe”, destacando que a evolução do desenho depende da evolução da
linguagem, seguindo também, paralelamente à evolução psicomotora da criança,
sendo conveniente a adoção de uma perspectiva psicodinâmica em relação ao
desenvolvimento da criança com aspectos de regressão aos estágios do grafismo,
“regressões significativas de um distúrbio profundo ou de uma crise passageira”.
Desta forma, “a interpretação de um desenho – isolado do contexto em que foi
elaborado e da série dos outros desenhos entre os quais se inscreve – é, portanto,
nula”.
O contexto onde Luiza realizou seus desenhos é a hora lúdica dentro do
processo psicodiagnóstico, que Fernandez (2006) aborda como “outro elemento que
temos que levar em conta – a sessão – [sendo] concebida como uma oscilação
permanente entre transferência e a relação como uma reinscrição dos afetos pelos
dois psiquismos”, o do psicólogo e o do cliente – no caso, a criança.
A respeito do desenho de Luiza, feito nesse momento, podemos dizer que
este encontra-se adequado ao esperado para sua idade, enquanto que os desenhos
de sessões anteriores serviram-nos para levantar hipóteses sobre a existência de
um estado regressivo profundo ou passageiro na criança.
No entanto, há que se considerar que muitos dos desenhos foram realizados
por sugestão da mãe, nas idas e vindas ao corredor que a criança realizava, e que a
menina, por sua vez, produziu-o para a sua mãe, o que nos remete à díade mãefilho mais uma vez. Em outros momentos, ela furtivamente olhava os desenhos de
outras crianças do grupo e fazia pequenas tentativas de realizar os seus próprios,
mesmo que de forma tímida e insegura. Isso nos remetia a um dos conflitos básicos
de Luiza que, nesse período, precisava romper o vínculo simbiótico psicológico com
sua mãe, caminhando-se do narcisismo, “que é a base da autoestima, da
valorização de si mesmo,” para a situação triangular (Griffa, 2010, p.210-211).
Verificamos também o sentimento de onipotência, típico do narcisismo, nessa
atividade quando “a atitude complementar da mãe permite a satisfação da quase
totalidade das necessidades do bebê.”, quando Julia completava as ações de Luiza
em sua fala, por exemplo, dizendo para a filha que pedisse o lápis para desenhar ou
53
em sua sugestão sobre o que deveria ser desenhado. A regressão de estágio do
grafismo observada nos desenhos anteriores de Luiza pode estar relacionada ao
aspecto não prazeroso da relação narcísica que é “ansiedade de morte e o medo do
aprisionamento.” Verificam-se assim tentativas de fusão entre mãe e filha, típicas do
narcisismo, onde a “possibilidade de superá-lo repousa na atitude da mãe; ela pode
ou não deixar espaço para um terceiro, o pai, abrir ou fechar esse vínculo dual que
até então foi mutuamente satisfatório”. Isto pode estar dificultando a passagem no
Complexo de Édipo que “desempenha um papel fundamental na estruturação da
personalidade e na orientação do desejo humano.” (Griffa, 2010, p.214-215, 218).
Assim, a depressão pós-parto da mãe de Luiza compreendida à luz da
Psicanálise, aponta para ausência de investimento libidinal no objeto.
Nas sessões de psicodiagnóstico interventivo, ao tomarmos a fala do pai,
percebemos que, de alguma maneira, houve investimento libidinal no bebê por parte
dele: disse que, no período em que a mãe esteve ausente, trocava fraldas, dava
banho, colocava para dormir, fazia praticamente tudo, passando inclusive a trabalhar
em casa. Disse ainda que a sogra e sua mãe ajudavam quando ele pedia e que “o
Caio ajudava muito também” (sic), acrescentando que nunca imaginou que tivesse
que fazer isso (trocar fraldas, dar banho etc.), mas que tudo foi “super bem, super
tranquilo” (sic pai), aliás falas comuns usadas por ambos os pais; para eles sempre
foi tudo bem, tudo tranquilo, mesmo em episódios em que a vida do bebê Luiza
corria risco.
Freud descreve em “Sobre o Narcisismo: Uma introdução” que a manutenção
do investimento em si mesmo indica a dificuldade que envolve o ato de abrir mão do
auto-investimento (Freud, 1914). Com relação ao relato do pai de Luiza,
considerando-se os traços culturais da sociedade ocidental e o entorno que
envolveu nascimento e primeiros meses de vida de Luiza, não parece ter havido
dificuldade para ele abrir mão, temporariamente, de sua rotina para adequar-se à
nova realidade.
Em contrapartida, apesar da tranquilidade com a qual tais momentos são
narrados pelo pai, sabe-se que os cuidados para com o recém nascido não se
resumem em trocar, alimentar, embalar e higienizar, pois a situação de
dependência, que vai desde a gestação até meses após o nascimento, segundo
54
Winnicott (1956), passa também pelo sentir o que o bebê sente e necessita,
formando uma relação complementar com o cuidador.
Devido à depressão pós-parto da mãe de Luiza, estes primeiros contatos não
puderam ser vivenciados pela díade mãe-bebê e, mesmo sendo vivenciados com o
pai e provavelmente com as avós, é possível que algo se tenha perdido, o que em
parte, auxilia a explicar a natureza de insegurança e ansiedade nas relações que se
estabeleceram a partir de então, mesmo considerando-se a entrada da mãe, como
cuidadora, após alta médica.
As atitudes incongruentes da mãe puderam, então, ser notadas desde muito
cedo na vida dessa criança. Por ocasião do psicodiagnóstico, ao responder a
pergunta sobre o que havia sido falado para Luiza a respeito do CPA, a mãe,
dizendo ter seguido a orientação dos estagiários, disse para Luiza que “ela iria para
um lugar para que ela ficasse mais calminha” (sic).
De acordo com Azevedo (2002), é importante contar para a criança sobre sua
ida ao psicólogo e, como forma de elucidar as preocupações dos pais, a autora
sugere a seguinte pergunta: “Por que mesmo vieram me procurar?” No caso de a
resposta ser que o filho está agressivo e que os pais não sabem mais o que fazer, a
autora ressalta que os pais devem dizer exatamente isto para a criança,
acrescentando “[...] não se esqueçam do ‘não sei mais o que fazer’, não digam
apenas ‘você está agressivo’” (Azevedo, 2002, p. 109).
Apesar de ter sido orientada pelos estagiários de psicologia, na segunda
entrevista com os pais, em como poderia falar com Luiza, incluindo em sua fala o
real motivo da consulta, isto é, a relação de dependência e controle que existia entre
ambas, a mãe pareceu ignorar as orientações bem como sua importância, sugerindo
um “ficar mais calminha” que não parece constar dos objetivos do processo
psicodiagnóstico.
Escutar uma coisa e repetir outra, querer e não querer, desejar a liberdade e
independência da filha versus o desejo de tratá-la como “meu bebê”, realidade
versus idealização, estes são exemplos de aspectos antagônicos que parecem
permear o discurso da mãe de Luiza. Tal discurso ambíguo deve deixar a criança
confusa em relação a seus desejos de crescer e se desenvolver: seria permitido sair
55
de perto da mamãe? E se o fizer, deixaria seu lugar para outrem e perderia outra
vez o seu?
Considerando-se os aspectos da triangulação edípica, uma vez que Luiza
deveria encontrar-se, segundo Freud (1912), na fase que se encaminha para a
dissolução do complexo de Édipo, resultando na introjeção da lei, momento
determinante para a constituição do sujeito, nota-se que existe uma progressão para
o Édipo que ainda não ocorreu mas que pode estar iniciando-se. O seguinte relato
do pai acena para a existência de uma aproximação e identificação com a mãe,
saindo da dualidade, e indo para a triangulação: disse que Luiza é uma menina
muito carinhosa, que gosta de abraçar, de beijar, e que fica ‘super bem’ com ele,
principalmente aos finais de semana, quando a mãe está por perto.
O Édipo, como movimento integrador da realidade, a partir da inserção de um
terceiro, o pai, representaria a Lei, impondo limites para a relação mãe-criança, face
ao interdito, que deslocaria a criança da relação dual com a mãe, momento
determinante para a constituição do sujeito (Freud, 1912).
A sessão em psicodiagnóstico denominada visita familiar e a atividade lúdica
“A nossa casa” conforme proposto por Almeida em “A nossa casa: uma sessão
estruturada na terapia de famílias com crianças” vem atender a exigência de dedicar
um olhar à interação familiar que se apresenta “cada vez que uma criança é
encaminhada para avaliação; sendo preciso contextualizar o que se apresenta como
sintoma.” (Cruz, 2000, p.55). A família é vista como um sistema, “sistema entre
sistemas; um sistema ativo, em constante transformação, autorregulável, mas
igualmente aberto à interação com outros sistemas.” (Cruz, 2000, p.60).
Para Minuchin (apud Garcia, Souza, Holanda, 2005, p. 475),
[...] a estrutura familiar é um conjunto invisível de exigências funcionais que
organiza as maneiras pelas quais os membros da família interagem. A origem
dessas expectativas está mergulhada em anos de negociação explícita e
implícita entre os membros da família, frequentemente, em torno de pequenos
eventos do cotidiano. Assim, o sistema oferece resistência à mudança.
Quando surgem situações de desequilíbrio no sistema, é comum que os
membros da família façam reivindicações de lealdade familiar e manobras
que induzem culpa. O que se espera de normalidade é que a família adequese às mudanças internas e externas, adaptando-se às novas circunstâncias
sem perder a continuidade.
56
O sintoma de Luiza, ou seja, sua ligação excessiva com sua mãe, nessa
perspectiva, é visto como linguagem, “como mensagem não-verbal no campo da
comunicação.” E, “sob essa ótica, na qual o indivíduo é parte integrante de um
contexto de interações, o comportamento diferente, o sintoma, assumiria um
significado específico” relacionado ao contexto e às relações que o compõem (Cruz,
2000, p.60).
Durante o procedimento de Visita Familiar, dando prosseguimento ao
processo do Psicodiagnóstico Interventivo, na atividade “A nossa casa”, onde se
sugere que todos da família façam um desenho conjunto representando o lar,
destacou-se o estilo relacional da família, principalmente na definição do território de
cada um de seus membros, quando todos desenharam a partir dos cantos da
cartolina, como se desenhassem em quatro folhas de sulfite separadas, no entanto,
a possibilidade de permeabilidade entre os desenhos manteve-se, pois nenhum dos
integrantes desenhou bordas definidas de separação, ou algo parecido, embora os
desenhos fossem isolados.
Quanto ao estilo individual, cada integrante desenhou sem nenhuma
interferência direta do outro: “vou desenhar o lugar que eu mais gosto” (sic pai); o
irmão se propôs a desenhar seu X-Box (aparelho de jogo de video game); Luiza
empolgou-se ao desenhar a piscina e a mãe, apesar de verbalizar diversas vezes
que não sabia desenhar, empenhou-se em participar e em dar sua colaboração.
As interações familiares nessa atividade deram-se de maneira cordial: o pai
sorrindo para a mãe durante a escolha das canetas coloridas; a mãe, ao dizer que
não sabia desenhar, foi acompanhada por seu filho com o mesmo comentário; Luiza
perguntou aos demais o que faltava em seu desenho, ao que o pai respondeu: “a
piscina”.
Quanto aos movimentos interacionais da família verificou-se a relação diádica
entre Luiza e sua mãe dificultando e sobrepujando as relações triangulares de Luiza:
A ligação estrutural que ajuda a determinar a autonomia individual de cada
membro é caracterizada pela relação triangular entre os pais e a criança, pois
numa relação dual não é possível ocorrer diferenciação se nenhuma das duas
57
partes envolvidas é capaz de estabelecer uma relação com uma terceira
pessoa. (Tosin, 2005, p.18)
Tosin, ao elencar os conceitos fundamentais da Terapia Familiar, destacou a
relevância da relação triangular:
O modelo mais usado para estudar as relações é o diádico, que está baseado
em explicações lineares de causa e efeito. Ampliando a observação do
sistema de relações, este modelo torna-se limitado, pois separa o sistema em
unidades desconsiderando o todo (Tosin, 2005, p.19).
Luiza encontra-se em relação diádica com sua mãe, resistindo à entrada em
relações triangulares, apenas, variando esse modelo dual, ora para Luiza-pai, ora
Luiza-irmão, retroalimentando a manutenção e evolução do sintoma e a relação
entre este e a organização atual do sistema familiar.
Em relação ao ciclo familiar:
Os sintomas podem desaparecer com o tempo, quando o próprio sistema
encontra recursos para superar a crise e tem flexibilidade para utilizá-los num
novo equilíbrio. Caso a família não consiga se rearranjar devido a sua rigidez,
o
sintoma
agrava-se
nas
fases
subsequentes,
caracterizando
um
funcionamento patológico crônico (Tosin, 2005, p.21).
Tosin (2205) também destaca a importância da terapia para a promoção e
restabelecimento do processo desenvolvimental, onde os sintomas podem ser
usados para sinalizar as dificuldades do sistema em cumprir esta etapa. Deste
modo, o sintoma de Luiza pode ser visto como uma mensagem que denuncia o atual
momento da família, que também repercutiu na voz do pai quando disse que o
desenho realizado significava para ele exatamente como era a sua casa.
Outro conceito fundamental que reverberou nas palavras do pai e no sintoma
de Luiza é o da metáfora para que na atividade “cada membro tem a possibilidade
de identificar padrões interativos, de se ver na relação com o outro, tanto como
58
participante, quanto como observador” (Cruz, 2000, p.61), e “o sintoma apresentado
por um paciente ou por uma família pode tornar-se uma metáfora de um problema
de relação, uma tentativa de conciliar necessidades contraditórias por meio de um
símbolo capaz de refletir significados múltiplos” (Andolfi apud Tosin, 2005, p.23).
O sintoma de Luiza, além de representar sua necessidade de rompimento do
vínculo simbiótico psicológico com sua mãe para dirigir-se à situação triangular e o
medo dessa separação, sistemicamente também representa a necessidade
desenvolvimental da família como um todo, indo do subsistema relacional dual entre
Luiza e sua mãe, para um sistema triangular, onde o pai assume seu verdadeiro
papel de interditar o poder da mãe sobre os filhos e deixar o papel inicial, assumido
por ele, de seu substituto. Deixar esse padrão, para todos, se constitui em um
desafio.
Passemos então, para outro momento do psicodiagnóstico onde, nas horas
lúdicas pudemos analisar o brincar. Papalia, Olds e Feldman (2009, p.291) definem
o brincar como “o trabalho das crianças, e isso contribui para todos os domínios de
desenvolvimento.” [...] “por meio das brincadeiras, a criança estimula os sentidos,
aprende como usar os músculos, coordena a visão como o movimento, obtém
domínio sobre o corpo e adquire novas habilidades.” Pode-se acrescentar que “o
jogo é linguagem da criança por excelência, a ponto de representar para ela o que a
palavra representa para o adulto.” (Griffa, 2008, p.252).
Efrom (2003, p.214-233) nos propõe compreender a Hora de Jogo
Diagnóstica a partir da análise de alguns indicadores: escolha de brinquedos e de
brincadeiras, modalidade de brincadeiras, personificação, motricidade, criatividade,
capacidade simbólica, tolerância à frustração e adequação à realidade. Deste modo,
utilizaremos alguns desses indicadores percebidos nas sessões de hora de jogo
grupal, como o proposto pelo Psicodiagnóstico Interventivo (Ancona-Lopez, 2013)
para a compreensão de Luiza.
Luiza escolheu brincar em uma das horas lúdicas com o jogo “pequeno
arquiteto” e, posteriormente, escolheu a atividade de desenhar, a partir da
modalidade de abordagem de aproximação, estruturando o campo de aproximação
para início da atividade. Vai assim, de um jogo mais estruturado para uma atividade
menos
estruturada.
Ambas
as
atividades
correspondem
ao
seu
estágio
59
desenvolvimental, onde, conforme Soifer (1992, p.100), a criança “utiliza cubos de
madeira” construindo algo e no desenho “tem ideia do que vai fazer antes de realizar
o desenho.” Também, notou-se que na brincadeira de construir como na de
desenhar houve começo, desenvolvimento e fim da atividade. Percebeu-se também
a intencionalidade para se realizar uma tarefa.
Luiza, no jogo “pequeno arquiteto”, apresentou inicialmente certo grau de
rigidez, ao construir e ver desmoronar sua construção parecia não sentir nada,
rigidez defensiva “geralmente utilizada diante de ansiedades muito primitivas para
evitar a confusão.” Posteriormente, no desenhar manifestou maior plasticidade.
(Ocampo et al., 2003, p.218).
Em relação à motricidade, sabemos que “um bom uso do corpo produz prazer
e resulta num fortalecimento egóico que permite o alcance de novos ganhos e
facilita a sublimação, quando a criança está preparada para isso.” (Ocampo et al.,
2003, p.222). Luiza demonstrou habilidades motoras adequadas a sua etapa
desenvolvimental
como
preensão
e
manejo,
possibilidade
de
encaixe
e
descolamento geográfico.
Quanto à capacidade simbólica M. Klein declara que “o simbolismo constitui
não só o fundamento de toda fantasia e sublimação, mas é sobre ele que se constrói
a relação do sujeito com o mundo exterior e a realidade em geral.” (apud Ocampo et
al., 2003, p.227).
Deste modo, podemos destacar que a escolha de uma atividade estruturada
para uma atividade menos estruturada como o desenhar, deveu-se à liberdade de
ação sugerida pelas instruções da hora do jogo, onde pudemos observar que Luiza
em consultas anteriores sempre foi resistente para entrar, permanecer na sala e
realizar atividades, ou seja, brincar, mas que posteriormente participou desde o
início com relativa independência de sua mãe, indo apenas uma vez ao encontro
desta fora da sala de atendimento, no corredor, durante toda a sessão, o que não se
viu em sessões iniciais, aparentando assim equilíbrio, uma melhora da confiança em
suas possibilidades egóicas e na liberdade interna, com a qual pode dar “livre curso
à fantasia.” (Ocampo et al., 2003, p.233).
Outro elemento importante foi a fala da mãe: “lembra o que nós combinamos.”
(sic) para sua filha Luiza, quando esta ao entrar na sala, sai e vai ao encontro dela e
60
ao ouvir sua mãe, retorna para a sala. Winnicott ressalta o quanto os pais sentem-se
culpados, mesmo sem saber disso, em relação ao que fizeram ou deixaram de fazer
em relação a seus filhos. (1993, p.110). Trata-se da “ideia de que alguém pode
sentir-se culpado sem o saber.” E que “alguém [pode estar] atuando movido por um
sentimento de culpa e que talvez não saiba disso.” Julia, a mãe de Luiza, na
ambivalência que já demonstrou anteriormente em seu combinado com a filha,
evidencia seu sentimento de culpa pela filha sair da sala e procurá-la, enquanto
outras crianças não o fazem, mesmo que não tenha consciência desse sentimento,
buscando que todos ali saibam que ela “combinou” com a filha sobre a possibilidade
dessa ir e crescer, separando-se dela. Para Winnicott (1993, p.117) “é o sentimento
de culpa [que torna a mãe] sensível,” e que se os filhos pudessem escolher suas
mães, escolheriam mães assim.
Assim, com o tempo, o choro habitual de Luiza que acontecia no início de
todas as sessões, face à eminente separação da mãe, não se fez mais presente.
Pai, mãe e, principalmente filha, subiram, então, calmamente para a última
atividade em grupo do psicodiagnóstico, a entrevista devolutiva para pais e criança
em conjunto. Luiza estava visivelmente feliz, cercada da atenção exclusiva dos pais,
dialogando com eles durante quase toda a atividade, assim como com alguns
estagiários. Trazia na cabeça uma tiara que, pela primeira vez, mostrava seu
rostinho em sua totalidade, livre dos cabelos que, em outros momentos, escondiam
sua face.
A clareza de seu rosto, a espontaneidade de seus gestos, palavras e atitudes
mostravam o desejo de Luiza: gozar da atenção exclusiva dos pais. É possível que
parte
dessa
aparência
desleixada
apresentada
durante
o
processo
do
psicodiagnóstico deva-se a que percebêssemos a representação do conflito
configurado pela ausência inicial dos cuidados maternos, quando recém-nascida,
devido à internação de sua mãe e ao posterior período de depressão pós-parto,
tornando-se uma forma de comunicação inconsciente dos fatos, mas agora
transformados pela atenção e cuidado vivenciados durante os atendimentos.
René Spitz (1945) observou a reação de bebês precocemente separados de
suas mães e deu o nome de “hospitalismo” ao conjunto de perturbações físicas e
mentais advindas da carência afetiva observada em crianças, principalmente nos
61
dezoito primeiros meses de vida, seja por motivo de abandono, seja por terem sido
hospitalizadas por um longo período. Este quadro também se aplica às crianças que,
por alguma razão, sofreram separações de suas mães ou que receberam cuidados
nitidamente insuficientes, sem que a maternagem fosse compensada por outras
pessoas. Spitz foi um dos primeiros estudiosos a chamar atenção para os efeitos da
ausência de carinho, de laços verdadeiramente humanos e de cuidados maternos
como sendo um dos principais fatores responsáveis pela mortalidade das crianças
internadas em hospitais e instituições, salientando que a privação afetiva precoce
provocava dor psíquica (depressão) no bebê, mobilizando pulsões de morte, e que
estas situações poderiam ocorrer após período de hospitalização da mãe.
Segundo observou o autor, quanto mais cedo o filho é separado da mãe, mais
graves são os distúrbios, ainda que possam ir atenuando-se com o reencontro ou
com cuidados compensatórios. Nos primeiros oito meses de idade, período em que
se forma a relação objetal com a mãe, se a separação durar mais de cinco meses,
os distúrbios podem ser irreversíveis. No caso de Luiza, o período de internação de
sua mãe foi de quinze dias e, os cuidados recebidos por parte do pai, avós e do
irmão Caio, foram suficientes para que ela não apresentasse as perturbações físicas
e mentais severas, às quais se referiu Spitz (1945) em seus estudos.
Para Bowlby (1977), a vida do bebê e sua capacidade de relacionar-se com
os outros, a começar pela mãe, estão fundadas em uma base orgânica e biológica e
o apego é uma reação primária, uma manifestação da estrutura instintiva da criança
e não resultado de uma aprendizagem. Pelo contato físico, constrói-se um mundo de
sensorialidade, a partir do qual se desenvolve a capacidade de apegar-se à mãe,
reconhecendo-a. Luiza esteve, inicialmente, privada desse contato com sua mãe.
Segundo relato de Julia, mãe de Luiza, a partir do momento em que esta disse à
menina que “iria trocá-la por outra menina”, o “grude” (sic) aumentou e a menina
passou a solicitar ainda mais a atenção por parte da mãe, demonstrando
insegurança.
Durante a atividade de colagem conjunta mãe-pai-filha, outro fazer proposto
no Psicodiagnóstico Interventivo, Julia respondia à Luiza repetidamente, dizendo:
“ah, tanto faz” ou “você que sabe”. Estas expressões reportam a uma situação de
ambivalência, característica já anteriormente observada em Julia: ao mesmo tempo
62
em que a mãe parece dar à criança liberdade para escolher e decidir, de acordo com
suas preferências, mostra por outro lado certa indiferença preferindo não opinar, não
situando à criança seu posicionamento. Faz-se presente, porém como ser ausente,
aquele que não opina. Para alguém que solicita, requisita, clama por esta mãe vinte
e quatro horas por dia, o significado da expressão “tanto faz”, recebido por Luiza ao
longo de toda uma existência poderia simbolizar mais uma vez o abandono e a
indiscriminação. Sem referências, a criança não se situa, encontra-se sem sinais
palpáveis e seguros para prosseguir em seu desenvolvimento.
Embora a fusão mãe-bebê seja essencial durante os primeiros meses, esta
deve terminar gradualmente (Winnicot, 1987), à medida que a mãe consegue
auxiliar o bebê no processo de integração. Em outras palavras, a mãe tem de poder
renunciar a seu desejo de ser uma mãe perfeita, sempre satisfatória, para ensinar ao
bebê a lidar com a frustração, o que lhe dará o gosto de ir conquistar o mundo a fim
de suprir a falta sentida. Para Winnicott,
O apoio do ego materno facilita a organização do ego do bebê. Com o tempo,
o bebê torna-se capaz de afirmar sua própria individualidade, e até mesmo de
experimentar um sentimento de identidade pessoal. Tudo parece muito
simples quando vai bem, e a base de tudo isso encontra-se nos primórdios do
relacionamento, quando a mãe e o bebê estão em harmonia (Winnicott, 1987,
p. 9).
Todavia, diante de uma mãe impedida, sejam quais forem as razões para
esse impedimento, o bebê, sempre ávido por este contato, agarra-se a ela ainda
mais. No caso de Luiza, o comentário de sua mãe, dizendo que iria trocá-la por outra
menina, fez com que ela, ávida como um bebê, se agarrasse ainda mais a sua mãe,
regredindo às suas vivências primitivas de abandono. Caso a mãe não responda a
suas solicitações, a criança desiste, voltando-se cada vez mais sobre si mesma até
apresentar todos os sintomas do hospitalismo de Spitz (1945), a menos que uma
mãe substituta garanta a função de maternagem de que ela necessita.
Quando a mãe está deprimida, a exemplo do que ocorrera no caso de Luiza,
a mãe está menos disponível, menos atenta, muitas vezes limitando-se aos
cuidados essenciais que devem ser fornecidos ao bebê, deixando de acalentá-lo,
63
acariciá-lo, transmitindo afetos depressivos da mãe para o bebê, fatos determinantes
para aquisição de sua futura autonomia.
A menina Luiza demonstrou, tanto na atividade de colagem, como em seus
desenhos a necessidade de consultar os pais sobre como fazer e o que fazer e,
quando estes se antecipavam, quer seja passando a cola no verso da figura, ou
escolhendo o lugar onde colá-la, diferente daquele escolhido por Luiza, esta não
impunha seu desejo, aceitando a atuação e sugestões dos pais.
O psiquiatra infantil Rufo (1945) explica que quanto maior capacidade de a
criança suportar a ausência materna, mais ela sentir-se-á segura para explorar o
mundo externo. A criança insegura, por sua vez, buscará a mãe ou a evitará de
modo evidente, sem por isso conseguir investir outras pessoas ou outros objetos. Na
ausência da mãe, privado de referências, o bebê retrai-se e, ao invés de abrir-se
para o exterior, a criança insegura passa a ser autocentrada. Para o autor, um
apego inseguro, todavia, é melhor do que nenhum apego, pois, ainda que a criança
possa vir a ter dificuldade de desapegar-se, isto ainda seria melhor do que ela ficar
impossibilitada de estabelecer outros laços.
Seguimos, assim, na corda bamba da oscilação dependência versus
autonomia [...] a solução do conflito entre dependência e autonomia, entre
liberdade e apego não é definitiva, e é um paradoxo que nunca se resolve,
sendo atualizado permanentemente nos altos e baixos da nossa vida
amorosa. O relacionar-se significa encontrar um mágico equilíbrio nesse
movimento (Canongia & Berlinck, 2010, p. 26).
Este paradoxo parece permear a relação entre Luiza e sua mãe, estendendose para o irmão Caio: a dependência de Luiza com relação à mãe gera nesta a
sensação de estar sendo consumida e “sufocada” (sic mãe) pela menina e, em
contrapartida, a mãe diz que Luiza é o seu bebê. O irmão Caio por passar horas
entretido com seus aparelhos eletrônicos, aparentemente goza de certa liberdade e
autonomia para realizar suas atividades, sendo, no entanto, criticado por isto. Na
verdade, o isolamento de Caio pode mostrar a outra face da moeda do apego
desmesurado pela falta, isolando-se como defesa para não sofrer a falta do objeto.
Na última hora lúdica diagnóstica, Luiza demonstrou modalidade de
abordagem na forma de aproximação. Entrou na sala, escolheu os brinquedos e
64
iniciou o desenvolvimento de sua atividade. Nas sessões anteriores as formas de
abordagem foram de observação à distância e/ou dependência do estagiário.
Quanto ao tipo de Jogo, verificou-se progresso com começo, meio e fim das
atividades, incluindo processos de socialização como no momento em que brincou
de casinha com outra criança pertencente ao grupo. Sobre a modalidade de
brincadeiras de Luiza percebeu-se maior plasticidade no brincar do que antes, onde
a criança expressou um amplo espectro de sua vida emocional de modo integrado e
fluente. A motricidade mostrou-se adequada novamente para sua idade o que lhe
permite “o domínio dos objetos do mundo externo e a possibilidade de satisfazer
suas necessidades com autonomia relativa.” (Ocampo et al., 2003, p.222). No
aspecto da criatividade verificou-se no desenho de Luiza um “ego plástico capaz de
abertura para experiências novas.” (Ocampo et al., 2003, p.223). Também
demonstrou evolução gráfica em relação aos desenhos anteriores. Quanto à
adequação à realidade e resistência à frustração e separação da mãe, foi
surpreendente quando a supervisora fechou a porta, colocando um limite na relação
sensorial e visual da criança para com sua mãe que permaneceu sentada ao
corredor. Percebeu-se, pela primeira vez, a possibilidade de Luiza desprender-se da
mãe e atuar de acordo com sua idade cronológica, demonstrando a compreensão e
a aceitação da realidade.
A atitude de Luiza de continuar suas atividades lúdicas com a porta da sala de
atendimento fechada, naturalmente e despretensiosamente, o que antes não era
possível, nos permitiu levantar a hipótese sobre o efeito terapêutico do processo
diagnóstico, mesmo não sendo este seu objetivo, no sentido de capacitar Luiza e
sua mãe a lidarem com a dor e para romperem o vínculo simbiótico psicológico
existente entre ambas, caminhando do narcisismo primário “que é a base da
autoestima, da valorização de si mesmo” (Griffa, 2010, p.210-211), acedendo à
situação triangular. No desenho feito, a criança aparece sozinha, talvez, confirmando
uma maior integração do eu.
Encontramos em Mahler que a angústia existencial humana é “[...] a eterna
luta do homem contra a fusão e o isolamento [...]” (Mahler, 1979).
Ao retomarmos a fala da mãe de Luiza ao dizer que a menina “não largava
dela para nada”, nas primeiras sessões e compará-la à maneira como Luiza dirigiu65
se à sala de atendimento e interagia com os estagiários e outras crianças,
observamos importante mudança, relacionada diretamente à queixa inicial.
Segundo Mahler (1979), o ciclo vital pode ser julgado como um processo mais
ou menos bem sucedido de distanciamento da mãe simbiótica e de introjeção da sua
perda, sendo este trajeto percorrido por ambos, mãe e bebê. No caso de Luiza,
observou-se que possivelmente parte dos comportamentos regredidos da criança,
recebia o incentivo, ainda que inconsciente da mãe, para sua manutenção, pelos
seus próprios conflitos e imaturidade emocionais, provavelmente não tratados a seu
tempo. Podemos ilustrar isso pela fala da mãe, em sessões anteriores: “eu trato eles
(os filhos) como meus bebês” (sic mãe).
Segundo Mahler,
A mãe transmite – de inúmeras maneiras – uma espécie de “plano referencial
de espelho” ao qual se ajusta automaticamente o self primitivo do filho. Se a
“preocupação inicial” da mãe com seu bebê – sua função de espelho durante
a primeira infância – é imprevisível, instável, dominada pela ansiedade ou
hostil; se a confiança em si própria como mãe é fraca, a criança em processo
de individuação tem de haver-se sem um plano de referência seguro para
“comparar”, perceptiva e emocionalmente, o parceiro simbiótico (Mahler,
1982, p. 73).
Acredita-se que este “plano de referência” a que Luiza teve acesso,
transmitido por sua mãe, tenha contribuído para determinar a natureza das relações
que ela estabeleceu com o meio, não se constituindo em um plano seguro o
suficiente para que ela dirigisse-se ao terceiro, denotando um núcleo confusional e
indiscriminado em seu eu. Com o decorrer das sessões e o estabelecimento de
vínculos com os estagiários e com o grupo de atendimento psicológico em
psicodiagnóstico interventivo, Luiza demonstrou um movimento progressivo de
separação da mãe que culminou e coincidiu com o final do processo do
psicodiagnóstico, como se ela estivesse sendo, a cada sessão, preparada para dar
este passo em direção a sua individuação.
Luiza demonstrou estar em condições de iniciar este processo de separaçãoindividuação, necessitando, no entanto, da participação e permissão de sua mãe,
pois conforme mencionado por Mahler “enquanto as crianças crescem e sua
personalidade se desenvolve, mostrando crescente complexidade, continuamos a
encontrar, como seu núcleo central e impregnando-a inteiramente, o resíduo da mais
66
primitiva relação mãe-filho” (Mahler, 1982, p. 34) que nesse caso tratou-se de um
resíduo de um núcleo confusional e indiscriminado.
Bem, na entrevista final devolutiva para pais em conjunto com a criança,
diferentemente de seu comportamento durante a atividade de colagem anterior,
Luiza não consultou os pais sobre como fazer e o que fazer durante a construção
conjunta do livro história, mostrando certa autonomia com relação a suas escolhas,
impondo seu ritmo, ditando o tom da atividade, enquanto seus pais, por sua vez, não
se anteciparam e souberam aguardar Luiza pacientemente, observando seu
empenho e habilidade ao escolher e colar as figuras, contar a história. A mudança
parece ter ocorrido para todos os envolvidos, inclusive para os estagiários, que a
essa altura, ao observarem tais mudanças, deram-se conta de que iriam levar na
bagagem a grata experiência de seu primeiro atendimento-supervisionado em uma
clínica-escola.
Considerações finais
No processo do psicodiagnóstico interventivo aqui relatado, para a
compreensão do caso e para o planejamento de intervenções, levamos em conta os
conceitos de Margaret Mahler (1979) de “separação e individuação” e de “plano
referencial de espelho”. Para Mahler, o ciclo vital pode ser julgado como um
processo mais ou menos bem sucedido de distanciamento da mãe simbiótica e de
introjeção da sua perda, sendo este trajeto percorrido por ambos, mãe e bebê. Se o
“plano referencial de espelho” oferecido pela mãe não for seguro, a criança
permanece sem norte perceptivo e sem pontos de discriminação que possibilitem
seu acesso à realidade e que permitam seu desenvolvimento psicossocial e
emocional.
No
caso
estudado,
observou-se
que
possivelmente
parte
dos
comportamentos regredidos da criança recebia o incentivo, ainda que inconsciente,
da mãe para sua manutenção. Acreditamos que, pela depressão pós-parto, a mãe
não pôde oferecer um plano de referência confiável para o desenvolvimento de sua
67
filha, contribuindo para determinar a natureza das relações de dependência e de
insatisfação que a menina estabeleceu com o meio, não se constituindo em um
plano seguro o suficiente para que se dirigisse ao terceiro. Pode ter sido criado,
então, um núcleo confusional em seu eu, prejudicando seu acesso à individuação.
Outro ponto teórico de apoio importante foi a teoria de Winnicott (1956) de
acordo com o qual o bebê encontra-se em uma situação de dependência desde a
gestação até após o nascimento, o que tende a diminuir à medida que a mãe
consegue auxiliá-lo neste processo de integração. No caso atendido, a mãe não
pode experimentar o estado de preocupação materna primária, que consiste em
saber atender às necessidades vitais de seu filho logo antes e logo após o parto,
dada a uma sintonia sutil que ela não pode estabelecer com seu bebê. Segundo o
autor, normalmente a mãe passaria, nesse período, a sentir o que o bebê sente e
necessita, constituindo uma relação considerada recíproca e complementar. Não
havendo essa possibilidade pela depressão pós-parto da mãe e pelo risco de vida
sofrido pelo bebê, a criança cresceu insegura com dificuldades na integração do self.
Assim, no caso estudado, a menina mostrou dificuldade em distanciar-se do
vínculo materno primário, estando impedida a conquista de sua autonomia e a
entrada do pai na relação, havendo insegurança para explorar o mundo externo e
para investir em outras pessoas e objetos, que não a mãe, pois ainda esperava
desta receber apoio como um pequeno bebê.
Percebemos, assim, a importância das primeiras relações para o bom
desenvolvimento afetivo e social e a possível influência da depressão pós-parto nos
desvios de desenvolvimentos futuros, como no caso atendido.
A atualidade dos conceitos de “separação-individuação” e de “plano
referencial de espelho” idealizados por Mahler, bem como da importância do
processo de “preocupação materna primária” colocado por Winnicott ficam, então,
nesse trabalho, sinalizados.
Procuramos neste artigo ressaltar as temáticas estudadas, destacando suas
manifestações simbólicas nas diversas fases do psicodiagnóstico interventivo no
caso de Luiza e em sua relação familiar, em especial com sua mãe, buscando
destacar a construção de um saber de forma paulatina e a compreensão dos
68
conflitos de natureza psíquica nas diversas partes do psicodiagnóstico, mostrando
que todas essas partes podem formar, ao final, um todo compreensivo.
No caso de Luiza e de sua família tais conhecimentos foram corroborados
pelos pais e pela criança na entrevista final devolutiva, onde foi possível observar a
abertura para o inicio de uma nova configuração nas relações familiares e,
principalmente da mãe Julia e da filha Luiza. No entanto sabemos que se trata de
apenas um inicio e que as resistências às mudanças são, quando se tratam de
movimentos de natureza inconscientes, infindáveis.
Como estudiosos do humano, pudemos, no entanto, aprender com a
experiência.
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72
Sobre os autores
Eliane Albuquerque Drullis Cifali; José Vicente Angelo Rocha: Estudantes de Graduação
do curso Psicologia – UNIP/Campinas.
Regina Célia Ciriano: Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (1981), mestrado em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas (1996) e
doutorado em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas (2001). Foi professora
titular da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande. Coordenadora do Laboratório de
Estudos e Pesquisas sobre a Infância, a Adolescência e a Família (LEIF) do Núcleo de Estudos
Multidisciplinares em Psicologia (NEMPSI) da Universidade Católica Dom Bosco – MS. Supervisora
de estágio em Psicologia Clínica na Graduação em Psicologia e Orientadora no Mestrado em
Psicologia. Atualmente é professora titular na Universidade Paulista e na Faculdade de Americana.
E-mail: [email protected]
Lionela Ravera Sardelli Sardelli: Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (1984) e mestrado em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de
Campinas (2005). Atualmente é professor adjunto da Universidade Paulista. Tem experiência na área
de Psicologia, com ênfase em intervenção terapêutica, saúde mental e avaliação psicológica.
E-mail: [email protected]
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DANIEL, QUE ACREDITA QUE UM DIA PODERÁ SER O QUE SEMPRE FOI, OU
SEJA, UMA MULHER: TRANS-FORMAÇÕES NO PROCESSO TERAPÊUTICO DE
UMA TRANSEXUAL
Yurín Garcêz de Souza Santos
Manoel Antônio dos Santos
Introdução
A transexualidade é considerada um fenômeno complexo e multifacetado. Nesse
contexto, o conceito de transexualidade que emerge das diversas teorias que
abordam a questão da diversidade sexual aponta para um aspecto consensual: a
existência de uma incoerência radical e irredutível entre sexo e gênero (Arán, 2006).
E o que é o sexo? De acordo com Picazio (1998), entende-se por sexo biológico
aspectos relacionados às características genotípicas e fenotípicas de um corpo,
variando ao longo de um continuum que tem, em um de seus extremos, o homem e,
na outra extremidade, a mulher, sendo seu ponto intermediário o hermafrodita. Por
essa perspectiva biologicista, o que definiria como seremos tratados quando
nascemos – se como meninas ou como meninos – são as gônadas sexuais.
O gênero, por sua vez, está relacionado, ainda de acordo com Picazio (1998), à
identidade sexual, ou seja, a como a pessoa que possui determinado corpo acredita
ser. Assim, a identidade sexual varia, como o sexo biológico, em um continuum que
tem, em seus extremos, o “ser homem” e o “ser mulher”, mas que tem como ponto
central o transgênero.
De maneira geral, o pressuposto inicial é o de que o sexo é definido pela
natureza, fundamentado na organicidade do corpo, que define o equipamento
biológico e genético com que nascemos, enquanto que o gênero seria adquirido por
meio da cultura. Entretanto, essa concepção está baseada na percepção de que o
sexo biológico – isto é, ser homem ou ser mulher – é um dado natural, não tributário
de aspectos históricos e sociais em seu desenvolvimento conceitual, e que o gênero,
ao contrário, é resultado de uma construção social e histórica. Levando-se em
consideração esses pressupostos, vê-se que, se por um lado a tese é determinista e
por outro construtivista, a possibilidade de compreensão das subjetividades e das
sexualidades acaba ficando extremamente restrita (Arán, 2006).
74
O indivíduo transexual é entendido, de acordo com Becker (2008), como sendo
aquele que invalida as regras básicas da diferenciação entre seres humanos e, em
decorrência desse fato, é enquadrado no conceito de desviante de uma norma
heterossexualmente definida. Transexual é aquele que infringe uma regra que pode
ser entendida como produto de um consenso social estabelecido por determinada
comunidade em dado período histórico ou, ainda, fruto de uma construção do que é
desviante da norma heterossexual e, como tal, classificado como indesejável, abjeto
ou patológico.
A palavra transexualidade tem sua origem na língua inglesa que, por sua vez,
tomou-a do latim trans e sexualis, conotando a noção de passagem de um sexo para
outro. Contudo, refere-se a um estado psíquico, uma vez que é sobre o aspecto da
identidade e da vida afetivo-sexual que se dá a obstinada busca por adequação dos
indivíduos trans (Pinto & Bruns, 2003).
Colocada em uma perspectiva histórica, a marca de nascimento do fenômeno da
transexualidade na nossa era é a intervenção, praticada por Christian Hamburger
em 1952 na Dinamarca, em um jovem de 28 anos, que fora batizado como George
Jorgensen, ex-soldado do exército norte-americano. No ano seguinte, Harry
Benjamin criou o conceito de transexualismo e, fundamentado em estudos
biológicos do século XX, propôs que não existiria uma divisão claramente marcada
entre o “masculino” e o “feminino”, sendo insuficiente a determinação da sexualidade
de um indivíduo baseada exclusivamente nas diferenças anatômicas (Arán, Zaidhaft
& Murta, 2008).
Ainda de acordo com esses autores, para Benjamin a sexualidade seria
composta por diversos aspectos, como cromossômico, genético, anatômico, genital,
gonático, legal, germinal, endócrino, psicológico e social, sendo que é a prevalência
de um desses fatores que definirá o sexo de um indivíduo, em conjunto com a
influência do ambiente no qual ele está inserido. Nesse sentido, os “sexos” não são
fixos, sendo passíveis de modificação por meio de tratamentos hormonais ou
procedimentos cirúrgicos (Arán, Zaidhaft & Murta, 2008).
No Brasil, em 1997, o Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da
Resolução 14.821, autorizou a realização de cirurgias de transgenitalização em
pacientes transexuais, afirmando seu caráter terapêutico. Assim, a legitimação da
75
prática no país partiu do pressuposto de que a pessoa transexual é portadora de
desvio psicológico permanente de identidade sexual, rejeitando o fenótipo e
tendendo à automutilação ou autoextermínio (Arán, Murta & Lionço, 2009). Ainda de
acordo com essas autoras, para que seja realizada a cirurgia, o paciente deve
preencher critérios mínimos, que incluem avaliação de equipe multidisciplinar e
acompanhamento psicológico por um período mínimo de dois anos, configurandose, assim, o diagnóstico de “transexualidade”. Nota-se, aqui, a acepção que o termo
“transexualidade” adquire no discurso biomédico.
O conceito atual de transexualidade, no que se refere à psiquiatria e também à
psicanálise, parte do pressuposto de que existiria uma psicopatologia, um
“transtorno de identidade de gênero”, haja vista a não conformidade entre sexo e
gênero. Contudo, se levado em consideração ainda o vértice psicanalítico, a
transexualidade pode ser vista, também, como uma psicose, uma vez que existe a
recusa da diferença sexual, que é base da castração simbólica que inscreve o
sujeito no plano da cultura e da sociedade (Arán, 2006). Fica evidente nesses
discursos científicos que a concepção de transexualidade, para diferentes áreas do
conhecimento, está fundada em uma noção normativa, tanto dos sistemas de sexogênero quanto da diferença sexual. Segundo a referida autora, em um modelo
cartesiano de entendimento, a matriz binária heterossexual se apresenta, então,
como um sistema regulador tanto das sexualidades quanto das subjetividades dos
indivíduos.
Em contrapartida, de acordo com Butler e Rios (2009), se receber o diagnóstico
de transtorno de identidade de gênero significa, até certo ponto, ser considerado
doente, anormal, disfuncional, errado e, por conseguinte, estar sujeito à
estigmatização em consequência desse diagnóstico, alguns psiquiatras ativistas e as
próprias pessoas trans têm argumentado no sentido de que o diagnóstico deveria
ser completamente eliminado. Nessa vertente, afirma-se que a transexualidade não
é um transtorno psiquiátrico e não deve ser entendida como tal, o que sugere que as
pessoas que se identificam no devir trans estariam engajadas em um exercício de
busca de autonomia e autodeterminação (Butler & Rios, 2009).
No tocante à discriminação sofrida por indivíduos trans, um estudo realizado por
Carrara, Ramos e Caetano (2003) revelou que travestis e transexuais são alvos
76
preferenciais de práticas discriminatórias e de violência verbal, atingindo 65,4% das
ocorrências, em comparação com o que sofrem os gays, lésbicas e bissexuais
(41,5%). O mesmo estudo revelou ainda que, no que se refere às agressões físicas,
a proporção de ações dirigidas a indivíduos transexuais ou travestis aumenta para
42,3%, ao passo que para lésbicas cai para 9,8%, em contraste com gays (16,6%) e
bissexuais (7,3%).
Para alguns profissionais de saúde, assim como para alguns operadores do
Direito, a despatologização da transexualidade é, além de desejável, uma tendência
histórica inevitável. Se, por um lado, possa parecer que os discursos médicos e
jurídicos assumem sempre feições monolíticas, ingênuas e acríticas, essa visão
estreita escamoteia a pluralidade de sujeitos advindos de variadas formações
acadêmicas, que tratam do tema com seriedade e respeito pelo indivíduo que vive a
condição trans, deixando de lado padrões patologizantes (Almeida, 2012). Nesse
contexto, como afirmado por Lionço (2008), o Sistema Único de Saúde (SUS), por
meio da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, mostrou estar na vanguarda
frente ao tema ao assegurar um atendimento humanizado, livre de preconceito e
discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, assegurando, também,
o uso por parte dos profissionais de saúde, do nome social para travestis e
transexuais, como uma estratégia de promoção do acesso ao sistema.
Toledo e Pinafi (2012) afirmam que a intervenção clínica, dentro do contexto da
diversidade sexual, é feita no rompimento dos limites e das fronteiras, por meio de
um intercessor definido como agente disparador do movimento em direção à
mudança, ou seja, à transformação. Para as referidas autoras, a clínica não deve
levar o paciente a cristalizar uma identidade rígida, seja ela qual for, mas, ao
contrário, deve produzir e garantir a liberdade, plena de responsabilidades, do fluxo
existencial, fazendo com que sejam asseguradas novas possibilidades e modos de
ser. Assim, seriam possíveis novos modos de subjetivação, que permitam aceder
outras configurações de sujeito.
Ainda é escassa, no SUS, a oferta de espaços de intervenção e acolhimento para
a população LGBT, especialmente travestis e transexuais. Também se observa uma
flagrante carência de investimentos na formação de profissionais de saúde com
sensibilidade e competência técnica para operar com essa franja da sexualidade
77
humana. Também há escassez de estudos dedicados ao contexto psicoterapêutico
em que são acolhidas as pessoas trans.
Considerando o exposto, o presente estudo tem por objetivo apresentar aspectos
do atendimento psicoterapêutico de uma paciente transexual homem-para-mulher,
atendida no contexto de uma clínica psicológica universitária, que oferece um
serviço de assistência voltado à população trans.
Método
Trata-se de um estudo de caso, que se apresenta como uma amostra da prática
clínica realizada nos anos de 2012 e 2013, referente a atendimentos psicológicos
individuais a pessoas inseridas em contexto de diversidade sexual. Por meio do
estágio denominado “Intervenções Psicológicas Inovadoras: Trabalhando com
Casais, Grupos e Pessoas Homossexuais”, oferecido pelo curso de graduação em
Psicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo, e mantido pelo Grupo de Ação e Pesquisa em
Diversidade Social – VIDEVERSO, foram realizadas, na clínica-escola, atendimentos
semanais, baseados em uma abordagem psicodinâmica, com paciente transexual
homem-para-mulher. Os atendimentos iniciaram-se em março de 2012 e tiveram seu
término em maio de 2013. As sessões tinham duração de 50 minutos e foram
realizadas em uma mesma sala de atendimento da instituição, a fim de que se
preservasse o setting terapêutico.
A paciente, Beatriz (nome fictício), que anteriormente se chamava Daniel (nome
de batismo fictício), tinha 22 anos. Foi encaminhada por meio do serviço de
acolhimento e triagem da clínica-escola. Assim, além do acompanhamento
psicoterapêutico realizado na clínica psicológica, Beatriz também fazia tratamento
hormonal havia seis meses, com acompanhamento quinzenal no Ambulatório de
Estudos da Sexualidade Humana do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo. A partir desse
acompanhamento, buscou atendimento psicológico, a fim de cumprir um dos
requisitos necessários para receber indicação para a cirurgia de transgenitalização.
O processo psicoterapêutico foi desencadeado após uma entrevista inicial, na qual
78
se buscou oferecer acolhimento para que as demandas da paciente fossem
explicitadas ao psicoterapeuta e que se firmasse o contrato de trabalho. A partir de
então iniciaram-se as sessões de psicoterapia.
As sessões foram transcritas de memória pelo pesquisador-psicoterapeuta, ao
final de cada sessão, constituindo o corpus de pesquisa.
Resultados e discussão
A trajetória clínica de Beatriz é marcada por uma série de vicissitudes e conflitos
familiares. Inicialmente, alegou que buscara a psicoterapia apenas como uma
exigência do processo para se qualificar para a cirurgia de redesignação sexual. No
entanto, a paciente apresentou, em seu discurso, demandas outras, passíveis de
análise e reflexão. No que se refere ao seu desenvolvimento emocional, Beatriz
mostra-se, desde sua infância, como não identificada ao seu sexo biológico, o que
gerou muitos conflitos e embates desde etapas precoces de seu desenvolvimento,
principalmente com seus pais. Durante a infância, a paciente relata que sempre foi
solitária e, em decorrência da percepção que tinha de sua própria sexualidade, não
conseguiu estabelecer vínculos significativos com amigos durante o período em que
permaneceu na escola. É interessante notar que, ainda que na sua percepção sobre
a infância prevaleça a convicção de ter sido uma pessoa solitária, foi no contato com
o outro que Beatriz encontrou um nome com o qual se sentia confortável. Isto é, a
paciente afirma ter escolhido seu nome social a partir de uma aluna de sua turma,
que era considerada a mais bonita da escola e que se chamava Beatriz.
A relação com seus familiares também se mostrou, no relato da paciente,
conflituosa. Sua mãe dizia, desde sua adolescência, que ao completar a maioridade
a expulsaria de casa devido a seu comportamento, por ela considerado anormal e
motivo de desgosto familiar. De fato, cumprindo o prometido, ao completar 18 anos,
a mãe de Beatriz a mandou ir embora de casa. Ela conta que dormiu na rua por uma
noite. Ainda que contrária à vontade de seu pai, a opinião da mãe prevaleceu e
Beatriz permaneceu por um ano distante do seu contexto familiar. Auxiliada por uma
senhora, amiga da família, a paciente conta que conseguiu manter-se viva durante
esse período, até que, em decorrência de um pedido de seu irmão mais velho, a
79
mãe a acolheu novamente no convívio familiar. Desde então, a relação entre as
duas foi restaurada e parece estar relativamente tranquila no momento atual.
É possível notar, então, uma inversão no comportamento da mãe. Se antes
Beatriz era motivo de vergonha, no período em que durou o atendimento
psicológico, de acordo com seu relato, a convivência com sua mãe mostrava-se
relativamente tranquila e harmoniosa, o que foi evidenciado pelo fato de sua genitora
não mais tratá-la pelo nome de batismo, Daniel, mas por seu nome social. Isso
gerava grande contentamento na paciente.
Em relação ao pai, Beatriz afirma que sempre manteve uma relação distante com
seu genitor, a despeito de ele ter mostrado-se contrário à sua expulsão de casa
quando ela completou a maioridade. Nesse sentido, relata um episódio instigante,
ocorrido aos 15 anos de idade. Beatriz conta que entrou no banheiro de sua casa
acidentalmente, enquanto seu pai urinava e, por conseguinte, foi duramente
ofendida e ridicularizada por ele. Depois do ocorrido, relata que era por ele
observada por diversas vezes pela janela do banheiro enquanto tomava banho, o
que suscitava muita angústia na paciente. Seu pai, ao contrário de sua mãe, não a
tratava pelo nome social, mas insistia em referir-se a ela por meio de seu nome de
batismo.
Beatriz afirma que, desde sua infância, era temente a Deus e pertencente a uma
organização religiosa evangélica denominada Metodista Renovada. A paciente
relata que participou do coral da igreja até sua adolescência quando, por conta da
mudança de voz, própria da puberdade, foi distanciando-se dessa atividade que
tanto lhe dava prazer. É curioso notar que a família sempre ia unida às reuniões da
igreja e, ainda que existissem conflitos no âmbito das relações familiares, na igreja
Beatriz encontrava paz e tranquilidade. A paciente deixava claro que, para sua
religião, o fato de ela sentir-se em desacordo com seu corpo, ou seja, de ser
transexual, equivalia a “estar em pecado”. Entretanto, ela acreditava que Deus
amava-a e aceitava-a como ela era, caso contrário, não teria permitido que ela
viesse ao mundo. O vínculo que mantinha com a religião influenciava diretamente
sua relação com sua sexualidade. Beatriz não se permitia sentir prazer, afirmava
não pensar em “coisas erradas” e que sexo, para ela, só seria possível após o
casamento.
80
Nesse sentido, levando-se em consideração o modo como se deu a construção
de sua sexualidade, a paciente, durante as sessões, não conseguia pronunciar
termos relativos ao sexo, como órgãos genitais, masturbação, orgasmo, entre
outros. Sentia-se extremamente desconfortável e, por vezes, ocultava seus olhos
com as mãos ao se referir a esse tema, em expressão indicativa de vergonha. Ao
mesmo tempo, afirmava não gostar dos atendimentos realizados no Ambulatório de
Sexualidade, onde fazia acompanhamento hormonal e também terapêutico,
justamente pelo fato de que lá aconteciam discussões que tinham em seu cerne a
questão da sexualidade, o que forçava a paciente a ter que entrar em contato direto
com esse aspecto de sua vida. Beatriz relata que não manteve relacionamentos
duradouros com outras pessoas justamente em decorrência do preconceito e de sua
timidez frente ao outro. De acordo com a paciente, sempre que ela revelava sua
condição transexual a seus namorados/parceiros, eles prontamente terminavam o
relacionamento. Por outro lado, Beatriz apresentava-se durante a psicoterapia como
uma “mulher que tem um defeito”, não como transexual.
O preconceito percebido pela paciente também pôde ser notado no que se refere
aos trabalhos desempenhados por ela ao longo de sua vida. Durante as primeiras
sessões, trabalhava em uma loja de materiais de telecomunicação e, como afirmado
por ela, quase que diariamente era ridicularizada por clientes da loja ou, por uma
outra vertente, era constantemente convidada para encontros sexuais casuais.
Esses dissabores fizeram-na desistir desse emprego. Com a ajuda do pastor de sua
igreja, Beatriz conseguiu uma colocação em um salão de beleza, do qual o pastor
era dono. Era responsável pela limpeza do estabelecimento e, eventualmente,
auxiliava cabeleireiros e manicures no trato dos clientes.
É interessante notar, no decorrer das sessões, uma evolução na qualidade da
relação da paciente com o terapeuta e entre a paciente e o mundo circundante. Se
no início dos atendimentos Beatriz mostrava-se ansiosa, por vezes desviava o olhar
e sempre se mostrava tímida e transpirava abundantemente, nas sessões
posteriores conseguiu manter-se mais confortável dentro do setting terapêutico.
Fisicamente também foi possível notar uma mudança na paciente: nos primeiros
encontros Beatriz era morena, usava franja, vestia-se com roupas femininas um
tanto quanto infantilizadas, mochila rosa e enfeitada com desenhos, sapatos
81
discretos e pouca maquiagem. No decorrer das sessões a paciente pintou o cabelo
de loiro, passou a usar vestidos e roupas mais decotadas, bolsas próprias de
mulheres adultas, maquiagem bem definida e lentes de contato verdes.
O que ficou intensamente marcado no início do processo terapêutico foi
justamente o fato de não aceitar seu pênis. A paciente afirmava que por vezes já
pensara em se automutilar, chegando inclusive a se ferir durante uma tentativa
desesperada de ablação do membro. O órgão masculino é por ela definido como
“erro”. Em contrapartida, comunicava que jamais conseguiria realizar tal ato
autodestrutivo, por não conseguir pensar no desgosto que causaria a seus pais caso
tomasse essa atitude. Nesse sentido, o discurso de Beatriz vinha carregado de
expectativas em relação à cirurgia de redesignação sexual, a qual estava prevista
para ocorrer em meados de 2013. Como que em um passe de mágica, a paciente
afirmava que, após a cirurgia, todos os seus problemas estariam resolvidos e ela,
finalmente, poderia ser o que sempre foi, isto é, uma mulher.
Ademais, foi possível notar, também, uma diferença marcante na sua forma de
relacionar-se consigo mesma. Beatriz, que no início do processo mostrava-se
preocupada com as impressões que causava às outras pessoas e sentia-se, como
afirmado por ela própria, uma “louca” e uma “aberração”, conseguia, ao término do
processo, olhar-se de forma mais carinhosa e importar/perturbar-se menos com a
opinião e os olhares de estranhos, isto é, daqueles com os quais não mantinha
relação alguma. Isso ficou evidenciado, por exemplo, pelo fato de afirmar que já
conseguia externalizar suas opiniões no trabalho e que já não sentia mais vontade
de chorar todas as vezes em que se via envolvida em algum conflito, como
discussões familiares ou desentendimentos ocorridos no contexto de trabalho.
Após um ano de acompanhamento psicoterapêutico, a paciente relata que se
engajou em um relacionamento afetivo com um homem de sua idade e que optou
pela interrupção da psicoterapia, dando como justificativa a falta de tempo, por conta
do trabalho. Entretanto, em sua última sessão, ficou evidente a mudança de
paradigma que se instaurou na vida de Beatriz. A paciente já não mais aguardava a
cirurgia para que se realizasse enquanto mulher. Nesse sentido, afirmou que a
cirurgia serviria somente como correção de um defeito que tinha, mas que, mais do
que isso, apenas ela poderia fazer.
82
No que diz respeito às expectativas da pessoa transexual em relação à cirurgia
de redesignação sexual, considera-se relevante a necessidade de ser tratado como
uma pessoa do sexo oposto ao seu sexo biológico (Pinto & Bruns, 2003), o que
pôde ser observado na relação de Beatriz com sua mãe, mas não com seu pai.
Nesse sentido, o acompanhamento terapêutico mostra-se importante, na medida em
que possibilita ao sujeito operar uma ressignificação das relações afetivas
estabelecidas, propiciando uma visão ampliada dos vínculos e das pessoas. Além
da vivência de seu novo papel anteriormente à cirurgia, é evidente que a realização
do procedimento cirúrgico é ardentemente desejada, na medida em que propiciará
uma adequação de seu corpo a seu gênero, eliminando assim o conflito que essa
discordância origina (Pinto & Bruns, 2003).
Entretanto, como assinalado por Arán, Zaidhaft e Murta (2008), é importante que
se estimule o questionamento crítico do desejo dos pacientes pela cirurgia de
transgenitalização,
sendo
este
também
um
critério
diagnóstico
para
a
transexualidade. No caso de Beatriz, ficou evidente, em seu discurso, seu desejo
incontestável pela cirurgia, pelo menos até a interrupção dos atendimentos. Além
disso, é preciso considerar que já existe a previsão de alteração no registro civil de
transexuais mediante diagnóstico, não sendo necessária a realização da cirurgia
para que ocorra a mudança legal do nome de batismo original para o nome social
escolhido pela paciente (Lionço, 2008), o que já havia sido conquistado por Beatriz.
A cirurgia de redesignação sexual tem, para a pessoa transexual, um significado
singular, pois representa uma forma de integração entre o indivíduo e a sociedade, e
uma eliminação da dualidade sexual vivida pelo paciente (Pinto & Bruns, 2003).
Levando-se em consideração os relatos de Beatriz, esse significado ficou
evidenciado e ampliado, tendo em vista a sua visão de que “tudo iria mudar” após a
realização da cirurgia. Nesse sentido, como afirmado por Pinto e Bruns (2003), o
transexual homem-para-mulher, como é o caso de Beatriz, poderá assumir seu sexo
feminino psicológico, vivendo de forma plena e íntegra, podendo conviver de
maneira harmoniosa com seu corpo e assumindo uma atitude mais afetuosa e
prazerosa consigo mesma. Contudo, cabe ressaltar que a intervenção cirúrgica, ao
contrário do que parecia acontecer nas expectativas altamente idealizadas que
foram explicitadas por Beatriz, não opera milagres. Ela carrega em si a possibilidade
83
de adequação do sexo, mas, ao mesmo tempo, não elimina a memória inconsciente
de traumas vividos por cada indivíduo, que precisam ser resignificados no intuito de
que haja uma harmonização entre o sexo biológico e o psíquico (Pinto & Bruns,
2003).
De acordo com Toledo e Pinafi (2012), o objetivo da clínica psicológica voltada
às necessidades do público LGBT não reside na tentativa de fazer com que o
indivíduo, considerado como pertencente a uma minoria, viva feliz apesar de sua
condição de marginalizado ou que se sinta “normal” diante de uma norma
socialmente estabelecida. Para essas autoras, o importante na clínica é justamente
fazer com que esses indivíduos assumam e apreciem positivamente sua diferença.
Nesse sentido, fica evidente a evolução de Beatriz no que diz respeito à aceitação
de sua condição. Ao afirmar que se sente “uma mulher com um defeito”, a paciente
pode não estar necessariamente negando sua transexualidade, mas, ao contrário,
afirmando sua condição de “mulher diferente” de outras mulheres, ou seja, de um
sujeito transexual.
Cabe ressaltar também que, ainda que a cirurgia de transgenitalização só seja
autorizada após o estabelecimento do diagnóstico de transtorno de identidade de
gênero, evidenciando o caráter patologizante que é colocado sobre esses
indivíduos, o mesmo movimento acabou por institucionalizar o debate sobre a
transexualidade no âmbito da saúde pública no Brasil, permitindo aos transexuais o
acesso ao tratamento e aos cuidados médicos e psicológicos, amenizando a sua
condição de extrema vulnerabilidade (Arán, Zaidhaft & Murta, 2008). Contudo, de
acordo com as referidas autoras, isso não significa que a solução encontrada para o
reconhecimento de uma situação de sofrimento, isto é, a categorização em termos
de um diagnóstico psiquiátrico, seja a forma mais adequada de socialização desses
indivíduos. Não sendo o gênero uma essência, mas sim uma possibilidade de vir a
ser, evidenciada por seu caráter sempre provisório de construção sócio-histórica, o
destino dos indivíduos transexuais depende de atores políticos e clínicos implicados
nas relações de ajuda, fazendo com que as possibilidades de subjetivação estejam
de acordo com as contingências desses indivíduos.
84
Considerações finais
Buscou-se, no decorrer do processo terapêutico, não a confirmação diagnóstica
de um estado de transtorno de gênero, mas compreender uma trajetória singular de
subjetivação, na tentativa de fomentar a abertura de possibilidades que permitissem
que a transexualidade pudesse ser vivenciada e revelada em toda sua inteireza.
Assim, como afirmado por Arán (2006), a transexualidade não faz com que seja
fixada uma única posição subjetiva, mas, a partir do acompanhamento psicológico,
permite que ocorra um deslocamento da manifestação social da transexualidade,
permitindo que esta possa ser traduzida em uma modalidade de funcionamento
específico e individual. Essa compreensão, se propagada pelos serviços de saúde,
pode fazer com que ocorra uma fuga da tendência à psiquiatrização e, também, da
violência exercida pela interpretação psicanalítica.
No percurso de elaboração do presente estudo de caso ficou evidente a
escassez de material acadêmico que se proponha a discutir a transexualidade a
partir de uma perspectiva dos próprios indivíduos transexuais. Mais do que isso,
ficou evidenciada a carência de estudos que tenham como referência a
transexualidade. Nesse sentido, encontram-se trabalhos referentes ao preconceito e
à estigmatização sofridos em decorrência da persistente patologização das pessoas
desviantes da heteronormatividade compulsória, porém não se encontram estudos
que apresentem a visão/versão daqueles que sofrem a ação desses processos.
Questões referentes à saúde pública, no que diz respeito às DST/aids, ao uso de
drogas e aos riscos sofridos pela tentativa desesperada de eliminação do órgão
sexual masculino, são largamente discutidos; todavia, parece não existir a
preocupação com a subjetividade desses indivíduos.
Isso não significa que as pesquisas já produzidas e publicadas sejam de menor
importância ou relevância prática, mas ao contrário, implica em dizer que é
necessária uma visão ampliada desses sujeitos, legitimando seus anseios e
aspirações, enquanto seres de desejo e portadores de direito e seres de desejo.
É interessante que se produzam novas investigações, que permitam identificar as
necessidades dos sujeitos trans e que expressem as particularidades inerentes às
85
relações estabelecidas por essas pessoas, distanciando-as do foco negativo da
patologia e encarando-as como sujeitos do inconsciente e de cidadania, implicados
em uma vida que vai além do discurso da diversidade sexual, não deixando de lado
esse aspecto, evidentemente, mas ao mesmo tempo, não o colocando no cerne das
discussões.
Referências
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86
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Toledo, L. G & Pinafi, T. (2012). A clínica psicológica e o público LGBT. Psicologia
Clínica, 24(1), 137-163.
Sobre os autores
Yurín Garcêz de Souza Santos: Graduando em Psicologia pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Membro do
Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Bolsista de Iniciação
Científica da FAPESP. E-mail: [email protected]
Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPSUSP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected]
Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP.
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Parte II
POR UMA CLÍNICA-ESCOLA AMPLIADA: EXPERIÊNCIA DE INSERÇÃO DA
PSICOLOGIA NO ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR EM BULIMIA E ANOREXIA
JUNTO AO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
Érika Arantes de Oliveira-Cardoso
Manoel Antônio dos Santos
Introdução
Nesta exposição apresentaremos a experiência de uma clínica extramuros, ou
mais precisamente, delinearemos a expansão da clínica-escola para dentro do
espaço hospitalar e do Sistema Único de Saúde (SUS), descrevendo a participação
de alunos de graduação (estagiários) do curso de Psicologia e alunos de pósgraduação junto a um serviço de atenção multidisciplinar, especializado no
tratamento dos transtornos do comportamento alimentar.
A inserção da equipe de Psicologia no Grupo de Assistência em Transtornos
Alimentares (GRATA) do Ambulatório de Nutrologia do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HC-FMRPUSP) surgiu em 2000 a partir de uma parceria estabelecida entre a Universidade,
por intermédio do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde
(LEPPS-USP-CNPq), do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP),
e o hospital geral de nível terciário e quaternário (FMRP-USP). Essa aproximação
proporcionou à equipe multidisciplinar um olhar mais abrangente, considerando as
dimensões psicossociais do processo de saúde-doença e tratamento dos
transtornos alimentares (TAs). Por outro lado, para os estagiários e psicólogos
vinculados ao LEPPS, representou uma rica possibilidade de intervenção em
contexto diferente da clínica-escola tradicional.
Anorexia Nervosa (AN) e Bulimia Nervosa (BN) constituem os tipos mais
conhecidos de TAs (Doyle & Bryant-Waugh, 2000), que podem ser caracterizados
88
como quadros psicopatológicos marcados por grave perturbação do comportamento
alimentar, que afeta, na maioria das vezes, adolescentes e adultos jovens do sexo
feminino (Borges, Sichieri, Ribeiro, Marchini, & Santos, 2006).
A BN é caracterizada por episódios de ingestão alimentar exagerada, que em
geral são atos secretos e rápidos, que só cessam por mal-estar físico, interrupção
externa (chegada súbita de outra pessoa) ou porque os alimentos esgotaram-se
(Azevedo & Abuchaim, 1998). A AN caracteriza-se pela recusa deliberada em comer
alimentos e em manter-se no peso mínimo desejável para sua idade e estatura.
Tanto na AN como na BN o peso e o formato corporal exercem importante influência
na determinação da autoestima dos pacientes (Hay, 2007).
Atualmente, acredita-se na conjunção de diversos fatores, que contribuiriam
para a predisposição, instalação e manutenção dos sintomas dos TAs. Dentre os
fatores mais relevantes destacam-se: a dinâmica das relações familiares, o meio
sociocultural e o modo de funcionamento da personalidade (Dupont & Corcos, 2008;
Oliveira & Santos, 2012).
Os próprios pacientes reconhecem a proeminência desses fatores na
etiopatogenia do transtorno, como mostra um estudo qualitativo realizado com
pacientes com AN, no qual foram aplicadas entrevistas abertas a partir da seguinte
questão norteadora: “Quais você acha, hoje, que foram as razões que a levaram a
ter AN?”. As participantes apontaram como respostas: fatores internos, familiares e
socioculturais (Nilsson Abrahamsson, Torbiornsson, & Hägglöf, 2007).
Nota-se um padrão de confusão nas famílias, marcado especialmente pelas
dificuldades no plano dos relacionamentos interpessoais e pela presença de
conflitos que os familiares tenderiam a ocultar (Ma, 2008). As relações familiares
podem tanto contribuir para o desencadeamento e manutenção do TA (SalbachAndrae et al, 2008), como os familiares podem ser afetados emocionalmente pelo
acometimento de um dos seus membros, aumentando sua suscetibilidade a
sintomas de desgaste físico e emocional (Wagner et al., 2008).
É reconhecida, nas últimas décadas, a importância que a sociedade ocidental
atribui à aparência física, elegendo como padrão de beleza o corpo esbelto, jovem e
89
malhado, instaurando o que alguns autores denominam de “ditadura da magreza”
(Borges et al, 2006; Kreling & Santos, 2005). Na contemporaneidade os meios de
comunicação de massa perpetuam esse ideal de magreza e reforçam o estigma em
relação ao ganho de peso, o que pode influenciar no desencadeamento e
manutenção dos TAs (Lawrie, Sullivan, Davies & Hill, 2006).
O funcionamento afetivo-emocional, via de regra, se encontra muito
perturbado nesses quadros psicopatológicos, caracterizados por grave perturbação
do comportamento alimentar. Por razões peculiares, pacientes que apresentam esse
tipo de sofrimento psíquico associam à alimentação medos, ansiedades e culpas
(Cabrera, 2006).
Considerando esses pressupostos, este estudo teve como objetivo discorrer
sobre os aspectos emocionais da Anorexia e Bulimia Nervosas, de modo a delinear
possibilidades de intervenções terapêuticas e refletir sobre o papel do profissional de
Psicologia nesse contexto.
1. Aspectos emocionais dos TAs
O perfil de personalidade dos pacientes com AN apresenta, tipicamente, uma
constelação de características como: baixa autoestima, ansiedade elevada,
perfeccionismo extremo, pensamento dicotômico, incapacidade de encontrar formas
de satisfação adequadas (Abreu & Cangelli, 2004).
Pacientes com NA mostram acentuada fragilidade egóica, são propensos à
utilização de mecanismos arcaicos de defesa, caracterizam-se por uma restrição do
potencial adaptativo, controlam os próprios impulsos com excessivo rigor e tendem à
passividade, introversão, obsessividade e dependência (Connan, Troop, Landau,
Campbell, & Treasure, 2007; Santos & Peres, 2006).
Pacientes com BN tendem a apresentar emoções e pensamentos
desadaptados, autoestima flutuante e, por vezes, exibem atitudes caóticas em
outros aspectos da vida, como nos estudos, na atividade profissional e nas relações
amorosas (Abreu & Cangelli, 2004). As dificuldades no controle dos impulsos e
90
emoções desempenhariam um papel importante no desenvolvimento e manutenção
dos sintomas (Markey & Vander, 2007). Apesar de apresentarem prejuízos no
ajustamento interpessoal, com tendência a manterem relações afetivas instáveis, as
bulímicas são sexualmente mais ativas do que as pacientes com AN (Grabhorn,
Stenner, Stangier, & Kaufhold, 2001).
Do ponto de vista da sintomatologia psíquica, os TAs assemelham-se no que
concerne à marcada distorção da imagem corporal, que acarreta medo mórbido de
engordar, preocupação excessiva com a alimentação e um permanente desejo não
realista de emagrecimento (Silva & Santos, 2006).
2. Possibilidades de intervenções terapêuticas
Diante da complexidade de que se revestem esses quadros, o tratamento
exige a intervenção de uma equipe multiprofissional de saúde. No caso do GRATA,
a equipe especializada é composta por médicos nutrólogos, nutricionistas,
psiquiatras, psicólogos e estudantes-estagiários de psicologia, além de enfermeiros
e terapeutas ocupacionais nos casos que demandam internação. Os profissionais,
em sua maioria, exercem atividade voluntária, já que se inserem em uma instituição
macro-hospitalar pública, de natureza acadêmica e científica, que presta
atendimento universal. Desse modo, o serviço atende indivíduos de diferentes
camadas sociais, devido à sua inserção no SUS.
As
modalidades
de
assistência
oferecidas
pelo
GRATA,
em
nível
ambulatorial, funcionam com frequência semanal. Compreendem: atendimentos
clínicos
individuais
acompanhamento
realizados
psiquiátrico,
por
nutrólogos,
atendimentos
nutricionistas
psicoterápicos
e
psicólogos,
individuais
para
pacientes e alguns familiares, psicodiagnóstico, grupo de orientação médiconutricional e grupo de apoio psicológico aos familiares. Nos casos de internação
ocorre também a participação de enfermeiros, médicos e terapeutas ocupacionais
(Silva & Santos, 2006).
No decorrer dos atendimentos, os resultados são socializados entre os
membros da equipe durante as discussões que ocorrem nas reuniões semanais,
91
momento em que se avalia a evolução dos pacientes e decidem-se as condutas
clínicas.
3. Importância do profissional de psicologia na equipe
Mais especificamente, o psicólogo contribui por meio da obtenção e
organização de dados acerca da singularidade do funcionamento psicodinâmico, dos
fenômenos psicopatológicos subjacentes a esses quadros e de suas implicações na
clínica. Esse conhecimento é primordial para que se possam traçar estratégias mais
efetivas de ação (Oliveira & Santos, 2006).
A intervenção do psicólogo inicia-se no caso novo, momento em que são
realizadas entrevistas clínicas com os pacientes ingressantes e seus familiares. Os
dados obtidos nessas entrevistas são posteriormente discutidos e integrados com os
resultados das avaliações da psiquiatria, da nutrição e nutrologia. A discussão
multidisciplinar possibilita que seja traçado um plano terapêutico individual, que
deverá nortear o processo de intervenção a ser instituído.
Em
alguns
casos,
quando
detectada
a
necessidade
de
avaliação
psicodiagnóstica, acrescentam-se às entrevistas alguns instrumentos projetivos
(técnicas gráficas, Psicodiagnóstico de Rorschach, Teste das Pirâmides Coloridas
de Pfister, Teste de Apercepção Temática), bem como questionários e escalas que
permitem avaliar ansiedade, depressão, estresse e qualidade de vida.
As modalidades de intervenção oferecidas podem ser individuais e/ou
grupais, e são direcionadas para pacientes e familiares, sendo adotada uma
estratégia psicoterapêutica de duração breve, que tem como foco os aspectos
emocionais associados ao adoecimento e/ou despertados pelo tratamento.
Um importante papel desempenhado pelos profissionais e estagiários de
Psicologia é a contribuição nas discussões de casos realizadas pela equipe
multiprofissional, auxiliando na avaliação da evolução de cada paciente e pensando
juntos as possibilidades de condutas, quando necessário.
No decorrer dos atendimentos, os resultados são socializados entre os
membros da equipe no decorrer das discussões que ocorrem durante as reuniões
92
semanais. Nas trocas que se estabelecem pode-se perceber o quanto as distintas
visões de cuidado em relação a um mesmo paciente e família são essenciais para a
compreensão integral do caso. No transcorrer dos tratamentos podem-se perceber
também as dificuldades, angústias, temores e mazelas advindas do contato direto
com os pacientes e familiares (Silva & Santos, 2006), bem como com os colegas de
equipe.
O trabalho psicológico se estende mesmo pós-alta, sendo que alguns
pacientes continuam em psicoterapia individual por mais um período. O objetivo é o
de tentar evitar uma recaída, buscando fortalecê-los e prepará-los para essa nova
etapa da vida, que apesar de muito esperada e acalentada, vem cercada por medos
e inseguranças que merecem a atenção do psicólogo.
Considerações finais
Diante dos resultados obtidos em mais de uma década de trabalho junto ao
serviço, evidencia-se o comprometimento das funções psíquicas dos pacientes com
TA e a consequente necessidade de um acompanhamento psicológico integrado à
assistência oferecida pela equipe multiprofissional. Esse apoio psicológico, segundo
Huke e Slade (2006), deveria estender-se aos indivíduos do círculo relacional mais
próximo ao paciente, em especial aos familiares, a fim de que seja encorajado um
diálogo mais aberto a respeito das necessidades subjetivas dos pacientes com TA,
visando a atenuar suas dificuldades relacionais e a aliviar a sobrecarga de cuidado.
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Sobre os autores
Érika Arantes de Oliveira-Cardoso: Psicóloga, Doutora pelo Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq).
Membro e supervisora do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - GRATA (HC-FMRPUSP). E-mail: [email protected]
95
Manoel Antonio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo. Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq).
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Apoio: CNPq
Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP.
E-mail: [email protected]
96
DIRETRIZES PSICOTERAPÊUTICAS PARA INTERVENÇÃO COM PACIENTES
COM TRANSTORNOS ALIMENTARES
Manoel Antônio dos Santos
Érika Arantes de Oliveira-Cardoso
Carolina Leonidas
Élide Dezoti Valdanha
Lilian Regina de Souza Costa
Introdução
Reconhecidos como os transtornos alimentares (TAs) mais importantes,
Anorexia Nervosa (AN) e Bulimia Nervosa (BN) são quadros que afetam,
principalmente, adolescentes e adultos jovens do sexo feminino. Na AN observa-se
intenso emagrecimento à custa de restrição alimentar, caracterizando uma busca
desenfreada pela magreza. Além de recusa em admitir o peso considerado
esperado para a idade e altura, a paciente apresenta marcada distorção da imagem
corporal e ausência de ciclos menstruais (Associação Americana de Psiquiatria,
2003; Leonidas & Santos, 2012).
O termo anorexia não é apropriado, pois etimologicamente significa “sem
fome”, quando na verdade não há “falta de apetite”. Na BN os episódios de
compulsão alimentar (binge eating) são seguidos de medidas compensatórias para o
controle do peso, tais como vômitos autoinduzidos, uso de laxantes, diuréticos e
inibidores de apetite, com prática de exercícios físicos compulsivos e dietas
restritivas (Associação Americana de Psiquiatria, 2003; Rosa & Santos, 2011).
Tudo isso ocorre em uma etapa do ciclo vital de especial vulnerabilidade
psicossocial: a adolescência (Andrade & Santos, 2009). É quando os laços com a
infância estão rompendo-se e novos horizontes são descortinados na adolescência,
junto a uma dolorosa sensação de “ser diferente no mundo”. As vivências de
exclusão e não pertencimento ao meio, comuns à experiência da adolescência,
ganham um caráter dramático nos TAs. O desafio colocado para o adolescente é
como se diferenciar sendo único, singular (Oliveira & Santos, 2006).
AN e BN não são quadros estanques, que podem ser tratados isoladamente.
Constituem problema grave de saúde, mas são muito mais. Há um consenso de que
a relação com a comida é um indicador que pode revelar formas de interação da
97
pessoa consigo e com o mundo. Isso depende dos significados que cada um
constrói ao longo de seu desenvolvimento.
A complexidade dos fenômenos psíquicos envolvidos é imensa, abrindo a
possibilidade de recorrer-se à comida para aliviar angústia. Essa “perversão do
comportamento alimentar” denota o quanto o comportamento humano não é natural,
mas construído no cerne das relações interpessoais.
Colapso da capacidade representacional
Nas pacientes com AN e BN há um notável colapso da capacidade
representacional, que intercepta a possibilidade do ego de buscar representações
psíquicas para os derivados de pulsão. Com esse curto-circuito das representações,
prevalece a compulsão à repetição, que é típica do modo de funcionamento
inconsciente.
As características e manifestações da sexualidade são problemáticas nesses
quadros clínicos. O apetite sexual pode exacerbar-se, no caso das bulímicas, ou ser
quase que totalmente anulado, no caso das anoréxicas. Nos casos extremos a
aparência é de uma desertificação da vida pulsional. A atividade pulsional parece
estar extinta, como um vulcão que entra em extinção e permanece silencioso por
muito tempo, até que uma erupção recorde a todos de que há bastante vida
turbulenta por debaixo da aparente calmaria.
A psicoterapia com pacientes com TAs com muita frequência é palco de
dramas e tensões, em parte porque os sintomas bulímicos e anoréxicos entram em
rota de colisão com os objetivos gerais do tratamento multidisciplinar, que é
modificar o comportamento alimentar disfuncional. Nesse contexto, as pacientes
podem recusar-se a “comer” o que lhe é oferecido pelo psicoterapeuta, mantendo
tenazmente seu jejum, ou então podem “devorar” o que recebem, para logo em
seguida vomitar violentamente o que introjetaram.
Os ataques ao vínculo são constantes e radicais, o que pode expressar-se sob
a forma de manter a dissociação, o distanciamento e a postura inflexível e
autocentrada, como táticas para evadirem-se dos conteúdos psíquicos que geram
98
desconforto durante as sessões de terapia. A resistência à mudança é notável e
traduz a tentativa de preservar suas relações interpessoais imaturas e doentias.
O atendimento psicoterapêutico em instituições requer adaptações da técnica
analítica clássica, pois se deve considerar a necessidade de maior elasticidade no
setting terapêutico. Isso significa que o profissional deve ser suficientemente
acolhedor e empático. O psicoterapeuta deve manter uma postura interpessoal ativa
e participativa, para que possa buscar os aspectos mais imaturos e inacessíveis do
self das pacientes, alcançando o momento primevo no qual se rompeu a linha de
continuidade do existir.
O terapeuta deve ser o escafandrista que mergulha até o limite das catástrofes
mentais primitivas que se supõe que aconteceram em época precoce do
desenvolvimento das pacientes. De modo análogo ao que ocorre na toxicomania, na
escuta das pessoas adictas à comida é preciso sair em busca dos aspectos nãonascidos da personalidade, construindo uma clínica possível em meio a condições
emocionais frequentemente precárias, no limite próximo ao autoextermínio.
Diretrizes do tratamento
O tratamento dos TAs muitas vezes é centro de dramas e tensões, que
contagia os pais e, não raro, todo o sistema familiar (Souza & Santos, 2007, 2009,
2010). Um dos primeiros alvos da psicoterapia nos TAs – como de resto em todos os
quadros clínicos, é a recuperação da autoestima, lembrando que as pacientes
internalizaram imagem negativa de si mesmas e do papel de mulher. De fato, não
querem sentir-se mulheres, por isso evitam (porque temem) o crescimento. É preciso
ajudá-las a gostarem de si mesmas, elaborando seus sentimentos negativos
voltados para o próprio self. Sentem-se culpadas, com vergonha, criticadas por seus
fracassos, discriminadas pelos familiares, colegas de escola, de trabalho, pela
sociedade.
É preciso oferecer uma experiência na qual a paciente possa sentir-se aceita e
protegida, para que possa romper o círculo vicioso. Sabe-se que elas têm
dificuldade para manter uma relação afetiva estável, bem como para a reintegração
social, frequentar lugares públicos, shoppings, restaurantes (Cassin & Von Ranson,
2005).
99
A desmistificação dos transtornos psiquiátricos requer que se desarmem os
preconceitos dirigidos à enfermidade, fortemente estigmatizada pela sociedade.
Também se almeja a melhoria da qualidade de vida (QV), uma vez que essas
pacientes acabam tendo uma QV comprometida devido a uma série de
complicações e percalços que enfrentam no curso de seu desenvolvimento. O
psicoterapeuta deve auxiliá-las a aumentar o poder de decisão e autonomia (assim
como das famílias), de modo que possam ver-se como pessoas competentes, mas
que necessitam de orientação de outras pessoas.
Não somos terapeutas-de-pessoas-com-problemas que requerem alguém (um
especialista) que os resolva por elas. Buscamos desenvolver expectativas realistas e
objetivos viáveis, com um pressuposto de competência. Ou seja, supomos que a
paciente possui, latentes, as habilidades necessárias para alcançar as mudanças,
ao invés de considerarmos que são pessoas “disfuncionais” e incapazes de
determinarem o que é melhor para si. Assim, é preciso criar um discurso de
esperança em vez de desmoralização (Sluzki, 1997, p. 66), para que a paciente
perceba que é possível ter sua vida transformada e remodelada.
Desse modo, a psicoterapia deve focalizar os recursos e não os déficits,
valorizar as potencialidades e não os aspectos regredidos. Um dos aspectos cruciais
no processo terapêutico é ajudar as pacientes a perceberem o papel da comida em
suas vidas e a comprometerem-se consigo mesmas. É preciso que percebam que o
afeto é canalizado, de forma distorcida e atenuada, no comportamento compulsivo e
que é associando ideias, emoções e lembranças que se restitui a mobilidade perdida
do desejável trânsito entre conteúdos conscientes e inconscientes.
Ao falar, o paciente põe em movimento afetos, mobiliza emoções. O tratamento
consiste em reconectar a ideia à emoção por meio da palavra “perdida” (Goulart &
Santos, 2012). Associando ideias, o paciente fala e põe em movimento afetos, até
que possa chegar à gênese de suas manifestações psicopatológicas, de modo a
poder formular uma compreensão singular sobre a função que os sintomas (recusa
alimentar, compulsão) cumprem em suas subjetividades.
100
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101
Sobre os autores
Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPSUSP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRPUSP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). Email: [email protected]
Érika Arantes de Oliveira-Cardoso: Psicóloga, Doutora pelo Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq).
Membro e supervisora do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRPUSP). E-mail: [email protected]
Carolina Leonidas: Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório
de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro do Grupo de
Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRP-USP). Bolsista de Doutorado da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. E-mail: [email protected]
Élide Dezoti Valdanha: Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Membro
do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro do
Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRP-USP). Bolsista de
Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP Email:
[email protected]
Lilian Regina de Souza Costa: Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro
do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro do
Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRP-USP). Bolsista de
Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. E-mail:
[email protected]
Apoio: CAPES, FAPESP, CNPq
Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP.
E-mail: [email protected]
102
POR UMA PSICOLOGIA SOCIALMENTE ÚTIL: DIÁLOGOS ENTRE
PSICOLOGIAESCOLAR E PSICOLOGIA CLÍNICA
Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira – CRP 06/27327-1
Mônica Cintrão França Ribeiro – CRP 06/20583-3
Nádia Giuliese – CRP 06/117870
Em nosso trabalho buscamos construir uma prática psicológica socialmente
útil. Pensamos que a ciência deve servir à comunidade como um todo, não apenas
aos indivíduos isolados. O que pretendemos nesse artigo é compartilhar uma
experiência de atendimento psicológico realizado concomitantemente por duas
áreas de estágio: institucional e clínica, revelando bons resultados ao se colocar a
prática clínica a favor da comunidade escolar, a partir do caso de uma menina de
seis anos, a quem chamaremos aqui de Ana1.
A queixa escolar, em geral, parte da observação de professores sobre
comportamentos “inconvenientes” de seus alunos. Clinicamente entendemos que os
comportamentos observados mascaram conteúdos inconscientes, ou seja, revelam
um sintoma que no atendimento clínico pode ser revelado, pois neste a criança
mostra como e por que ela transforma suas vivências no sintoma gerador do
comportamento que origina a queixa. Frequentemente trata-se de um pedido de
ajuda.
Entendemos que os chamados comportamentos “indisciplinados” são aqueles
que incomodam os professores, pois contrariam o que a escola e a própria
sociedade considera como disciplina. De acordo com essa compreensão
passaremos a chamar tais comportamentos de “inconvenientes”, pois não
pretendemos aqui entrar no mérito do que deva ser ou não considerada
“indisciplina”, já que sabemos que tal conceito pode variar de uma escola para outra
e até mesmo entre professores.
No
entanto,
partimos
do
pressuposto
de
que
comportamentos
“inconvenientes” dos alunos podem ser atribuídos a fatores externos à escola
(relações familiares, por exemplo) ou a fatores internos que envolvem a conduta do
1
Ana é um nome fictício escolhido para salvaguardar a identidade da criança.
103
professor, sua prática pedagógica e até mesmo práticas excludentes da própria
instituição.
Segundo Mello (2004), na prática pedagógica, pode surgir entre professor e
aluno, sentimentos de atração ou de repulsão. Essas atitudes sentimentais têm o
poder de influenciar a metodologia com risco de alterá-la, provocando no aluno
rudes transformações afetivas mais ou menos desfavoráveis ao ensino. Desta
forma, o autor afirma que caso não seja estabelecida uma relação afetiva entre
professor e aluno, é ilusão acreditar que o ato de educar tenha sucesso completo.
Ou seja, pode até haver algum tipo de fixação de conteúdo, mas não será uma
aprendizagem significativa, nada que prepare esse indivíduo para uma vida futura,
deixando lacunas no processo de ensino aprendizagem.
Na escola na qual realizamos o atendimento psicológico à queixa escolar, a
maioria dos profissionais atribuía a causa do comportamento “inconveniente” aos
alunos e às suas famílias. Inicialmente, em nenhum momento a escola,
representada por seu corpo docente e diretivo, demonstrou consciência de que seu
comportamento poderia contribuir ou até mesmo causar parte dessas dificuldades.
Sabemos que o papel do professor é indispensável na instituição, ele será o
mediador entre a escola e os alunos para que o desenvolvimento seja eficaz;
segundo Oliveira (2009), o professor é considerado o principal agente do processo
educacional, coparticipante e mediador da intervenção junto às dificuldades
escolares. Os inúmeros esforços no sentido de criar novas possibilidades de
interação entre alunos e escola sustentam-se sobre a intenção de que os docentes
estejam cada vez mais cientes das possibilidades e estratégias de trabalho que
podem adotar em prol do desenvolvimento e da aprendizagem de seus alunos. Para
tanto, a relação entre a afetividade e o trabalho docente configura-se como uma
relação necessária. Para que o professor consiga desempenhar satisfatoriamente
seu trabalho é preciso que seja estabelecida uma relação afetiva com seu aluno.
A relação afetiva entre professor e aluno foi um dos fatores que permitiu a
expressão do comportamento de Ana. Entendemos que se não existisse confiança
no ambiente escolar ela não se manifestaria do modo como fez e nesse caso não
teria recebido a atenção psicológica necessária para seu desenvolvimento.
104
A grande contribuição do psicólogo escolar reside nos bastidores da
instituição, isto é, sua ação deve desenvolver-se prioritariamente em parceria com
os professores (e não com os alunos), contribuindo para que estes estejam cada vez
mais fortalecidos e instrumentalizados para uma atuação de qualidade junto aos
alunos. Por isso, entendemos que é tão importante, em casos como o de Ana, a
complementaridade entre os atendimentos na área da psicologia institucionalescolar e a área da psicologia clínica.
O caso que vamos apresentar surgiu durante um projeto de intervenção
psicológica na escola, que envolvia diferentes atividades com a comunidade escolar
(professores, funcionários, alunos, pais), entre elas oficinas e plantões institucionais
realizados na própria escola, com o objetivo de criar um espaço para reflexão sobre
o cotidiano e construção conjunta de estratégias de enfrentamento. Além disso,
trabalhar os aspectos afetivos e emocionais envolvidos no processo de
aprendizagem dos alunos, fortalecendo-os internamente para que se percebessem
capazes de aprender e ajudando-os a recuperarem sua autoestima para que, assim,
pudessem apresentar melhores resultados em sala de aula. Da mesma forma, nosso
objetivo foi promover a reflexão sobre a importância do professor no processo de
aprendizagem dos alunos, estimular o trabalho dos professores e criar um espaço
para discussão e compartilhamento das práticas psicopedagógicas, principalmente
referentes ao manejo de comportamentos considerados como inadequados em sala
de aula, principal demanda desta instituição.
Em relação a essa demanda institucional, havia uma queixa relativa à
dificuldade da comunidade escolar em lidar com comportamentos dos alunos que
consideravam inadequados, ou “inconvenientes” – em outras palavras, existiam
questões de relacionamento que para eles pareciam insolúveis. Conforme o trabalho
foi sendo realizado e os vínculos estabelecidos, uma professora pediu orientação em
como lidar com Ana, uma aluna de seis anos que apresentava comportamento
compulsivo durante as aulas, esfregando-se continuamente na cadeira. De acordo
com a docente, outras professoras, a coordenação e a direção da escola já estavam
acompanhando o caso e ninguém sabia como proceder. A mãe de Ana tinha sido
ouvida pela diretora e revelado que o comportamento da filha se repetia também em
outros ambientes que ela frequentava.
105
Conversamos com as demais professoras, coordenadora, diretora, e
finalmente com a mãe de Ana, para melhor compreensão do que estava
acontecendo na escola e com a aluna. O que aquela criança estava querendo nos
dizer por meio daquele comportamento específico? Como a escola estava implicada
naquele comportamento individual?
A queixa escolar não dizia respeito ao processo de ensino e aprendizagem ou
relacionamento escolar da aluna: desde o inicio foi considerada pelos professores
como uma aluna afetiva e com bom relacionamento com os colegas e professores.
Mas o que perturbava a possibilidade de melhor desenvolvimento era o
comportamento masturbatório recorrente no cotidiano da escola e, segundo a mãe
da aluna, frequente também no ambiente familiar. Por isso, levantou-se a hipótese
de uma investigação clínica-individual para maior compreensão sobre os fatores
desencadeadores de tal comportamento.
Dessa forma, a partir de uma queixa escolar, passamos a realizar um
atendimento clínico caracterizado pela interação entre duas áreas de estágio:
escolar e clínica. Embora nossa preocupação fosse uma ação em psicologia que
envolvesse a compreensão da dinâmica das relações na escola e a construção
coletiva de estratégias para intervir na comunidade escolar como um todo, o
atendimento individual à aluna Ana surgiu como uma necessidade específica de
maior aprofundamento sobre as suas relações familiares que poderiam estar
desencadeando o comportamento de automanipulação na escola. A partir dessa
investigação clínica na escola poderíamos orientar os professores, bem como os
pais, em como intervir favoravelmente para o desenvolvimento psicológico dos
alunos.
Sendo assim, a demanda emergente era afetivo-relacional e precisava ser
investigada, implicando todos os envolvidos: a criança, seus pais e a própria escola.
Estava clara a existência de uma angústia da criança que demandava atenção
individualizada; os pais, pois são responsáveis pelo desenvolvimento da menina; e a
escola, pois era o cenário onde a queixa apresentava-se e era preciso orientar a
comunidade escolar sobre os melhores procedimentos a serem tomados em relação
à aluna e aos demais colegas de classe.
106
O comportamento de Ana fazia parte de um quadro geral de ansiedade
gerado pelas tensões emocionais às quais ela era constantemente exposta no
contexto familiar. Não existia em sua vida espaço para ser criança; a
espontaneidade típica da infância era contida, não podia existir.
Ana foi atendida na própria escola em que estuda pela dificuldade da mãe em
levar a menina para ser atendida no Serviço-Escola da Universidade. Como a
criança encontrava-se em processo de acentuado sofrimento psíquico, os
supervisores da área da psicologia institucional-escolar e da área da psicologia
clínica consideraram prudente que o atendimento fosse realizado, inicialmente, na
escola. Desde o início dos atendimentos, Ana apresentou grande necessidade de
controle e alguns comportamentos obsessivos relacionados a organização e
limpeza. Pudemos observar que apresentava alto nível de ansiedade associado à
ansiedade presente no ambiente familiar. Preocupava-se com os assuntos dos
adultos e parecia estar sempre em estado de alerta. Entendemos que esse
constante estado de alerta gerava tensão que precisava ser dissipada e isso parecia
acontecer por meio da masturbação, que no caso de Ana ainda não apresentava
uma conotação sexual consciente. Também existia uma superexcitação mental que
Ana tentava regular por meio de uma descarga física.
Ana mencionava preocupações sobre o relacionamento entre seu pai e sua
mãe que eram separados. Acreditamos que essa preocupação decorria do fato da
criança ouvir, sentir, enfim, viver o conflito entre os pais cotidianamente. Além disso,
Ana teve uma história de vida repleta de situações geradoras de ansiedade, desde o
momento em que foi gerada sem ser fruto de uma gravidez planejada; a separação
dos pais durante a gestação; seu primeiro ano de vida na casa da avó materna onde
dividiu a casa de um quarto com outros parentes adultos e crianças; o segundo e
terceiro anos de vida em que passou a viver com sua mãe e seu pai que reataram o
casamento; a nova separação entre os pais e o consequente retorno à casa da avó
materna com pouquíssima privacidade; o encontro com a nova esposa do pai e a
nova irmã por parte de pai; até o momento em que começamos nosso trabalho e
que a família parecia exigir que Ana lidasse com possibilidades de futuro geradoras
de ansiedade até mesmo em adultos, enquanto ela tinha apenas seis anos.
107
Durante os primeiros atendimentos observamos que Ana comportava-se
como
uma
pequena
adulta,
apresentava-se
constantemente
preocupada,
demonstrava pouca ou nenhuma espontaneidade, exprimia uma tensão constante,
relacionava-se com as pessoas a partir de uma aparente desconfiança, entretanto
com o passar dos atendimentos mostrou-se bastante sensível, capaz de gratidão,
inteligente e apresentou muitas potencialidades.
Depois do quinto atendimento, obtivemos um retorno por parte de sua
principal professora sobre a cessão de seu comportamento compulsivo. O rápido
retorno do trabalho realizado só foi possível, pois não houve individualização no
atendimento, ao contrário, a escola foi implicada no tratamento, bem como os pais.
Estes foram implicados como responsáveis pela construção do sintoma relacional,
parte da estruturação e dinâmica psíquica individual e familiar. A presença da mãe e
do pai de Ana em alguns dos atendimentos foi fundamental para que a
responsabilidade fosse devolvida a eles, aliviando por outro lado as preocupações e
a tensão de Ana.
A escola, por sua vez, entendida por nós como um espaço de acolhimento,
agiu como parceira no tratamento de Ana, pois entendeu seu papel na vida psíquica
dessa criança, passando a enxergar sua responsabilidade pela inclusão do
comportamento “inconveniente”, deixando o pensamento de que este deveria ser
expelido, ou seja, orientamos a escola em como lidar com os comportamentos
“inconvenientes” em especial o de Ana, e como acolher a angústia das crianças. O
professor como parceiro do psicólogo e com sua expertise torna-se um grande
aliado na construção de estratégias para o enfrentamento das dificuldades
encontradas no cotidiano escolar. Nesse sentido, não se trata do psicólogo ‘ensinar’
ao professor os procedimentos a serem utilizados, mas a ação conjunta que
possibilita a transformação do olhar e do fazer em Educação. Essa orientação
aconteceu de maneira bastante específica em contato direto e individualizado com
as duas professoras responsáveis pela turma em que a aluna estava; e de maneira
geral e em grupo, nas reuniões que envolveram a maioria dos professores da
escola.
Durante um ano esta escola recebeu atendimento psicológico às queixas
escolares e o referencial teórico que norteou as nossas ações foram fundamentadas
108
na psicologia sócio-histórica e psicologia crítica. Em relação aos atendimentos
clínicos foram realizados onze atendimentos na escola e embasaram-se nas teorias
de Freud, Klein e Winnicott que ajudaram na compreensão dos aspectos neuróticos
apresentados pela paciente, como seu comportamento controlador, repetitivo e
obsessivo; nas questões da sexualidade, dos instintos e da necessidade de
integração, no processo de desenvolvimento da criança, no aprimoramento do
processo psicoterapêutico, e como base para aplicação do jogo do rabisco.
Ao final do processo, houve a compreensão da mãe da criança sobre a
necessidade da continuidade do mesmo não mais no espaço escolar e sim em
consultório, mesmo porque na escola o comportamento masturbatório não mais
ocorreu. Sendo assim, ao final dos atendimentos na escola, Ana iniciou processo
psicoterapêutico e a cada sessão tem potencializado suas chances de conquistar
autonomia e bem estar, de modo a ter uma vida melhor, aprendendo a conviver com
estímulos geradores de ansiedade e tensão da melhor maneira possível,
proporcionando a si mesma a possibilidade de desfrutar das condições típicas da
vida infantil.
Como supervisores e formadores de futuros psicólogos, compreendemos a
formação em Psicologia a partir de ações integradas entre as várias áreas de
estágio, possibilitando com isso maior diálogo entre as psicologias e uma prática
psicológica socialmente mais útil.
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Sobre as autoras
Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira: Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (1986) e mestrado em Psicologia (Psicologia Social) pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998). Doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto
de Psicologia da USP/SP. Especialista em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae (1994).
Atualmente é professora adjunta da Universidade Paulista, realizando principalmente trabalhos
acadêmico-administrativos junto à Diretoria do Instituto de Ciências Humanas da UNIP. Tem
experiência na área de Psicologia, Psicanálise e Educação, com ênfase em aspectos relativos a
psicodiagnóstico, psicanálise infantil, psicanálise e cultura, representação social e saúde, assim como
sobre formação de psicólogos. E-mail : [email protected]
Mônica Cintrão França Ribeiro: Graduação em Psicologia pelo Instituto Unificado Paulista (1984).
Pós-Graduação em Psicopedagogia pela Universidade Paulista (1992). Mestrado e Doutorado em
Psicologia pelo Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano no Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (bolsa CAPES, 1997 e 2003). Professora Titular,
Supervisora de Estágio e Líder de disciplinas nos cursos de Psicologia e Pedagogia para o ensino
presencial e ensino à distância na Universidade Paulista. Pesquisadora e orientadora de pesquisa
discente da Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UNIP. Docente em cursos de PósGraduação em Psicopedagogia, Acupuntura, Formação do Professor para o Ensino Superior (UNIP e
INPG) e Alfabetização e Letramento (UNIFAI). Líder do Grupo de Pesquisa Psicologia e Saúde
(CNPq/UNIP). Membro do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas e Gestão em Práticas Educativas
(UNIP/CNPq). Membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, e do Grupo
Interinstitucional Queixa Escolar GIQE. Possui experiência em pesquisa e intervenção na área da
Psicologia Escolar e Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: processos e
problemas de escolarização, formação do psicólogo, formação de professores, políticas públicas em
educação. E-mail: [email protected]
Nádia Giuliese: Graduada em letras, com habilitação em linguística e português pela USP.
Atualmente estuda psicologia na Universidade Paulista. Escritora. Autora de livros infanto-juvenis.
Tem experiência em gestão de negócios, clínica de carreira, orientação de carreira e educação. Email: [email protected] ou [email protected]
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REFLEXÕES ACERCA DA RELEVÂNCIA SOCIAL-COMUNITÁRIA DAS
RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS EM SAÚDE
Leonardo Lopes da Silva
Desde sua implementação, as Residências Multiprofissionais em Saúde
(RMS) tem se mostrado como locus produtivo para formação em serviço dos
profissionais da área, possibilitando resgatar o olhar multidisciplinar sobre o
processo saúde-doença na sua concepção mais ampla. A participação dos
psicólogos nesta formação garante ao profissional o desenvolvimento de habilidades
e competências tão caras à própria psicologia, quanto ao pleno alcance dos
objetivos da Saúde: atuação em equipe; visão integral do indivíduo; desenvolvimento
de ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde física,
psicológica e psicossocial; além de estratégias de enfrentamento multidisciplinar do
fenômeno saúde-doença. Para que estes potenciais sejam alcançados, entretanto, a
qualificação dos programas de RSM, bem como a articulação entre instituições
formadoras e comunidade precisam ser, constantemente, avaliadas e reavaliadas.
As RSM têm trazido um caráter inovador no cenário da atuação em políticas
públicas já consolidadas como a Estratégia de Saúde da Família e os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS). Todavia, acredita-se que muitos outros espaços
possam e devam ser ocupados de maneira maciça e para tanto, novas articulações
entre comunidade, instituições formadoras e profissionais residentes devem ser
pensadas e propostas. Conclui-se que as RSM têm potencial para além do que já
vem ocorrendo, especialmente nas políticas públicas em saúde, mas devem
articular-se e rearticular com novas demandas sociais e comunitárias, bem como
reavaliar e ampliar suas estratégias de qualificação.
Em Psicologia sabemos que a atuação do profissional psicólogo raramente é
isolada. Salvaguardando-se a clínica tradicional, o psicólogo tem o grande desafio
de articular-se com outros campos do saber sobre o humano e com outros
profissionais das mais distintas áreas. Nas principais políticas públicas, por exemplo,
Saúde, Educação e Assistência Social, o psicólogo é levado cotidianamente a
articular seus conhecimentos específicos da ciência e prática psicológica com
113
conhecimentos e práticas específicas da Medicina, da Pedagogia, do Serviço Social,
do Direito, da Sociologia, entre tantos outros. No setor privado, encontramos poucas
diferenças neste aspecto, se pensarmos a Gestão de Pessoas (ou no termo mais
conhecido como Recursos Humanos) como campo necessariamente multidisciplinar
de atuação dentro das empresas, ou ainda se pensarmos no Esporte Profissional, as
mesmas articulações se fazem necessárias.
A partir disso, podemos verificar que as Residências Multiprofissionais em
Saúde (RMS) apresentam-se como estratégias de formação em serviço eficazes na
tarefa de auxiliar o profissional psicólogo a compreender os fenômenos envolvidos
no processo de prevenção e reabilitação de saúde, tanto nos seus aspectos físicos,
quanto psicossociais. Este espaço privilegiado de formação, entretanto, carece de
várias articulações necessárias para atender as demandas cada vez mais
complexas da comunidade. A formação generalista preconizada pelas Diretrizes
Curriculares Nacionais em Psicologia (MEC, 2011) deixa-nos claro que o profissional
psicólogo, desde a graduação, deve compreender e muitas vezes articular
conhecimentos de diversas naturezas e práticas de diversos campos profissionais
com o fazer psicológico. Mas sabemos, como formadores, supervisores de estágio e
coordenadores de serviços-escola que esta tarefa apresenta-se como um esforço
hercúleo, dadas as realidades regionais e especificidades de cada instituição
formadora.
Cabe dizer, neste ponto, que a RMS cumpre um papel que toda a formação
em Psicologia deveria promover: desenvolvimento de competências para atuação
em equipe multidisciplinar; visão integralizada do indivíduo; elaboração de
estratégias de prevenção e promoção da saúde física e mental, entre outras. O que
precisamos chamar a atenção é que estas competências deveriam ser
“aprimoradas” durante a RMS, mas o que vemos acontecer, muitas vezes, é que
apenas na residência é que o já formado profissional de Psicologia terá a
oportunidade de desenvolver tais habilidades e competências. O tom provocador
desta reflexão é necessário para repensarmos não só estratégias de qualificação
dos programas de RMS, mas também a formação inicial dos psicólogos e como ela
articula-se com este segundo momento de formação profissional.
114
Na outra ponta, temos as demandas para este profissional da RMS: as
políticas públicas em saúde, especificamente a Estratégia Saúde da Família (ESF) e
os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em suas mais diversas modalidades,
necessitam de profissionais com este perfil. Outras articulações necessárias
apresentam-se, renovam e ampliam-se a cada instante: saúde indígena (CASAI),
saúde do trabalhador (CEREST), saúde do homem, do idoso etc. Sabemos,
entretanto, que a rede privada acaba absorvendo boa parte dos contingentes
profissionais egressos das RMS, supondo que os psicólogos estejam inclusos neste
bojo. Com isso, não pretendemos levantar a bandeira contrária ao setor privado em
detrimento do Sistema Único de Saúde (SUS), mas dedicar uma especial atenção às
implicações de uma formação tão qualificada, direcionada a apenas um setor.
E como não poderíamos deixar de citar, as instituições formadoras exercem
um papel primordial não só na idealização dos programas de RMS, mas também na
possível e necessária articulação entre estes e a comunidade. Cada realidade
regional traz suas peculiaridades e isto é critério básico para a elaboração de um
programa de RMS. Entretanto, novas demandas surgem, refinam-se, tornam-se
prioridade em algum momento e por este motivo, uma readequação de propostas
muitas vezes faz-se necessária. Vivemos num mundo dinâmico, onde inovações
tecnológicas e sociais surgem a todo instante e com isso, novas demandas
ampliam-se, intensificam ou priorizam-se. Não podemos abraçar o mundo com todas
as suas demandas, mas o vislumbre de rearticulação, de requalificação do trabalho
sempre se faz presente e necessário. Por isso, nossos residentes precisam também
ser capacitados para a flexibilidade, para a rearticulação de estratégias, para a
inovação frente aos novos desafios.
Um outro ator neste cenário é também o Sistema Conselhos de Psicologia,
que vem articulando-se com diversas esferas públicas a fim de qualificar a discussão
sobre as RMS, o papel do psicólogo neste contexto e as novas demandas para a
área. Cumpre dizer que a preocupação com a ampliação dos espaços de inserção
do psicólogo, bem como dos egressos dos programas de RMS tem sido uma das
temáticas trabalhadas e que tem a intenção maior de ampliação do serviço prestado,
com qualidade e respeito às especificidades de cada população, como preconiza a
Portaria 1.820/2009 do Ministério da Saúde, que dispõe sobre os direitos dos
115
usuários dos serviços de saúde, bem como nosso próprio Código de Ética
Profissional (CFP, 2005).
Estas e muitas outras reflexões fazem-se necessárias e urgentes num
momento em que a saúde pública enfrenta tantos embates, onde os princípios da
saúde coletiva são tão caros para a efetiva ampliação e qualificação dos serviços
prestados e num momento em que a Psicologia apresenta-se dentro das políticas
públicas com cada vez mais força.
Palavras-chave: Residência multiprofissional em Saúde; Formação em Psicologia;
Políticas públicas em Saúde; Saúde comunitária.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria 1820 de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre
os direitos e deveres dos usuários dos serviços de saúde. Diário Oficial da
União: Brasília, 2009.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação.
Resolução 05 de 15 de março de 2011. Institui as Diretrizes Curriculares
Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, estabelecendo normas
para o projeto pedagógico complementar para a Formação de Professores de
Psicologia. Imprensa Oficial: Brasília, 2011.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional dos
Psicólogos. Brasília, 2005.
LIMA, M.; ARAÚJO, D. Politização e formação em serviço: significados e sentidos
atribuídos pelos residentes em uma residência multiprofissional em saúde
mental na Bahia. Psicologia: Teoria e Prática – 2011, 13(3), 67-80.
NASCIMENTO, D. P. G. A residência multiprofissional em saúde da família como
estratégia de formação da força de trabalho para o SUS. Dissertação
(Mestrado). Escola de Enfermagem. Universidade de São Paulo, 2008, 142f.
Sobre o autor
Leonardo Lopes da Silva: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) – Campus Vitória
da Conquista – Faculdade Guanambi.
116
A MULTIPROFISSIONALIDADE NA FORMAÇÃO E NA PÓS-GRADUAÇÃO EM
PSICOLOGIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE
Leonardo Lopes da Silva
Sabemos que a Psicologia no Brasil, tanto quanto em outras partes do
mundo, tem consolidado o seu fazer e suas práticas ao redor de problemas de
origem e solução múltiplas. Isto equivale a dizer que na atualidade a Psicologia não
se configura mais como ciência e profissão isolada, mas é um dos olhares a serem
lançados sobre os diversos fenômenos existentes, seja na busca das causas como
das resoluções.
Dessa maneira, costumo transmitir sempre aos meus alunos de graduação
em Psicologia, sobretudo aos estagiários, que o trabalho do psicólogo jamais se dá
de maneira isolada, pois seja nas escolas, nos departamentos de gestão de
pessoas, nos fóruns, nos hospitais ou outros ambientes clássicos ou emergentes de
atuação, os serviços psicológicos prestados sempre estarão em diálogo com outros
saberes e outras profissões. A indagação mais comum a esta afirmação é: mas e o
trabalho do psicoterapeuta, o psicólogo clínico?
Há sempre um espanto ao expor que mesmo o trabalho do psicólogo clínico,
aparentemente isolado e sem vinculação com outro profissional, costumeiramente
está perpassado sim por estratégias de diálogo, muitas vezes mais interna à
profissão. É fato que uma grande parcela de psicólogos clínicos, mesmo depois de
anos de formado, continua a fazer supervisão, ainda que esporádica, para discutir os
casos atendidos. É muito comum também a formação de grupos de discussão de
casos entre psicólogos clínicos. Sem contar quando as várias áreas de atuação
dentro da Psicologia dialogam-se por meio de profissionais distintos para a solução
de determinadas questões: o psicólogo escolar fazendo encaminhamento para o
psicoterapeuta e vice-versa, ou o neuropsicólogo, o orientador profissional etc. E
ainda numa digressão maior um pouco, mesmo quando o psicoterapeuta é também
terapeutizado, muito do seu fazer é debatido com o outro colega que o está
atendendo.
117
A conclusão que podemos chegar é que de forma alguma o trabalho do
psicólogo hoje pode ser considerado isolado, descolado da intersecção entre outros
saberes, outros profissionais de dentro ou de fora da Psicologia. Ouso afirmar que a
atuação do psicólogo dá-se essencialmente em contextos multiprofissionais, sem
exceções.
A multiprofissionalidade na graduação em Psicologia
Muitos
avanços
na
formação
em
Psicologia
ocorreram
desde
a
regulamentação da profissão e dos cursos de graduação em 1962. O órgão máximo
da normatização da profissão no país, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) foi
criado, o Ministério da Educação (MEC) promoveu diversas reformas no ensino
superior, da qual destacamos as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os
cursos de Psicologia (MEC/CNE-CES, 2004/2011), entre outras.
A consolidação dos Serviços-Escola de Psicologia como lugar de formação
privilegiado para os estágios curriculares, e a constante atualização em temos de
sua regulamentação e normatização, foram sem dúvida um dos maiores avanços
que podemos citar na área.
Porém, cabe aqui uma indagação: qual o espaço para o desenvolvimento de
habilidades e competências no tocante ao trabalho em equipe multiprofissional? A
resposta parece óbvia se pensarmos que temos todo o Sistema Único de Saúde
(SUS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Sistema Judiciário, só
para citar alguns, como campos de excelência para a realização de práticas de
estágio. Infelizmente, a realidade mostra que na maioria das vezes, vários entraves
fazem com que não seja possível a concretização de ações de formação nesses
espaços, sejam estes entraves de ordem burocrática ou mesmo de acesso, uma vez
que nem todas as regiões do país dispõem de órgãos e serviços dessa natureza.
Nos grandes centros, vemos uma disputa de espaço pelas diversas instituições de
ensino, e nas regiões mais afastadas, a ausência de espaços a serem ocupados.
Assim sendo, retomamos a ideia de que os Serviços-Escolas de Psicologia
deveriam ser os espaços onde estas práticas profissionais pudessem ser
organizadas e aprendidas. Entretanto, estamos falando de um serviço voltado para a
118
questão da formação técnica em Psicologia, ainda compartimentada e especializada
num único campo do saber, uma realidade que não é exclusiva da Psicologia. Como
afirma Guareschi e colegas (2011)
A formação de profissionais na área da saúde, na qual também se
encontra a Psicologia, ainda se volta para a abordagem clássica, em
que o ensino é tecnicista, preocupado com a sofisticação dos
procedimentos e do conhecimento dos equipamentos auxiliares do
diagnóstico, tratamento e cuidado, e organizado por áreas de
especialidade (p. 179).
Mas será que é preciso ser assim? Os relatos de alunos egressos deste
modelo de formação em Psicologia a partir das DCNs apontam claramente que o
mercado de trabalho e as demandas da prática profissional muito pouco se
assemelham ao que tem sido feito nos Serviços-Escola, sobretudo no que tange à
atuação em equipe multiprofissional.
De fato, o que vemos ocorrer é uma ação formadora de determinado ponto de
vista incoerente com o que é apregoado pela própria legislação na área de formação
em Psicologia.
A exemplo disso, em seu artigo 3º, inciso III, as Diretrizes Curriculares
Nacionais para os Cursos de Psicologia (MEC/CNE-CES, 2011) preconizam que,
entre outros aspectos, a formação em Psicologia deve ser pautada pelo
reconhecimento da diversidade de perspectivas necessárias para
compreensão do ser humano e incentivo à interlocução com campos
de conhecimento que permitam a apreensão da complexidade e
multideterminação do fenômeno psicológico (p. 19).
Ao incluirmos disciplinas de outras Ciências Humanas como Filosofia,
Sociologia e Antropologia, das Ciências Biológicas como Anatomia, Genética,
Neurofisiologia ou mesmo das Ciências Exatas como Informática e Estatística,
acreditamos que já estamos contemplando este quesito em nossos cursos de
Psicologia. A meu ver, estamos cometendo um equívoco ao pensarmos assim, pois
estas disciplinas, que em geral estão nos primeiros semestres dos cursos, são de
119
embasamento para outros tipos de habilidade pertinentes a atuação em Psicologia e
por si só não garantem o incentivo à interlocução com outros campos do
conhecimento ou com outros saberes profissionais que auxiliem não só a
compreensão, mas o tratamento e mesmo a prevenção de problemáticas ligadas a
diversos fenômenos psicológicos em todas as áreas, mas principalmente em
Educação, Saúde, Assistência Social ou Justiça.
Importante ressaltar, neste momento da reflexão proposta por este texto, de
que não se está fazendo a defesa da inclusão de conteúdos ou novas disciplinas
que abarquem conhecimentos de multiprofissionalidade. Entretanto, é preciso
reconhecer que a realidade dos cursos de Psicologia tenta, por esta via, dar conta
da problemática, trazendo com certeza resultados positivos para a formação, mas
não necessariamente com relação à capacidade de atuação em contextos
multiprofissionais e de forma multiprofissional. Destaca-se a inclusão de disciplinas e
conteúdos ligados aos Direitos Humanos, às Políticas Públicas, à Reforma
Psiquiátrica, entre outras tantas. Infelizmente, é prudente analisar que estamos
ainda falando de conteúdos que apesar de levarem os alunos a reflexões
importantes e pertinentes a outros campos profissionais e fazeres, ainda não chega
sequer próximo do ideal de preparar o estudante de Psicologia para a
multiprofissionalidade.
A reflexão que se faz necessária é que a capacidade de atuação em equipe
multiprofissional (e com o olhar da multiprofissionalidade) sobre um determinado
fenômeno não se trata apenas de conteúdos ou disciplinas específicas, nem mesmo
a abertura de um estágio específico para lidar com a questão, o que via de regra
seria excessivamente complexo de concretizar-se. A discussão que precisamos
fazer, enquanto formadores de novos profissionais de Psicologia, é qual a
contribuição que determinada disciplina, determinado estágio ou determinado projeto
de extensão é capaz de promover para a formação multiprofissional do aluno. A
forma como lidamos com a questão, como a apresentamos aos alunos e a maneira
como organizamos as atividades práticas (sejam estágios, atividades de extensão
ou outras) nos parece ser o ponto de partida para alcançar resultados válidos em
relação a esta demanda, mas este é apenas o começo da discussão sobre o
assunto.
120
Depois de formado: o desafio da atuação multiprofissional
Como já explanado anteriormente neste texto, após a graduação, os egressos
de Psicologia deparam-se com um mundo no qual médicos, pedagogos, advogados,
administradores, assistentes sociais são seus pares no planejamento, execução e
avaliação de ações, não mais “colegas psicólogos” como nos Serviços-Escola. E,
nos relatos desses alunos, não se trata simplesmente de uma incongruência ou
distanciamento entre teoria e prática, mas algo mais complexo: uma distinção clara
entre prática de formação e prática profissional.
Para tentar sanar um pouco desta questão, vemos ocorrer um fenômeno
interessante entre os egressos de Psicologia: a busca constante por espaços de
formação,
agora
pós-graduada,
onde
estas
habilidades
e
competências
multiprofissionais possam ser desenvolvidas ou aprimoradas.
Dados
da
Fundação
do
Desenvolvimento
Administrativo
(FUNDAP)
divulgados durante um evento em parceria com o Conselho Regional de Psicologia
de São Paulo (CRP/06) indicavam que 40% dos profissionais que ingressam numa
das 3 mil vagas dos Programas de Aprimoramento Profissional 2 (PAP) no estado de
São Paulo eram psicólogos (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, 2009).
Ainda que estes dados não sejam tão recentes, a estimativa é que o percentual
possa ter aumentado, em função do crescimento do número de cursos de Psicologia
no estado, numa proporção maior do que outros cursos da área da saúde.
Uma hipótese interessante que justifica a alta procura de psicólogos por
esses programas é que durante este período de aprimoramento o egresso de
Psicologia vivencia uma prática protegida, ainda que já seja um profissional
legalmente apto para atuar. Ainda mais, a formatação de tal programa possibilita-o
integrar, quase que compulsoriamente, os conhecimentos da Psicologia com as
2
O Aprimoramento Profissional é uma modalidade de formação em serviço destinada a
profissionais da área da Saúde (exceto médicos) na qual o aprimorando permanece durante 12 a
24 meses em atuação em serviços de saúde integrados aos SUS, em geral de alta complexidade,
trabalhando 40 horas semanais em equipe multiprofissional e sob a supervisão de um outro
profissional da saúde qualificado (FUNDAP, 2007). Estes aprimorandos recebem uma bolsa
financiada pelo Estado de São Paulo, única unidade da federação que possui este programa.
121
outras áreas de saber, uma vez que necessariamente em sua equipe estarão
presentes profissionais das mais diversas áreas da saúde, também empenhados em
constante processo de diálogo com a Psicologia e as outras áreas.
A reflexão que tange esta realidade nos parece bem nítida: para atuar no
campo da saúde coletiva, o profissional recém-formado percebe a necessidade de
desenvolver habilidades e competências que estão para além do que foi propiciado
na graduação em Psicologia, especificamente durante os estágios curriculares no
Serviço-Escola. Dentre estas, a capacidade de atuação em equipe multiprofissional
parece-nos a mais relevante e coerente. Pois de outra forma, outras modalidades de
pós-graduação na área da saúde poderiam ser privilegiadas. Entretanto dados do
MEC indicam que o maior contingente de cursos de especialização em Psicologia
concentra-se na área clínica. Obviamente este dado por si só não esclarece que
existam mais psicólogos preferindo uma especialização neste campo, mas se
confrontarmos esta informação com os dados do CFP com relação à requisição de
títulos de especialista na área clínica, veremos que esta hipótese ganha maior
consistência, uma vez que a maioria esmagadora de títulos concedidos concentramse nesta área.
Isto posto, pode-se conjecturar que pelo menos no estado de São Paulo, a
tendência dos egressos que desejam atuar na saúde coletiva parece inclinar-se
fortemente para os Programas de Aprimoramento Profissional, espaços onde a
consolidação da capacidade de diálogo e interlocução com outros campos da saúde
faz-se cotidiana.
Multiprofissionalidade por excelência: as Residências Multiprofissionais em
Saúde
Num panorama mais nacional, vemos que um outro locus possível para o
desenvolvimento das habilidades e competências necessárias para a atuação
multiprofissional vem delineando-se fortemente na última década, a partir da
consolidação das Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS).
As RMS configuram-se como um programa de formação em serviço que se
destina a preparar os profissionais das diversas áreas da saúde para atuarem em
122
equipes multidisciplinares, com enfoque prioritário na Estratégia de Saúde da
Família (ESF), seguindo as diretrizes e princípios do SUS (Ministério da Saúde,
2006).
Mesmo sem dados que detalhem especificamente quantos psicólogos
engajam-se nos diversos programas de RMS por todo o país, sabe-se que a
destinação de vagas em cada um desses programas sempre contempla a
Psicologia, o que sugere que 20% a 30% das RMS possuem psicólogos atuando.
Cada programa de RMS possui características próprias com relação à ênfase
oferecida, a quantidade de profissionais em cada equipe de residentes, qual o locus
de atuação (se atenção básica, se serviços de referência, se serviços de alta
complexidade etc.) e quais as atividades traçadas junto aos tutores (de formação em
várias áreas da saúde) e os preceptores (de formação específica do residente).
Porém, as diretrizes básicas são semelhantes, sendo traçadas pelo Ministério da
Saúde através de Portarias e Resoluções, e acompanhadas, avaliadas e debatidas
pela
Comissão
Nacional
de
Residências
Multiprofissionais,
formada
por
representantes de diversas entidades e órgãos ligados às profissões de saúde.
Nesses espaços de formação pós-graduada, os profissionais dedicam cerca
de 60h semanais à vivência em Unidades Básicas de Saúde, Centros de Atenção
Psicossocial, Estratégia de Saúde da Família (bem como Núcleos de Apoio à Saúde
da Família), além de hospitais e ambulatórios. A atuação com a tutoria e a
preceptoria garante uma ação supervisionada e de certo modo também protegida.
Aqui vemos o profissional mais uma vez em busca de um aprimoramento das suas
competências para o trabalho em equipe multiprofissional, de modo a qualificar-se
para o ingresso e permanência em serviços de saúde.
A motivação do Ministério da Saúde é clara na explicitação dos objetivos da
RMS, qualificar os recursos humanos para a atuação no SUS. Mas qual é a
motivação dos residentes psicólogos especificamente? Uma das hipóteses
novamente é a procura por um espaço acolhedor, como o Serviço-Escola, tutelado,
onde sua capacidade de atuação multiprofissional possa ser exercida, treinada,
qualificada, aprendida. Por mais que se trate de uma conjectura ainda sem dados
estatísticos relevantes que a comprovem, alguns dos relatos já descritos nas
123
publicações da área, como por exemplo Mendes e colegas (2011) assim como Lima
e Araújo (2011), sugerem que esta hipótese não está nada longe da realidade.
Entretanto, assim como no Aprimoramento Profissional, as RMS enfrentam as
problemáticas de formações compartimentadas, além de visões ainda biologicistas
dos fenômenos saúde-doença que acabam apenas por se somar às dificuldades
ligadas à falta de preparo dos profissionais em atuarem multiprofissionalmente,
como também apontam, entre outros, Lima e Araújo (2011).
A crítica posta aqui é simples: o espaço para atuação em equipe
multiprofissional encontra no relato dos formadores e residentes, dificuldades para
se efetivar como multiprofissional. Hipótese a ser facilmente delineada: sem a
proposta multiprofissional na graduação, a pós-graduação encontra dificuldades
patentes de dar conta de superar isto em tão pouco tempo e sem os recursos
presentes na formação inicial.
Os desafios para a multiprofissionalidade em Psicologia: alguns apontamentos
Como o exposto brevemente até aqui, seja na graduação, seja na pósgraduação, vemos a multiprofissionalidade ser buscada mas dificilmente alcançada,
pelo menos plenamente. Os exemplos apontados fazem referência somente à área
da Saúde. Mas o que dizer da atuação multiprofissional em Educação? Qual o
espaço qualificado para a formação em serviço do psicólogo para atuar junto ao
pedagogo,
aos professores
das mais diversas
licenciaturas
e
áreas do
conhecimento, nos mais diversos graus e modalidades de ensino?
Esta mesma reflexão leva-nos a pensar como poderia dar-se uma formação
em serviço para a atuação no SUAS? A diversidade profissional aqui se expande,
tendo assistentes sociais, pedagogos, advogados e sociólogos como “pares” do
profissional psicólogo. E na Justiça? E na área Organizacional? É de se supor que a
mesma análise seja pertinente.
Dessa forma, pensar que apenas na pós-graduação a multiprofissionalidade
pode ser buscada, à critério do egresso de Psicologia, restringe e desqualifica a
responsabilidade da graduação neste processo, visto que não há abrangência de
124
todas as áreas de locus específico para a formação em serviço, num contexto de
equipe multiprofissional.
Algumas reflexões possíveis podem delinear-se, não pretendendo aqui
sugerir fórmulas mágicas ou mesmo padrões de formação que possam ser
replicados em todas as realidades e contextos onde os cursos de Psicologia estão
inseridos.
Um primeiro aspecto a se pensar é que a multiprofissionalidade não se trata
simplesmente de aprender-se a trabalhar com profissionais de outras áreas além da
Psicologia. Para isso, a proposta de Peduzzi (1998) apresenta-se como
extremamente relevante e coerente, ao postular que o trabalho multiprofissional
configura-se como uma modalidade de atuação coletiva em que o diálogo e a
interação são instrumentos fundamentais para a compreensão das realidades e
resolução de problemáticas atinentes a estas realidades.
Assim sendo, muito mais do que aprender a trabalhar com o médico, o
advogado ou o administrador, o aluno de Psicologia precisa compreender como
dialogar com outra área do conhecimento que não a sua, como contribuir com o
olhar da ciência psicológica sobre determinado fenômeno e como ouvir e decodificar
a contribuição de outra área do saber sobre sua prática e sobre sua própria
compreensão da realidade em pauta.
A pergunta que mais um supervisor de estágio pode fazer-se, ou que um
docente coordenador de um projeto de extensão pode indagar-se é: como posso
criar um ambiente no qual estas habilidades e competências possam ser
desenvolvidas? Se minha instituição, ou mesmo minha região, não dispõe de
profissionais que possam auxiliar na concretização de ações que facilitem o
desenvolvimento da multiprofissionalidade?
Criatividade, perseverança e até uma dose de sorte podem ser necessárias
para se criarem espaços, situações e acesso a contextos onde a questão da
multiprofissionalidade possa operar. Listaremos algumas possibilidades aqui, mas
novamente reforçando que não há a intenção de criarem-se modelos e fórmulas de
atuação.
No caso de instituições com diversos cursos, a organização de supervisões
“intercursos” pode ser uma estratégia interessante. Estando o sigilo ético
125
resguardado, a apresentação e discussão de um caso, partilhando-se as opiniões e
contribuições de alunos de Enfermagem, Medicina, Pedagogia, Fisioterapia ou
Farmácia, pode conseguir-se desde um primeiro momento, a reflexão de que o olhar
do outro, “de fora”, automaticamente age sobre o que eu penso ter certeza sobre o
assunto e paulatinamente seja revisto ou apenas questionado. Quando falamos em
“caso”, ampliamos para quaisquer situações que problematizem uma realidade e
exijam algum tipo de solução conjunta. Assim sendo a indisciplina numa sala de
aula, a falta de motivação de funcionários numa empresa, ou os conflitos gerados
pelos pais para conseguir a guarda do filho numa separação judicial, podem ser
trabalhados como “casos”. Obviamente não apenas de alunos estagiários de outros
cursos estas supervisões “multi” podem ser organizadas: outros professores e
profissionais da área convidados também podem cumprir o mesmo papel.
Importante ressaltar que quanto mais real a situação-problema colocada em
pauta, em termos de ser um caso realmente sendo atendido por um estagiário,
maior a dedicação dos outros estagiários/convidados na discussão.
Obviamente esta é uma estratégia de caráter esporádico, que pode ser
utilizada na busca da construção de um ambiente que auxilie o aluno estagiário no
desenvolvimento
de
habilidades
que
possibilitem
sua
compreensão
da
multiprofissionalidade e ajudem na constituição de uma atitude multiprofissional.
Na ausência ou inviabilidade total de reunir-se com estagiários de outros
cursos, ou outros professores/profissionais de outras áreas, a leitura e discussão
conjunta de relatos de caso elaborados por profissionais não-psicólogos pode ser
uma estratégia auxiliar com os mesmos objetivos. O diálogo com o “papel” não é tão
enriquecedor quanto com outro estagiário/profissional, mas pode auxiliar no
desenvolvimento das mesmas competências.
Assim sendo, prontuários adaptados para se resguardar o sigilo, relatórios de
intervenção (clínica ou de qualquer natureza), receituários, planos de ensino,
diagnósticos organizacionais, enfim, toda e qualquer produção realizada com fins
interventivos por outros profissionais, sejam médicos, pedagogos, advogados,
administradores, podem auxiliar os alunos estagiários a buscarem maiores
conhecimentos sobre a área para entender a “lógica” utilizada por aquele
profissional não-psicólogo. Uma segunda etapa necessária, neste caso, seria o
126
exercício de produzir uma “resposta” ao material analisado, como forma de tentar
produzir um diálogo com a outra área do conhecimento.
A estratégia didaticamente mais enriquecedora, porém mais complexa de ser
organizada e implementada, seria a atuação conjunta de estagiários de diversas
áreas, preferencialmente no ambiente controlado do Serviço-Escola. Alunos de
Medicina, de Pedagogia, de Direito, de Serviço Social, por exemplo, poderiam fazer
uma entrevista conjunta e depois analisar conjuntamente os dados coletados,
apresentando e discutindo tudo posteriormente numa supervisão ampliada. O
planejamento e a execução de um treinamento num ambiente organizacional, de
uma palestra de educação em saúde, ou de acolhimento de uma demanda social,
todas são situações multiprofissionais em que a atuação conjunta, seguida de
debate e análise dos olhares múltiplos mostra-se como estratégias eficazes em
busca da construção da atitude multiprofissional.
À guisa de conclusão, precisamos ressaltar que todas estas estratégias são
meras ilustrações, mas que devem levar ao questionamento: como o curso onde eu
atuo como docente/supervisor de estágio tem lidado com a questão da
multiprofissionalidade? Que estratégias seriam possíveis diante da realidade da
minha instituição ou região? Qual o potencial da minha disciplina ou estágio para
colaborar com a formação de profissionais de Psicologia preparados suficientemente
para atuar em contextos multiprofissionais?
Se este texto trouxe estas indagações à tona, mesmo antes de serem feitas,
com certeza seu papel já foi cumprido. Caso não tenha, fica por fim a reflexão de
que a Psicologia precisa superar a visão compartimentada do fenômeno humano,
pois em qualquer área que nós psicólogos atuemos, devemos estar cientes de que é
parte da compreensão e que as outras partes precisam ser conhecidas e entrar em
diálogo, pois caso contrário, nenhuma resolução eficaz poderá ser alcançada.
Por outro lado, se enquanto formadores de futuros profissionais não tivermos
em mente esta e outras preocupações ligadas à prática profissional futura de nossos
alunos/estagiários, nosso papel terá sido apenas de reprodutores e transmissores
tecnicistas. Mesmo que seja este o caso, tenho a crença de que esta fase da
Psicologia está em franco declínio e em breve deverá ser superada. Por isso
continuo psicólogo e docente.
127
Referências
FUNDAÇÃO
PARA
O
DESENVOLVIMENTO
ADMINISTRATIVO
(FUNDAP).
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administrativas. Imprensa Oficial do Estado: São Paulo, 2007.
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Interna sobre Especialização, Aprimoramento, Residência em Psicologia e
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LIMA, M.; ARAÚJO, D. Politização e formação em serviço: significados e sentidos
atribuídos pelos residentes em uma Residência Multiprofissional em Saúde Mental
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MENDES, L.C. e col. Relato de experiência do primeiro ano de residência
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MINISTÉRIO
DA
EDUCAÇÃO
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CONSELHO
NACIONAL
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Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Graduação em
Psicologia. Diário Oficial da União, Brasília, 18 de maio de 2004, Seção 1, p. 16-17.
MINISTÉRIO
DA
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CONSELHO
NACIONAL
DE
EDUCAÇÃO; CÂMERA DE ENSINO SUPERIOR. Resolução nº 05 de 15-03-2011.
Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em
Psicologia, estabelecendo normas para o projeto pedagógico complementar para a
Formação de Professores de Psicologia. Diário Oficial da União, Brasília, 16 de
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MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria da Gestão do Trabalho e da Educação em
Saúde.
Departamento
de
Gestão
da
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Residência
Multiprofissional em Saúde: experiências, avanços e desafios. Brasília, 2006.
128
PEDUZZI, M. Equipe multiprofissional de saúde: a interface entre trabalho e
interação. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do
Departamento de Medicina Preventiva e Social. Universidade Estadual de
Campinas. Campinas-SP, 1998.
SPINK, M. J. Psicologia social e saúde: práticas, saberes e sentidos. Rio de Janeiro:
Vozes, 2003.
Sobre o autor
Leonardo Lopes da Silva: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) – Campus
Vitória da Conquista – Faculdade Guanambi.
129
ESTÁGIO EM PSICOLOGIA ESCOLAR: COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO3
Marilda Gonçalves Dias Facci – UEM4
Introdução
O Conselho Federal de Psicologia lançou, em 2013, uma Carta de
Serviços sobre Estágio e Serviços-Escola para atuar como referência e orientar a
atividade de estágio nas instituições de Ensino Superior. Neste documento, é
estabelecido que os estágios têm por finalidade “[...] desenvolver a aprendizagem
profissional e sociocultural da(o) estudante sob a responsabilidade e coordenação
da instituição de ensino” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013, p. 8). Fica
evidente para nós que se trata de uma aprendizagem que envolve tanto os aspectos
específicos da profissão como uma compreensão da realidade social em que a
prática é desenvolvida.
No caso deste texto, vamos centrar-nos a respeito do estágio na área de
Psicologia Escolar e Educacional. Nosso objetivo é discorrer sobre o compromisso
ético e político com a formação do profissional e seu envolvimento com a
comunidade, no âmbito da Psicologia Escolar, tendo como referência os
pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural. Interessa-nos, ainda, relatar a forma
como desenvolvemos o estágio na Universidade Estadual de Maringá, instituição na
qual trabalhamos.
Desde 1988, trabalhamos na área de Psicologia Escolar: nos primeiros
dez em uma instituição de Ensino Superior, voltada para a formação do psicólogo
que pretende trabalhar no âmbito escolar. Desde nosso ingresso na universidade,
temos atuado no componente curricular Formação Profissional em Psicologia
Escolar e observado as dificuldades que os acadêmicos têm em compreender como
deve ser a intervenção neste campo da Psicologia. Constatamos também quão
complexa é a tarefa de supervisão de estágio, visto vivermos em uma época em que
3
As discussões deste texto foram apresentadas no 21º Encontro de Serviços-Escolas do Estado de
São Paulo e 4º Encontro Nacional de Supervisores de Estágio, realizado em Campinas em 2013.
4
Doutorado em Educação Escolar pela UNESP – Araraquara, Pós-Doutorado em Psicologia Escolar
e do Desenvolvimento Humano pelo IPUSP, professora do Departamento de Psicologia e Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected]
130
há uma grande defesa da prática, da experiência, dando pouco valor ao
conhecimento, conforme discussão já apresentada em 2004 (FACCI, 2004). Os
acadêmicos, muitas vezes, acham que já tiveram bastante teoria, mas pouca prática,
e eles estão ávidos pelo saber fazer, reproduzindo a velha dicotomia entre teoria e
prática. Desta forma, esperamos que este capítulo possa contribuir para refletir a
respeito e auxiliar na atuação da área.
Em um primeiro momento, trataremos da formação do psicólogo escolar;
em seguida, apresentaremos, brevemente, alguns pressupostos da Psicologia
Histórico-Cultural que podem auxiliar o trabalho do psicólogo no compromisso éticopolítico com a comunidade escolar. Finalizaremos o texto com o relato de alguns
encaminhamentos que vimos dando na supervisão de estágio.
Formação do Psicólogo Escolar
Vários autores já discorreram sobre a história da Psicologia e da
Psicologia Escolar, como, por exemplo, Mazini (1978), Patto (1987), Yazlle (1997),
Antunes (2007), Guzzo, Mezzalira, Moreira, Tizzei e Neto (2010). No Brasil, o curso
de Psicologia nasceu atrelado aos cursos de Medicina, vinculado, especialmente, à
Neurologia, Psiquiatria e Medicina Social e era marcado por uma visão
experimentalista e positivista (Yazlle, 1997). Além da medicina, esclarece Antunes
(2007), as Escolas Normais auxiliaram a consolidação do vínculo entre Psicologia e
Educação,
com
disciplinas
que
tinham
como
finalidade
compreender
o
funcionamento da mente.
Patto (1987) deixa claro que esta ciência esteve, costumeiramente,
atrelada aos ideários liberais, centrada em explicações individuais para justificar o
sucesso e o fracasso dos indivíduos na sociedade e na escola. Ela nasceu e
continua a desenvolver-se atrelada às condições materiais, à forma como os
homens relacionam-se, porque, de acordo com Marx & Engels (1996, p. 56), “[...] as
circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias”. A
história da Psicologia é resultado, portanto, da forma como os homens foram-se
organizando para sobreviver e para transformar a natureza, da forma como foram
131
explicando o desenvolvimento do psiquismo, o processo educacional e em
condições históricas determinadas.
No caso da Psicologia Escolar e Educacional, Guzzo, Mezzalira, Moreira,
Tizzei e Neto (2010, p. 131) afirmam que a relação entre a Psicologia e a Educação
é antiga e “[...] é no bojo das circunstâncias concretas que ela consolida-se em
teoria e prática”. Em determinados momentos, predomina a defesa da teoria; em
outros momentos, a defesa da prática e, muito raramente, é estabelecida a relação
dialética entre elas.
O curso de Psicologia foi criado em 1962, por meio da Lei 4.119 (BRASIL,
1962). A formação contemplava as seguintes disciplinas comuns: Estatística,
Fisiologia,
Psicopatologia
Geral,
Psicologia
Experimental,
Psicologia
Geral,
Psicologia da Personalidade. No artigo 4º desta Lei, é exposto que o psicólogo deve
utilizar “[...] métodos e técnicas psicológicas com o objetivo de diagnóstico
psicológico, orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica e solução
de problemas de ajustamento”. Caberia ao profissional, portanto, dentre outras
atividades, fazer diagnóstico e orientação psicopedagógica, mas o que marcou e
marca, em muitas situações, é o viés clínico, com avaliação psicológica com base na
psicometria.
De 1962 a 2004, muitas discussões foram sendo travadas em relação à
formação do psicólogo e, em 2004, foram assinadas as Diretrizes Curriculares
Nacionais para os Cursos de Graduação em Psicologia (BRASIL, 2004), as quais
defendem a impossibilidade de dissociação entre ensino, pesquisa e extensão. A
partir deste documento, os cursos deveriam ser organizados em ênfases, dando
possibilidade para o aluno escolher as disciplinas a serem cursadas e estágios a
serem realizados. Neste documento, são elencadas as habilidades e competências
que deveriam ser desenvolvidas no aluno em seu processo de formação.
Dentre as ênfases, uma sugerida é a Psicologia e Processos Educativos, que
compreende a competência
[...] para diagnosticar necessidades, planejar condições e realizar
procedimentos que envolvam o processo de educação e de ensinoaprendizagem através do desenvolvimento de conhecimentos, habilidades,
atitudes e valores de indivíduos e grupos em distintos contextos
institucionais em que tais necessidades sejam detectadas (BRASIL, 2004,
p. 4).
132
Esta ênfase apresenta uma necessidade de atuar no processo ensinoaprendizagem; porém, no âmbito geral do documento, fica explícita uma grande
valorização da prática em detrimento de uma formação calcada em fundamentos
teóricos consistentes. O documento em si, do nosso ponto de vista, pode ser
considerado um avanço na área, entretanto carrega suas limitações e uma filiação
aos ideários pós-modernos, que dão grande destaque ao saber fazer, à experiência,
sem analisar o contexto histórico-cultural que permeia a apropriação do
conhecimento. Como afirma Moraes (2003), estamos vivenciando um recuo da
teoria na atualidade.
É possível constatarmos hoje, conforme pesquisa de Cruces (2006), que
a área da Psicologia Escolar figura como uma área pouco escolhida como
possibilidade de atuação profissional, tanto entre psicólogos quanto por estagiários
de Psicologia. A formação do psicólogo condu-lo a direcionar-se para as práticas de
avaliação e de psicodiagnóstico, gerando as atividades mais pesquisadas e
efetivadas na escola. Em pesquisa realizada pela autora com 765 sujeitos, alunos do
quinto ano de graduação em Psicologia, concluintes do curso em 2001, em 32
universidades do Brasil, constatou-se que 56,5% tinham preferência pela área
clínica, tanto em termos de estágios realizados como em perspectiva de atuação
profissional. Segundo a autora, esta escolha deve-se aos seguintes fatores: à
restrição curricular em disciplinas da área escolar; à falta de uma explicitação mais
clara nas disciplinas da área escolar no que se refere à atuação do psicólogo no
âmbito educacional; às condições de ensino de Psicologia que, de uma forma geral,
não contribuem para que os alunos possam dar respostas claras e coerentes acerca
das perguntas realizadas.
Cruces (2009) e Fírbida (2011) constataram também que poucas
universidades ofertam a ênfase na área de Educação. Cruces (2009), em consulta
às páginas de 187 cursos de Psicologia disponíveis na página da Associação
Brasileira de Ensino de Psicologia – ABEP, chega aos seguintes dados: das 60
instituições que informaram as ênfases escolhidas, somente 22 oferecem-na na área
133
escolar ou educacional. É possível afirmarmos que esta área não se configura como
um campo que tem atraído alunos e pesquisadores.
Dando continuidade aos fatos que marcam a história da formação e
atuação do psicólogo, em 2013, o Conselho Federal de Psicologia publicou o
documento de Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) na Educação
Básica, que se tornou referência para a atuação da Psicologia na área escolar,
tendo como base “[...] os princípios éticos e políticos norteadores do trabalho das(os)
psicólogas(os), possibilitando a elaboração de parâmetros compartilhados e
legitimados pela participação crítica e reflexiva da categoria no campo da educação”
(Conselho Regional de Psicologia, 2013, p. 13). Este documento tem como objetivo
subsidiar a
atuação
dos psicólogos na
Educação
Básica
e
marca
um
posicionamento crítico da Psicologia com o objetivo de superação de uma visão
clínica que naturaliza valores e práticas sociais discriminatórias e culpabiliza alunos
e seus familiares, e que tem permeado a prática do psicólogo escolar.
Discutimos aqui, brevemente, determinados marcos históricos vinculados
à formação e atuação do psicólogo na área educacional. No próximo item,
apresentaremos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultual que trazem elementos
para pensar o homem como “síntese das relações sociais” (Saviani, 2004).
Psicologia Histórico-Cultural: Fundamentos para a Prática de Estágio
Na nossa atividade de supervisão de estágio, iniciamos o ano letivo
fortalecendo alguns aspectos teóricos que foram já estudados durante os anos
anteriores do curso e alguns pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural,
fundamentada no marxismo, os quais servirão de base para a discussão das
problemáticas que se apresentam na escola. Na busca da unidade entre teoria e
prática, que defendemos na supervisão de estágio, durante a efetivação deste
componente curricular, vamos entremeando constructos teóricos e aspectos
práticos.
134
Partimos do pressuposto, teorizado por Leontiev (1978), de que a
formação do ser humano, integrante de uma determinada cultura, ocorre por meio
da aprendizagem, que permite a apropriação do resultado da experiência e
conhecimento do conjunto dos homens. O homem humaniza-se por meio da
apropriação dos conhecimentos, afirma o autor. Em um primeiro momento, a
criança, por meio da mediação dos adultos, vai conhecendo a realidade, os objetos,
os costumes; todavia, quando adentra no espaço escolar, os conhecimentos
científicos passam a mediar o conhecimento do mundo. Para Vygotsky (2000), a
escola deve trabalhar com os conhecimentos científicos, possibilitando ao aluno
fazer generalizações e formular conceitos cada vez mais complexos.
No entanto, a escola, no momento atual, pode ter várias finalidades, entre
elas: 1) adaptar os indivíduos às relações existentes, garantindo àqueles
pertencentes à classe dominante as vantagens e privilégios que lhe são peculiares e
adaptando os indivíduos das classes subalternas à exploração que sofrem, servindo
à conformação à ideologia dominante, que perpetua valores e conceitos
fundamentais da sociedade; ou 2) pode constituir-se em arma na luta contra a
opressão, por permitir a tomada de consciência acerca da realidade e dos
determinantes sociais, instrumentalizando o indivíduo para uma ação transformadora
em seu meio.
Ante as possibilidades divergentes, Freitas (2002) afirma que:
A escola continua sendo um espaço de luta que, entretanto, não pode ser
ocupado ingenuamente com o espírito de “fazer justiça com as próprias mãos” e
promover equidade, sem levar em conta as relações que se estabelecem entre a
escola e a sociedade. Significa, ainda, que as modificações desejadas na escola
devem estar ancoradas nos movimentos sociais que lutam pela emancipação do
homem e não nas necessidades que o sistema capitalista tem de adequar a
escola à lógica da reestruturação produtiva. Neste processo, cumpre papel
esclarecedor a concepção de sociedade e de educação que está por trás das
propostas educacionais (Freitas, 2002, p. 300).
A escola, portanto, constituída pelas condições materiais, responde à
formação de determinado tipo de homem. Isso tem que ficar evidente para os
acadêmicos ao realizarem o estágio na escola. Eles têm que ter clareza que a
intervenção exige um posicionamento ético e político. Além disso, numa visão
marxista de educação, que busca a emancipação humana, o trabalho educativo tem
135
como meta tornar individualizados os conhecimentos que as várias ciências
produziram, ou seja, está vinculado ao processo de humanização. Saviani (2003, p.
13) entende que o trabalho educativo “[...] é o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida
histórica e coletivamente pelo conjunto de homens”. A escola deve trabalhar,
acrescenta o autor, com os conhecimentos clássicos, com aquilo que é fundamental
nas várias áreas de conhecimento.
Sob esta perspectiva do processo de humanização, Vygotsky (2000)
afirma que a aprendizagem promove o desenvolvimento do psiquismo. As funções
psicológicas superiores – tais como a memória lógica, a capacidade de abstração, a
atenção concentrada, a criatividade, entre outras funções – são desenvolvidas por
meio da mediação da cultura. Elas transformam-se devido às relações estabelecidas
com outros homens e, de acordo com Vygotsky (1996), tal processo exige
voluntariedade, tomada de consciência. O desenvolvimento do psiquismo, nesta
linha de raciocínio, está atrelado às condições objetivas nas quais os alunos estão
inseridos e que proporcionarão, ou não, a apropriação dos vários conhecimentos.
Esse desenvolvimento não é decorrente de um amadurecimento biológico; ele é
provocado pelo conhecimento proporcionado por aqueles que rodeiam a criança. A
escola, neste sentido, tem que ter intencionalidade em sua ação de ensinar e o
professor atua como mediador dos conhecimentos (Facci, 2004).
Na prática pedagógica, o professor tem que atuar, teoriza Vygotsky
(2000), no nível de desenvolvimento próximo do aluno, ou seja, naquilo que está em
vias de desenvolver-se, naquele campo no qual o aluno precisa de auxílio para
resolver as atividades. Também não adianta ensinar aquilo que está muito distante
da capacidade de compreensão do aluno, visto que, como afirma Vygotsky (2000, p.
337), “ensinar uma criança o que ela não é capaz de aprender é tão estéril quanto
ensiná-la a fazer o que ela já faz sozinha”.
Estes pressupostos sobre a relação desenvolvimento e aprendizagem
trazem um grande diferencial na prática do estagiário, levando-o a compreender o
desenvolvimento da criança prospectivamente, podendo orientar o professor e
empreenderações
que
possam
provocar
o
desenvolvimento
das
funções
psicológicas dos alunos. Entendemos que é necessário criar na criança as
136
premissas de desenvolvimento, que podem ser realizadas por meio dos conteúdos
curriculares.
Por intermédio do conhecimento científico, o aluno conhece a realidade
da qual ele é parte. A escola, por si só, não transforma a realidade do aluno, mas
pode transformar a forma como ele compreende o mundo que o cerca. A
transformação da consciência pode colaborar para que, na coletividade, os homens
possam transformar a realidade. Os seres humanos apropriam-se da cultura para se
desenvolver e para que ocorra o desenvolvimento da sociedade como um todo.
Assim, reconhece Leontiev (1978), sem a transmissão dos conhecimentos para as
gerações seguintes é impossível promover a continuidade do processo histórico.
A análise da relação ensino-aprendizagem na perspectiva apresentada
incide na forma como o estagiário vai avaliar as queixas escolares no que se refere
à apropriação da leitura, escrita e matemática. Este é um ponto importante, uma vez
que uma solicitação frequentemente feita aos psicólogos é a avaliação psicológica.
Tomando como referência a Escola de Vygotsky no processo de avaliação, o
psicólogo precisa estar atento à forma como o aluno utiliza dos recursos mediadores
para resolver as tarefas cognitivas. Vygotsky (1996) compreende que todo
comportamento é mediado por instrumentos – direcionados para a realidade externa
– e signos – direcionados para o comportamento interno do indivíduo. No processo
de avaliação, é fundamental o psicólogo analisar o processo de constituição das
queixas escolares, descrever como o aluno está aprendendo, não ficando à mercê
de testes psicométricos, que avaliam geralmente somente o que se encontra em
nível real – aquilo que já está efetivado.
O papel mediador do psicólogo faz muita diferença na compreensão do
nível intelectual dos alunos avaliados. Vygotsky e Luria (1996) deixam claro que o
diagnóstico deve primar por compreender tanto aquilo que a criança já se apropriou
como aquilo que ela consegue realizar com a ajuda ou por imitação. Esse
diagnóstico, defendem os autores, só tem validade se possibilitar a proposição de
atividades que promovam a superação dos problemas que ocorrem no processo de
escolarização.
Estes são alguns pontos expostos, brevemente, que podem auxiliar a
prática do aluno durante o estágio na escola. Na supervisão, trabalhamos com
137
conteúdos que vão desde a formação do psiquismo humano, a relação ensinoaprendizagem, o fracasso escolar, a avaliação psicológica, a formação da
personalidade e a função social da escola, bem como outros assuntos que
permeiam o ensinar e o aprender.
Meira (1997) analisa, sob uma visão crítica de base marxista, alguns
elementos considerados como indicativos do pensamento crítico voltado para uma
prática de Psicologia Escolar compromissada com propostas consistentes e
pertinentes com a prática emancipadora. São eles: Como o psicólogo compreende o
fracasso escolar? Quais as áreas de intervenção escolhidas? Qual o modelo de
atuação no qual o trabalho assenta-se? Como são utilizados os processos de
avaliação das queixas escolares? Quais os vínculos que o profissional estabelece
com a comunidade escolar? Estas questões permeiam o processo de supervisão de
estágio.
A seguir, apresentamos algumas sugestões de temas e procedimentos
que podem ser utilizados no estágio.
O Estágio Curricular – A Prática em Desenvolvimento
Munidos dessas informações, passemos, agora, a discorrer sobre a
prática do estágio. Em um primeiro momento, como afirmamos anteriormente,
dedicamo-nos ao estudo teórico, explicitando para os acadêmicos alguns
pressupostos teóricos que podem auxiliar a prática a ser desenvolvida. Deixamos
claro a ele que estamos retomando alguns conteúdos e que, com certeza, a
formação já trouxe vários elementos que proporcionarão uma análise psicológica
dos problemas enfrentados no cotidiano escolar.
Nossos alunos, na Universidade Estadual de Maringá, realizam uma
prática de estágio que garante pelo menos quatro h/a semanais de atuação na
escola e quatro h/a semanais de supervisão, independentemente da ênfase
escolhida. Eles ficam o ano letivo na escola e podem acompanhar os bastidores da
instituição continuamente.
Uma vez estabelecidos alguns pilares teóricos, vamos para a escola para
levantar as expectativas da equipe pedagógica – diretor e pedagogos – em relação
138
ao estágio. São discutidos temas a serem contemplados nas séries em que os
estagiários poderão atuar e intervenções que serão feitas. Na escola na qual
supervisionamos estágio acerca de 15 anos, vários temas foram sugeridos e
trabalhados com os alunos e professores, tais como: função social da escola,
sentido e significado, a formação humana em uma sociedade capitalista,
adolescência e sexualidade, o conhecimento científico e o desenvolvimento
psicológico, o processo de humanização, orientação profissional, transição do aluno
do 5º para o 6º ano, a função da classe especial, a motivação para a leitura, a
importância da coletividade na escola, entre outros conteúdos pertinentes à relação
entre Psicologia e Educação.
Uma vez delimitadas as atividades que serão realizadas, os estagiários
fazem a caracterização da escola. Analisam a Proposta Político-Pedagógica,
descrevem a estrutura física da escola, a constituição do corpo docente e de
funcionários, o número de turmas e outros pontos que permitem um mínimo de
conhecimento da instituição. Sempre ponderamos, também, sobre o índice de
reprovação de cada turma, com vistas a identificar em quais séries ocorrem maiores
dificuldades de aprendizagem.
Os acadêmicos são orientados a se apresentarem para os professores e
alunos, explicando, em cada turma, o que farão e quais são as atribuições dos
psicólogos na escola. Este momento é imprescindível, já que eles farão parte da
rotina da escola durante todo o ano letivo e os envolvidos no processo ensinoaprendizagem necessitam compreender quais as contribuições que a Psicologia
pode dar para a prática pedagógica.
Elaboramos um projeto de intervenção, apresentamos à escola e, a partir
da sua aprovação, começamos o desenvolvimento das atividades. Geralmente,
quando vamos trabalhar com uma turma, fazemos uma entrevista individual com
cada aluno, para coletar dados da sua rotina e do vínculo que tem com a
aprendizagem. Tal instrumento de pesquisa dá-nos uma ideia das características
gerais da turma. Também fazemos observação em sala de aula, atentando para a
forma como as relações são estabelecidas no processo de apropriação do
conhecimento. Vygotsky (1996) coloca que é muito importante propor-se a explicar
os comportamentos, as ações empreendidas na escola, ao invés de somente
139
descrever o que ocorre. Nesse contato semanal com a escola, os estagiários vão-se
deparando com os meandros que envolvem o processo pedagógico, a rotina da
escola, podendo estabelecer vínculos que permearão o desenrolar do estágio.
As atividades são desenvolvidas, geralmente, por meio de dinâmicas de
grupo, alicerçadas em textos lidos e estudados e relacionados às temáticas que
estão sendo expostas. O tempo todo, buscamos resgatar com o acadêmico o
compromisso ético-político que deve ter na profissão. Ressaltamos que não basta a
instrumentalização prática, é necessário analisar a totalidade das relações sociais –
entendidas, aqui, como relações de classe – que permeiam a função da escola.
Questionamos sempre até que ponto todos os alunos estão tendo oportunidade
igualitária de acesso aos bens materiais e intelectuais produzidos pela humanidade.
Na supervisão, estudamos o texto e estruturamos cada atividade a ser
implementada. Após a execução da atividade proposta, analisamos o que ocorreu,
fazemos algumas ponderações, correlacionamos o que foi apresentado com os
pressupostos teóricos e vamos definindo como serão encaminhados os próximos
encontros.
Assim que concluímos alguma atividade prevista no projeto, marcamos
uma reunião com a equipe pedagógica da escola para fazermos uma devolutiva e
propormos sugestões para superar algumas dificuldades constatadas. Nesses
momentos, geralmente, apresentamos as problemáticas juntamente com elementos
teóricos da Psicologia para a sua análise, com o intuito de fundamentar e possibilitar
a compreensão dos determinantes histórico-sociais que produzem determinados
fatos. Consideramos que este é um espaço pedagógico, no sentido de transmissãoapropriação dos conhecimentos, tanto da equipe da Psicologia como da equipe da
escola. Valorizamos as ações desenvolvidas em prol da apropriação do
conhecimento,
entendendo
que
professores,
pedagogos
e
alunos
têm
potencialidades que podem ser desenvolvidas quando mediações adequadas são
realizadas. Colocamos em prática, nesse momento, o pressuposto vygotskyano de
que aprendizagem promove desenvolvimento, objetivando destacar que tem muita
validade. Após cada reunião com a equipe pedagógica, observamos que
supervisora, estagiários e pedagogos procuram trabalhar em conjunto para que a
escola cumpra com sua função de ensinar, conforme propõe Saviani (2003).
140
Em muitas situações, fazemos uma devolutiva individual para os alunos
da turma, fechando todo o processo de intervenção. Neste momento, sempre
orientamos os alunos quanto a alguns encaminhamentos importantes que eles
podem dar em direção à apropriação do conhecimento.
A intervenção com os alunos na escola geralmente demanda da
supervisão muito trabalho, porque, com frequência, os estagiários voltam
preocupados com o nível de indisciplina que ocorre normalmente nas salas de aulas
e temos que empreender esforços para fazer uma análise que se fundamente tanto
nas singularidades de cada aluno como na universalidade das relações sociais que
produzem determinado tipo de comportamento na escola. Não é um exercício fácil
em uma sociedade que prima por defender o ideário liberal, que teima em colocar no
indivíduo, e somente nele, a culpa das mazelas da sociedade.
No trabalho com professores, no caso de reuniões de estudos, de
palestras, de cursos, geralmente acompanhamos os acadêmicos para que estes
sintam-se mais seguros com a presença da supervisora. Percebemos, em muitas
situações, que a escola espera que os supervisores encaminhem a exposição, nem
sempre valorizando a potencialidades que os estagiários têm. O importante é investir
na autonomia dos acadêmicos, considerando que, nos anos posteriores, eles
estarão sozinhos desenvolvendo a prática profissional.
Na
escola
em
que
temos
realizado
o
estágio,
o
trabalho,
consecutivamente, vem sendo avaliado positivamente. A equipe de pedagogos da
escola estabelece parceria com os estagiários e, conjuntamente, temos buscado
alternativas para o enfrentamento das problemáticas que se apresentam na prática
pedagógica.
Considerações Finais
Concluindo esta exposição, gostaríamos de ressaltar alguns pontos que
consideramos fundamental para a prática de supervisão e a realização do estágio
curricular na área de Psicologia Escolar. Não vamos adentrar muito na discussão
teórica, porque consideramos que tentamos fazer isso anteriormente.
141
Um primeiro ponto que queremos destacar é a clareza que o estagiário
tem que ter em relação à função social da escola. O objetivo da escola, seu
significado social, tomando como referência as ideias de Saviani (2003) e a
Psicologia Histórico-Cultural, ambas com base marxista, é ensinar. Portanto, toda
intervenção realizada não pode perder isto de vista. O objeto de estudo da
Psicologia Escolar é o processo ensino-aprendizagem, é a constituição da
subjetividade dos envolvidos no processo educativo. O foco do trabalho é este,
independentemente se estamos trabalhando com pais, professores, funcionários ou
alunos.
Neste processo, emoção e cognição caminham juntas, como propõe
Vygotsky (2000). No processo de supervisão, tentamos provocar no acadêmico um
sentimento de empatia com aqueles que estão em sofrimento psíquico, decorrente,
na maioria das vezes, do não aprendizado. O futuro profissional tem que entender
que, no período de escolarização, sobretudo nos primeiros anos do Ensino
Fundamental, a atividade principal – tomando como referência os postulados de
Leontiev (1978) e a compreensão da periodização de Vygotsky (1996) – é o estudo.
A forma como o aluno relaciona-se com a realidade, nesta fase e mesmo na
adolescência, é pelo estudo. Portanto, o processo de aprendizagem permeia a
formação da personalidade do aluno e direciona as relações que ele trava com os
outros homens. Isso não pode ser esquecido nem pelo supervisor nem pelo
estagiário.
Outro ponto necessário é compreender que existe uma relação dialética
entre teoria e prática. Saviani (2005, p. 262) afirma que “quanto mais sólida for a
teoria que orienta a prática, tanto mais consistente e eficaz é a atividade prática”.
Dessa forma, o conhecimento teórico, seu estudo, deverá sempre estar permeando
a atuação profissional, visto que o conhecimento científico produzido pela
Psicologia, Educação e ciências afins será a ferramenta que estagiário ou psicólogo
terá para analisar o que ocorre no espaço escolar, dentro das especificidades que
orientam o seu agir.
Na realização dos estágios também devem ser realizados esforços para
superar a visão clínica, que historicamente guia a prática profissional, mesmo no
âmbito escolar. Esta é uma luta constante em uma sociedade que quer biologizar e
142
medicalizar todos os indivíduos que passam pela escola: dislexia, transtornos de
déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), por exemplo, são alguns distúrbios que
estão sendo diagnosticados e depositados nos alunos, deixando-se de considerar
que o fracasso escolar é produzido socialmente, como havia anunciado Patto
(1990). Analisar as condições materiais, o contexto social que produzem as relações
escolares é tarefa posta para os psicólogos que pretendem ter um compromisso
ético e político com a comunidade escolar.
Finalizamos esta exposição com uma citação de Vygotsky que explicita,
em poucas palavras, o trabalho que ainda temos que empreender, no âmbito
educativo, para formar esse novo homem, emancipado: “Tão só uma elevação de
toda a humanidade a um nível mais alto de vida social – a libertação de toda a
humanidade – pode conduzir à formação de um novo tipo de homem.” (Vygostky,
1930, p. 12).
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Sobre a autora
Marilda Gonçalves Dias Facci: Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de
Maringá (1986), mestrado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(1998); doutorado em Educação Escolar pela faculdade de Ciências e Letras de Araraquara –
UNESP (2003) e Pós-doutorado pelo Instituto de Psicologia da USP. É coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da UEM. Possui Bolsa de Produtividade em Pesquisa pela Fundação
Araucária – Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná. Foi coordenadora do GT
de Psicologia da Educação da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação –
ANPEd no período de 2010-2013, é Editora Assistente da Revista Psicologia Escolar e Educacional,
membro do Grupo de Trabalho de Psicologia Educacional da ULAPSI e Presidente Anterior da
Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional-ABRAPEE. É membro do Comitê
Assessor da área de Educação e Psicologia da Fundação Araucária. Participa do GT de Psicologia e
Políticas Educacionais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia –
ANPEPP. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia do Ensino e da
Aprendizagem, atuando principalmente nos seguintes temas: psicologia histórico-cultural, educação,
psicologia escolar.
145
ESTÁGIOS EM PSICOLOGIA E SERVIÇOS-ESCOLA
Iraní Tomiatto de Oliveira
As clínicas-escola de Psicologia começaram a se organizar, no Brasil, a partir
da regulamentação da profissão, pois sua existência fazia parte das exigências
legais para a instalação de um curso de Psicologia. Desde o início, tiveram um duplo
objetivo: ser campo de estágios de formação profissional e prestar serviços
psicológicos à população. Com o passar do tempo, um terceiro objetivo agregou-se
aos dois primeiros: a realização de pesquisas.
Durante os últimos 50 anos essas clínicas assumiram diferentes papéis:
representaram, durante vários anos, uma das raras alternativas para a população
que necessitava de serviços psicológicos gratuitos; foram alvo de muitas críticas por
terem
transplantado
para
um
contexto
institucional
as
práticas
clínicas
características do consultório privado, sem levar em conta a diferença dos contextos
e da população atendida; funcionaram como incubadoras de novas propostas e
modelos de intervenção, contribuindo significativamente para a expansão das
possibilidades e dos campos de atuação da Psicologia, entre outros.
Essa expansão foi-se refletindo nos cursos de formação profissional e
consolidou-se com a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos
de graduação em Psicologia de 2004; a última versão das diretrizes, publicada em
2011, altera apenas o Artigo 3º., referente ao Projeto Complementar para a
formação de Professores de Psicologia, e permanece idêntica à de 2004 em todos
os outros artigos, inclusive naqueles que se referem aos estágios da formação de
psicólogo.
A orientação de que os estágios obrigatórios deveriam dividir-se em básicos
e específicos, distribuir-se ao longo do curso e assegurar o contato do formando
com diferentes situações, contextos e instituições consolidou, também, a ampliação
do conceito de clínica-escola. O Artigo 25 das DCN estabelece que
O projeto de curso deve prever a instalação de um Serviço de
Psicologia com as funções de responder às exigências para a
formação do psicólogo, congruente com as competências que o curso
146
objetiva desenvolver no aluno e as demandas de serviço psicológico
da comunidade na qual está inserido (Brasil, 2011).
Assim, cada vez mais foi-se instalando a concepção de um serviço que não
se restringia aos atendimentos clínicos, mas que deveria ser o articulador e
organizador de todas as atividades de estágio e de todos os tipos de serviços
psicológicos a eles relacionados.
Por suas características e pela complexidade de sua organização e
realização, o tema dos estágios e do serviço-escola tem sido sempre um dos mais
discutidos em todos os encontros e eventos científicos que incluem discussões
sobre a formação e mesmo sobre a prestação de serviços psicológicos. Há muitas
questões que envolvem desde o estabelecimento de parcerias, a estrutura das
supervisões, as condições do estagiário, as relações entre o supervisor de campo e
o da instituição de ensino (orientador, nos termos da Lei de Estágio), as áreas de
estágio, entre muitas outras.
Uma vez que se está abordando a questão dos estágios, é preciso levar em
conta a existência de uma Lei Federal que trata especificamente da regulamentação
dessa atividade no país: a Lei 11.788/2008. A partir da definição, em seu Artigo 1º.,
do que é a atividade de estágio –
o
Art. 1 Estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido
no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho
produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular
em instituições de educação superior, de educação profissional, de
ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino
fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e
adultos (Brasil, 2008).
São estabelecidas uma série de condições para sua realização, que
envolvem a celebração de um termo de compromisso entre as partes, limite de carga
horária, compatibilidade das atividades desenvolvidas com a formação acadêmica
que o estagiário está realizando, entre outras.
Em 1997, a Psicologia foi reconhecida como uma das treze profissões de
nível superior que compõem a área da Saúde, através da Resolução núm. 218 do
Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. Este reconhecimento resulta
em uma série de compromissos que, do ponto de vista legal, incluem a observância
147
à Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (2006) e às determinações da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária, que estabelece a necessidade de licença para o
funcionamento de serviços psicológicos.
Há ainda a considerar as determinações do Conselho Federal de Psicologia,
em especial o Código de Ética Profissional dos Psicólogos (2005) e a Resolução
01/2009, que dispõe sobre a obrigatoriedade do registro documental decorrente da
prestação de serviços psicológicos. E a necessidade de que o serviço-escola seja
cadastrado no Conselho Regional em cuja jurisdição está situado.
É possível perceber, pelos documentos citados – que não esgotam o assunto
–, que não é tarefa fácil conhecer tudo o que rege o funcionamento desse tipo de
serviço. Por isso, o Conselho Federal e os Conselhos Regionais, desde a década de
1980, tem preocupado-se em oferecer orientações sobre o assunto.
A ABEP, associação civil criada pelo Fórum das Entidades Nacionais da
Psicologia Brasileira – FENPB – para cuidar da formação do psicólogo brasileiro,
também tem produzido documentos de orientação sobre o tema. Exemplo disso é o
Boletim Especial da ABEP, publicado em agosto de 2009, no qual a psicóloga Eliana
Vianna tece relevantes reflexões e comentários sobre a Lei do Estágio e sobre a
Resolução CFP 001/2009, ainda no calor das discussões provocadas por essas
publicações.
Nessa direção, e buscando uma atualização das orientações oferecidas aos
psicólogos em geral e aos coordenadores de curso e de estágios, professores,
supervisores e orientadores, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo
montou um grupo de trabalho que começou a desenvolver suas atividades ainda em
2007, ligado à Comissão de Orientação e Fiscalização, do qual participaram
coordenadores de curso, responsáveis técnicos de serviços-escola, representantes
da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP), conselheiros, gestores e
assistentes técnicos. Foi realizado um amplo levantamento da legislação atinente ao
tema, das resoluções, pareceres e orientações já publicadas. No decorrer dessas
discussões foram surgindo novos documentos, como a Lei do Estágio e a Resolução
CFP 001/2009, cujo conteúdo foi sendo incorporado aos debates do grupo. Após
148
cerca de dois anos de trabalho o grupo5 produziu as Recomendações aos ServiçosEscola de Psicologia do Estado de São Paulo: Compromisso Ético para a Formação
de Psicólogos, publicado pelo CRP de São Paulo em março de 2010. Nesse
documento são abordados os seguintes temas: concepção e objetivos dos serviçosescola; considerações sobre a Lei do Estágio; inspeção da Vigilância Sanitária;
registro documental e prontuário. Embora se dirija aos psicólogos do Estado de São
Paulo, ele serviu como referência para a elaboração de orientações nas outras
regiões do país, e até para a elaboração de um documento nacional.
Na esteira dessa publicação e como fruto de parceria entre o Conselho
Federal, a ABEP e o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo foi organizado,
em 2011, um grupo de trabalho6 com o objetivo de produzir um documento
orientador sobre estágios e serviços-escola em âmbito nacional. Denominado Carta
de Serviços Sobre Estágios e Serviços-Escola, a produção do grupo acaba de ser
publicada, em setembro de 2013.
Observa-se, na produção desses documentos, a evolução da Psicologia
Brasileira, não só no sentido da ampliação das áreas de atuação, mas da crescente
clareza sobre os processos de formação, sobre a oferta de serviços e sobre as
condições adequadas para a realização de estágios.
O tema, certamente, continua demandando discussões, reflexões e constante
construção de parâmetros e referências.
Há, por certo, temas constantemente presentes na vida diária dos que se
dedicam à formação de novos profissionais e ainda muito pouco discutidos, como as
condições técnicas e pessoais do estagiário para a realização do trabalho. Incluemse aqui as delicadas situações de alunos com sérias dificuldades emocionais, com
necessidades especiais e com insuficiência técnica. Surgem situações em que os
recursos acadêmicos e pedagógicos não são instrumentos suficientes para dar
5
Este grupo foi coordenado pela psicóloga Carmem Silvia Rotondano Taverna e composto por Ana
Cristina Gomes Teixeira Arzabe, Eliana Vianna, Irani Tomiatto de Oliveira, Marília Ancona-Lopez,
Magali Rodrigues Serrano, Marlene Oliveira Campos e Zuleika Fátima Vitoriano Olivan.
6
Este grupo foi coordenado por Aluízio Lopes de Brito e composto por Carmem Silvia Rotondano
Taverna, Irani Tomiatto de Oliveira e Marilene Proença Rebello de Souza.
149
conta da situação, e outras em que é difícil conciliar as necessidades e direitos do
estagiário e os dos usuários dos serviços. Este é, sem dúvida, um tema em aberto.
O Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005) estabelece, em seu Artigo
17, que: “Caberá aos psicólogos docentes ou supervisores esclarecer, informar,
orientar e exigir dos estudantes a observância dos princípios e normas contidas
neste Código”. Na prática, é preciso refletir sobre os instrumentos com os quais o
supervisor conta para garantir essa exigência.
É importante levantar algumas dessas questões e refletir sobre elas,
incentivando um amplo debate na busca de estratégias de enfrentamento das
dificuldades, tendo a ética como principal parâmetro. As oportunidades criadas pela
ABEP e pelo Sistema Conselhos para aglutinar profissionais comprometidos com a
formação profissional e com o ensino da Psicologia, seja em âmbito regional ou
nacional, têm demonstrado que é possível avançar nessas discussões e encontrar
respostas, mas há ainda muito a ser discutido e muitos problemas a serem
enfrentados.
Referências
BRASIL. Lei nº. 11.788 de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre o estágio de
estudantes.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2008/lei/l11788.htm>. Acesso em: 20 de set. de 2011.
______. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES Nº 8, de 7 de maio de 2004.
Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Psicologia.
Disponível em:
150
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12991>.
Acesso em: 20 de set. de 2011.
______. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES nº 5, de 15 de março de
2011. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em
Psicologia. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12991>.
Acesso em: 20 de set. de 2011.
______. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no. 218 de
06 de março de 1997. Disponível em:
<http://www.datasus.gov.br/conselho/resol97/res21897.htm>. Acesso em: 20 de set.
de 2011.
_____. Ministério da Saúde. Carta dos direitos dos usuários da saúde / Ministério da
Saúde – Brasília: Ministério da Saúde, 2006. 8 p. (Série E. Legislação de
Saúde).
Disponível
em:
<http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/cartilha_integra_direitos_2006.pdf
>. Acesso em: 25 de set. de 2011.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de ética profissional dos
psicólogos,
2005.
Disponível
em:
<http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/legislacao/codigo_etica/>. Acesso em: 20 de
set. de 2011.
______. Resolução nº 01 / 2009. Dispõe sobre a obrigatoriedade do registro
documental decorrente da prestação de serviços psicológicos. Disponível em:
<http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/legislacao/resolucao/resolucao_2009_001.htm
l>. Acesso em: 20 de set. de 2011.
151
CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO. Recomendações aos
serviços-escola de Psicologia do Estado de São Paulo:compromisso ético para a
formação
de
psicólogos,
2010.
Disponível
em:
<http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/servicos_escola/fr_sumario.aspx>.
Acesso em: 20 de set. de 2011.
Sobre a autora
Iraní Tomiatto de Oliveira: Psicóloga pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(1975), Mestre em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1999) e Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (2006). Psicoterapeuta. Tem
experiência como coordenadora de curso, professora e supervisora de estágio em graduação e pósgraduação, com ênfase em psicodiagnóstico e intervenção psicoterapêutica, principalmente nas
seguintes modalidades: psicoterapia psicodinâmica, psicoterapia breve de crianças e adultos,
psicodiagnóstico, relações familiares, formação profissional do psicólogo, serviços-escola de
Psicologia. Atualmente é coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Anhembi-Morumbi e
vice-presidente da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia.
152
OS SINTOMAS DE NOSSO TEMPO E A APOSTA DO E NO SERVIÇO-ESCOLA
Prof.ª M.ª Maria Cristiane Nali
Resumo
Quais as demandas que se fazem presentes hoje num Serviço-Escola? Será
que diferem muito das demandas de anos atrás? Seria necessário um levantamento
histórico-bibliográfico para nos determos a isso, mas certamente podemos afirmar: A
demanda em Serviços-Escola na atualidade apresenta sintomas reveladores de
nosso tempo, do ponto de vista psíquico, mas também os aspectos sócioeconomico-político importantes. Alguns autores acompanharão essa reflexão, como
Figueiredo (2009) que destaca sobre a “crise da modernidade” estar em “novos
modos de subjetivação”. Como essa questão apresenta-se no Serviço-Escola?
Como vimos preparando os futuros psicólogos neste aspecto? Afinal eles também
fazem parte desse “nosso tempo”. Será a partir dessas questões disparadoras que
desenvolverei ideias da nova concepção de Serviços-Escola, junto aos novos
Projetos Pedagógicos de Cursos de Psicologia. Destacando que a proposta do
Serviço-Escola que apresentarei não está mais restrita ao atendimento clínico
(clássico), mas ligado aos projetos sociais e à chamada Clínica do Social. Algumas
propostas (e apostas) serão apresentadas para direcionarem os trabalhos, a
exemplo disso, um novo lugar do Serviço-Escola: fazer parte da Rede Básica de
Saúde do Município e a diversidade de (im)possibilidades que daí advêm.
Palavras chave: Serviços-Escola; demanda; sofrimento contemporâneo.
Na atualidade deparamos-nos, de uma forma geral, com diferentes sintomas
que destacarei aqui como sintomas de nosso tempo; dentre esses sintomas temos,
no caso de crianças: os chamados distúrbios de aprendizagem (que envolvem o
TDAH, encoprese, enurese, entre outros); no caso dos adolescentes destacaria em
especial a anorexia, a bulimia e a depressão, mas também as drogas e a violência;
no caso dos adultos, o pânico, a depressão grave, os transtornos decorrentes de
conflitos familiares, conjugais etc.
153
Cada um desses sintomas7 mereceria uma atenção, uma dedicação para seu
desdobramento, mas como não é nosso propósito aqui, apenas os cito, por
encontrá-los com frequência no Serviço-Escola que no momento coordeno.
Tomando como ponto de partida a seguinte pergunta: as demandas 8 atuais
guardam semelhança com as demandas de anos atrás? Buscaremos destacar
algumas reflexões que nos têm acompanhado. Evidentemente um estudo também
aprofundado desse dado “histórico” forneceria-nos amplo debate, entretanto
guardamos um aspecto (entendo que se mantém) e que merece atenção por hora,
qual seja: o desamparo... os sintomas citados revelam um desamparo (alguns
autores já desdobraram essa questão lembrando que “o estado de desamparo está
ligado a uma experiência primeva (do bebê) em face de suas necessidades, uma
importância que gera sofrimento, que no caso do bebê – só o objeto pode dar um
fim. Freud (N’o projeto’, 1895) considera que o desamparo e a satisfação organizam
os dois modos de funcionamento mental. A psicanálise contribui para
compreendermos que o desamparo e a teoria da angústia estão intimamente ligados
– isso interessa-nos em tempos atuais: “o desamparo associado à pulsão de morte,
fonte de intensa perseguição, impõe a busca de proteção (...) o excesso de
desamparo provoca transtornos” (Aubert-Godard, 2005)9. Aqui fica somente uma
constatação do já dito e cuja noção podemos ampliar para vários aspectos atuais...
ou seja, constatamos a partir de Freud que o desamparo apresenta-se por seu
aspecto estrutural na sociedade.
É diante disso que, num contexto de formação de futuros psicólogos,
animamo-nos em desenvolver cada vez mais a capacidade de criação desse
profissional, que merece o cuidado que nos apontou Coutinho Jorge (2013) 10: “para
criar o novo é preciso atravessar o saber constituído”, ou seja, “é preciso conhecer
profundamente a disciplina para criar a partir dela”.
Fazer valer a reflexão de que o lugar que o psicólogo ocupa no imaginário
social não deveria ser daquele que solucionará todos os problemas, permitiria certo
“alívio” para que a criação realmente adviesse – ou seja – chamo a atenção aqui de
que todos (pacientes, alunos, supervisores) participamos de alguma forma dessa
demanda da URGÊNCIA por soluções.
O Serviço-Escola recebe também a demanda do estagiário naquilo que este
lugar (estágio) pode oferecer-lhe enquanto formação. A ansiedade com a qual o
estagiário muitas vezes apresenta os fatos merece ser acolhida (ao lembrá-lo disso)
7
Entendendo sintoma aqui como aquele que traz em si um sofrimento. (Fernandes, A.H., 2005)
Refiro-me aqui a demanda como Volnovich (Lições introdutórias) propõe: “[...] demanda é a
articulação do desejo na palavra”.
9
AUBERT-GODARD, Anne. Verbete desamparo. In: MIJOLLA, Alain de. Dicionário Internacional da
psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2005.
10
Em palestra de inauguração do LAPSUS – UNICAMP – em 03/05/2013.
8
154
e mais ainda: para que serve a supervisão se não para acompanhar direções
possíveis?
O quanto isso coloca-nos num lugar de saber – mas um saber determinado –
na medida em que: fazemos um diagnóstico e propomos um tratamento; analisamos
o sintoma, do qual o sujeito “não abre mão”. Freud (1917) em seu texto “Os
caminhos da formação dos sintomas”, refere que “o sintoma tem um tipo de
satisfação que traz em si aspectos estranhos em seu próprio sintoma” (p.21) e mais
adiante esclarece: “no sintoma há uma suposta satisfação do sofrimento, sendo
irreconhecível para o sujeito, [mas] faz surgir a queixa. [...] de modo que o sujeito
refugia-se na neurose, dirigindo uma grande parte de sua energia psíquica para a
manutenção dos sintomas” (p.23).
Mas será em Mannoni (1989) que encontraremos uma compreensão (a partir
de Freud): “o sintoma [...] revela que o inconsciente fala, que o discurso sustentado
separa o homem de si próprio. Esta divisão, que funda uma palavra ao mesmo
tempo mentirosa e verdadeira [...]” (p.7)11.
Poder “falar o sintoma” numa relação transferencial é a aposta; entretanto é
preciso estar atento às novas formas de subjetivação. Refiro-me aqui a uma
tentativa do sujeito de abortar um processo de simbolização, fazendo com que o
mesmo “fixe-se” no sintoma. Ou seja, refiro-me ao modo como as pessoas estão
lidando com a angústia: “o não pensar muito sobre isso [...]” ou “não quero mexer
nisso agora” (mas tem sintomas, dor), portanto não buscam simbolizar, representar
seu sofrimento de forma subjetiva.
Tratar dessas questões como “novos modos de subjetivação”, é também
considerar o que Figueiredo (2009) propõe: estamos vivendo uma era da “falência
da subjetivação”, mas que não deixa de ter um aspecto de subjetivação,
simbolização, o irrepresentável – ou seja, o Real.12
O psicólogo estar atento a esses novos modos de subjetivação é
compromisso ético, mais do que estético. Tomemos como exemplo a violência:
promovida muitas vezes pela imagem da “democratização das oportunidades”, sua
banalização, e o que a mídia tem produzido com isso. Seguindo as trilhas de um
texto não muito recente mas com uma leitura ainda atual dessa problemática,
encontramos: “A mídia promove a infantilização das mentes; essa infantilização
incentiva mecanismos de defesa mais primitivos que se traduzem num ‘infanticídio
11
MANONNI, Maud. “Um saber que não se sabe”. Campinas: Papirus, 1989.
FIGUEIREDO, L.C.M. “Revisitando as Psicologias. Da Epistemologia à Ética das Práticas e
Discursos Psicológicos.” Petrópolis: Vozes, 2009.
12
155
do espírito’ (Vasconcellos, 1998), que procura impedir a criatividade, a inventividade
e a reflexão enquanto símbolos de subjetivação”. (Merquior, 2002)13
A preocupação que nos toca aqui é: como nós, professores e supervisores de
estágio em psicologia, participamos disso. Como podemos refletir e contribuir com
uma possível compreensão desses sintomas de nosso tempo e assim compreender
não só as demandas que nos chegam aos Serviços-Escola, mas também as
demandas dos alunos/estagiários – suas expectativas, ansiedades e sua
participação neste processo.
Estar atento a esses aspectos é minimamente prepararmo-nos (supervisores
de estágio) para tais demandas presentes nos Serviços-Escola, afinal sabemos do
incessante risco do “desejo anônimo” do Outro institucional. Além disso, é também
lembrarmo-nos do caráter político de nossa práxis que envolve um “pensar a
existência tanto individual como coletiva”.
O Serviço-Escola da FAAT foi implantado há 3 anos, e é crescente o número
de pessoas que demandam nosso serviço. Nosso PPC comporta uma proposta de
uma Clínica voltada para o Social, o que promove ao aluno estagiário a possibilidade
de não se restringir à chamada “Psicologia Clínica” tradicional/clássica e buscar
desenvolver projetos psicossociais, psicoeducativos, junto a uma coletividade que
demanda uma escuta e um acompanhamento.
Esses projetos compõem a proposta das Diretrizes Curriculares, a Lei de
Estágio 11.788/2008; as Recomendações aos Serviços-Escolas – CRP/SP, e o
Código de Ética Profissional de Psicologia. Sabemos do empenho de importantes
instituições na busca das melhorias dos cursos de psicologia: acompanhar isso e
buscarmos contribuir com essas mudanças tem sido nossa preocupação. Tais
projetos de estágio organizam a oferta das Ênfases Curriculares obrigatórias hoje
nos PPCs e na qual estamos vislumbrando a chamada Clínica do Social. A
preocupação com a formação de futuros psicólogos deve ser uma constante, uma
vez que como nos lembra PATTO (2013)14 há o exercício do poder dado pelo
diploma, de modo que o risco está lançado na medida em que sabemos que o
psicólogo pode desempenhar o papel daquele que “administra as subjetividades”.
Por algumas vezes deparo-me com alunos iniciando seus estágios e que me
trazem a preocupação com certa ansiedade: o que farão? Estarão preparados para
atender ao outro? Uma insegurança importante, que em minha escuta confere um
lugar de cuidado com o outro: são alunos que estão atentos ao que irão fazer diante
do sofrimento do próximo e que portanto estão “desgarrando-se” da chamada
13
MERQUIOR, M. “O cenário contemporâneo: violência e drogadição entrelaçando contextos de
subjetivação” In: Revista de Psicanálise Percurso. São Paulo, n. 28, 1º. Semestre, 2002.
14
Em Mesa de debate e lançamento do livro: “Formação de psicólogos e relações de poder: sobre a
miséria da psicologia”.
156
“coisificação do sujeito”; buscam a não dogmatização15 da prática psicológica – algo
tão comum em nossa realidade profissional.
Fazer parte da Rede Básica de Saúde do Município tem sido nosso mais
recente desafio. Um projeto ainda em longo prazo, pois toda construção requer
cuidado e as dificuldades e desafios também se mostram constantes. Nossa aposta:
buscar “saber-fazer” com a falta. A partir dessas considerações proponho um debate
aos aqui presentes.
Referências
AUBERT-GODARD, Anne. Verbete desamparo In: MIJOLLA, Alain de. Dicionário
Internacional da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2005
FIGUEIREDO, L.C.M. Revisitando as Psicologias. Da Epistemologia à Ética das
Práticas e Discursos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009
MANONNI, Maud. Um saber que não se sabe. Campinas: Papirus, 1989.
MERQUIOR, M. O cenário contemporâneo: violência e drogadição entrelaçando
contextos de subjetivação. In: Revista de Psicanálise Percurso. São Paulo, n. 28, 1º.
Semestre, 2002.
PATTO, M.H. Formação de psicólogos e relações de poder: sobre a miséria da
psicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013.
Sobre a autora
Maria Cristiane Nali: Mestrado em Psicologia Clínica (Núcleo de Psicanálise) pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (2002). Pós Graduação Lato Sensu em Psicologia da Saúde –
CAISM – UNICAMP (1996). Graduação em Psicologia pela Universidade São Francisco (jun/1995).
Atualmente é professora universitária e supervisora de estágios na FAAT – Faculdades Atibaia, da
qual é coordenadora do Serviço Escola da Clinica de Psicologia da FAAT. Professora convidada para
Curso de Pos Graduaçao em Educaçao do UNISAL – Centro Universitário Salesiano de Campinas e
do CEFAS – Campinas. Atende em consultório particular em Campinas. Tem experiência na área de
Psicologia Hospitalar e Psicologia Clínica com ênfase em psicanálise de adultos, adolescentes e
crianças. Temas de interesse: psicanálise em instituições, mal estar contemporâneo, saúde mental e
psicanálise com crianças.
15
A dogmatização no exercício profissional do psicólogo é amplamente discutido por Figueiredo
(2005).
157
IMPLANTAÇÂO DO SERVIÇO DE ORIENTAÇÂO AOS PAIS NO
CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA: UM PROTOCOLO
COMPORTAMENTAL
Ana Gabriela Pinheiro S. Annicchino
Jaíne Meireles Rocha
Larissa de Aguirre Silva
Introdução
As preocupações sobre o modo de educação dos filhos e das consequências
dessa educação a partir de diferentes modelos de pais, do ponto de vista científico,
iniciou-se por volta da década de 1930, e teve destaque quando Baumrind (1966)
marcou os estudos realizados sobre educação pais-filhos propondo e descrevendo
tipos de controle parental, incluindo variáveis emocionais e comportamentais.
Diversos outros autores engajaram-se na compreensão das relações
parentais; no entanto como este estudo pauta-se na perspectiva analíticocomportamental faz-se necessário realizar uma breve e simplificada exposição da
teoria, a fim de posteriormente evidenciar como ela atua frente às relações
parentais.
A análise do comportamento é uma abordagem psicológica que busca
compreender o ser humano a partir de suas interações com seu ambiente, e pautase no conceito de seleção pelas consequências de Charles Darwin. Ou seja, é uma
abordagem interacionista e selecionista. (MOREIRA; MEDEIROS, 2007)
O objeto de estudo de um analista do comportamento são as contingências
de reforçamento. Contingência é qualquer relação de dependência entre eventos
ambientais, ou entre eventos comportamentais, ou ainda entre ambos. Ou seja,
evidencia a probabilidade de um evento ser afetado por outro evento. (SOUZA,
2001).
A unidade de análise envolve então uma situação antecedente, a resposta, e
a consequência. Assim, todo comportamento operante é produto de um processo
158
que implica a interação entre o indivíduo e o ambiente, e a partir de tal interação
ambos modificam-se (GUILHARDI, 2004).
Portanto,
de
maneira
simplificada
podemos dizer
que
o
psicólogo
comportamental trabalha com o comportar-se dentro de contextos. (MATOS, 2001)
As relações que os pais estabelecem com seus filhos são permeadas pelo
cuidado, educação e promoção do desenvolvimento deles, resultando em um
conjunto característico de comportamentos em que ambos modificam-se, e com o
qual a criança desenvolve-se nos aspectos emocionais e comportamentais. É nesse
contexto que definimos Relação Parental. (MACARINI et al., 2010)
Uma Relação Parental positiva demonstra-se crucial ao desenvolvimento de
comportamentos socialmente adequados; no entanto, com frequência, as famílias
acabam estimulando comportamentos inadequados por meio de práticas educativas
inconsistentes, onde existe pouca interação positiva, pouco monitoramento e
supervisão
insuficiente
das
atividades
da
criança.
(BOLSONI-SILVA
E
MARTURANO, 2002)
As estratégias utilizadas pelos pais com o objetivo de cumprirem o papel de
agentes de socialização dos filhos são denominadas por alguns autores de práticas
educativas parentais (ALVARENGA E PICCININI, 2001)
Com o objetivo de ensinar os pais a manejarem as contingencias de práticas
educativas e assim influenciar de maneira benéfica na qualidade da interação
familiar e no desenvolvimento das crianças, Weber et al (2006) desenvolveram um
programa através de pesquisas demonstrando que a boa interação familiar propicia
um desenvolvimento mais saudável nas crianças. Diante das inúmeras dificuldades
e dúvidas encontradas pelos pais e mães para educarem e manterem uma boa
interação familiar, o programa foi elaborado e aplicado para orientar e treiná-los para
uma relação parental mais efetiva. Este programa foi denominado: “Programa de
Qualidade na Interação Familiar” (PQIF).
A necessidade de uma intervenção objetivando a orientação de práticas
educativas a pais surgiu da observação de supervisores e coordenadores do Centro
de Psicologia Aplicada – CPA, da Universidade Paulista – UNIP, Campinas, em
atendimentos realizados com crianças, nos quais inevitavelmente envolviam-se os
159
pais. Sendo assim, no ano de 2014 foi montado e aplicado esse programa de
intervenção pioneiro no CPA.
Dessa forma, este artigo objetiva descrever e analisar a forma como o
programa foi implantado neste serviço.
Método
Participantes
Participaram da intervenção 7 mães e 1 pai, com idades entre 33 e 41 anos,
nível de instrução entre ensino fundamental e superior, que possuíam entre 2 e 5
filhos, com idades que variavam entre 2 e 14 anos.
Instrumentos
O principal instrumento para a estruturação da intervenção foi o Programa de
Qualidade na Interação Familiar, desenvolvido por WEBER, LND; BRANDENBURG,
OJ; SALVADOR, APV. (2006). No entanto a fim de atender a demanda da
população e da instituição foram realizadas algumas adaptações como: duração
menor dos encontros, que passaram de duas horas para uma hora e trinta minutos;
o aumento no número de encontros de 8 para 9 e a substituição de uma das
atividades propostas no sétimo encontro, mantendo contudo o mesmo objetivo.
Procedimentos
A primeira sessão teve como objetivo apresentar o grupo, levantar as
principais dificuldades familiares e definir o contrato. Sendo assim todos
apresentaram-se e relataram as principais queixas e motivos do interesse na
participação do grupo.
A segunda sessão teve como objetivo integrar os participantes e trabalhar
com as noções sobre os princípios de aprendizagem e operacionalização dos
comportamentos. Para a integração do grupo foi utilizada uma dinâmica denominada
160
de “teia”, que possibilitou a reflexão acerca da ligação entre todos os membros do
grupo, enfatizando a relação de dependência e ajuda que estava sendo construída e
a responsabilidade de todos por mantê-la. Posteriormente, foram discutidas as
expectativas de cada participante em relação ao grupo. A primeira explicação teórica
pautou-se nas noções básicas de definição de comportamento, descrição de
comportamento, análise do contexto onde este ocorre e análise das consequências.
Além de explicitar e analisar os três meios de aprendizagem de um comportamento,
sendo eles: a experiência, a observação, e a instrução (regra). Para melhor
compreensão após as definições teóricas, os conceitos eram exemplificados em
situações que os participantes apresentavam. Neste encontro foi dada a primeira
tarefa de casa, sendo esta a de anotarem três regras que normalmente os filhos
desobedeciam.
A terceira sessão teve como objetivo mostrar aos pais a necessidade de
regras claras, consistentes e coerentes, e também, a necessidade de monitorar o
comportamento da criança a fim de propiciar um desenvolvimento infantil saudável.
As estratégias utilizadas para atingir tal objetivo foram a dinâmica chamada “Quaqua-bum”, onde por meio de uma atividade em que os números de 1 a 10 ganhariam
outros nomes ficou exemplificado que mudar algo que já está condicionado ao
aprendizado é tarefa difícil, mas que como na atividade, se houver persistência,
paciência e treino é possível adequar-se ao novo modelo – enfatizando-se que
iríamos propor um novo modelo de práticas educativas. Posteriormente outra
dinâmica foi realizada, esta denominada “quem vai para a lua”. Nesta atividade havia
uma regra que somente as terapeutas sabiam, e a cada tentativa de descoberta dos
pais eles eram consequenciados de maneira não contingente. O objetivo foi
proporcionar aos participantes a vivência de sentimento de insegurança e medo da
punição por não conheceram qual era a regra vigente, assim puderam sentir como
era desagradável estar em uma situação em que as regras não eram claras, como
normalmente é comum acontecer em situações familiares. Esta atividade evidenciou
o quanto a imprevisibilidade de regras e punições pode gerar sentimentos ruins.
Realizou-se a explicação teórica sobre regras e limites, destacando a necessidade
de clareza, coerência, consistência e monitoria das regras. A fim de analisar
situações reais, foram utilizadas as regras que os participantes haviam escrito na
161
tarefa de casa. Posteriormente, foi entregue um pedaço de barbante a cada um e,
sob o comando da instrução, os participantes tentaram, por cerca de 5 minutos, sem
sucesso, segurar as duas pontas do barbante e, sem soltar as mãos, fazer um nó,
exemplificando desta forma, que, quando uma regra é dada sem nenhuma instrução,
a probabilidade de uma criança fazê-la da maneira certa é muito baixa; já quando os
pais acompanham e instruem as crianças nas atividades, as chances são muito
maiores. Para encerrar o encontro foi lido o texto “Divirta-se com seus filhos”, que
abordava a importância de regras somente para o que era necessário. A tarefa de
casa dada nesta sessão foi anotar seis comportamentos adequados de cada filho, e
o auto registro, solicitando que anotassem situações em que conseguiram
determinar regras claras, consistentes e coerentes.
A quarta sessão, em acordo com o PQIF, teve como objetivo enfatizar a
educação positiva, ou seja, fazer com que os pais percebessem que normalmente
eles prestam mais atenção nos erros e defeitos de seus filhos do que em seus
acertos e qualidades. O objetivo central foi ensiná-los a observar e valorizar os
comportamentos adequados dos filhos, e ainda propor a reflexão de que disciplinar
não significa focar os erros e punir, mas também incentivar e motivar para o
comportamento
adequado.
A
sessão
iniciou-se
através
da
discussão
do
autorregistro da semana, que se tratava de observar e anotar algumas ocasiões em
que os pais tivessem conseguido determinar e estabelecer regras importantes de
forma clara e coerente, cumprindo com a consequência combinada, refletindo sobre
como foi fazê-lo e sobre as reações dos filhos.
Em seguida, foi realizada a atividade “Foco no erro”: esta propiciou uma
reflexão no sentido da necessidade de os pais mudarem o foco, e passarem a
prestar mais atenção em seus filhos quando estes comportam-se satisfatoriamente.
Tal reflexão foi complementada com a leitura do texto “O cachorro e o açougueiro”,
evidenciando como muitas vezes, aos olhos dos pais, o desempenho da criança
parece estar abaixo do esperado, mas quando observada “de longe”, a criança pode
demonstrar muito acertos.
Procedeu-se
a
explicação
teórica
sobre
“Consequências
para
comportamentos adequados (reforço)” em que foram abordados pontos como:
conceito de reforço, tipos de reforço (sociais, atividades e materiais), o que deve ser
162
reforçado, a subjetividade inerente ao que pode ou não ser reforçador, os efeitos do
reforço no comportamento da criança, o equilíbrio e formas operacionalizadas de
liberação de reforços. Discutiu-se a tarefa de casa, relacionada aos comportamentos
adequados dos filhos mobilizando grande interesse por parte dos pais, atentando-se
para a necessidade do reforço para instalar um novo comportamento.
Realizou-se o treino da habilidade de “elogiar” com o objetivo de chamar a
atenção para o quanto o reforço pode colaborar para o aumento da qualidade na
interação familiar, de forma simples.
Finalmente, explicou-se a tarefa de casa e o autorregistro para serem feitos
durante a semana e a leitura do texto “Reflexões de uma mãe”, que deu um tom de
encerramento e mobilizou emoções nos pais em relação a como frequentes
apontamentos para erros e punições podem distanciar afetivamente os pais de seus
filhos.
A quinta sessão teve como objetivo informar e alertar os pais sobre os
problemas que podem surgir com o uso de punições exageradas e inadequadas,
além de apresentar formas alternativas e eficazes para consequenciar os
comportamentos inadequados. Assim, realizou-se uma explicação teórica sobre
punição, ressaltando os tipos de punições inadequadas e suas consequências
(surras, palmadas e broncas exageradas), e depois enfatizando as alternativas e
suas consequências (ignorar, time-out, castigo e diálogo). Utilizou-se da tarefa de
casa
para
se
discutirem
algumas
dúvidas
e
realizarem-se
orientações.
Posteriormente, as terapeutas encenaram um teatro quer reproduzia uma interação
entre mãe e filha, depois solicitou-se que identificassem o que havia sido
inadequado bem como sugerissem alternativas de como consequenciar tais
comportamentos de maneira adequada. Foi realizada também a leitura do texto
“Pense bem” de Aldina Machry. Ao encerramento do encontro a tarefa de casa foi
dada: anotar formas utilizadas para demonstrar afeto e o autorregistro; anotar como
eles deram consequências para seus filhos após se comportarem mal.
A sexta sessão teve como objetivo sensibilizar os pais para que sejam
empáticos aos filhos, mostrando a importância da demonstração de afeto, de
participar e de envolver-se efetivamente na vida destes. Para isto, utilizamos a
atividade: “Você conhece bem seu filho?”, uma dinâmica que contém perguntas que
163
devem ser respondidas pelos pais como se eles fossem os filhos. A explicação
teórica foi feita salientando a importância do vínculo, os benefícios da demonstração
do amor incondicional e explicitadas formas de operacionalizar o amor, de forma
simples. Diferenciou-se a questão complexa entre a superproteção e o amor
incondicional, explicando os prejuízos do primeiro e deixando claro que não são
semelhantes. Posteriormente, foi realizado um treino de atividades, que consistiu em
fazer com que cada integrante do grupo elaborasse uma lista com atividades
concretas que eles deveriam fazer durante a semana para expressar amor pelos
filhos. A lista foi elaborada no grupo, e ficou como tarefa de casa para, na próxima
semana, trazerem o que conseguiram realizar e quais os sentimentos dos filhos
frente a tais demonstrações. O autorregistro da semana consistiu-se em anotar ao
menos três ocasiões em que foi possível transformar o amor em ação prática, além
de refletir as facilidades, as dificuldades e a reação das crianças.
Na sétima sessão o objetivo foi provocar uma reflexão profunda sobre a
educação que os participantes receberam em sua infância, analisando as diferenças
contextuais de quando eram crianças e as atuais, além de refletir sobre a
transmissão intergeracional das práticas educativas parentais. Inicialmente, foi
realizada uma discussão sobre o autorregistro do encontro anterior, sobre
transformar amor e ações. Demos início à atividade chamada “Voltando no tempo”
através de um relaxamento, com o objetivo de fazer com que os pais refletissem
sobre a história familiar, ao se lembrarem da maneira como foram educados, os
sentimentos produzidos por tal educação, e a pensar no modelo de educação de
seus pais repetindo-se com seus filhos. Na explicação teórica sobre a análise
intergeracional, destacou-se a análise do contexto histórico de cada geração, a
compreensão do processo de modelação, e exercício de empatia com os filhos. A
fim de discutir possíveis ressentimentos pelas lembranças da atividade “voltando no
tempo” foi lido o texto denominado “Perdão”, traduzido pela psicóloga Lídia Weber.
O encontro foi encerrado com a explicação da tarefa de casa: anotar três
características dos filhos que eles percebiam em si mesmos.
A oitava sessão teve como objetivo propiciar a auto-observação como
pessoas, antes de serem pais, dando ênfase à qualidade de cada um – além de
facilitar a percepção de modelo de comportamento para os filhos. Para isto, a fim de
164
prepará-los para uma fantasia, foi realizado um relaxamento seguido da fantasia da
roseira, que teve o objetivo de auxiliá-los a se auto-observarem, deixando-os mais
sensíveis às características pessoais e para a importância de dedicarem-se à autoobservação e ao autoconhecimento.
Ao final da atividade, solicitou-se que verbalizassem como haviam-se
imaginado como roseiras. Procedeu-se a explicação teórica sobre autoconhecimento
e sobre modelo. Posteriormente foi lido o texto “A casa dos mil espelhos”, que
propiciou uma reflexão sobre modelo. No encerramento do encontro, a tarefa de
casa foi explicada e referia-se a se anotarem comportamentos que os pais gostariam
de mudar neles próprios, além de anotarem, no autorregistro, quantas vezes haviam
emitido tal comportamento e apresentaram alternativas para estes em cada
situação.
Na nona sessão o objetivo foi o encerramento do grupo, a obtenção do
feedback dos pais sobre o aproveitamento do conteúdo e do grupo em geral, e a
despedida.
Resultados e discussão
Os resultados foram divididos em categorias temáticas e analisados
qualitativamente, de acordo com os objetivos gerais dos encontros.
– Princípios de aprendizagem
No começo da intervenção com os pais, todos tinham um olhar mais simplista
em relação ao comportamento; ao longo dos encontros no grupo aprenderam sobre
a influência do ambiente e passaram a olhar para o contexto em que o
comportamento ocorria. Nos últimos encontros, já conseguiam discriminar
antecedentes e consequentes e eles mesmos autoanalisavam-se em grupo.
– Regras e limites
De forma geral, a maior demanda dos pais relacionava-se ao tema Regras e
Limites. Todos eles tinham dificuldades, pois colocavam regras inconsistentes e
inespecíficas. A partir do encontro em que foi discutido o tema, a imposição de
165
regras tornou-se mais adequada e os pais relatavam as dificuldades iniciais da
mudança e os resultados finais, demonstrando a diminuição significativa de queixas
como dificuldade no momento do banho, de guardar os brinquedos, de escolher
roupas ou brincadeiras, entre outros momentos que geravam conflito.
– Consequências para comportamentos adequados
Quando iniciaram no grupo, os pais tinham dificuldades em perceber os
comportamentos adequados que os filhos emitiam; assim, também tinham
dificuldade em consequenciá-los de forma adequada. Duas mães trouxeram
resultados rapidamente em relação às dificuldades que tinham com suas filhas, pois
em vez de apenas punir os comportamentos inadequados de “não ter boas notas” e
“não vestir a roupa”, passaram a reforçar os comportamentos adequados de
“estudar” o que consequentemente aumentou a média escolar, e “escolher entre
duas opções de roupas” e consequentemente, vesti-las.
– Consequências para comportamentos inadequados
Com exceção de uma mãe, que não apresentou demanda nesse sentido,
todos os outros apresentaram, mas significativamente, uma mãe e um pai que não
consequenciavam os comportamentos inadequados e outra mãe que praticava
punições mais agressivas, inclusive através de agressões corporais. Após o grupo,
os pais entenderam que, diante da quebra de uma regra e de um comportamento
inadequado, os pais devem aplicar uma consequência, mas essa deve ser amena,
desaconselhando-se absolutamente a punição corporal. A mãe que, habitualmente,
corrigia o filho com agressões corporais relatou já não proceder mais desta forma e
um casal de pais que participava juntos do grupo, passou a consequenciar os
comportamentos inadequados, de forma adequada e coerente com a idade dos
filhos.
– Relacionamento afetivo e envolvimento
Os pais que se mantiveram no grupo não apresentaram dificuldades em
relação a esse tema, e o único pai participante foi quem se mostrou mais afetivo.
166
– Voltando no tempo, Autoconhecimento e Modelo
Esses temas trataram mais de condições dos pais para a mudança em
relação as suas práticas educativas.
No “Voltando no tempo” em que trabalhamos Modelo Intergeracional,
Empatia, Autoconhecimento e Modelo, o pai foi quem mais se engajou e sua
esposa, pelo contrário, se esquivou. Abordaram-se temas mais profundos, que
envolviam questões pessoais e a história de cada um dos pais; portanto, esperamse de fato reações diferentes. Vale ressaltar que, neste momento, voltaram a
aparecer a culpa e a preocupação das mães em relação à responsabilidade do “ser
mãe”.
Além desses temas, outros foram discutidos de forma mais geral, tal como a
questão da pressão e do julgamento da família e da sociedade frente à maneira que
os pais educam seus filhos, as interferências familiares que geralmente mais
atrapalham que ajudam, além de tirarem a autoridade dos pais frente aos filhos –
principalmente no caso das mães que atualmente estão solteiras; e o sentimento de
culpa, muito presente nas mães que participaram do grupo.
No último encontro, houve a revisão em relação aos temas anteriores e o
fechamento. Neste momento, os pais puderam ter um feedback mais individualizado,
através de uma síntese retrospectiva da sua participação no grupo e o apontamento
em relação às mudanças que eles promoveram em sua família. Além disso, também
tiveram a oportunidade de oferecer-nos um feedback, relatando que, como pais,
sentem-se mais seguros e mais próximos dos filhos, tendo aprendido a lidar melhor
com eles, referindo ter gostado muito do grupo, sendo muito significativa a
participação e agradecendo às facilitadoras.
Considerando os aspectos descritos e analisados foi possível encontrar
pontos convergentes e divergentes das teorias sobre as relações parentais e as
práticas educativas, além de evidenciar os resultados e benefícios do programa para
treinamento de pais nessa instituição.
A demanda por abordar o sentimento de culpa foi salientada por todas as
mães participantes do grupo, contudo não era um tema proposto pelo programa de
167
qualidade na interação familiar. Já o tema relações afetivas, que era proposto pelo
programa, não foi trazido pelos participantes.
Outros aspectos observados foram o repertório melhor desenvolvido de
afetividade ser o do pai, e que o casal participante engajou-se no programa de forma
mais efetiva do que as demais mães, além de que uma das mães que já frequentava
o serviço de psicologia juntamente com os filhos, há um tempo médio de 3 anos
evidenciou que se sentiu mais segura na relação com os filhos após a participação
no grupo de orientação, o que resultou na alta dela e dos filhos nas psicoterapias
individuais.
Conclusão
Diante do desenvolvimento deste projeto-piloto, consideramos que seria
interessante para os futuros grupos a realização de uma triagem com os pais, para
limitar demandas mais coerentes com a proposta do grupo e com crianças com
limite de idade mais específico, já que com pais de adolescentes outras e diferentes
orientações também são necessárias. Assim, pensamos que também seria
interessante o entrelaçamento com o serviço de psicodiagnóstico já existente no
CPA, já que apesar do atendimento objetivar sanar a demanda infantil, os pais
trazem também diversas questões, em sua maioria, relacionadas a práticas
educativas.
E ainda, no grupo, o assunto da culpa dos pais, principalmente das mães em
relação à educação dos filhos, esteve sempre presente e embora tenha sido
trabalhado de maneira geral, consideramos que seria necessário um encontro para
realizar acolhimento e reflexão somente sobre esta questão.
Importante também ser possível avaliar os resultados dos grupos de maneira
qualitativa, através da aplicação de instrumentos padronizados, tal como a Escala de
Qualidade na Interação Familiar (EQIF), desenvolvida pela mesma autora do
programa.
168
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Sobre as autoras:
Ana Gabriela Pinheiro S. Annicchino: Psicóloga e Coach. Docente no curso de Psicologia da
Universidade Paulista – UNIP. Possui mestrado em Saúde Mental pela Universidade Estadual de
Campinas (2005). Atualmente é psicóloga, em clínica particular. Tem experiência na área de
Psicologia, com ênfase em Psicologia Cognitivo-Comportamental e Terapia Cognitiva Processual,
atuando principalmente nos seguintes temas: transtornos de ansiedade, depressão, transtornos
alimentares e transtornos de personalidade. Formação em coaching pelo Instituto Brasileiro de
Coaching certficado pela European Coaching Association e pela Global Coaching Community.
E-mail: [email protected]
Jaíne Meireles Rocha: Estudante de Graduação do curso de Psicologia – UNIP-Campinas.
Larissa de Aguirre Silva: Estudantes de Graduação do curso Psicologia – UNIP-Campinas.
170
PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO: PRÁTICA CLÍNICA E PROCESSO
ENSINO-APRENDIZAGEM
Marizilda Fleury Donatelli
Ligia Corrêa Pinho Lopes
Em nossa vida profissional trabalhamos há muitos anos como supervisoras de
estágio de Psicodiagnóstico Interventivo em clínicas-escolas de universidade. Esta
modalidade de atendimento psicológico foi criada no final da década de setenta pela
professora Marília Ancona-Lopez e sua equipe.
Na época foi uma proposta inovadora no Brasil, pois na visão geral o
Psicodiagnóstico era uma coleta de informações, uma investigação minuciosa que
tinha por objetivo dar um parecer clínico e encaminhar o cliente quando isto fosse
necessário.
A professora Marília Ancona-Lopez e sua equipe defenderam a ideia de que
o Psicodiagnóstico podia ser um processo ativo que incorporasse não só a
investigação como também a intervenção. Argumentaram quanto à necessidade de
o cliente apropriar-se de seu diagnóstico, não como figura passiva, mas sim como
agente que construiu junto com o psicólogo sua história, desvelando a trama de
relações na qual está imerso.
Esse atendimento consiste em um processo que intercala sessões com a
criança e sessões com os pais ou responsáveis. No caso da criança, as sessões
destinam-se a conhecê-la, conhecer seu mundo interno, suas fantasias, desejos e
ansiedades. A principal característica da relação do psicólogo com a criança é o fato
de que toda compreensão é compartilhada. Cabe ao psicólogo explicitar suas
observações e percepções, relacionando o que se vai apresentando no decorrer dos
atendimentos com as vivências relatadas. A criança participa das intervenções,
orientando, completando ou ainda corrigindo a compreensão do psicólogo. Do ponto
de vista dos pais, as sessões objetivam o compartilhamento de nossas percepções
sobre a criança, bem como uma reflexão sobre as condutas que poderiam ser
171
adotadas por eles para auxiliar as crianças na resolução de suas dificuldades. Desta
maneira, é possível ainda relacionar as dificuldades parentais com as da criança, o
que consiste em um recurso a mais para a compreensão diagnóstica. Além disto, os
pais possuem um conhecimento de seus filhos que, quando compartilhado com o
psicólogo, pode gerar uma construção conjunta da compreensão da criança e de si
mesmos. Assim sendo, os responsáveis são tomados também como clientes, uma
vez que o foco do processo ultrapassa a individualidade da criança. Não se trata,
entretanto, de um diagnóstico familiar, mas sim, de uma proposta que considera a
criança como parte da família, privilegiando o contexto familiar e social. Inicialmente
e também atualmente essa modalidade de atendimento foi e é realizada por nós
numa abordagem fenomenológico-existencial.
Na clínica-escola este procedimento consistia e consiste ainda em um
atendimento grupal, caracterizado pelas presenças de pais, alunos estagiários e
clientes em uma semana e na posterior crianças, alunos estagiários e supervisor.
De acordo com Ancona-Lopez (1995, p.77):
O cotidiano das clínicas-escola envolve atenção aos clientes e aos
alunos. Profissionais e estagiários são chamados a desempenhar vários
papéis
simultaneamente:
de
alunos,
professores,
supervisores,
pesquisadores e psicólogo clínico. Papéis que implicam em funções nem
sempre harmônicas entre si e exigem muitas vezes procedimentos
conflitantes, gerando incômodos. Assim, aos supervisores cabe, enquanto
psicólogos, acompanhar os atendimentos realizados e zelar pela saúde
psíquica do cliente e, enquanto professores, formar profissionais
competentes, orientando a prática dos estagiários e fornecendo os
conhecimentos necessários para a atuação clínica.
Partimos do pressuposto de que no mundo tudo se dá por meio de relações,
ou seja, nossa concepção é que o ser humano é sempre um ser que se constitui
junto com outros seres. Essa concepção legitima um atendimento psicológico
172
pautado em sessões com a criança e outras com seus pais. Esse modo de entender
a existência humana também permite a utilização de recursos como visita escolar e
visita domiciliar. É preciso ressaltar que utilizamos este modelo com alunos
estagiários do quarto ano do curso de Psicologia e que dividimos estes alunos em
duplas e cada uma delas responsabiliza-se por um cliente, ou seja, criança e seus
pais ou responsáveis.
Trinta anos passaram-se desde esta época, o mundo modificou-se e com
isto os clientes que buscam atendimento na clínica psicológica, especialmente na
clínica-escola, também se modificaram.
Antes
nos
deparávamos
com
questões
relativas
à
dificuldade
de
aprendizagem, timidez, agressividade; hoje ainda nos deparamos com estes casos,
mas não raro eles vêm acompanhados por fatores como insuficiência do sistema
educacional, bullying, violência doméstica, abuso de ordem sexual, diagnósticos
realizados informalmente por professoras, pediatras etc.
No caso do sistema educacional, o fator preponderante é a aprovação
automática que promove o aluno independentemente de seu desempenho escolar.
Isto faz com que recebamos crianças que cursam a quinta série do ensino
fundamental, por exemplo, e ainda não estão alfabetizadas. Acrescentando-se a isto
o fato de haver muitos alunos por sala de aula, e professores muitas vezes
despreparados para dar conta das diferenças individuais. A escola diagnostica a
criança como “problema”, a encaminha para o atendimento psicológico e se exime
deste modo, de qualquer responsabilidade em relação à sua aprendizagem. Os
casos de bullying acompanham frequentemente a vida escolar das crianças que
atendemos: perseguições, violência e abusos de todas as ordens fazem da escola
um ambiente inóspito e pouco acolhedor que, muitas vezes, atrapalha o
desempenho dos estudantes.
Esse panorama é complementado pelo fato dessas crianças pertencerem a
famílias desestruturadas ou sofrerem violência dentro de seus lares.
173
Os abusos de ordem moral e sexual também se tornaram hoje em dia uma
realidade nas clínicas-escola.
Assim, Ancona-Lopez, S. e Tchirichian (2013) comentam:
Embora considerando as questões sociais e as demandas do
mundo atual, não é nosso objetivo fazer uma análise sócio-histórica do
nosso tempo, mas levantar questões e organizar alguns elementos que
contribuam para uma reflexão prática sobre o psicodiagnóstico, levando
em conta o contexto no qual ele se dá. São questões que passam pelas
demandas de nossa época, pelas novas formas de linguagem e
comunicação, pelas novas configurações familiares e por aspectos ligados
á realidade brasileira, como nossas características socioeconômicas, a
crise de valores políticos e morais, a situação da educação e a cruel
realidade da violência com as quais nossas crianças convivem, seja no
âmbito familiar seja no âmbito social. (p.226).
Referimo-nos também aos diagnósticos feitos informalmente como é o caso
de hiperatividade e ou déficit de atenção, que não estão apoiados em exames
consistentes, mas que rotulam a criança como problema ou como doente e trazem
prejuízo a seu desenvolvimento e seu desempenho escolar.
É nesse contexto que se inserem nossas angústias e preocupações. Tudo
isso nos remete a várias perguntas e questionamentos: será que esta modalidade de
atendimento ainda atende às solicitações do mundo contemporâneo? Será que a
alta desistência nas clínicas psicológicas é indicadora de que há uma defasagem
entre o que é oferecido e a demanda do cliente? Algo deveria ser modificado no
atendimento? Como incorporar e trabalhar durante o psicodiagnóstico os aspectos
acima mencionados? Essas são algumas das muitas questões que o mundo
moderno impõe-nos.
Para respondê-las conversamos informalmente com vários supervisores de
estágio e pautamo-nos em nossa própria experiência a respeito de temas que
relacionamos abaixo:
174
– Alto índice de desistência por parte dos clientes
– Realização de uma avaliação global ou parcial da criança
– Eficácia ou não do atendimento em Psicodiagnóstico Interventivo
– Recursos utilizados no Psicodiagnóstico
– Dificuldades identificadas no aluno estagiário contemporâneo
– Propostas inovadoras nesta modalidade de atendimento
De modo geral, uma das maiores dificuldades encontradas no ensino desta
modalidade de atendimento refere-se à formação do grupo de clientes. Os
supervisores, e também nós que estamos escrevendo o presente artigo
encontramos uma grande dificuldade neste aspecto. Nas clínicas-escola há um livro
com o registro dos dados dos clientes que se inscreveram para atendimento
psicológico. Os supervisores selecionam os casos e a recepcionista da clínica
incumbe-se de chamar os clientes. Nas datas e horários combinados por meio de
contato telefônico o supervisor e o grupo de alunos aguardam numa sala
previamente arrumada a chegada dos clientes. Nesse ponto iniciam-se as
dificuldades, ou seja, em nossa experiência quando chamamos os clientes,
aproximadamente de 40% a 50% não comparecem ao primeiro atendimento,
embora tenham confirmado presença por telefone.
Assim a formação dos grupos fica comprometida. Na semana seguinte
chamamos os clientes faltantes e novamente cerca de 30% dos que foram
chamados para se juntarem ao grupo iniciado na semana anterior não comparecem
e há um agravante em alguns casos: uma porcentagem pequena de mães que
compareceram ao primeiro atendimento e fizeram a entrevista inicial não
comparecem no segundo atendimento.
175
Novamente o supervisor vê-se obrigado a chamar os clientes que faltam para
completar o grupo de pais. Isso é feito novamente até que o objetivo seja alcançado.
Contudo, essa alta desistência prejudica o andamento do atendimento e muitas
vezes a aprendizagem dos alunos estágiarios, já que estamos submetidos a um
calendário escolar, ou seja, o semestre letivo tem uma data para começar e também
para terminar. Assim fatores institucionais atravessam o atendimento psicológico
inevitavelmente e obrigam o supervisor a criar ferramentas e estratégias que
permitam num curto espaço de tempo dar conta de fazer um bom trabalho ao
usuário de serviço-escola e ensinar o aluno estagiário.
O leitor deve estar-se perguntando a que atribuímos essa grande desistência
dos usuários. Muitos fatores poderiam ser relacionados e gostaríamos de iniciar por
comentários a respeito do mundo contemporâneo.
Atualmente vivemos num mundo muito rápido e veloz, as informações são
coletadas e distribuídas rapidamente, as pessoas têm sempre pressa e muito pouco
tempo disponível. Do mesmo modo, vivemos num mundo que classifica, rotula e
medica de maneira igualmente rápida. E mais ainda, habitamos um mundo em que
as relações, os vínculos são descartáveis. Contudo, o que oferecemos no
Psicodiagnóstico Interventivo é um atendimento que dura pelo menos três meses,
portanto não se trata de uma consulta a partir da qual o paciente sai com um
diagnóstico e uma receita a ser seguida. O processo demanda por parte do cliente
um investimento de tempo, energia, constituição de vínculo e reflexão. Cremos que
nem todos atualmente estão dispostos a isso. Temos registro de que alguns
pacientes comparecem ao atendimento acreditando que estão indo ao médico, ou
seja, que sairão da clínica-escola logo na primeira entrevista com um diagnóstico
pronto. Quando se dão conta são convidados a participar de modo ativo num
processo que acena para a compreensão de necessidades, desejos tanto de seus
filhos quanto deles mesmos. Acreditamos que alguns aceitam o convite, outros não.
Segundo Pompéia (2011, p.124):
176
Esta é a época em que tudo pode ser produzido, em que tudo é
factível, de maneira cada vez melhor e mais rápida e, por isso, tudo pode
ser substituído por um modelo mais novo, não só no que diz respeito aos
artefatos, mas em todas as áreas. As novidades produzidas surgem a toda
hora e impõem-se rapidamente. Nossa época tornou-se a época na qual
não há mais lugar para mistérios, para nenhuma dimensão encoberta para
nada que recue diante do poder da razão e da vontade.
Outro fator que pode influenciar a desistência dos pais e até o não
comparecimento ao primeiro chamado é o fato de o pai ou a mãe ou ambos não
terem demanda para o processo psicodiagnóstico, ou seja, não reconhecem o fato
de que seu filho necessita de atendimento psicológico. Muitas vezes, a escola,
médicos, parentes próximos identificam uma questão de ordem psicológica, seja ela
de comportamento, de aprendizagem, cognitiva ou afetiva, mas os pais não. Estes
não se apropriam da queixa indicada e desta forma, eles, pais, recusam-se a
comparecer à clínica psicológica.
Fatores econômicos também podem e devem ser considerados. Não raro
temos o depoimento de mães que dizem não ter dinheiro para o ônibus ou similar.
Vale ressaltar que nosso entendimento a respeito do ser humano é que ele
constitua-se por esferas que se perpassam, ou seja, esfera intelectual, afetivoemocional, motora, relacional, biológica sem que cada uma delas atue isoladamente.
Cremos que tal separação é meramente didática, pois estas dimensões afetam-se
concomitantemente contribuindo, cada uma delas, para um determinado modo de
ser-no-mundo.
Esta, entretanto, é uma visão que combina com os pressupostos
fenomenológicos, mas não com todos os pressupostos das diferentes abordagens.
Sabemos que este processo atualmente é realizado em diferentes abordagens, o
que determina diferenças na prática clínica.
Em conversas e reuniões com supervisores de estágio que atuam na
supervisão de psicodiagnóstico interventivo ficou claro que alguns focalizam muito
177
mais o olhar na dimensão afetiva, o que a nosso ver faz da avaliação psicológica
uma avaliação parcial e não global da criança. Na busca de explicações para
determinados comportamentos que se encaixem na teoria os supervisores acabam
por excluir alguns aspectos.
Nessa mesma direção podemos considerar a eficácia ou não do processo de
Psicodiagnóstico Interventivo.
Como foi dito anteriormente, os pressupostos fenomenológicos permitem que
se entenda o ser humano como um ser que se constitui junto com outros seres. Isso
faz todo o sentido com a realização de um grupo de pais cuja finalidade é discutir,
refletir sobre o sentido do comportamento de seus filhos, buscando novos caminhos,
novas formas de lidar com os fenômenos.
Partimos da ideia de que qualquer atendimento psicológico implica na busca
de sentido que os clientes atribuem às suas experiências. Para alcançarmos este
objetivo fazemos uso do método fenomenológico que não se compõe de
interpretações, mas sim de descrições de determinados comportamentos ou atitudes
que desvelem o significado do material que o paciente, seja ele a criança ou seus
pais, traz para o atendimento psicológico. Assim, partimos de uma posição de não
saber a priori, não há nenhuma explicação prévia, há apenas aquela que se
descortina no processo psicodiagnóstico.
A respeito Yontef (1998, p.218) diz:
A atitude fenomenológica é reconhecer e colocar entre parênteses
(colocar de lado) ideias pré-concebidas sobre o que é relevante. Uma
observação fenomenológica integra tanto o comportamento observado
quanto relatos pessoais, experienciais. A exploração fenomenológica
objetiva uma descrição cada vez mais clara e detalhada do que é: e
desenfatiza o que seria, poderia ser, pode ser e foi.
178
Entendemos que os pais quando chegam ao grupo de pais com explicações
estão pautados no senso comum, em explicações gerais, mas muitas vezes com
pouco contato com aquilo que lhes é mais próprio. Buscamos então sair de
significados gerais compartilhados no senso comum para significados particulares,
que, de fato tem ressonância com o que é mais próprio e íntimo do cliente.
Consideramos essa posição como aquilo que propicia a intervenção e a
possibilidade de mudança de atitude por parte dos pais. Nesse contexto,
observamos muitos pais que por modificarem seu olhar, o modo de tratar a criança
durante o processo psicodiagnóstico, produzem também uma modificação no
comportamento da criança e, muitas vezes, a remissão do sintoma apresentado
inicialmente. Assim, temos elementos concretos para destacar a eficiência do
modelo de psicodiagnóstico interventivo quando este é realizado da forma como foi
concebido inicialmente.
Apesar disso, verificamos que quando o supervisor não faz grupo de pais já
que este esbarra em suas convicções teóricas, não valoriza as relações
extrapsíquicas, mas somente as intrapsíquicas, o que vale dizer que se importa
pouco com os pais reais e muito com os pais introjetados. O modelo não tem tanta
eficiência, já que se assemelha mais ao modelo tradicional de psicodiagnóstico, o
que implica quase que somente em um processo investigativo, que considera os
pais como informantes dos dados que a criança não é capaz de fornecer.
Nesta
mesma
direção
encontram-se
os
recursos
utilizados
no
psicodiagnóstico interventivo, ou seja, entendemos que as visitas domiciliar e
escolar são fundamentais para a compreensão global da criança. Apoiamo-nos na
ideia de que o ser humano é constituído pelos diferentes contextos nos quais se
insere. Somos de alguma forma coconstituídos pelos outros; o mundo humano,
então, é essencialmente o mundo da coexistência, assim interessa-nos conhecer os
locais nos quais as crianças estão inseridas e as pessoas com as quais se
relacionam.
Muitas vezes os pais comparecem à clínica-escola com uma queixa e,
inevitavelmente, formamos uma imagem daquela criança à luz do discurso dos pais.
179
Quando deparamo-nos com a criança, nem sempre o que vemos corresponde à
imagem construída, ou seja, a criança comporta-se de maneira completamente
diferente daquilo que imaginávamos. As perguntas que se seguem giram em torno
de “porque se comporta de uma forma aqui e de forma diferente em presença de
seus pais, em sua casa, ou na escola?” “Que fatores contribuem para esta alteração
de comportamento?”
Nessa perspectiva, recursos como as visitas domiciliar e escolar são
extremamente esclarecedores, uma vez que estende o olhar para além das
observações possíveis no espaço da clínica-escola.
Estas visitas são pouco usuais e até mesmo pouco aceitas pelos
profissionais, porque se afastam de uma determinada visão da prática clínica que
considera que o atendimento psicológico só pode ser realizado dentro do setting
terapêutico.
Safra (1983) aponta que este tipo de procedimento que faz intervenções a
partir de experiências do cotidiano é fundamental para a constituição da
subjetividade. O autor argumenta:
Tradicionalmente, na Psicologia e também na Psicanálise há uma ênfase no
estudo da subjetividade, do psiquismo, da realidade interna, ou do mundo
interno. O comum é conceber o homem independentemente do seu meio e
das suas ações no mundo. É um tipo de olhar que isola o ser humano e que
compreende as diversas manifestações psíquicas sempre a partir de uma
problemática subjetiva: alguma questão ou conflito que estaria ocorrendo no
mundo interno do paciente. (SAFRA, 1983, p.99).
A visita domiciliar é um recurso que inicialmente foi usado para compreender
as relações familiares, contudo no decorrer do tempo verificamos que não somente
as relações são passíveis de observação, mas também e principalmente a casa em
si, os objetos que a compõem, assim como a organização do espaço físico da casa
são reveladores do modo de estar no mundo de seus habitantes, trazendo
180
informações que contribuem em enorme escala para a compreensão dos
atendimentos realizados no psicodiagnóstico interventivo.
Corrêa (2004, p.62) refere:
Esses espaços cotidianos da vida são modelados e modificados de acordo
com a imagem do mundo que cada um carrega dentro de si e que é, por sua
vez, constituída por pessoas, lugares, valores, experiências, acontecimentos
associados a sentimentos. Esse mundo interno é projetado sobre os
espaços e sobre os objetos o que produz uma configuração que provoca
associações, estabelecendo uma via de mão dupla entre o mundo interior –
eu – e o espaço exterior – mundo. Ou seja, essa ligação entre o espaço –
mundo concreto – e subjetividade – mundo abstrato – estabelece uma
relação de similaridade entre eles.
Do mesmo modo a visita escolar produz uma compreensão mais clara das
relações que a criança estabelece no âmbito escolar. Referimo-nos às relações com
o conhecimento, com as regras e limites, com os colegas, com as pessoas que
representam figuras de autoridade etc. Quando se trata de queixa escolar, a visita
permite ainda uma avaliação sobre a contribuição da escola no fracasso escolar da
criança. Nem sempre a criança é responsável pela dificuldade escolar:
exemplificando melhor, nem sempre há um problema com a criança que justifique a
dificuldade de aprendizagem, muitas vezes a relação ensino-aprendizagem é que
está adoecida, a metodologia da escola não é eficiente, a escola não tem recursos
técnicos que facilitem a aprendizagem.
De acordo com Ghiringhello e Borges (2013, p.129):
A visita contribui também para aproximar o psicólogo clínico da
escola e para desmistificar a sua atuação (que há alguns anos restringiase ao trabalho no consultório, fato que impedia uma visão mais global das
queixas apresentadas) e, ao mesmo tempo, reduz os riscos de toda a
181
problemática infantil ser atribuída apenas a problemas intrapsíquicos,
culpabilizando a criança por suas dificuldades.
A utilização destes recursos é tão ou mais eficiente que a utilização de
recursos tradicionais como, por exemplo, testes psicológicos.
Nas conversas com supervisores de determinadas abordagens teóricas
notamos resistência quanto à utilização de tais recursos, haja vista que estes não
combinam ou brigam com a concepção de ser e mundo por eles adotadas.
Abordagens que pressupõem uma neutralidade, uma imparcialidade total por parte
do psicólogo, não compartilham da utilização dos citados recursos.
A nosso ver, essa posição é restritiva e não ilumina determinados aspectos
impossibilitando que o modelo seja realizado nos moldes que originalmente foi
construído.
Outra questão que é levantada pelos supervisores desta área de estágio e
considerada como uma dificuldade é a inexperiência do aluno estagiário que chega
ao CPA com nenhuma prática e conhecimentos esparsos. Referimo-nos ao fato de
que o aluno no curso de psicologia tem aulas sobre entrevista psicológica em um
semestre, sobre testes psicológicos em outro, sobre intervenções mais à frente etc.
O aluno teve aulas sobre todos esses aspectos, mas quando se vê diante da prática
clínica, não consegue juntá-los inicialmente.
Isso faz com que o supervisor dedique muito tempo para desenvolver um
pensamento clínico junto ao aluno, para alinhavar todo o conhecimento que foi
ensinado separadamente. Outra dificuldade que se refere à formação de nossos
alunos que muitas vezes manifestam baixa atitude de pesquisa e produção escrita,
fato que dificulta a díade ensino-aprendizagem.
Um atendimento psicológico realizado pelo aluno iniciante pede que ele
estude, faça muitas leituras, pesquise para que possa desenvolver o raciocínio
clínico e ao mesmo tempo oferecer ao usuário um serviço de qualidade. Embora o
182
supervisor de estágio esteja sempre presente no atendimento psicológico, há
necessidade de que o aluno dedique-se para que possa aprender e atender.
Ressaltamos que as tarefas do supervisor de psicodiagnóstico interventivo
são inúmeras, ou seja, sua função é a de psicólogo, pois é ele quem atende junto
com os alunos os clientes selecionados, além supervisionar os casos, corrigir
relatórios, rever teoricamente os recursos que serão utilizados, orientar os alunos na
aplicação de todos eles, nas intervenções que deverão ser realizadas e nas
conclusões diagnósticas e consequentes encaminhamentos, quando necessários.
Conforme foi dito anteriormente, o mundo moderno trouxe muitas mudanças
tanto nos clientes atendidos quanto nos alunos estagiários que atendem.
Não temos visto entretanto propostas de mudanças em relação ao estágio em
psicodiagnóstico interventivo. O que notamos foi a inclusão de novos recursos para
a realização do mesmo.
A colagem, por exemplo, é uma técnica projetiva que foi desenvolvida dentro deste
estágio e que tem por objetivo conhecer o mundo interno da criança a partir da
colagem de figuras em uma cartolina. As figuras referem-se a diferentes dimensões
e categorias da vida tanto humana, quanto animal, vegetal e de utensílios. As
crianças escolhem as figuras que lhe interessam e relatam uma história ou a
importância dessas escolhas para elas. Essa atividade, após concluída, pode ser
compartilhada com os pais, buscando a construção conjunta de significados; além
disso, pode também ser proposta para os pais na presença dos filhos.
Ferreira, Lopes e Santiago (2013, p.126) declaram:
Constatamos com a prática que as intervenções do psicólogo
durante o psicodiagnóstico interventivo são facilitadas por meio da
colagem. O aspecto lúdico dessa atividade parece também atuar como
motivação para sua realização e para compreensão de aspectos
subjetivos, expressos de forma simbólica.
183
Outro dispositivo que foi criado como auxiliar na compreensão dos casos
atendidos em psicodiagnóstico interventivo foi a avaliação da religiosidade.
Atualmente a maior parte da população identifica-se como religiosa, aderindo
a uma religião específica. A psicologia contudo sempre colocou a religião como algo
fora de seu domínio. No mundo atual faz-se necessária a inclusão da dimensão
religiosa na compreensão das dinâmicas individual e familiar. As crenças, dogmas e
preceitos religiosos das famílias influenciam a constituição da subjetividade das
crianças e, por essa razão não podem ser ignorados no processo diagnóstico.
Donatelli (2013, p.104) considera que:
Conhecer o indivíduo e seu mundo interno implica também conhecer suas
crenças, valores que, alinhados a outros modos de funcionamento,
permitem uma compreensão global do cliente. A compreensão da
religiosidade, conforme proponho neste trabalho, permite o recolhimento de
fatos, vivências, e significados que organizam a biografia pessoal, orientam
o raciocínio clínico do psicólogo e auxiliam a conhecer o modo de viver das
pessoas que o procuram.
Por fim, a construção do livro de história como devolutiva final infantil também
foi um recurso desenvolvido durante os anos em que nos dedicamos ao ensino do
processo de psicodiagnóstico infantil. Em nossa experiência deparamos-nos muitas
vezes com a dificuldade em dar devolutiva verbal para as crianças. Notávamos que
as crianças mostravam desconforto e constrangimento mediante tais devolutivas.
Assim passamos a construir uma história metafórica, cujos personagens eram
animais e cujo desenrolar estava baseado nos conflitos, desejos, ansiedades e
história de vida da criança. Esse dispositivo mostrou-se muito útil e sua eficácia não
se manifesta somente no momento da leitura do livro para a criança. O livro é dado
ao cliente que pode ler e reler o texto, fato que permite a elaboração de conflitos a
posteriori – explicando melhor, aquilo que não pôde ser elaborado durante o
processo psicodiagnóstico pode ser feito depois. Assim, o livro de história não é
somente um instrumento de finalização de um processo psicológico, mas também
um instrumento de intervenção.
184
Refletir sobre nossa prática clínica e acadêmica não nos leva a um porto
seguro, tampouco esgota nossos questionamentos, dúvidas e inquietações, mas nos
movimenta em busca de outras direções e compreensões.
Referências
ANCONA-LOPEZ, M. Introduzindo o psicodiagnóstico grupal interventivo. In:
Ancona-Lopez, M. Psicodiagnóstico processo de intervenção. São Paulo: Cortez,
1995.
ANCONA-LOPEZ, S. e TCHIRICHIAN, R.M. Desafios no psicodiagnóstico
infantil. In: Ancona-Lopez, S., Psicodiagnóstico interventivo: evolução de uma
prática, São Paulo: Cortez, 2013.
CORRÊA, L.C.C. Visita Domiciliar: Recurso para a compreensão do cliente no
psicodiagnóstico interventivo – Tese de Doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2004.
DONATELLI, M.F. A compreensão da religiosidade do cliente no
psicodiagnóstico interventivo fenomenológico-existencial. In: Ancona-Lopez, S.,
Psicodiagnóstico interventivo: evolução de uma prática. São Paulo: Cortez, 2013.
FERREIRA, M.F.; LOPES, L.C.P. e SANTIAGO, M.D.E. Colagem: uma prática
no psicodiagnóstico. In: Ancona-Lopez, S., Psicodiagnóstico interventivo: evolução
de uma prática. São Paulo: Cortez, 2013.
GHIRINGHELLO, L. e BORGES, S.L.P. Interlocuções entre a clínica
psicológica e a escola no psicodiagnóstico interventivo. In: Ancona-Lopez, S.,
Psicodiagnóstico interventivo: evolução de uma prática. São Paulo: Cortez, 2013.
POMPÉIA, J.A. e SAPIENZA, B.T. Os dois nascimentos do homem: escritos
sobre terapia e educação na era da técnica. Rio de Janeiro: Via Veritá, 2011.
SAFRA, G. A Loucura como ausência de cotidiano. Revista Psychê. Ano2,
n°2. São Paulo, 1998.
YONTEF, G. Processo, dialogo e awareness: ensaios em gestalt-terapia. São
Paulo: Summus, 1998.
185
Sobre as autoras
Marizilda Fleury Donatelli: possui graduação em Psicologia pela Universidade São Marcos
(1977) mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1996) e doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (2005). Atualmente é professora titular da Universidade Paulista. Tem experiência na área
de Psicologia, com ênfase em Tratamento e Prevenção Psicológica. Atuando principalmente no tema
Psicodiagnóstico Interventivo. E-mail: [email protected]
Ligia Corrêa Pinho Lopes: Possui graduação em Psicologia pela Universidade São Marcos
(1990), especialização em Psicopedagogia pela Universidade São Marcos (1992), especialização em
Psicoterapia reve pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa Em Psicoterapia reve (1996), Mestrado em
Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1996) e Doutorado em Psicologia
(Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (200 ). Atualmente é
professora titular da Universidade Paulista. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em
Tratamento e Prevenção Psicológica. Atuando principalmente nos seguintes temas: Visita Domiciliar,
Fenomenologia, Psicodiagnóstico, Intervenção. E-mail: [email protected]
186
OS CUIDADOS DA SAÚDE MENTAL DO PSICÓLOGO:
Relatos de Profissionais da Saúde Pública
Andréa Lucas Alves Calvi
Jaíne Meireles Rocha
Marizete Gouveia Alves dos Santos
Raul de Freitas Dias
Maria da Piedade Romeiro de Araújo Melo (Orientadora)
“Não há resgate de cidadania, não há acolhimento à diferença
radical, que representa a loucura, se os profissionais que com ela
trabalham não forem, eles também, respeitados em suas diferenças e
reconhecidos como sujeitos do seu trabalho” (PALOMBINI, 2003).
Resumo
Este trabalho teve como objetivo pesquisar como se dá a atenção à saúde
mental do psicólogo que atua na área de Saúde Mental pública. O interesse pela
pesquisa deu-se pelo fato de, estando prestes a nos formar, começamos a olhar
mais atentamente para a prática psicológica, e as condições que o profissional de
psicologia encontra. Preocupamo-nos assim, com esse aspecto que nos parece de
extrema importância que é o cuidado à saúde mental do psicólogo. Para realizar
este estudo, utilizamo-nos do método qualitativo de pesquisa, pois este responde a
questões muito particulares da singularidade do sujeito. Aprofundando-se no mundo
dos significados das ações e relações humanas. Desta forma, realizamos duas
entrevistas semiestruturadas com psicólogos atuantes no âmbito da saúde pública e
que estavam devidamente cadastrados no Conselho Regional de Psicologia. Os
dados obtidos foram discutidos por meio da Análise de Conteúdo que pareceu-nos
ser o mais adequado, uma vez que se propõem a evidenciar opiniões, críticas,
julgamentos, reações afetivas nos relatos e vivências dos sujeitos no momento da
entrevista. Os resultados foram divididos em quatro temas de acordo com o relatado
pelos profissionais, sendo eles: sobrecarga emocional relacionada ao trabalho em
saúde mental; recursos utilizados pelos psicólogos para lidar com a sobrecarga
emocional; cuidados à saúde oferecidos aos profissionais; percepções e
expectativas em relação à necessidade de ações voltadas ao cuidado à saúde
psicológica do profissional de saúde mental. Os resultados evidenciaram que o
trabalho em Saúde Mental gera sofrimento psíquico, que pode ser reconhecido
187
quando os profissionais falam sobre sobrecarga emocional, cansaço mental e abalo
emocional, e que é necessário um cuidado e atenção com a saúde mental do
psicólogo.
Palavras-chave: Políticas de Saúde; Políticas públicas; Saúde Mental; Saúde
ocupacional; Psicologia.
Abstract
This monograph aims to search how happens the care to psychologist mental
health who acts at the Mental Health in the area of statement assistance. The
interest of researchers was just because when we were almost finishing college, and
we started to look more carefully for psychological practice, and professional
conditions in psychology in our city or exercise of their professional practice. We are
concerned with this aspect, that seems to us very important, which is the
psychologist’s mental health care. To accomplish such a feat, in the use of qualitative
research method, because it responds to very particular issues. Expanding the world
of meanings of actions and human relations, in which corresponds to a deeper space
relations, therefore, semi-structured interviews were made with psychologists working
in the field of public health and who were duly registered in the Regional Council of
Psychology. The data obtained were analyzed using content analysis that seemed to
be the most suitable, once that purports to show reviews, criticisms, judgements,
affective reactions in reports and experiences of the subjects at the time of the
interview. The results were divided into four themes according to the reported by
professionals, being them: emotional overload related to work in mental health;
resources used by psychologists to deal with the emotional overload; health care
offered to professionals; perceptions and expectations regarding the need for actions
aimed at the psychological health care of mental health professional. Thus, we
obtained the job in Mental Health raises Yes, distress, which can be recognized
when the pros talk about emotional overload, mental fatigue and emotional turmoil.
Keywords: Health care policy, Public policies, Psychological health, Occupational
health.
188
O Homem e o trabalho
O homem não nasce homem; mas aprende a ser humano, vivendo em uma
sociedade produtora de bens e serviços, permanecendo como tal a partir da
produção da sua própria sobrevivência, ou seja, do seu trabalho (QUINTANEIRO,
2002). Dessa forma, podemos entender que a importância dos significados e dos
sentidos que o homem atribui ao seu trabalho pode ser estudada por diferentes
disciplinas e com múltiplas perspectivas teóricas. No entanto, a compreensão do que
constitui trabalho é um ponto de partida fundamental (TOLFO; PICCININI, 2007) .
Na perspectiva marxista o trabalho pode ser compreendido, de forma
genérica, como uma capacidade de transformar a natureza para atender
necessidades humanas (TOLFO E PICCININI, 2007, p.38). Segundo Codo (1997,
p.26.) o trabalho indica que há uma relação de dupla transformação entre o homem
e a natureza, geradora de significado. De modo que é por meio deste que o homem
significa concretiza a natureza. Nesse sentido, o trabalho ocupa um papel central na
vida das pessoas e é um fator relevante na formação da identidade e na inserção
social das mesmas, sendo fundamental que haja uma realização satisfatória nas
atividades realizadas no campo profissional para que diferentes áreas da vida
humana também se desenvolvam (ABREU et al., 2002). Neste contexto, considerase que o bem-estar adquirido pelo equilíbrio entre as expectativas em relação à
atividade profissional e à concretização das mesmas é um dos fatores que
constituem a qualidade de vida do indivíduo (ABREU et al., 2002).
Dessa forma, não devemos desconsiderar a interação entre o trabalho e o
sentido dado a este pelo indivíduo, pois para que haja sentido fora do trabalho é
necessária uma vida dotada de sentido dentro do trabalho (ANTUNES, 2000).
O trabalho é rico de sentido individual e social, é um meio de produção da
vida de cada um ao prover subsistência, criar sentidos existenciais ou contribuir na
estruturação da identidade e da subjetividade (QUINTANEIRO, 2002). Por outro
lado, a falta de realização pessoal no trabalho afeta diretamente as habilidades em
suas relações interpessoais, interferindo ativamente no modo de realizar suas
funções (ABREU et al., 2002).
Abreu et al. (2002) afirmam que realização pessoal no trabalho depende, em
grande escala, dos suportes afetivos e sociais que os indivíduos recebem durante
seu percurso profissional. Não havendo então, realização pessoal no trabalho e/ou o
suporte social e afetivo provenientes das relações de trabalho, poderá observar uma
exaustão emocional na prática da profissão que tem como características a
sensação de esgotamento e de falta de recursos emocionais do próprio indivíduo
para realizar suas atividades dentro ou fora do trabalho (ABREU et al., 2002).
Podemos pensar que os valores relacionados com o trabalho estabelecem-se
por intermédio da educação na infância e na adolescência e cronificam na vida das
pessoas, mas vão adquirindo valores diferentes com o passar do tempo. E estes são
os que estão relacionados com as finalidades que as atividades representam para a
pessoa, respondendo à indagação acerca dos motivos que a levam a trabalhar
(QUINTANEIRO, 2002).
Assim, o sentido do trabalho influencia as formas de atividade laboral, a
flexibilidade e a produtividade dos trabalhadores, pois afeta as crenças sobre o que
é legítimo e o que se pode tolerar do trabalho (MOW, 1987 apud, TOLFO;
PICCININI, 2007, p.40). Dessa forma, o papel e a importância deste na vida do ser
humano, por sua atribuição psicológica e social, variam na medida em que derivam
do processo de atribuir significados e apresenta-se associado às condições
históricas da sociedade, sendo, portanto um construto sempre inacabado (TOLFO;
PICCININI 2007). Nesse sentido, faz-se necessário pensar na relação homemtrabalho de forma que envolvamos aspectos que digam respeito à formação de
identidade, de valores e, consequentemente, pensar sobre a influência disso na
saúde do indivíduo e em sua qualidade de vida. Há de se pensar então, em
qualidade, segurança, e promoção de saúde de maneira ampla e integrada.
A integração precisa ser mantida tanto no plano conceitual quanto no do
planejamento e da prática cotidiana, abrindo perspectivas para a
valorização do ser humano integral, pois valorização pressupõe aqui
respeito à integridade e aos limites da condição humana, construção de
laços de confiança e de reconhecimento – o que significa também
promoção da saúde, que por sua vez inclui a segurança no trabalho
(DEJOURS, 2005, p. 10).
Abordagens teórico-metodológicas que relacionam saúde mental e trabalho
A possibilidade de estabelecer-se, até certo ponto, um nexo entre
saúde/adoecimento mental e trabalho já vem sendo estudada ao longo da história, e
tem trazido muitas contribuições para a ciência psicológica. Há uma variedade de
estudos muito grande, e de acordo com cada autor que se propôs a olhar para o
tema, existem várias possibilidades para se classificarem essas abordagens.
Podemos citar, por exemplo, a classificação feita por Dejours, um importante
pesquisador da área, que incluía a hipótese patogênica inspirada no Modelo
Toxicológico; uma abordagem de tipo epidemiológica, a Abordagem Agressológica;
e a Abordagem Psicanalítica, além da Psicodinâmica do Trabalho, a proposta do
autor (MERLO, 2002).
Outro exemplo é a proposta de Seligmann-Silva (1995) que distingue: as
teorias sobre estresse, a corrente voltada para o estudo da psicodinâmica do
trabalho e o modelo formulado com base no conceito de desgaste mental. E ainda,
Tittoni (1997) que propõe: primeiro um eixo que se refere ao diagnóstico de sintomas
de origem psi e sua vinculação às situações de trabalho, com forte influência da
epidemiologia, especialmente como referência metodológica; e um segundo, cuja
ênfase não recai no diagnóstico de doenças ocupacionais, mas nas experiências e
vivências dos trabalhadores sobre seus cotidianos laborais e suas situações de
adoecimento, influenciados pelos conhecimentos produzidos pelas ciências sociais e
pela psicanálise.
Contudo, a classificação que será tomada neste trabalho, será a proposta por
Jacques em seu artigo “Abordagens teórico-metodológicas em saúde/doença mental
e trabalho” (2003) por considerarmos que esta abarca, diferencia e aproxima as
diferentes abordagens, de acordo com as suas semelhanças e/ou divergências. De
acordo com Jacques (2003) as abordagens que se destacam entre as pesquisas e
teorias que abordam o tema da relação entre saúde mental e trabalho, podem ser
dividas em quatro linhas mais significativas, por serem as mais difundidas em
pesquisas no Brasil, sendo estas: as teorias sobre estresse; a psicodinâmica do
trabalho; as abordagens com base epidemiológica; e os estudos em subjetividade e
trabalho.
As teorias sobre estresse
Primeiramente, há a necessidade de definir-se o conceito de estresse, já que
esse vem sendo muito utilizado, tanto em pesquisas quanto no senso comum e
generalizado para uma gama variada de situações e sensações, desde um estado
de irritabilidade, até um quadro de depressão grave (JACQUES, 2003; OLIVEIRA; e
BARDAGI, 2010). De acordo com Oliveira e Bardagi (2010) embora haja inúmeras
definições e perspectivas de entendimento sobre a conceituação do termo
“estresse”, é comum tanto internacionalmente como no nosso país tomar a definição
segundo a qual o estresse é uma reação do organismo com componentes
psicológicos, físicos, mentais e hormonais, que ocorre quando surge a necessidade
de uma adaptação grande a um evento ou situação importante.
O
estresse
no
trabalho
está
diretamente
relacionado
a
respostas
ameaçadoras, físicas e emocionais que ocorrem quando as demandas do
cargo/função não se encontram ajustadas às potencialidades do trabalhador
(SUEHIRO et al., 2008, p. 206).
Vários estudos dão ênfase à questão das fontes ocupacionais do estresse,
mas estas são diversas. Alguns autores afirmam que qualquer situação que gere um
estado emocional forte, que leve a uma quebra da homeostase, exigindo alguma
adaptação, seja ela positiva (como uma promoção) ou negativa (carga horária
excessiva), pode ser considerada um estressor (OLIVEIRA; e BARDAGI, 2010).
Ainda de acordo com Oliveira & Bardagi (2010) o estresse ocupacional além
de gerar impacto no próprio trabalho, pode também impactar outras áreas da vida do
sujeito, uma vez que há uma interrelação entre todas elas. Nesse mesmo sentido,
há ainda a ideia de que algumas profissões são mais suscetíveis ao estresse do que
outras como, por exemplo, a profissão de professor. Vale citar aqui, que atualmente
o burnout é um dos construtos mais estudados no que se refere à relação estresse e
trabalho.
O burnout é a resposta emocional à situação de stress crônico, em função
de relações intensas de trabalho com outras pessoas ou de profissionais
que apresentem grandes expectativas com relação aos seus
desenvolvimentos profissionais. Porém, em função de diferentes obstáculos,
não alcançam o retorno esperado (LIMONGI-FRANÇA, 2002, p.60).
Dessa forma, o burnout seria o resultado de um longo processo, de diversas
tentativas de lidar com o estresse ocupacional, caracterizando-se por três aspectos:
a exaustão emocional, a despersonalização e a redução da realização pessoal e
profissional, sendo mais comum em profissionais cuidadores (OLIVEIRA; BARDAGI,
2010). Outros estudos trarão outras contribuições, a volta da conceituação de
estresse, estresses ocupacionais, estressores e entre outras possibilidades, o
burnout, mas o que Jacques (2003) chama atenção é, que como padrão, essas
definições, relacionando estresse e trabalho, apontam para o referencial teórico
cognitivo-comportamental. Tal referencial embasa o amplo campo das teorias sobre
estresse psicológico e que sustentam os modelos de prevenção, diagnóstico e
intervenção proposta.
Neste tipo de abordagem, é possível identificar características da psicologia
social cientifica. A ênfase recai em métodos e técnicas quantitativas e as
intervenções são voltadas para o gerenciamento individual do estresse através de
mudanças cognitivas e comportamentais e práticas de exercícios físicos e
relaxamento, cabendo ao trabalho o atributo de fator desencadeante do processo,
com maior ou menor grau de relevância (JACQUES, 2003).
A psicodinâmica do trabalho
Esta abordagem tem o autor francês Dejours como o principal expoente.
Ganhou grande receptividade e tem sido um dos referenciais de apoio de inúmeros
estudos e pesquisas brasileiras. Sua proposta é a de enfatizar normalidade antes da
patologia (JACQUES, 2003).
Para Dejours, o campo da psicodinâmica do trabalho é aquele do sofrimento
e do conteúdo, da significação e das formas desse sofrimento. Ele situa sua
investigação no contexto do infra-patológico ou do pré-patológico. Para o
autor, o sofrimento é um espaço clínico intermediário, que marca a evolução
de uma luta entre, por um lado, funcionamento psíquico e mecanismo de
defesa e, de outro, pressões organizacionais desestabilizantes, com o
objetivo de conjurar a descompensação e conservar, apesar de tudo, um
equilíbrio possível, mesmo se ele ocorrer ao preço de um sofrimento, com a
condição que se preserve o conformismo aparente do comportamento e
satisfaçam-se os critérios sociais de normalidade (MERLO; MENDES, 2009,
p. 142).
A proposta dejouriana parte de um embasamento teórico psicanalítico. O
método proposto será a escuta, a interpretação e a devolução, privilegiando o
emprego da entrevista coletiva, com o intuito de transcender o que for do individual,
e, portanto opondo-se ao uso de questionários ou estudos epidemiológicos
(JACQUES, 2003). Nessa abordagem, “a organização do trabalho apresenta-se
como uma porta de entrada do sofrimento e doença mental enquanto geradora de
angústia e de estratégias defensivas (JACQUES, 2003, p. 105)”. Dessa forma, o
trabalho pode ser considerado como um fator que interagindo com uma constituição
psíquica inerente ao próprio sujeito, pode ser causa relevante de problemas
psicopatológicos (JACQUES, 2003). De acordo com Jacques (2003) quando
abordada como concepção de ciência e de pesquisa, a psicodinâmica do trabalho dá
prioridade aos modelos teóricos concebidos pela via especulativa e que servirão
para ordenar as evidências empíricas, preconizando o emprego de métodos
qualitativos, de abrangência coletiva, pautada no modelo clínico de diagnóstico e
intervenção.
Abordagens com base no modelo epidemiológico e/ou diagnóstico
Embora a epidemiologia venha de uma ampla trajetória na medicina, foi a
partir dos estudos epidemiológicos que se apresentou a concepção multicausal, em
substituição ao paradigma monocausal, movimento que possibilitou a aplicação
dessa ciência no campo da saúde/doença mental (JACQUES, 2003). Há, nesse
campo duas grandes escolas epidemiológicas, russo/anglo-saxã e a franco/latinoamericana, esta última apoiada no modelo da determinação social da doença e nos
denominadores comuns da dialética (SAMPAIO; MESSIAS, 2002, p. 154).
Estes autores conceituam a epidemiologia como ciência social, prática,
aplicada, que estuda a distribuição, determinação e modos de expressão, para fins
de planejamento, prevenção e produção de conhecimento, de qualquer elemento do
processo saúde/doença em relação à população qualificada nos elementos sócioeconômico-culturais que a possam tornar estruturalmente heterogênea (SAMPAIO;
MESSIAS, 2002, p.147).
As contribuições do modelo de determinação social da doença proposto por
esta abordagem permitiram comprovar o caráter social do processo de adoecimento
mental, incluindo aí o trabalho (JACQUES, 2003). No Brasil, são reconhecidos os
estudos
de
Codo
e
colaboradores,
cujo
objetivo
é
identificar
quadros
psicopatológicos relacionados a determinadas categorias profissionais, tais como: a
síndrome do trabalho vazio em profissionais bancários, o burnout em educadores,
paranoia entre digitadores e histeria em trabalhadores de creches (JACQUES, 2003;
SILVA; MERLO, 2007).
Essa abordagem tem como fundamentação teórica as concepções marxistas,
e na psicologia, os pressupostos da psicologia social histórico-crítica, onde o
trabalho apresenta-se como um fator constitutivo do psiquismo e do processo
saúde/doença mental (JACQUES, 2003). Em termos metodológicos, propõe-se a
utilização de instrumentos de medida das condições de trabalho e saúde mental dos
trabalhadores um protocolo de observação do trabalho e análise de tarefas e
entrevistas qualitativas de aprofundamento, com utilização de abordagens
qualitativas e quantitativas (JACQUES, 2003).
Estudos e pesquisas em subjetividade e trabalho
A temática subjetividade e trabalho busca analisar o sujeito trabalhador
definido a partir de suas experiências e vivências adquiridas no mundo do trabalho
(NARDI; TITTONI; ERNARDES, 1997). “Esses estudos tomam o trabalho como um
eixo norteador para além do seu caráter técnico e econômico, cujo significado
perpassa a estrutura socioeconômica, a cultura, os valores e a subjetividade dos
trabalhadores” (JACQUES, 2003, p. 110). Valorizam as vivências, o cotidiano,
modos de ser em termos qualitativos da experiência do trabalhador, e não
diagnósticos psicopatológicos.
Os estudos e pesquisas em subjetividade e trabalho alicerçam-se em
diferentes teorias no âmbito das ciências sociais. Da psicanálise utilizam-se daquilo
que diz respeito aos aspectos intrapsíquicos e que concebem o sujeito como ativo
frente às normas, influenciando-as, e sendo influenciado por elas, compactuando
assim com a psicologia social histórico-crítica e assumindo pressupostos comuns
como a não dicotomia entre indivíduo e coletivo, subjetivo e objetivo. (JACQUES,
2003, p. 111).
Como metodologia, privilegiam abordagens qualitativas através de técnicas
como observação, entrevistas individuais e coletivas, análises documentais, além do
emprego do método etnográfico (JACQUES, 2003). Ou seja, no âmbito da
subjetividade e trabalho incluem-se estudos e pesquisas variados, que enfatizam a
dimensão da experiência e das vivências dos trabalhadores sobre o cotidiano de
vida e de trabalho enquanto expressões do sujeito na intersecção de sua
particularidade com o mundo sociocultural e histórico, em que se incluem as
vivências de sofrimento e adoecimento sem objetivar, necessariamente, os
diagnósticos clínicos (JACQUES, 2003). Conforme Nardi, Tittoni e Bernardes (1997,
p. 2 5), as diferentes abordagens que “constroem o campo da subjetividade e
trabalho, buscam as experiências dos sujeitos e as tramas que constroem o lugar do
trabalhador, definindo modos de subjetivação relacionados ao trabalho”.
Atuação do psicólogo na Saúde Mental pública
Em seus 50 anos de existência no nosso país a psicologia vem ganhando
cada vez mais espaço nos mais variados meios de atuação; para tanto,
historicamente, teve que se engajar em uma luta de modo a rever-se tanto enquanto
ciência, como quanto transformadora social, passando a vincular-se a diversas lutas
que visavam os direitos humanos (BOCK, 2008; SOARES, 2010). Na década de 80
a psicologia mostrou-se uma participante ativa no processo de luta antimanicomial
(SALES; DIMENSTEIN, 2009). Processo do qual se originaram de forma
regulamentada os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que tem o intuito se
colocar
em
substituição
ao
modelo
tradicional
de
Hospital
Psiquiátrico,
proporcionando acolhimento e a desinstitucionalização dos pacientes que sofrem de
transtornos mentais.
Assim, Sales e Dimenstein (2009) levam-nos a entender que a atuação do
psicólogo nos CAPS está historicamente relacionada ao movimento de luta
antimanicomial, que reforçou o laço da psicologia para com a saúde mental, uma
vez que requereu do psicólogo uma atuação mais ampla. A inserção dos
profissionais de psicologia nos CAPS deu-se por meio da atuação destes nas mais
diversas áreas, especialmente as interventivas, mais tradicionais do exercício da
profissão, contudo desenvolvendo diversas e novas atividades tais como:
acolhimento dos usuários, triagens e retriagens, coordenação de oficinas diversas,
participação em oficinas coordenadas por outros técnicos, grupos operativos, grupos
terapêuticos e atendimentos individuais (SALES; DIMENSTEIN, 2009). Portanto,
psicólogos que atuam no CAPS tem contato diário com o fenômeno da doença
mental e nesse sentido ainda faz parte do trabalho do psicólogo:
Conhecer e dar visibilidade ao que se pode chamar de dimensão
subjetiva ou psicológica da realidade, que é a dimensão dos sentimentos,
emoções, ações, sentidos, significados, desejos e pensamentos que os
sujeitos constroem no decorrer da vida e que permite pensar e sentir algo
em relação às outras pessoas e situações vividas. Pode-se pensar essa
dimensão como um espaço dos registros individuais ou coletivos,
conscientes ou não, que o ser humano faz a partir de suas vivências
(BOCK, 2008).
A finalidade do trabalho do psicólogo seria então intervir, a partir dos
conhecimentos da Psicologia, em aspectos da dimensão subjetiva da realidade para
potencializar os sujeitos na direção de maior autonomia e autoria de suas histórias
de vida (BOCK, 2008). Assim a atuação nos Centros requereu um amadurecimento
da Psicologia, pois com a ampliação do campo da ciência psicológica passou a ser
necessária uma ampliação do olhar da Psicologia para os fenômenos, e para a
forma de atuação – tendo em vista que esta passou a atuar em grupos
multidisciplinares –, através da troca de experiências com outras ciências,
principalmente
com
a
psiquiatria
italiana,
uma
das
precursoras
da
luta
antimanicomial (SALES; DIMENSTEIN, 2009).
O psicólogo e o trabalho
Existe uma evidência crescente demonstrando que os profissionais da área
da saúde mental, por fatores relacionados à natureza de sua profissão, apresentamse particularmente vulneráveis a fatores que podem favorecer o adoecimento,
ameaçando a saúde psicológica e o bem-estar deste trabalhador (ABREU et al.,
2002). Entre os fatores específicos, destacam-se: a) o manejo, por um longo período
de tempo, com pessoas com transtornos mentais; b) a responsabilidade para com a
vida do paciente; c) a inabilidade para estabelecer limites em suas interações
profissionais e d) a atenção constante aos problemas e necessidades dos pacientes
de uma forma não recíproca (ABREU et al., 2002, p. 25).
O trabalho do psicólogo, mais especificamente, caracteriza-se por elevado
investimento pessoal nas atividades profissionais, sendo marcado pelo contato muito
próximo com outros indivíduos e pelo constante enfrentamento de situações de crise
(BIEHL, 2009). Além da possível identificação e formação de laços afetivos entre os
psicólogos e seus clientes (ABREU et al., 2002). Dessa forma, há de se considerar
que o profissional em Psicologia necessita de cuidados, semelhantes ao que ele
dedica a seus clientes, revolver os conflitos para colocá-los em movimento e
desvelar as possibilidades de lidar com aquilo que lhe vem ao encontro. Cuidado
este que deve ser pensado no campo da prática da saúde, como uma atitude
terapêutica que busque ativamente um sentido existencial [...] sempre como
resultado de uma autocompreensão e ação, transformadoras (AYRES, 2004, p.21).
Ações de atenção aos trabalhadores
Dentre tantas etapas recomendadas de trabalho aos profissionais da área de
saúde mental na rede pública, nas fases municipal/regional, estadual e nacional,
estabelecidas pela Conferência Nacional de Saúde Mental – IV citamos as diretrizes
de interesse direto destes profissionais com o intuito de nortear as atividades de
todos:
314. Criar políticas e buscar estratégias de atenção integral à saúde dos
trabalhadores da rede de saúde mental, garantindo o cuidado dos mesmos.
315. Criar políticas de incentivo ao trabalhador: treinamento em serviço;
gratificação especial para atividades no âmbito da saúde mental;
supervisão; interface com outros serviços para assistência terapêutica
voltada às necessidades físicas e psicológicas do trabalhador; criação de
um programa de incentivo ao lazer, cultura e esporte; e aposentadoria
especial (após 25 anos de trabalho) para os trabalhadores de saúde mental
(CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL – INTERSETORIAL – IV
CNSMI, 2010).
De acordo com Silva e Costa (2008) há um livro elaborado pelo Ministério da
Saúde no ano de 2001, intitulado Doenças relacionadas ao trabalho – Manual de
procedimentos para as equipes de Saúde, onde são elencadas as principais
doenças que acometem os profissionais de saúde, foi elaborado partir de um projeto
em parceria com o Ministério de Assistência Social. No entanto, antes disso, já nos
anos 80 existiam os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CRST), que
têm como objetivo o cuidado com a saúde dos profissionais (SILVA; COSTA, 2007).
Dessa forma, podemos pensar que existem políticas públicas voltadas ao cuidado
com os profissionais, mas elas podem estar sendo ineficientes.
O cuidado em Psicologia
Durante o processo de graduação, muito se ouve falar sobre o cuidado e a
importância que este termo tem para o campo da Psicologia. Quando falamos em
cuidado, lembramo-nos da fala dos nossos pais, que quando nos viam fazendo algo
que eles julgavam perigoso, pediam para que tomássemos cuidado, pois aquilo
representava algum tipo de risco na visão deles. Dessa forma, podemos entender
que eles pediam-nos para ficarmos atento às coisas que aconteciam à nossa volta, e
a partir dessa atenção pudéssemos discernir o que era bom e o que não era, para
que assim não sofrêssemos nenhum tipo de prejuízo. Esse tipo de cuidado
assemelha-se aos conceitos de cautela, vigilância, prevenção e zelo.
No entanto Silva e Costa (2008) dizem que o cuidado em Psicologia vai além
desses conceitos, pois este representa, na realidade, uma atitude de preocupação,
ocupação, responsabilização e envolvimento afetivo com o ser cuidado (BOFF,
1999; REMEN, 1993; WALDOW, 1998 apud SILVA; COSTA, 2008, p.87). Dessa
forma, o cuidado que nossos pais pediam para que tivéssemos, na verdade,
segundo a ótica psicológica, eram eles quem estavam tendo.
Assim sendo, o psicólogo além de entender o conceito de cuidado, necessita
saber como colocá-lo em prática e isso é fundamental para a prática psicológica
(SILVA; COSTA, 2008). Segundo Boff (1999, p. 31) “[...] cuidar implica ter intimidade
com elas, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhe sossego e repouso [...].
Mais que o logos (razão), é o pathos (sentimento), que ocupa aqui a centralidade”.
Com isso, quando falamos em cuidado, falamos em sentimento, intimidade,
respeito, repouso. E quando oferecemos o cuidado ao outro, estamos-nos atendo
aos seus sentimentos e a tudo aquilo que ele possui de mais íntimo e singular, com
o objetivo de que ele possa sentir-se respeitado e em alguns casos até mesmo
descansado. Assim sendo, quando falamos do cuidado a quem cuida estamos nos
referindo a uma atenção que possibilite ao cuidador sentir-se respeitado, repousado
e principalmente acolhido.
Objetivo Geral
Pesquisar como se dá a atenção à saúde mental do psicólogo que atua na
área de saúde mental pública.
Objetivos específicos

Identificar os recursos que estes profissionais utilizam para cuidar da
própria saúde mental.

Se a carga psicológica relacionada ao trabalho que desenvolvem afeta
sua vida dentro e fora do ambiente profissional.

Investigar se há políticas públicas destinadas ao cuidado da saúde
mental desses profissionais.

Identificar possíveis déficits no cuidado com o profissional.

Identificar os desafios enfrentados por estes profissionais no âmbito de
sua atuação.
Método
Optou-se pela realização de uma pesquisa qualitativa, uma vez que de acordo
com Minayo e Deslandes (2002), a pesquisa qualitativa responde a questões muito
particulares. Ela aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações
humanas, no que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos
processos e dos fenômenos humanos.
Sujeitos
Dois psicólogos, de ambos os sexos, com idade entre 30 e 60 anos,
devidamente registrados no Conselho Regional de Psicologia, atuantes na rede
pública de atenção à Saúde Mental. Os sujeitos foram escolhidos por meio da
instituição em que atuam, tendo em vista que foram abordados em seus ambientes
de trabalho. Incialmente a pesquisa visava entrevistar pelo menos quatro
profissionais, mas no dia da entrevista com os outros dois, houve desistência por
parte deles e os outros contatados tinham uma agenda incompatível com o
cronograma da pesquisa, o que inviabilizou suas entrevistas.
Instituição
As entrevistas foram realizadas nos locais de trabalho dos próprios
profissionais, assim sendo, dentro de um CAPS.
Instrumentos
Foram utilizados roteiros de entrevistas semiestruturadas (ANEXOS, 9.4),
elaborados pelos pesquisadores, compostos por seis questões que abordam os
temas pertinentes à pesquisa.
Procedimentos
Os pesquisadores entraram em contato com os sujeitos da pesquisa, munidos
de carta de apresentação para esclarecimento dos objetivos destas; em acordo com
estes, foram agendados datas e horários para realização das entrevistas, que foram
gravadas com a autorização dos sujeitos.
Mediante a assinatura dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, as
entrevistas aconteceram de acordo com o roteiro pré-estabelecido, sem ser no
entanto limitadas por este. Não havia tempo predefinido; contudo, a duração de cada
entrevista foi de aproximadamente trinta minutos.
Análise dos dados
Depois de realizadas as entrevistas, estas foram transcritas e posteriormente
analisadas de acordo com o método de análise qualitativa, de Análise de Conteúdo
(BARDIN, 1977) que pareceu-nos ser o mais adequado, uma vez que se propõe a
evidenciar opiniões, críticas, julgamentos, reações afetivas nos relatos e vivências
dos sujeitos no momento da entrevista.
Resultados
Embora como pesquisadores tivéssemos o intuito de fazer quatro entrevistas,
com quatro profissionais diferentes, devido ao prazo exigido devido a trâmites
burocráticos para a realização de pesquisas em instituições de saúde, só nos foi
possível o contato com dois profissionais que se disponibilizaram a participar da
pesquisa – assim, tivemos uma diminuição em termos de quantidade nos nossos
resultados, o que sem dúvida limita-nos em termos de generalização; contudo,
devido ao caráter qualitativo da pesquisa, consideramos que os dados foram
suficientes. Ambos os participantes responderam a todas as perguntas de forma
satisfatória quanto ao objetivo da questão, embora a complexidade da forma como
se expressaram tenha sido diferente.
Conforme acordado no primeiro contato com os entrevistados, após
transcrição integral das entrevistas, as mesmas foram levadas para os profissionais
para que esses pudessem conferir os dados, garantindo maior confiabilidade destes.
Ambos os profissionais apontaram os dados que julgava poder identificá-los, tal
como o nome de um local em que um deles já trabalhou e o nome da cidade em que
se localiza o CAPS de atuação destes. Além disso, os profissionais solicitaram a
correção de vícios de linguagem, e organização mais clara de suas colocações, de
forma que as respostas às perguntas ficassem escritas mais clara e objetivamente.
Foi tomado o cuidado de os profissionais não acrescentarem informações, assim
como não excluírem dados relevantes para a pesquisa, sendo as colocações dos
entrevistados respeitadas na medida em que não comprometiam os dados da
pesquisa, mantendo-se fiéis no sentido das colocações originais dos mesmos.
De acordo com Belei et al. (2008) o pesquisador após o recebimento das
informações deve colocar-se à disposição dos participantes para esclarecimento de
dúvidas ou recebimento de sugestões. Além disso, Duarte (2004) afirma que
entrevistas podem e devem ser editadas. Exceto quando se pretende fazer análise
de discurso, frases excessivamente coloquiais, interjeições, repetições, falas
incompletas, vícios de linguagem, cacoetes, erros gramaticais etc. devem ser
corrigidos na transcrição editada. Dessa forma, o material utilizado para a análise
não foi portanto a transcrição da entrevista em si, mas nesse caso, poder-se-ia dizer,
construção escrita dos dados obtidos nas entrevistas.
Assim, terminada essa fase de construção escrita dos dados obtidos nas
entrevistas, foram identificadas quatro categorias de sentido. No que diz respeito aos
objetivos da pesquisa, foram essas: sobrecarga emocional relacionada ao trabalho
em saúde mental; recursos utilizados pelos psicólogos para lidar com a sobrecarga
emocional; cuidados à saúde oferecidos aos profissionais; e percepções e
expectativas em relação à necessidade de ações voltadas ao cuidado à saúde
psicológica do profissional de saúde mental, como segue:
A sobrecarga emocional relacionada ao trabalho em saúde mental
Embora, a princípio, um dos entrevistados tenha negado que o trabalho com
os pacientes acometidos por transtornos mentais afetasse sua saúde psicológica, o
mesmo discorreu em seguida algumas questões que relacionam uma sobrecarga
emocional relacionada ao trabalho dos profissionais em saúde mental como
desencadeante de adoecimento dos profissionais ou no mínimo da necessidade de
apoio psicológico:
Eu não chego a perceber algum tipo de prejuízo assim [...] acho que essa
sobrecarga emocional fica mais para o ‘eu’ técnico [...] O que existe é um
desgaste mental muito grande, antes, eu basicamente trabalhava com
neuróticos, e o CAPS trabalha basicamente com paciente psicótico, então é
o tempo inteiro esse tipo de conversa, sem pé nem cabeça. Isso cansa
mentalmente (Psicólogo 1).
Os dois psicólogos entrevistados relataram frustração de modo implícito ou
explícito em resposta a questões diferentes, porém com o mesmo conteúdo
deixando claro que é motivo de frustração para ambos o fato das respostas aos
tratamentos psicoterápicos com psicóticos serem muito lentas, situação que um
deles descreve como abalo emocional.
[...] o CAPS é um trabalho complicado porque o caminhar do paciente é
muito lento, e quando caminha é muito pouco. É um trabalho de você
investir num dia a dia, sem ver o retorno (Psicólogo 1).
O quadro clínico crônico de alguns pacientes os limitam de modo que eles
não respondem à psicoterapia, permanecendo em um estado que demanda
apenas a manutenção das alucinações e agressividade. E isso gera um
pouco de frustração, nos abala emocionalmente. Então temos que aprender
a lidar com as pequenas melhoras dos pacientes. Mas creio que este seja
um dos motivos do adoecimento dos profissionais (Psicólogo 2).
Nesse contexto, um dos profissionais ainda discorreu sobre o desejo de poder
fazer mais pelo paciente, e ainda sobre a insatisfação com as condições de trabalho
que frustram essa possibilidade, o que gera muita angústia, estresse e também
contribui para o adoecimento dos profissionais:
As pressões do dia-a-dia relacionadas às condições de trabalho também
adoecem [...] isso gera muita angústia, pois gostaríamos de fazer um
trabalho mais extra-CAPS, no entanto se saíssemos quem cuidaria dos
pacientes intensivos da unidade?! Gostaríamos de poder fazer mais, de dar
o melhor para os nossos pacientes, mas não temos estrutura para isso
(Psicólogo 2).
[...] o que acontece é que são muitos pacientes e você não consegue
disponibilizar o serviço necessário, e isso é muito estressante, ter um
número grande de pacientes sob nossas responsabilidades, sendo que
alguns pacientes em algumas vezes que precisam estar com algum tipo de
monitoramento, algum acompanhamento mais de perto. Tem que se
disponibilizar bastante atividade, pro CAPS vir a fazer o papel, isso me
estressa bastante, pensar que a gente tem poucos profissionais
comprometidos e que não estão conseguindo devido a essas dificuldades
(Psicólogo 2).
É estressante também, quando o paciente, apesar de todo o esforço da
equipe para fazer um trabalho que dispense a internação, precisa ser
internado, esse processo de internação me deixa muito estressada e muito
angustiada. Pois há o sentimento de culpa por parte dos profissionais e a
agressividade por parte dos pacientes (Psicólogo 2).
Recursos utilizados pelos psicólogos para lidar com a sobrecarga emocional
Diante da falta de oferta de serviços específicos e de qualidade voltados para
o cuidado à saúde mental dos psicólogos entrevistados, foram relatados alguns
recursos que foram desenvolvendo para lidar com a supracitada sobrecarga
emocional relacionada ao trabalho desenvolvido no CAPS. Ambos relataram já ter
procurado alguma forma de processo psicoterápico particular:
Eu faço análise em uma clínica particular (Psicólogo 2).
Eu logo depois que me formei, e praticando já, por um ano e meio, mais ou
menos, fiz terapia em grupo (Psicólogo 1).
No caso do Psicólogo 1 no entanto, revela-se que, após certo tempo, houve
uma dificuldade em se manter no processo, acrescentando que atualmente não
participa mais de nenhum tipo de processo psicoterápico particular, valendo-se de
recursos internos para lidar com essas questões:
Mas, você vai aprendendo até em termos de uma sobrevivência da sua
saúde mental, cria uma barreira técnica: Dois ou três minutos depois do
atendimento você deleta aquela problemática de determinado paciente
(Psicólogo 1).
Considerando-se o contexto, ele cita em outro momento que alguns colegas
de trabalho fazem uso de substâncias psicoativas, que ele considera estar
relacionado à estratégia para lidar com sobrecarga emocional do trabalho com
pacientes com transtornos psicológicos:
Se for considerar os abusivos de drogas, álcool... [falando dos profissionais
de saúde mental pública que necessitariam de cuidado psicológico]
(Psicólogo 1).
Ou seja, são identificadas aqui três posturas diante da sentida necessidade
de cuidado psicológico relacionada ao trabalho em saúde mental: a busca pela
psicoterapia em consultório particular, o uso de recursos internos para afastar-se
das problemáticas dos pacientes, e o possível relacionamento com o uso de
substâncias psicoativas.
Cuidados à saúde oferecidos aos profissionais
Ambos os entrevistados evidenciaram a necessidade de cuidado em relação
à própria saúde mental, contudo, quando questionados, afirmaram desconhecer
políticas públicas específicas relacionadas:
Que eu saiba não. Nenhuma (Psicólogo 1).
Olha, aqui eu desconheço, não vou afirmar que não exista, porque
realmente eu não conheço (Psicólogo 2).
No entanto, foram relatadas outras estratégias não específicas para os profissionais,
mas das quais eles poderiam fazer uso:
Embora, na rede haja psicólogos disponíveis nas UBS e nos CAPS, eu optei
por fazer análise particular (Psicólogo 2).
Além disso, há um programa específico para profissionais, contudo, pouco conhecido
e mais voltado para questões médicas; trata-se de um cuidado específico para os
profissionais, mas que não oferece serviço psicológico para estes profissionais:
Tem saúde/medicina ocupacional, mas eu não tenho muita informação
sobre isso (Psicólogo 1).
[...] Mas é serviço médico, o que eu não precisei. [referindo-se ao serviço
saúde/medicina ocupacional] (Psicólogo 1).
Percepções e expectativas em relação à necessidade de ações voltadas ao
cuidado da saúde psicológica do profissional de saúde mental
Em um dado momento da entrevista o profissional tinha que responder sobre
o que precisaria ser criado e que ajudaria o seu trabalho; nesse momento, os
profissionais assumiram posturas diferentes:
Não sei se isso pode chegar a acontecer pelo volume de funcionários que a
Prefeitura tem, precisaria de uma equipe muito grande (Psicólogo 1).
Nós precisaríamos de uma capacitação, de uma supervisão, tanto
institucional, quanto clínica, que não tem, além de melhores condições de
trabalho (Psicólogo 2).
Ou seja, um dos sujeitos, embora pareça reconhecer a necessidade de algo
ser feito, implicitamente sugerindo que houvesse uma equipe especializada para
prestar assistência aos profissionais, não acredita que isso possa vir a acontecer,
enquanto o outro tem claras as questões que acredita que devam ser mudadas,
trazendo três questões específicas, explicitadas durante a entrevista como
necessidade:
A) Capacitação:
[...] Isso gera muita angústia, pois não temos nenhum tipo de capacitação
profissional disponibilizada pela prefeitura, tendo sempre que recorrer a
outras vias (Psicóloga 2).
B) Supervisão, tanto institucional, quanto clínica: A supervisão é reconhecida
pelo Psicólogo 1 como uma forma de cuidado ao psicólogo em sua prática, contudo,
não chega a sugerir como necessidade ou proposta como faz o Psicólogo 2.
Em uma das instituições que trabalhei, a gente teve uma supervisão, mas
era muito mais um perfil institucional. Aqui também tem uma discussão na
equipe de ter uma supervisão institucional também, do trabalho do CAPS,
mas não para o técnico em si (Psicólogo 1).
Eu acredito que isso contribuiria bastante para a melhoria, tanto para as
relações entre os profissionais, como para auxiliar nas discussões dos
casos mais graves e complexos que podem aparecer, embora a equipe já
se reúna para discussão, às vezes, só a equipe se reunir, dependendo do
caso, não é suficiente. [referindo-se à supervisão] (Psicólogo 2).
C) Melhores condições de trabalho:
[...] estamos longe de termos as condições adequadas para exercer nossa
função. Temos falta de materiais, poucos recursos de RH, um grande
número de pacientes, um espaço físico inadequado e desestruturado
(Psicólogo 2).
Como eu atuo em CAPS, eu acho que o desafio que a gente tem hoje,
pensando na reforma psiquiátrica, e em todo esse processo de
desinstitucionalização, é fazer e tornar os CAPS mais efetivos, não que eles
não sejam, eles já são, mas de realmente ampliar isso. Ficou esse espaço
em aberto, pois é difícil encontrar algum CAPS com estrutura e toda a
organização necessária. [...] criar os CAPS foi muito bom, foi legal, mas há
a necessidade de toda essa estrutura de rede, que eu não sei se em algum
lugar tem (Psicólogo 2).
O ponto em comum que apareceu neste momento da entrevista dos
psicólogos foi relacionado à distância de as necessidades e propostas colocadas
tornarem-se concretas: “[...] então eu acredito que a Prefeitura nunca vai oferecer
isso (Psicólogo 1). Pensando em possibilidades, isso está um pouco longe de se
concretizar, a gente não tem essa rede de saúde articulada” (Psicólogo 2).
Ainda assim, nota-se que o segundo coloca as mudanças no campo da
possibilidade, enquanto o primeiro considera a mudança pouco utópica.
Discussão
Os relatos obtidos apontam que o trabalho em Saúde Mental gera sim,
sofrimento psíquico, que pode ser reconhecido quando os profissionais falam sobre
sobrecarga emocional, cansaço mental e abalo emocional. Isso porque o trabalho do
psicólogo implica em identificar-se com a pessoa que sofre e sofrer junto com ela.
Ou seja, conviver com sofrimento gera sofrimento (SILVA, 2007).
A imprevisibilidade e a lida rotineira com situações-limite, como suicídio ou
automutilação, por exemplo, caracterizam a atividade no CAPS como um “trabalho
desestabilizador” (ATHAYDE; HENNINGTON, 2012, p. 992). Além disso, o próprio
cotidiano de trabalho em um serviço que atende pessoas com graves transtornos
mentais
naturalmente
já
suscita
sofrimento
nos
profissionais
(ATHAYDE;
HENNINGTON, 2012).
É notável o sentimento de frustração e impotência diante da possibilidade de
respostas significativamente observáveis em relação ao seu trabalho com os
pacientes psicóticos. Embora os dois entrevistados sejam de gênero, idade e tempo
profissional diferentes, ambos relataram desconforto em notar pouca ou nenhuma
melhora dos pacientes no dia a dia, tendo que aprender a lidar com as pequenas
melhoras demonstradas.
De acordo com Pereira (2007), a prática psicológica na instituição de saúde é
influenciada pelo modelo médico na prática cotidiana de atuação. Por isso, muitas
vezes os profissionais tentam salvar os pacientes da loucura; tal objetivo, no
entanto, não é atingido, o que tende a desencadear sentimento de frustração. Moore
e Cooper (1996) propõem que talvez haja um vácuo entre as expectativas
idealizadas e seus resultados na prática dos profissionais de saúde mental. Os
profissionais dessa área idealizam que sua prática servirá para curar as pessoas
quando, na realidade, poucas mudanças são experienciadas por pacientes crônicos.
Desse modo, confirma-se um panorama contrastante em relação à saúde dos
trabalhadores de saúde mental. Embora haja relatos de sofrimento, tristeza e
dificuldade de suportar as crises dos usuários que os procuram; ainda permanece a
expectativa do ideal de prontidão, alegria e disponibilidade, qualificação e
competência para a escuta e assistência – que se esperam desses trabalhadores
(ATHAYDE; HENNINGTON, 2012).
Outra fonte de sofrimento trazida pelos entrevistados foi a falta de condições
adequadas de trabalho. Ou seja, se trabalhar com o sofrimento do outro já é um
fator que tende a gerar sofrimento, ter que fazê-lo dentro dos parâmetros propostos
pelo SUS e Reforma Psiquiátrica e sem condições adequadas de trabalho, torna
esse sofrimento ainda mais evidente.
De acordo com Athayde e Hennington (2012) estudos têm evidenciado que os
trabalhadores de Saúde Mental no Brasil deparam-se com as precárias condições
de trabalho nas unidades públicas de saúde, o que tem contribuído para dificultar a
consolidação das mudanças propostas pelo novo modelo. Vale considerar que o
fator relatado como causador de maior sofrimento entre as equipes tem sido a
impossibilidade de realização de um bom trabalho devido à falta de condições para
isso.
Para lidar com essas situações e com o sofrimento por ela suscitado,
considerando sua própria economia psicossomática e inclusive a sua saúde mental,
no seu cotidiano de trabalho, os profissionais trouxeram estratégias diversas,
algumas mais saudáveis, como a busca por atendimento particular e outras menos
saudáveis como estratégias defensivas aparentemente mais cristalizadas. Embora
ambos tenham procurado um processo terapêutico particular, apenas um deles
manteve-se no processo, enquanto o outro não o fez. Isso pode ser entendido tanto
em termos de questões individuais dos entrevistados, quanto em termos mais
amplos, considerando-se assim a questão da condição socioeconômica como um
ponto importante para se manter em um processo psicoterápico. Vale ressaltar que
o mesmo profissional que descontinuou o processo terapêutico colocou a questão
salarial como um desafio.
Outra questão muito marcante, e aí mais presente no profissional que
descontinuou o próprio processo psicoterápico, foi um mecanismo de defesa de
“deletar” (sic) as problemáticas dos pacientes após os atendimentos e afastar-se de
pacientes que, em crise, têm um discurso mais confuso. Isso, de acordo com o
mesmo, para poupar-se. E ainda a estratégia que o próprio entrevistado aponta
como “esquizo” (sic), que é a de tentar cindir a própria personalidade separando o
profissional e técnico do pessoal e subjetivo. De acordo com Athayde e Hennington
(2012) afastar-se da abordagem de determinado problema é a defesa individual
mais comum.
O trabalho no contexto da saúde é caracterizado pelo predomínio do cuidado
às pessoas. O cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde é permeado por
dores, perdas e angústias, o que pode gerar, na execução de suas atividades
profissionais, sofrimentos (SILVA, 2007). Juntamente com o sofrimento psíquico
podem estar as estratégias defensivas que são utilizadas no cotidiano do trabalho.
As estratégias defensivas são formas de enfrentar-se o sofrimento.
Podem ser
inconscientes e visam evitar o aspecto doloroso sendo difícil o confronto e a
convivência com este sentir, para a manutenção do equilíbrio psíquico, que requer a
proteção do ego contra os conflitos que se encontram na base do sofrimento
(MENDES; MORRONE, 2002). Contudo, essas defesas desenvolvidas contra o
sofrimento podem ser contraditórias. Se por um lado elas são necessárias para
manter o equilíbrio psíquico; por outro, podem levar a um imobilismo e alienação.
Além disso, é importante ressaltar que as defesas amenizam o sofrimento, mas não
o eliminam e também não são permanentes (SILVA, 2007).
Outra questão que cabe considerar é a do abuso de substâncias psicoativas,
que embora o entrevistado não mencione fazer disso uma estratégia sua para lidar
com as situações do trabalho com saúde/doença mental, tem colegas de trabalho
que o fazem. De forma geral, podemos pensar que o abuso de substâncias
psicoativas pode também ser entendido como mecanismos de defesa que permitem
o distanciamento ou o esquecimento das questões que trazem sofrimento, que
podem também estar relacionadas às questões do ambiente laboral. Não há,
contudo, um fator único que explique o sofrimento psíquico dos profissionais de
saúde, mas sim uma série de fatores objetivos e subjetivos que, combinados,
expressam as insatisfações, as dificuldades e os sofrimentos que se fazem
presentes no cotidiano de trabalho (SILVA, 2007). Diante do conhecimento do
sofrimento e muitas vezes adoecimento dos profissionais de saúde mental
relacionados à sua prática, buscou-se saber dos profissionais as políticas ou
serviços públicos que eram oferecidos como forma de contenção, manejo,
tratamento e prevenção deste sofrimento/adoecimento laboral. Foi possível obter
através das respostas dos profissionais que ainda não estão claras as propostas que
visam uma atenção específica ao profissional em psicologia. Ambos convergem na
concepção de que não há uma atenção específica para com a saúde mental do
psicólogo. Embora essa proposta exista, através da implantação dos Centros de
Referências em Saúde do Trabalhador (CRST), esses serviços apresentam
dificuldades na sua atuação, tais como a falta de tradição, familiaridade e
conhecimento dos profissionais do sistema com a temática da saúde-doença; e
pouca participação dos trabalhadores (SILVA, 2007), como se pôde perceber com
os entrevistados.
Além disso, os entrevistados citaram outras possibilidades de conseguir
atendimento via setor público, pois assim como os pacientes, poderiam buscar
atendimento na rede SUS, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e até mesmo nos
próprios CAPS, que são os dispositivos de Saúde Mental que podem oferecer
acompanhamento psicológico. Além disso, o cuidado médico à saúde do
profissional, mas que pouco colabora em termos de saúde mental. Contudo, há de
ser considerado que estes serviços não específicos ao profissional (via CAPS e
UBS) são exercidos por colegas de profissão, que participam de reuniões e discutem
casos e condutas juntos. Além disso, o profissional poderia vir a ser atendido pelo
mesmo terapeuta que os seus pacientes. Tais situações podem gerar resistência e
prejudicar o tipo de ajuda oferecida; nesse sentido, além de ser raramente
procurada, poderia ser também pouco eficaz. Além de comprometerem eticamente o
trabalho psicológico, uma vez que de acordo com o Artigo 2º do Código de Ética
Profissional do Psicólogo (2005, p. 7), é vedado ao psicólogo “estabelecer com a
pessoa do atendido relacionamento que possa interferir negativamente nos objetivos
do atendimento”. Como poderia vir a acontecer nestes casos.
No que se referia às perspectivas e expectativas dos profissionais em relação
à necessidade de ações voltadas ao cuidado à saúde psicológica do profissional de
saúde mental, os profissionais convergiram em relação à necessidade do cuidado,
contudo, enquanto um tem a expectativa de que o serviço possa acontecer, o outro
menciona que dada a estrutura vigente, seria inviável. O trabalhador dos serviços de
saúde mental propostos pela Reforma Psiquiátrica constitui-se na tensão entre
habitar um lugar rico para criação e invenção e assim posicionar-se de forma crítica
e ver-se como possível agente de mudanças; e concomitantemente na
desvalorização de seu papel de servidor público, com a falta de investimentos e de
ações intersetoriais, que impõem limites para a prática e sobrecarregam o
trabalhador (NARDI E REMMINGER, 2007). Diante dessas dificuldades do trabalho,
alguns profissionais empreendem um movimento de retomada de saberes e práticas
anteriores não consoantes com as práticas psicossociais de atenção, como um
mecanismo defensivo (SANTOS & CARDOSO, 2010). Essa divergência pode ser
identificada nos dois profissionais, que tendem a um ou outro extremo.
Outro ponto bastante interessante é a importância que eles dão para as
questões que dizem respeito à atenção especializada ao profissional. Nesse sentido,
a proposta destes relaciona-se a uma supervisão realizada por um profissional
qualificado e externo ao serviço, que pudesse auxiliá-los de forma mais ampla e não
apenas na discussão de casos. O requerido pelos entrevistados remete-nos ao
chamado Apoio Matricial que consiste em ações interdisciplinares e intersetoriais
que requerem participação dos profissionais matriciadores nos processos de
territorialização, planejamento; acompanhamento e avaliação das atividades de uma
determinada instituição (BOING; CREPALDI, 2010). Segundo Figueiredo e Onocko
Campos (2009) no âmbito da saúde mental o Apoio Matricial tem como função
pedagógica a capacitação in loco, isto é, que as equipes aprendam através da
prática a intervir no campo da subjetividade.
Outro ponto apontado como necessário é a capacitação dos profissionais, que
deveria ser oferecida e financiada pelo poder público. Conforme Onocko Campos et
al (2007), há a necessidade de capacitações de qualidade, com critérios
transparentes de ingresso, quando financiadas pelo poder público, de flexibilidade
da gestão para a participação dos trabalhadores nos processos de formação
permanente e de apoio para que os profissionais também possam tornar-se
formadores, transmitindo sua experiência.
Por fim, voltou-se a falar da questão da condição de trabalho, desta vez, de
forma mais ampla, que como geradora de sofrimento, é uma realidade que deve ser
modificada. A atividade de trabalho em Saúde Mental desafia a capacidade de
renormatização dos trabalhadores para tolerarem um meio com tantas adversidades,
devido ao seu objeto, à organização do trabalho e às suas condições precárias.
Ainda em termos de precariedades das condições de trabalho, existe a chamada
“falta de rede” (ATHAYDE; HENNINGTON, 2012, p. 992) que, neste caso, consiste
basicamente numa falta de articulação dos níveis de atenção em Saúde Mental
pública de forma a oferecer um planejamento terapêutico mais adequado ao usuário
e apoio entre os serviços (ATHAYDE; HENNINGTON, 2012).
Essas propostas de atenção, de capacitação, supervisão e condições de
trabalho adequadas já foram discutidas na III Conferência Nacional de saúde Mental
no ano de 2002, por serem considerados recursos coerentes aos princípios da
Reforma Psiquiátrica. Nessa situação a capacitação e qualificação continuada,
através de criação de fóruns e dispositivos permanentes de construção teórica,
científica, prática terapêutica e de intercâmbio entre serviços; garantia de condições
de trabalho e planos de cargos; e garantia de supervisão clínica e institucional.
Assim como em 7 de julho de 2005 foi publicada pelo Ministério da Saúde a Portaria
nº 1174/GM que destinou incentivo financeiro emergencial para a implantação de
supervisão clínico-institucional regular; ações de acompanhamento integrado com a
rede de atenção básica em seu território de referência (SILVA, 2007).
Assim, confirma-se que, embora haja conhecimento e reconhecimento das
necessidades e propostas coerentes com a realidade, ainda existe uma lacuna em
relação à realidade prática das ações. Pudemos identificar, portanto, que o trabalho
com Saúde Mental na rede pública de atuação gera um sofrimento significativo, uma
sobrecarga emocional, que pode comprometer a Saúde Mental do profissional e
nesse sentido, a qualidade do trabalho oferecido por ele.
Diante do reconhecimento de tal sofrimento e possível adoecimento do
profissional, propostas de cuidado e políticas públicas existem, contudo, há ainda
uma lacuna em relação às ações na realidade prática. Na ausência de propostas de
cuidado eficientes, os profissionais buscam outros recursos para lidar com esse
sofrimento. Pelo viés mais saudável, procuram atendimento psicológico particular,
contudo, esse atendimento tem um custo e a questão salarial ainda é desafio.
Dessa forma, nem todos os profissionais podem se manter no atendimento. Por
outro lado, na falta de atenção especializada à Saúde Mental do profissional, tanto
pública quanto particular, este começa a fazer uso de estratégias defensivas, que
embora façam parte dos recursos dos quais o ser humano lança mão, ainda que
inconscientemente, elas apenas amenizam o sofrimento, e ainda assim, não são
duradouras. A falta de supervisão e as condições precárias de trabalho foram
consideradas os maiores desafios enfrentados pelos psicólogos que trabalham na
Saúde Mental pública, mostrando-se como fontes potenciais de estressores,
angústia e frustração, ou seja, de sofrimento e limitação para os profissionais. Dessa
forma, podemos concluir que a atenção e o cuidado à Saúde Mental do psicólogo
que trabalha na rede de Saúde Mental pública no nosso país, embora necessária, ou
dá-se através de esforços particulares, nem sempre possíveis, ou não se dá de
forma satisfatória e eficaz.
Considerações finais
Embora os nossos objetivos tenham sido alcançados, entendemos que,
devido ao número limitado de sujeitos, a subjetividade destes pode ter sido um fator
relevante a ser considerado; ainda assim, nosso trabalho apontou para questões
muito semelhantes às que esses estudos já existentes trazem-nos.
Aqui, debruçamo-nos a olhar o fenômeno da necessidade do cuidado à
Saúde Mental dos profissionais de forma mais específica. Reconhecemos contudo
que trata-se de um fenômeno complexo e ainda é necessário que outros estudos
sejam realizados em várias direções, até mesmo pelo número de estudos sobre o
tema ser ainda pequeno.
Consideramos temas possíveis e necessários para as próximas pesquisas
novas propostas de ações que na prática podem de fato ser concretizadas.
Podemos pensar nesse momento em ações como: um incentivo financeiro para os
profissionais investirem no próprio cuidado de forma particular, que tem-se mostrado
como o recurso mais satisfatório neste momento; ou mesmo a contratação de
profissionais de Saúde Mental que se dediquem exclusivamente para a atenção aos
profissionais, mas, principalmente, à procura pela implantação de fato, das
propostas já existentes que em longo prazo parecem mais adequadas. Em todos
esses casos, no entanto, reconhecemos que outras pesquisas deverão ser
realizadas considerando o contexto complexo que envolve o tema.
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Sobre os autores
Andréa Lucas Alves Calvi: Estudante de Graduação do curso Psicologia –
UNIP/Campinas.
Jaíne Meireles Rocha: Estudante de Graduação do curso Psicologia – UNIP/Campinas.
Marizete Gouveia Alves dos Santos: Estudante de Graduação do curso Psicologia –
UNIP/Campinas.
Raul de Freitas Dias: Estudante de Graduação do curso Psicologia – UNIP/Campinas.
Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo: Possui graduação (bacharelado,
licenciatura e formação) em Psicologia pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (1994), Mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (1997) e Doutorado Ciências Médicas – subárea Saúde Mental – pela Universidade
Estadual de Campinas (2004). Atua com psicoterapia psicanalítica de crianças, adolescentes,
adultos. Tem experiência no ensino superior na graduação e pós-graduação. Atualmente é
coordenadora de curso, professora titular e supervisora de estágio na Universidade Paulista –
UNIP / Campinas. CV: http://lattes.cnpq.br/4573356259939080
Contato e-mail: [email protected]
220
Parte III
PSICOLOGIA E ESPIRITUALIDADE
Marília Ancona-Lopez, PUC-SP, UNIP
Resumo
A partir de considerações sobre a exclusão de temas relacionados às
religiões e à espiritualidade nos cursos de formação de psicólogo, a autora
relata um workshop desenvolvido experimentalmente com o objetivo de abrir
um espaço para reflexões sobre o tema tendo como referência casos clínicos
elaborados para discussão. As reflexões permitiram discutir os limites de
atuação do psicólogo, as possibilidades de inclusão do tema em atendimentos
psicológicos e os cuidados necessários para essa inclusão.
Palavras-chave: Psicologia Clínica; Psicologia da Religião; Formação do
Psicólogo.
Introdução
Espiritualidade e religião são temas pouco tratados nos cursos de
Psicologia. No entanto, estão presentes no nosso cotidiano e não poucas
vezes experiências ligadas a eles são colocadas pelos pacientes nos
atendimentos psicológicos. A exclusão do assunto na formação dos psicólogos
traz efeitos.
Alunos de Psicologia que prezam a dimensão espiritual queixam-se com
frequência da falta de atenção, ou até mesmo do preconceito com que os
temas são tratados no decorrer dos cursos. Colocam que suas perguntas a
respeito raramente são respondidas e que suas experiências espirituais e
religiosas não encontram espaço para discussão, o que dificulta refletir e
estabelecer relações entre diferentes perspectivas de mundo e de ser humano.
Nas palavras de Coliath (2007):
[...] as questões ligadas à religião nunca foram abordadas e ao
questionar os professores da clínica escola a respeito do assunto, fui
orientada a não aprofundar estas questões com o cliente. Era
contraditório porque a própria clínica escola nos orientava a tecer um
221
olhar que abrangesse o cliente como um todo, e entendo que a parte
espiritual faz parte deste todo. (p.34-35)
Pereira (2009) fala que em seu curso de formação a religiosidade e a
espiritualidade eram temas sobre os quais pouco se falava. Os professores
quando abordavam estes assuntos “[...] não o faziam com clareza, nem com
tranquilidade e objetividade. Evitavam questionamentos e revelavam
preconceitos em relação ao tema religião” (p.20-21). Acrescenta “[...] uma
atitude tornou-se comum nas lides acadêmicas, bem como nos consultórios de
psicologia, quando assuntos ligados à espiritualidade e à religiosidade
apareciam: eles deveriam ser ignorados.” (p.11)
Cesar (2007) relata que “[...] durante uma aula, um professor nos deu a
orientação explícita de que, quando o tema religião fosse abordado por um
paciente durante uma sessão psicoterápica, era conveniente não aprofundar o
assunto, ou seja, deveríamos até deixá-lo falar, mas evitar trabalhar esse
conteúdo para não entrarmos em polêmica.” (p.11)
Esteves (2009) confirma que em entrevista com supervisores de cursos
de Psicologia buscando compreender o modo como lidavam com os temas da
religiosidade verificou que se comportavam de acordo com suas visões
pessoais. Constata que “o meio acadêmico rejeita assuntos relacionados à
religião e à religiosidade” e fala da “[...] existência de preconceito em relação às
religiões ou pessoas religiosas de maneira geral, bem como a discriminação do
tema por ser considerado contrário ao discurso científico” (p.1 8). Por outro
lado, observou em sua convivência acadêmica que o aluno de Psicologia “[...]
espera e precisa ser ouvido em todos os seus questionamentos, e procura,
muitas vezes, encontrar acolhimento no professor”, ”como alguém com quem
ele pode contar, com quem ele pode falar dos seus valores, das suas crenças,
das suas dúvidas existenciais”. (p. 21)
O fato é que a aproximação do terapeuta à espiritualidade e à religião
tem um impacto na sua atuação junto ao cliente e, assim, é importante criar
condições que favoreçam o acolhimento e a abertura para essa discussão na
formação profissional. Embora não seja possível traçar um caminho ideal, a
inserção do tema no curso colaboraria para a formação plena do psicólogo,
para seu autoconhecimento e autodesenvolvimento.
Pargament (2007) lamenta o não preparo dos psicólogos para lidar com
as questões religiosas e espirituais dos pacientes e cita as dificuldades que
observa mais frequentemente. Embora muitas delas aconteçam quando se
trata de outros temas, eles são usuais quando o psicólogo tem de lidar com a
espiritualidade e com a religião do paciente. Pargament (2007, p. 334) cita seis
atitudes frequentes que considera inadequadas:
222
1.
Viés Espiritual: tendência para utilizar pontos de vista
estereotipados sobre espiritualidade e religião.
2.
Miopia Espiritual: dificuldade para enxergar a dimensão espiritual
dos problemas e das soluções; tendência a ver a espiritualidade a partir
de uma perspectiva global e indiferenciada.
3.
Timidez Espiritual: medo de lidar com a espiritualidade na terapia,
por acreditar que a espiritualidade não deve fazer parte do atendimento
psicológico.
4.
Supervalorização Espiritual: tendência a ver a espiritualidade
como a raiz de todos os problemas ou como a fonte de todas as
soluções.
5.
Prepotência Espiritual: superestimação do próprio nível de
competência para atuar em relação ao tema, com base apenas na
propria espiritualidade.
6.
Intolerância à Ambiguidade: o desejo de soluções simples e
definitivas para problemas complexos.
Entre outras sugestões, o autor considera que o autoconhecimento
espiritual é um componente essencial para integrar a espiritualidade na
psicoterapia. Ele costuma incentivar os seus estudantes a se conhecerem
melhor espiritualmente e a se aproximarem do tema de várias formas,
estudando, fazendo um genetograma espiritual-religioso, escrevendo uma
autobiografia espiritual, abrindo-se para as várias formas de espiritualidade,
expressando problemas espirituais, relacionando a espiritualidade e a religião
ao trabalho psicológico. Para Pargament (2007), tudo isso pode ser feito “em
pequenos passos”.
De acordo com esta orientação, desenhamos um workshop sobre
Psicologia e Espiritualidade a ser desenvolvido experimentalmente com alunos
de cursos de graduação em Psicologia.
Objetivo e procedimentos
O objetivo do workshop Psicologia e Espiritualidade foi o de oferecer um
espaço a alunos de cursos de graduação em Psicologia para que pudessem
refletir sobre as suas posturas frente a questões relacionadas à religião e à
espiritualidade em psicoterapia.
Para o desenvolvimento do workshop adaptamos cinco casos clínicos
citados por Miller (2003). Miller procurou desenvolver teórica e tecnicamente
223
formas de incorporar a espiritualidade ao aconselhamento e à psicoterapia.
Propôs exercícios para essa integração, a serem usados dentro ou fora da sala
de aula.
Miller encoraja o leitor a usar os exercícios criativamente, como
atividades experienciais individuais, em duplas ou em grupos. Sugere discutir
os casos exemplos com outras pessoas, usar o material para conhecer melhor
a si mesmo e seus pontos de vista sobre a espiritualidade e para avançar na
integração da espiritualidade na prática psicológica. Ao longo de seu livro,
Incorporating Spirituality in Counseling and Psychotherapy (Miller, 2003)
apresenta 20 casos, acompanhados de perguntas que visam orientar a
discussão. Desses, selecionamos quatro casos, escolhidos por proporcionarem
um largo espectro de questões relacionadas à atuação do psicólogo. Os quatro
casos, assim como as questões posteriores, foram reescritos, adaptando-os à
nossa realidade. Acrescentamos a esses casos mais um, que selecionamos
entre aqueles que discutimos em grupo de estudos sobre Psicologia e Religião,
apresentando-o no mesmo molde dos demais.
O workshop foi oferecido para os participantes do 21° Encontro de
Serviços-Escola de Psicologia do Estado de São Paulo (UNIP, 2013).
Inicialmente oferecemos 20 vagas, acreditando que esse número permitiria
avançar na discussão durante o tempo previsto para o evento. No entanto, no
início da atividade, havia uma fila de interessados solicitando que fosse
permitida a sua participação. Tivemos assim, no workshop, 30 participantes,
número limitado pela possibilidade de trabalhar em círculo no espaço
reservado para a atividade. O público foi composto por jovens dos últimos anos
de cursos de Psicologia, provenientes de diferentes estados do país e por seis
professores de cursos de Psicologia.
No workshop fizemos uma breve introdução explicando o conceito
utilizado para o termo espiritualidade, falamos da importância dos psicólogos
discutirem o assunto e apresentamos as razões e as dificuldades para fazê-lo,
segundo Pargament (2002). Em seguida, dividimos os participantes em grupos
de seis pessoas e entregamos a cada grupo um dos casos, para discussão.
Após 20 minutos, abrimos os grupos para que apresentassem seus casos.
Depois de cada apresentação perguntávamos aos participantes como teriam
agido e, em seguida, o grupo responsável pelo caso relatava o que tinha sido
discutido e qual a conclusão a que os membros do grupo tinham chegado.
224
O workshop
No inicio do workshop definimos espiritualidade como uma dimensão
intrínseca à vida humana que abarca a busca de significado para a existência e
a busca da transcendência. Lembramos que todo ser humano se pergunta
sobre a vida, a dor e a morte e citamos Aletti (2007, p. 15), para quem “todos
temos uma imagem de Deus. Também quem não crê, ou nega a existência,
tem uma imagem de Deus, que nega”.
Em seguida, nos referimos a Pargament (2002) para quem:
1. O cliente não deixa sua espiritualidade fora da sala de atendimento;
problemas espirituais podem provocar problemas psicológicos e vice-versa, a
espiritualidade pode ser uma fonte tanto para a solução quanto para a
manutenção de problemas.
2. O psicólogo não deixa sua espiritualidade fora da sala de atendimento; o
grau de integração espiritual e profissional varia de psicólogo a psicólogo; a
integração da espiritualidade no atendimento requer conhecimento, abertura,
tolerância, autoconhecimento, autenticidade.
3. O processo psicoterápico tem uma dimensão espiritual e tanto a
espiritualidade do paciente quanto a do terapeuta são afetadas ao longo do
atendimento; as diferentes modalidades de psicoterapia enriquecem-se quando
é dada atenção à dimensão espiritual, a espiritualidade oferece perspectivas
importantes às questões trabalhadas em psicoterapia; mudanças psicológicas
e espirituais acontecem simultaneamente.
Após citar as dificuldades que Pargament encontrou nos psicólogos,
quando se deparam na clínica com questões de religião e espiritualidade,
dividimos os participantes em grupos e distribuímos para cada grupo, um dos
casos escolhidos, solicitando que respondessem as perguntas feitas para cada
caso.
Pedimos que discutissem os casos procurando deixar de lado posições
pré-concebidas e possíveis adesões a denominações religiosas ou grupos de
espiritualidade.
225
Caso 1 – Eliana
Imagine-se no consultório. Você é o terapeuta. Eliana marcou uma
consulta por telefone e você prepara-se para recebê-la pela primeira vez.
Eliana tem 55 anos. Ela entra na sala, fala sobre a sua vida e acrescenta que é
cristã desde pequena. Diz que sua religião é muito importante para ela.
Acrescenta que, antes de continuar a falar, quer saber se você também é
cristão. Pede que você diga qual é a sua religião e como ela impacta sua vida e
seu trabalho como terapeuta. Diz que só quer trabalhar com alguém que
compartilhe as mesmas crenças e valores que ela, ancorados em sua
espiritualidade.
Discuta:
1. Alguma das colocações de Eliana perturba-o emocionalmente ou
mentalmente? Como você recupera-se?
2. Que comentários iniciais você faria sobre seu trabalho e sua orientação
profissional? Você faria alguma referência à sua posição espiritual? Por
quê? Quais seriam os prós e os contras?
Caso 2 – Pastor Jonathan
O pastor Jonathan entra em contato com você para encaminhar um
casal de sua igreja. Conta que ouviu falar muito bem de você e de seu trabalho
como psicólogo. Conta que orienta espiritualmente esse casal, que frequenta a
sua igreja há um ano aproximadamente. Pensa que um atendimento
psicológico especializado é necessário, além do seu trabalho pastoral. Ele quer
que você atenda o casal enquanto, paralelamente, ele continua a orientação
espiritual. Considera que vocês poderão reunir-se de tempos em tempos para
conversar sobre a dupla e poder, assim, ajudá-los melhor.
Discuta:
1. Esse atendimento paralelo o preocupa?
2. Que informações você precisa para poder decidir aceitar ou não atender
o casal?
3. Quais seriam os limites e contratos necessários com o cliente para
desenvolver um trabalho conjunto?
4. Quais seriam os limites e contratos necessários com o pastor para
desenvolver um trabalho conjunto?
226
Caso 3 – Paula
Paula é uma cliente que segue a religião católica como você. Ela já
conversou abertamente sobre as suas crenças e as suas práticas espirituais
nos atendimentos. Você concorda com as ideias dela sobre o catolicismo e
considera que as orações que ela faz e os rituais que ela atende estão a favor
de sua saúde mental. No momento, ela está atravessando uma forte crise em
sua vida pessoal e está muito apegada ao problema que vive, não conseguindo
distanciar-se dele para refletir. Você gostaria de conversar sobre essa crise do
ponto de vista da religião dela, pois pensa que isso poderia ajudá-la a ver o que
se passa de forma mais ampla. Em sessões anteriores, Paula rezou na sessão
e, agora, você gostaria muito de rezar com ela e de referir-se a alguns relatos
da Bíblia como metáfora, mas teme fazê-lo por conta das posições oficiais do
Conselho Federal de Psicologia. O Conselho tem uma posição muito clara no
que diz respeito à separação entre igreja, Estado, práticas psicológicas e
práticas religiosas, o que o deixa confuso sobre como agir na sessão.
Discuta:
1. Como você começa a sair da confusão que sente?
2. Você entra em contato com o Conselho para saber como agir? Sim, não,
por quê?
3. Quais são outras barreiras que impedem que você reze com a cliente ou
refira-se à Bíblia? Quais são os argumentos favoráveis?
4. Como você vê a integração de práticas religiosas na clínica psicológica?
Caso 4 – Daniela
Daniela entra em seu consultório trazendo o seu mapa astral. Ela
começa a sessão dizendo que ela lê seu horóscopo todos os dias e há mais de
cinco anos não toma nenhuma decisão séria em sua vida sem antes consultar
a sua astróloga. Conta que, desde pequena, sua mãe lia os astros para ela,
mas, crescendo, passou a consultar outras astrólogas, até encontrar aquela
que lê muito bem a sua carta. Ela e a mãe comentam as leituras da astróloga,
que faz também a carta astral da mãe, e comportam-se a partir dessas
indicações. O pai considera que astrologia é bobagem e ignora essas
conversas. Quando você faz perguntas sobre a vida de Daniela, ela responde
sempre se referindo aos astros que se encontram nesta ou naquela posição.
Você fica interessado nas explicações de Daniela, pois considera que os astros
227
têm, sim, influência na vida das pessoas. Você considera, também, que parte
do comportamento de Daniela é característica do seu signo.
Discuta:
1. Você considera o comportamento de Daniela patológico? Por quê?
2. Como você planejaria o desenvolvimento do atendimento de Daniela?
3. Como sua relação com a astrologia influencia o seu comportamento,
nesse caso?
Caso 5 – Luciana
Luciana é advogada e casada há oito anos. Seu marido, no segundo ano
do casamento, teve uma doença grave, o que impediu o casal de manter
relações sexuais. Ela dedicou-se ao trabalho e passou a manter
economicamente o marido e o filho, sobrecarregando-se. Frequentava um
Centro Espírita e encontrava apoio e conforto ao participar das sessões e
relacionar-se com o grupo. Um jovem começou a trabalhar no mesmo escritório
e Luciana apaixonou-se por ele, sendo correspondida. Tornou-se amante do
colega e passou a viver conflitos de ordem moral que a levaram a buscar
atendimento psicológico. Contou que sua vida afetiva era tumultuada, relatando
comportamentos intermitentes de rompimentos e aproximações com o jovem,
que comentava publicamente com os colegas. Luciana dizia que um espírito de
luz levava-a a intuir quando devia ou não sair com o seu amigo. Luciana pediu
licença para acender velas nas mesas do escritório e aborreceu-se quando
negaram seu pedido. Passou então a levar flores brancas e a presentear os
colegas para que as pusessem sobre as mesas. Na sua, colocou várias
imagens sacras e fotos de personagens importantes de sua religião. Um dia,
Luciana trouxe para a sessão de terapia uma medalha de exorcismo e disse
que foi orientada pelo espírito de luz a pedir que você usasse-a durante o seu
atendimento. Diz que se sentirá muito mais segura e tranquila se você usar a
medalha. Solicita que você a coloque.
Discuta:
1. Como você comportaria-se em relação ao pedido de Luciana?
Por quê?
2. Como você lidaria com o comportamento religioso de Luciana?
228
Discussão
Os alunos e os profissionais presentes mostraram-se bastante
interessados no workshop e a participação foi intensa. A par das discussões
sugeridas, alguns alunos procuraram-nos durante a discussão, iniciando uma
conversa paralela na qual falavam de suas posições religiosas e do que
pensam sobre espiritualidade. Esse comportamento corroborou com a
colocação dos autores sobre a importância de abrir-se um espaço acadêmico
para que os futuros psicólogos possam refletir sobre suas posições pessoais
comparando-as com as propostas das diferentes teorias psicológicas.
A preocupação com a manutenção de uma atitude ética frente ao
paciente, independentemente da conduta sugerida para fazer frente aos casos
apresentados foi unânime e mostrou que a postura ética está sendo
positivamente apresentada e desenvolvida nos cursos de Psicologia.
A abertura para a inclusão da espiritualidade no atendimento variou de
grupo para grupo. Dois grupos mostraram-se reticentes quanto à possibilidade
de tratar do assunto no atendimento preferindo adotar uma posição de redução
do assunto a aspectos psicológicos. Na discussão aberta mostraram o receio
de que a inclusão do tema levasse a discussões referentes às religiões e
movimentos espirituais “em si” e afastasse o trabalho do âmbito propriamente
psicológico. Outros grupos mostraram-se vivamente interessados em encontrar
formas adequadas e coerentes de inserir o assunto nos atendimentos.
Justificaram sua postura falando da forte presença das religiões e movimentos
espirituais na cultura de nosso país tanto do ponto de vista institucional quanto
nos contextos sociais e familiares. O assunto levou a reflexões sobre as
especificidades positivas e negativas do atendimento a pacientes que
frequentam a mesma denominação religiosa do terapeuta e sobre os limites da
neutralidade do profissional.
O andamento das reflexões propiciadas pelos casos facilitou
compreender que na perspectiva da clínica psicológica as vivências religiosas e
espirituais precisam ser compreendidas do ponto de vista da configuração
pessoal, valor e importância com que se apresentam individualmente, de forma
livre dos estereótipos ligados às religiões em geral ou a alguma denominação
específica e independentemente da posição do profissional. Conhecendo a
história do paciente é possível saber se o seu modo de viver a religião e a
espiritualidade desempenha uma função patologizante ou colabora para a sua
saúde mental.
Na busca de encontrar a melhor forma de tratar os casos apresentados,
os participantes discutiram o limite da atuação do psicólogo e as diferenças
entre um atendimento espiritual e um atendimento psicológico. Essa discussão
mostrou-se rica e ensejou discutir o objetivo do atendimento psicológico frente
229
à inclusão da espiritualidade e da religião: o de não discutir as religiões ou os
movimentos espirituais, mas compreender a pessoa no seu relacionamento
com as diferentes formas de espiritualidade e de religião que lhe foram
apresentadas em seu trajeto de vida.
O workshop levou os alunos a entenderem que é possível encontrar
espaços acolhedores e apropriados para articular crenças, ideologias, práticas
e conhecimentos teóricos de modo a constituir um modo próprio e adequado de
agir profissionalmente. Abriu questões, possibilitou ampliar pontos de vista
sobre o assunto, mostrou a complexidade do tema e a diversidade com que se
apresenta a possibilidade de estudo e de diálogo, e a contribuição de trabalhos
e pesquisas desenvolvidos na área para o bom atendimento clínico.
230
Referências
ALETTI, M. Arte, Cultura e Religião: rabiscos winnicottianos. In: Irene Gaeta
Arcuri e Marilia Ancona Lopez (org) Temas em Psicologia da Religião. São
Paulo: Vetor, 2007 (p 13-58)
ANCONA-LOPEZ, M. Psicologia e Espiritualidade. Workshop. 21° Encontro de
Serviços-Escola de Psicologia do Estado de São Paulo, 18 a 21 de setembro
de 2013, Universidade Paulista – UNIP, Campinas, SP.
CESAR, C.F. Histórias de vida, opções teóricas em Psicologia: Abordagem
Fenomenológica. Dissertação de Mestrado. Orientadora: Marilia Ancona Lopez,
PEPG Psicologia Clínica, PUC-SP, 2007
COLIATH, A.A.M. Escolha do terapeuta associada à denominação religiosa.
Dissertação de Mestrado. Orientadora: Marilia Ancona-Lopez. PEPG Psicologia
Clínica. PUC-SP, 2008.
ESTEVES, M.C.S. Os significados da religiosidade para docentes supervisores
do curso de Psicologia. Tese de Doutorado. Orientadora: Marilia AnconaLopez, PEPG Psicologia Clínica, PUC-SP, 2009.
MILLER, G. Incorporating Spirituality in Counseling and Psychotherapy: theory
and technique. New Jersey: John Wiley & Sons, 2003.
PARGAMENT, K.I. Spiritually Integrated Psychotherapy: understanding and
addressing the sacred. New York: The Guilford Press, 2007.
Pereira, L. A interface entre o Aconselhamento Psicológico e o
Aconselhamento Espiritual. Dissertação de Mestrado. Orientadora: Marilia
Ancona-Lopez, PEPG Psicologia Clínica, PUC-SP, 2009.
Sobre a autora
Marilia Ancona-Lopez: possui graduação em Psicologia – Bacharelado, Licenciatura e
Formação pela Universidade de São Paulo (1964), mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica)
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1981) e doutorado em Psicologia
(Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1987). Atualmente é
assistente doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem experiência na área
de Psicologia, com ênfase na Psicologia Fenomenológica, aplicada ao Diagnóstico Psicológico
e à área da Psicologia da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: práticas
clínicas, psicologia e religião, psicodiagnóstico e psicologia fenomenológica e educação
superior. Vice-reitora de Graduação da Universidade Paulista – UNIP.
E-mail: [email protected]
231
CIÊNCIA E RELIGIÃO: O ESTUDANTE DE PSICOLOGIA DIANTE DO
FENÔMENO RELIGIOSO
Eliane de Albuquerque Drullis
José Vicente Angelo da Rocha
Rosa Maria Rodrigues de Oliveira
Maria da Piedade R. de Araújo Melo (Orientadora)
Resumo
O presente trabalho de conclusão de curso teve por objetivo compreender a
relação entre a religiosidade e formação acadêmica em estudantes
ingressantes e concluintes do curso de graduação em Psicologia na cidade de
Campinas. A pesquisa valeu-se do método qualitativo e foram realizadas seis
entrevistas semiestruturadas, sendo três para alunos ingressantes e três
concluintes, compostas por dez questões disparadoras, as quais foram
transcritas e passaram por análise de conteúdo. Identificamos seis categorias
temáticas: a religiosidade no histórico de vivências dos participantes; a
influência da religiosidade na escolha pela psicologia; a interface entre a
psicologia e a religião; a interferência do curso de psicologia na religiosidade
dos estudantes; a religiosidade e a vida acadêmica; a religiosidade e a prática
profissional. Verificou-se que os estudantes apresentam uma tendência a
separar Psicologia, religiosidade e religiões. De maneira geral, reconheceram
que é necessário estudar o tema durante a formação acadêmica no curso de
graduação. Quanto à prática profissional, observou-se a importância do
respeito e o direito à liberdade religiosa de todo e qualquer cidadão, bem como
a necessidade de mais estudo e produção de conhecimento sobre a
contribuição da religião na constituição da subjetividade humana.
Palavras-chave: Psicologia da Religião; Religiosidade; Formação acadêmica e
prática profissional.
232
Abstract
This essay aims to understand the relationship between religiosity and
academic background in beginners and former students of Psychology in the
city of Campinas. The research was qualitative and they were held six semistructured interviews, being three for beginners and three for former students,
composed by 10 general questions, which were transcribed and submitted to
content analysis. It was found that the students, in general, showed a tendency
to separate Psychology, religiosity and religions, recognizing the non-existence
and the need of academic background in the graduation course. As to the
professional practice, the importance of respect and the right of religious
freedom of every citizen were observed, as well as the need of knowledge
about religions as part of subjectivity.
Keywords: Psychology of Religion; religiosity; academic background and
professional practice.
Introdução
A necessidade de estudos sobre este tema surge em função do grande
interesse da população universitária e do público em geral. Segundo Paiva
(2009) estudantes de Psicologia e de outras áreas têm procurado a disciplina
Psicologia da Religião na busca de solução de problemas pessoais, bem como
de outros resultantes do encontro dessas duas áreas do conhecimento
humano: ciência e religião.
Tem merecido a atenção dos pesquisadores temas como a posição do
psicólogo clínico frente à religião dos pacientes (Ancona-Lopez, 2004, 2005)
possibilitando a este, dentro do caráter laico da Psicologia, uma abertura à
233
opção religiosa dos pacientes e reconhecimento da necessidade de um
posicionamento deste profissional em relação a esta matéria (PAIVA, 2009).
Dentre os estudiosos que se propõem a investigar o fenômeno religioso,
há aqueles que defendem que o movimento de busca de sentido é, em si
mesmo, religioso e próprio da condição humana, enquanto que para outros, a
religiosidade é entendida como expressão social e cultural. Diante deste amplo
campo de saberes, que fazem contornos com a Filosofia, a Psicologia e a Arte
é necessário esclarecer e especificar as bases conceituais sobre as quais se
apoiou a presente pesquisa.
Ao refletirmos sobre a questão da diversidade conceitual, temos que a
experiência do sagrado acompanha o homem em toda a sua trajetória, tendo
como lugar de manifestação o próprio homem desde a caverna neolítica até a
pós-modernidade; ainda que sua finalidade seja transcendente, trata-se de
uma experiência própria do ser do homem em seu horizonte histórico
(RIBEIRO, 2009). Assim, tem-se alguma ideia do sagrado a partir de uma
diversidade semântica. Mardones (1996, p. 13) comenta que “a história da
reflexão sobre o sagrado mistura-se inevitavelmente com os esforços a favor
do seu esclarecimento.”
Mardones (1996) apresenta-nos três grandes correntes empenhadas no
esclarecimento do sagrado e em que consiste a experiência religiosa: a
sociológica, a fenomenológica e a hermenêutica.
A primeira é do sociólogo francês Durkheim, que encontra a origem do
sagrado na sociedade, como uma categoria fundamental da consciência
coletiva que foi originada na sociedade e não em uma realidade independente,
transcendente e sobrenatural, sendo o fenômeno religioso reduzido às suas
dimensões sociais e culturais (MARDONES, 1996).
A segunda corrente provém de uma psicologia fenomenológica da
religião, exemplificada em Otto onde o sagrado é um poder que se situa para
além do âmbito humano, no sentido de que ele não é produzido pelo indivíduo,
mas experimentado pelo homem, seja pela via do fascínio ou do temor.
(MARDONES, 1996).
A corrente hermenêutica procura integrar e articular as análises de
várias ciências que estudam o fenômeno religioso. Para Eliade, o sagrado é
234
uma realidade absoluta transcendente ao mundo, mas manifestada nele, e
neste sentido o homem é religioso e o meio de contato entre ele e o sagrado
dá-se por meio do símbolo, mediador entre o eterno e o temporal. “Os símbolos
revelam velando e velam revelando.” Pensamento simbólico que se distingue
do científico, quando o simbólico implica e o científico explica. (MARDONES,
1996, p. 23).
Assim, verificamos que o sagrado é central para a experiência religiosa
em todas as correntes, manifestando-se por hierofanias no mundo profano
sendo o símbolo a sua linguagem.
A presente pesquisa não teve como objetivo propor uma resolução a
essa diversidade semântica, nem mesmo construir conceitos novos, mas
reconhece-se que ela dá-se em meio e a partir dessa diversidade, e uma vez
que toda pesquisa científica prescinde de amparo teórico torna-se necessária a
escolha de conceitos sobre o tema escolhido, ainda que esta escolha pareça a
priori arbitrária.
O conceito religião não escapa da diversidade semântica do campo
religioso, possuindo grande amplitude, podendo ser entendido como um
conjunto de crenças, dogmas, filosofias, costumes, práticas e organizações
sociais.
Em termos gerais a religião é uma forma de relação entre o homem e o
Sagrado que se desdobra de vários modos: dogmas, crenças, valores, práticas
e posturas em relação do homem com o Sagrado e com outros homens.
Dentro da Filosofia da Religião, Abbagnano oferece-nos uma definição
para religião como sendo a "crença numa garantia sobrenatural oferecida ao
homem para sua salvação; e as técnicas orientadas para obter e conservar
esta garantia" (ABBAGNANO, 1982, p. 813).
Para Feuerbach (apud CHAUÍ, 1980, p. 5 ), “a religião é a forma
suprema da alienação humana, na medida em que ela é a projeção da
essência humana num Ser superior, estranho e separado dos homens”.
Ao conceito de religião, acrescentam-se as ideias de crenças e práticas
direcionadas para além do humano, garantia sobrenatural, forma suprema de
alienação; saída ou escape para o desespero existencial, gestão do sagrado,
sagrado selvagem e dominado; sistemas de compensadores e suposições
235
sobrenaturais (ERICKSON, 1991; ABBAGNANO, 1982; FEUERBACH apud
CHAUÍ, 1980; CHAMPLIN & BENTES, 1997; MENDONÇA, 2004; STARK,
2008).
Lalande (1999) apresenta a religião sob dois aspectos: instituição social
que, como tal, cumpre ritos regulares pautados pela crença em um valor
absoluto e como um sistema individual de crenças e sentimentos. Verificamos
neste autor uma interação entre os aspectos sociais e individuais, objetivos e
subjetivos da religião. Os aspectos individual e subjetivo da religião são hoje
compreendidos como religiosidade ou espiritualidade.
Outros dois aspectos importantes a serem considerados dizem respeito
à pluralidade religiosa, que expressa a ideia de que existem muitas religiões,
enquanto que o pluralismo religioso não abarca apenas a ideia desta
diversidade, mas também atribui valor e norma para o diálogo entre elas
(STOTT, 1997).
O pluralismo religioso parece enunciar como faz o ditado popular, que
todos os caminhos levam a Roma, ou seja, todos os caminhos levam a Deus.
Isto para alguns autores oferece risco que poderia tornar as religiões
expressões inadequadas da verdade e da fé, banalizaria a fé religiosa, nivelaria
mediocremente todas as religiões, desrespeitaria suas diferenças, e por fim
invalidaria todas as religiões, incluindo o Cristianismo (FELLER, 2005; STOTT,
1997; PIKAZA, 2008).
O cenário do campo religioso atual encontra-se caracterizado por uma
desregulação institucional (RIBEIRO, 2009). Antes disso, o Estado brasileiro
viveu sob o domínio de uma religião oficial, o Catolicismo, o que gerou
perseguições arbitrárias a diversas formas de expressão e adesão religiosa
oriundas de raízes africanas, indígenas e europeias. A partir da República o
país tornou-se oficialmente laico e com a Constituição de 1988, isto foi
legitimado pela população brasielira (VERONA, 2013).
Faz parte do compromisso social da Psicologia regular-se pelos
princípios constitucionalmente assegurados aos cidadãos brasileiros que
garantem a pluralidade das denominações religiosas e o direito à liberdade de
crença, bem como o direito de declararem-se não adeptos a qualquer religião,
236
ressaltando-se a laicidade da Psicologia na busca do diálogo entre religião,
religiosidade, espiritualidade e outros saberes.
Ao focarmos no campo da Psicologia da Religião, encontramos uma
diversidade semântica e ideológica envolvendo os termos espiritualidade,
religiosidade e religião.
O termo espiritualidade tem origem no latim eclesiástico, derivando do
adjetivo espiritual, “espiritualidade é a vida sob a moção do Espírito Santo”. Em
um segundo momento, já no Iluminismo, passou “a designar o racional e a vida
guiada pela razão”, ou seja, a vida guiada pelo espírito humano. (PAIVA, 2011,
p. 15). A Psicologia Humanista concedeu um terceiro sentido que denota
“autorrealização” e o “desenvolvimento do potencial humano,” (RICAN, 2003
apud PAIVA, 2011, p. 16) passando a ser compreendida como desvinculada da
religião, podendo-se falar em espiritualidade ateia, entendida por criatividade,
experiência pessoal, participação em grupos e celebrações espontâneas
(SOLOMON, 2003/2002 apud PAIVA, 2011).
A religião, por sua vez, é entendida pela instituição, dogmas, ritos e a
comunidade, enquanto que a religiosidade define-se por ações do indivíduo
frente à religião, como atitudes de obediência, participação, aceitação e
comportamento moral.
Amatuzzi propôs um quadro de conceitos básicos sobre o fenômeno
religioso denominado “Esboço de teoria do desenvolvimento humano”
(AMATUZZI, 2001), delineando temas como: senso religioso ou religiosidade,
forma, campo religioso, vivência religiosa, experiência religiosa, fé humana,
estado da fé, fé religiosa, adesão religiosa, sistema religioso ou religião e
desenvolvimento religioso.
Um dos eixos teóricos subjacentes a sua obra é que o religioso é algo
próprio do humano, aparecendo naturalmente em seu desenvolvimento;
podendo ser um facilitador ou bloqueador deste (AMATUZZI, 2001).
Ao nosso grupo de pesquisa impôs-se a árdua tarefa de eleger o
conceito e seu representante semântico a ser adotado nesta pesquisa em meio
à diversidade e maleabilidade semântica do campo religioso, sob riscos e
objeções, uma vez que toda pesquisa científica prescinde de amparo teórico.
237
Assim, decidiu-se adotar o conceito de religiosidade e outros conceitos
básicos propostos por Amatuzzi (2001), haja vista que se pretende realizar uma
descrição fenomenológica da experiência religiosa, bem como, que esse mapa
conceitual oferece um olhar desenvolvimental relevante para a compreensão
dos dados, fornecendo um escopo teórico suficiente para garantir a realização
do presente estudo.
O fenômeno religioso ao longo da história
Segundo Pessotti (1994 apud SILVA; ZANELLO, 2010), tanto a história
da loucura como a história da humanidade recebeu diferentes definições e
causas variando segundo o seu contexto. Assim o autor faz uma analogia entre
os conceitos de religião e loucura. Na Grécia antiga, por exemplo, o homem era
visto como passivo e vítima das atitudes do deus Zeus, o qual determinava a
quem dar ou tirar a razão. Em seguida, o homem é visto como corresponsável,
assim suas atitudes irritaram os deuses e, portanto foi castigado. Na Idade
Média, aparece a teoria Demonista, onde tanto as almas como os corpos dos
loucos são visto como possuidores pelo Demônio. A partir de então, a Igreja
começa a defender a prática ortodoxa do exorcismo.
Enfoques religiosos x enfoques psicológicos
Segundo Cerqueira (2007 apud SILVA; ZANELLO, 2010), a religião
opera como base social sendo um dos caminhos terapêuticos percorrido pelo
usuário de serviços da saúde mental. Dalgalarrondo (2006 apud SILVA;
ZANELLO, 2010), endossa dizendo que as pessoas submergidas em alguma
atividade religiosa evidenciam um estado psicológico mais adaptado e com
menor reincidência.
Conforme Carvalho (2008 apud SILVA; ZANELLO, 2010), a experiência
religiosa do ser humano resignifica o sentido da vida provendo alívio em suas
dores e alimentando a sua fé, desta forma colocando-o em comunhão com
238
Deus. Para esse autor essa aproximação é de suma importância para o
processo de reintegração do indivíduo à sociedade.
Para Boff (2002 apud MOTTA; ROCHA JUNIOR, 2011), a cultura
ocidental originou o afastamento do corpo e da alma, por um lado a tradição
materialista, concreta, corpo, razão e por outro lado a tradição espiritualista,
focada no espírito e no subjetivo. Para esse autor a religião é sólida, algo que
pode ser exteriorizado e possível de ser vivenciado com o Sagrado.
Jung (1978 apud MOTTA; ROCHA JUNIOR, 2011) vê a função da
religião como fato social, histórico e um procedimento humano e a psicologia,
ao tomar ciência disso, não pode desprezar a sua importância.
Frankl (2009 apud MOTTA; ROCHA JUNIOR, 2011) destaca a
importância da psicoterapia e sua autonomia na ciência, cujo objetivo é a busca
da cura da alma, enquanto a religião baseia-se na teologia e busca a salvação
da alma. Este autor concebe o homem como um ser espiritual existencial.
Tomando por base a percepção da Gestalt o sentido da vida seria a figura e o
fundo seria a realidade. Não há como receitar um significado da vida para um
paciente, mas há como incentivá-lo a ampliar construtivamente um sentido em
cada situação da vida.
Motta e Rocha Junior (2011) enfatizam que a ciência trabalha com
verdades categóricas, absolutas e que as religiões podem ser percebidas
através de dogmas, força espiritual almejando promover a fé, religiosidade e
espiritualidade ao ser humano. Conclui dizendo que a vitalidade do homem
pode ser compreendida como um aspecto biológico, os desejos como aspectos
psíquicos, a comunicação interpessoal como aspecto social e a fé como
aspecto espiritual.
A alma assim como a espiritualidade deixa de ser um tabu para a ciência
dada a sua imaterialidade; a importância delas para o ser humano é que
proporcionam ao homem ser o protagonista de sua história, deixando o papel
de vítima e ampliando o sentido de sua vida.
239
Freud e o fenômeno religioso
Freud e seu percurso de construção da Psicanálise, elaborada a partir
de sua prática clínica, além de propor a teoria da constituição do sujeito do
inconsciente, terceira ferida narcísica, também se dedicou, em sua obra
sociológica, a estudar a relação do sujeito com os objetos do mundo externo,
ou seja, como ele relacionava-se no campo social, incluindo as práticas
religiosas.
Alguns pensadores da segunda metade do século XIX, dentre eles
Freud, acreditavam que com o avanço das ciências, da filosofia e da
tecnologia, a religiosidade iria retrair e a humanidade seria cada vez menos
religiosa. O século XX não presenciou esta retração da religiosidade, muito
pelo contrário, e hoje nós temos um mundo tão ou mais religioso do que no
século XIX, na época em que eles viveram.
Em Freud, encontramos dois discursos utilizados na interpretação do
fenômeno religioso: o iluminista e o analítico.
O discurso iluminista apresenta como paradigma epistemológico para a
construção do saber científico, a ideologia cientificista, segundo o modelo das
Ciências da Natureza [Naturwissenschaften]. Este aparece no livro “O Futuro
de uma Ilusão” (1927/1976a) e na última das “Novas Conferências Introdutórias
à Psicanálise”, intitulada “Sobre a Questão da Weltanschauung” (1933/1976b).
“Seu objetivo principal foi criticar a Weltanschauung religiosa16 como ‘a mais
séria inimiga da Ciência’” (FREUD, 1933/1976b apud MACIEL; ROCHA, 2008,
p. 731).
O discurso analítico foi influenciado por sua visão de homem e pela sua
compreensão psicanalítica do fenômeno religioso, buscando interpretar as
motivações psíquicas da experiência religiosa e compreender a psicogênese
do fenômeno religioso.
Freud vai alternando em sua obra estes diferentes discursos, ora se
apresentando de forma dogmática (discurso cientificista), ora cheio de lacunas
e interrogações. Esta ambivalência marca sua posição diante do fenômeno
religioso: enquanto pensador iluminista Freud posicionou-se de maneira
16
Weltanschauung – ideologia, visão de mundo, cosmovisão, mundividência.
240
descrente frente aos valores religiosos, mas o interesse pelo estudo da religião
sempre esteve presente em sua obra (MACIEL; ROCHA, 2008).
Os dois discursos de Freud, o cientificista e o analítico, mostram duas
maneiras distintas de como ele aborda o estudo do fenômeno religioso.
Enquanto que o cientista demonstra que a religião é inimiga da ciência, seu
lado analítico rende-se ao mistério da fé, compreendendo a religião como uma
busca de sentido. Este pensamento dialético traduz a posição deste ícone
diante do conhecimento, sempre pronto a questionar e a reformular suas
teorias.
Em “O Futuro de uma ilusão”, publicado aos 70 anos, ciente de sua
doença, Freud declara-se totalmente contrário à religião e, usando o artifício
literário de um suposto crítico com quem ele dialoga, interroga-se a si próprio
ao longo da obra. Para Freud, todas as produções humanas, incluindo a
suposta verdade das ideias religiosas devem passar pelo crivo do saber
científico, onde impera a razão e, consequentemente, por não serem
comprovados cientificamente, os ideais religiosos são desacreditados.
(MACIEL; ROCHA, 2008).
Para o teólogo Paul Johson “no íntimo de todo homem há um crente.
Nem todos creem nas mesmas coisas, mas todos acreditam em algo.” (196 ,
p. 186 apud MACIEL; ROCHA, 2008, p. 737). Freud transfere sua crença para
o Deus Logos, admitindo a possibilidade de a ciência vir a ser uma ilusão, o
que não traria maiores danos a seus adeptos; o que não ocorreria com a
religião, fato este que seria insuportável para os fiéis.
Na XXXV Conferência “A questão de uma Weltanschauung,” Freud
assume novamente o discurso cientificista definindo o termo que em alemão
significa “visão de mundo” como uma construção intelectual capaz de
solucionar todos os problemas de nossa existência, não deixando nenhuma
pergunta sem resposta. Acrescenta que, como ciência especializada, a
Psicanálise não pode construir por si só uma Weltanschauung e que aceita a
Weltanschauung científica. Como a ciência não pode explicar os enigmas do
universo, consolar o homem diante do sofrimento ou controlar suas relações,
benefícios prometidos pela religião, Freud conclui que a humanidade
amadureceria ao desfazer-se das ilusões religiosas. A Weltanschauung
241
religiosa, para Freud, seria consequentemente substituída pela visão científica.
(MACIEL; ROCHA, 2008).
Quanto ao discurso analítico de Freud, temos que dentre os fenômenos
humanos investigados por Freud, a religião recebeu lugar de destaque e, ao
abordá-la à luz da teoria psicanalítica, Freud o faz de maneira diferente
daquela do discurso cientificista, não ultrapassando os limites do psiquismo
humano, ou seja, compreendendo a experiência religiosa como uma
experiência psicológica. (MACIEL; ROCHA, 2008).
A metapsicologia freudiana vê o homem como um ser constituído pelas
estruturas
do
psiquismo
e
do
corpo,
desconsiderando
a
dimensão
transcendente do espírito, ou seja, suas contribuições estão restritas ao nível
da realidade psíquica. Dessa forma, seu discurso analítico é usado para
mostrar como a Psicanálise pode contribuir para interpretar o sentido
inconsciente dos rituais religiosos, esclarecer a natureza das crenças, bem
como a origem do fenômeno religioso. (MACIEL; ROCHA, 2008).
Quanto às origens do sentimento religioso, Maciel e Rocha (2008) citam
que em “Totem e Tabu” (1913/1976e) Freud busca elucidar a psicogênese do
fenômeno religioso das religiões primitivas e da monoteísta judaica e cristã,
relacionando o complexo de Édipo à origem da religião e da moralidade e ao
sentimento de culpa. Segundo uma concepção evolucionista, Freud demonstra
que as manifestações dos povos primitivos “permanecem no cerne do
acontecer humano, em constante transformação.” (MACIEL; ROCHA, 2008, p.
743).
Método
Os participantes da pesquisa foram 6 alunos, sendo 3 ingressantes e 3
concluintes do curso de graduação em Psicologia de universidades da cidade
de Campinas, tendo como critério para composição da amostra a não
vinculação a uma universidade específica, mas ao fato de serem alunos
ingressantes e concluintes do curso de Psicologia, que concordaram
espontaneamente em conceder a entrevista.
242
Como critério de exclusão da amostra estabeleceu-se que os
participantes
não
poderiam
pertencer
à
mesma
universidade
dos
pesquisadores uma vez que, conforme Regimento Interno, não é permitido que
alunos do curso sejam participantes de pesquisas de seus próprios colegas.
Não se considerou como critério eletivo para os participantes da pesquisa a
admissão prévia de que eles declarassem-se pertencentes a alguma religião.
Todos os cuidados éticos foram tomados e o risco da presente pesquisa foi
considerado mínimo, assegurando aos sujeitos garantia de sigilo, anonimato e
interrupção de sua participação sem qualquer penalização ou prejuízo,
conforme TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Mediante adesão livre e espontânea dos participantes, as entrevistas
foram agendadas e realizadas individualmente tendo sido gravadas e
transcritas. Aos participantes da pesquisa foi possibilitada a leitura do roteiro da
entrevista, ficando ao seu critério fazê-lo antes da gravação da mesma. Dentre
os participantes da pesquisa, apenas um optou por ler o reteiro antes de
iniciarmos a entrevista.
Após a coleta dos dados, as entrevistas foram transcritas segundo
alguns critérios e parâmetros estabelecidos pela equipe de pesquisadores.
Convencionou-se que as transcrições fossem feitas respeitando-se, dentro do
possível, as características do registro oral, privilegiando-se a ortografia padrão
por não se tratar de uma transcrição fonética. Para tal, foi elaborada uma
tabela para padronização de nuances da oralidade tais como: entonação,
silabação, falas simultâneas, pausas, interrupções, alongamento de vogais ou
consoantes e comentários do transcritor. Os trechos das entrevistas citados no
presente relatório receberam tratamento diferenciado das transcrições, de
forma a adequá-los, quando necessário, à ortografia padrão, sem prejuízo
semântico.
Aos participantes da pesquisa foram atribuídas siglas alfanuméricas de
acordo com a ordem de realização das entrevistas, com a escolha da letra “I”
para Ingressante e “C” para Concluinte, resultando desta forma nas
denominações I.1, I.2, I.3, C.1, C.2 e C.3.
Elegeu-se o método fenomenológico como forma de responder a este
desafio metodológico possibilitando uma análise sobre a relação entre
243
Psicologia e Religião em dois momentos do curso de formação do profissional
psicólogo, sendo o trabalho de análise e interpretação dos dados, realizado por
meio da leitura e releitura dos relatos, detendo-se em cada trecho de modo a
abrir-se para aquela vivência, esvaziando-se diante do conhecimento,
buscando estar em sintonia para envolver-se pela tarefa, deixando-se atingir
por ela. Buscar possíveis relações, explorar os termos em suas peculiaridades,
agrupá-los e organizá-los para que se tornasse possível captar intuitivamente
as possíveis maneiras para compreensão do fenômeno. Desse modo, os
fenômenos devem ser estudados da forma como estes manifestam-se à
consciência, segundo uma descrição intuitiva, ou seja, é pelo caminho da
intuição que se pode atingir a essência das coisas e, portanto, alcançar uma
objetividade com rigor científico (ANCONA-LOPEZ, 2002).
Ao iniciarmos o tratamento dos dados, cotejamos as perguntas da
entrevista e os objetivos específicos e, a partir dessa equação, elegemos seis
temas para abarcar o conteúdo que foi precipitado, a partir das transcrições.
Identificamos na amostra os posicionamentos individuais de cada participante
e, dentro do possível apontamos semelhanças e dissemelhanças, evitando
enquandrar ou encaixotar os fatos e fenômenos em receptáculos diminutos.
Resultados e discussão
Diante das falas dos participantes da pesquisa, buscamos compreender
o fenômeno religioso tal qual ele foi desvelado nas entrevistas. A amostra foi
composta por cinco mulheres e um homem, com faixa etária variando de 18 a
22 anos. Três alunos ingressantes estavam cursando o segundo semestre;
três concluintes o décimo semestre, e nenhum possuía outra graduação. Três
participantes declararam-se católicos, um evangélico, um cristão e um sem
religião.
A partir do conteúdo precipitado pelas entrevistas, optamos por
subdividir esta análise em seis grandes temas, a saber: a religiosidade no
histórico de vivências dos participantes; a influência da religiosidade na escolha
pela psicologia; a interface entre a psicologia e a religião; a interferência do
244
curso de psicologia na religiosidade dos estudantes; a religiosidade e a vida
acadêmica; a religiosidade e a prática profissional.
A religiosidade no histórico de vivências dos participantes
Levantando dados sobre a religiosidade a partir dos estudantes de
psicologia, podemos perceber a influência da famíllia na escolha religiosa dos
entrevistados, que se deu mesmo quando uma das famílias apresentou com
uma religiosidade nominal, ou seja, o declarar-se pertencente a uma religião,
mas não praticá-la. Sanchez & Nappo (2012, p.54) na pesquisa que
empreenderam com adolescentes afirmam que “a religiosidade parece ocupar
importante papel na estruturação da família”. Apesar da influência da família
parecer-se como a gravidade do sol que mantém todos os planetas girando em
sua órbita, vimos que alguns dos entrevistados laçaram-se, como cometas,
para órbitas mais elípticas tomando cursos diferentes dos de suas famílias.
A respeito da frequência com que os entrevistados participam dos
“rituais” de sua religião, notamos que a manutenção da frequência naqueles
que participam dos rituais entre uma vez por semana até uma vez por mês, e a
diminuição da frequência naqueles que iam mais de uma vez por semana.
Como também destacamos aqueles que no decorrer do curso deixaram de
frequentar e voltaram a frequentar os rituais. Destacamos aqueles que
declararam aumentar a frequência durante situações de crises, sejam elas
pessoais ou familiares.
O histórico de vivências dos entrevistados também nos permitiu
considerar sobre os motivos para mudar, permanecer, deixar ou retornar à
religião. No discurso dos ingressantes, podemos ver desvelado como
motivações para frequentar os rituais: o sentir-se bem, a presença do Sagrado
como fonte inspiradora e a sensação dessa Presença.
Nas falas dos concluintes C.1 e C.3 notamos dinâmicas divergentes,
deste modo, enquanto C.1 durante o curso de Psicologia tomou uma rota de
245
afastamento da religião, C.3 realizou um movimento de reaproximação. O
movimento de afastamento de C.1 justifica-se em sua fala pela busca de
explicação de algo não refletido anteriormente, enquanto C.3 narra uma busca
por sentido. Ambos estão em busca de uma explicação. A concluinte C.2
afirmou ter escolhido manter-se na religião adotada por sua familia, o
catolicismo; contudo, informou que o curso de psicologia possibilitou a
participação em “cultos” de outras religiões, de tal maneira a identificar-se com
essa outra religião: “sou meio macumbeirinha”, embora, nesse movimento
dentro da pluralidade de seu campo religioso, ela não reconheça que tenha
mudado de religião.
A amostra relevou pontos de admiração em relação à religião e a
religiosidade: as coisas boas, a receptividade da comunidade religiosa, a união,
o poder de persuasão, a fé, o dar sentido. Assim, a admiração narrada pela
amostra abarcou aspectos da religião ligados à instituição, à comunidade e
subjetividade das pessoas. A espiritualidade pode proporcionar ao homem ser
o protagonista de sua história, deixando o papel de vítima e ampliando o
sentido de sua vida (PAIVA, 2011), onde cada um a seu modo desvela a sua
maneira de apropriar-se da fé, enquanto aquilo que dá sentido à vida, a sua
forma de adesão religiosa e o seu lidar com o sistema religioso a que pertence.
(AMATUZZI, 2001).
As críticas à religião permaneceram voltadas para os aspectos políticosociais e financeiros da instituição religiosa, da convivência entre seus
membros, da obediência aos dogmas, regras e normas de conduta moral; bem
como do fundamentalismo e intolerância religiosa. Identificamos, em relação às
críticas o que se expressa no pensamento de Paiva (2011), que vem a
entender a religião como uma instituição autoritária que se utiliza dos dogmas,
ritos litúrgicos, ética dos mandamentos, cujos fiéis devem apropriar-se da
conduta, tanto da culpa, como da moral, rendendo obediência, aceitação e
participação coletiva. (PAIVA, 2011).
Outros elementos que consideramos no discurso dos entrevistados
foram a pluralidade religiosa (existência de muitas religiões) e o pluralismo
religioso (iguala e novela as religiões), nos quais se notou que todos os
entrevistados têm em seu campo religioso uma experiência de pluralidade.
246
Todavia, em dois entrevistados percebeu-se em seus discursos, o efeito
banalizador do pluralismo religioso: quando I.2 não considera o catolicismo
como vertente do cristianismo: “fui na umbanda [...] na católica eu ia quando
era pequena com minha avó [...] mas o que ainda [...] tem um negócio, é a
cristã mesmo, que me puxa”; bem como, quando C.2 elenca o espiritismo como
parte do cristianismo: “Eu acredito nisso, eu sinto que eu quero ser do
cristianismo, até eu morrer... independente se eu vou ser católica... se eu vou
ser espírita...”.
A influência da religiosidade na escolha pela psicologia
Na amostra, vimos que a maioria dos entrevistados declarou não
perceber a influência da religiosidade na escolha curso de psicologia. Apenas a
entrevistada C.1, disse que houve peso da religião na escolha do curso, sendo
a religião percebida como instituição ou comunidade, composta por indivíduos
unidos por objetivos e crenças comuns (LALANDE, 1999).
Os entrevistados elecaram outros motivos que os influenciaram ou de
alguma forma contribuíram para a escolha do curso de Psicoligia, como: a) a
presença de membros da família formados em Psicologia; b) a ajuda de Deus:
a participante I.2 parece atribuir a Deus a possibilidade de cursar Psicologia,
mas, não reconhece a influência da religião sobre isso, nesse sentido, em seu
discurso separa o Sagrado, da Religião, ou seja, separa Deus, da Igreja;
separa religiosidade, da religião (PAIVA, 2011); c) o desejo de ajudar as
pessoas; d) a presença de familiares sofrendo com problemas de saúde
mental; d) a influência das amizades; e) a psicologia como possível alternativa
à religião. C.3: “Olha aí, a Psicologia como religião né.” A fala de C.3 nos
remete ao pensamento de Carniel (2013) quando aborda a associação entre
saúde mental e espiritualidade e comenta que com o enfraquecimento do
cristianismo no Ocidente, a Psicologia, enquanto ciência, surgiu para cuidar do
que era do domínio da religião.
Na amostra encontramos também, que a influência da religiosidade pode
permear todo o curso. A entrevistada C.2 informou que embora a religião não
247
tenha interferido na escolha do curso, reconheceu seu peso na escolha da
abordagem: “[...] quando eu tive que decidir entre humanista e psicanálise que
eu adoro, eu fui para humanista justamente por causa disso, por causa que
Freud não aceita Deus... ele condena Deus, e que Deus não existe”. Todavia,
seu discurso parece não ter considerado a ambivalência de Freud diante do
fenômeno religioso, ou seja, enquanto pensador iluminista, negou a existência
de Deus, porém, sua obra foi marcada por suas reflexões sobre as origens do
sentimento religioso (MACIEL; ROCHA, 2008).
A interface entre a psicologia e a religião
A interface entre psicologia e religião apresentou-se como campo um
controverso entre os participantes da pesquisa. Uma vez que ambos os
campos requerem habilidade para lidar com o ser humano, foi consenso a
afinidade entre eles. Todavia, os particpantes negaram a influência da religião
na psicologia e vice versa, pois, segundo eles, a psicologia se vê às voltas com
todos os tipos de crenças e até mesmo a ausência destas, sendo portanto,
neste sentido, considerados campos distintos de conhecimentos. Nas palavras
de I.1: “a relação é mesmo com o ser humano, essa é a relação que elas têm
uma com a outra. As duas ajudam, as duas mostram opções certas para
seguir, eu acho que... é a relação que eu vejo.”
Segundo I.3, a Psicologia não interfere na religiosidade das pessoas e o
“bom entrosamento entre as duas” acontecerá “se você não levar nem para um
lado nem para outro”; acrescenta: “Quando eu estiver trabalhando, é a
psicologia, quando eu estiver na minha religião, é a minha religião”. Para I.3,
não há relação direta entre a psicologia e a religião e sim uma relação indireta
quando esses saberes se encontram no indivíduo, cabendo a ele diferenciá-los
e separá-los, para vivenciá-los cada qual em seu momento, sendo o “eu
religiosa e eu psicóloga”.
Encontramos no discurso de I.3 uma cisão entre um eu religioso e um eu
psicólogo, que para ela é benéfica porque evita influências ou prejuízos entre
estes campos de conhecimento. Compreendemos que esta cisão ilustre o
248
pensamento positivista, enquanto neutralidade do pesquisador que se vê
distante do seu objeto de estudo, no caso o homem. O que o homem sabe,
sabe a partir dele mesmo, de sua visão ou de experiência do mundo, e nisso se
inclui a ciência e a religião.
C1 considerou que Psicologia e Religião são distintas uma da outra e
não caminham juntas, pois a Psicologia trata do indivíduo, da subjetividade, de
algo que é único, enquanto que a religião diz respeito a um movimento ao qual
“o indivíduo se adere.” Nesse sentido, não existe para C.1 subjetividade dentro
da religião, pois um pecado é igual para todos. A Psicologia, no entanto, não
concebe as coisas dessa maneira e, segundo C.1, “o que você fez e o que eu
fiz não vai ser a mesma coisa”. Assim, psicologia e religião não são coisas que
ela entende que podem caminhar juntas, pois as considera totalmente
separadas. Compreendemos que para C.1 a religião é percebida por ela
apenas enquanto instituição, cujas regras e dogmas, são igualitárias, ou seja,
são aplicadas a todos indistintamente, desconsiderando a subjetividade, objeto
da Psicologia.
Segundo a entrevistada C.2, por um lado, a psicologia e religião não
convergem em nada, pois, a psicologia está bem afastada da religião, pois nas
suas discussões de estudos de casos existe um questionamento, um
julgamento, como exemplificou: “nós julgamos as pessoas; ela é assim... faz
isso... tem determinado comportamento... por causa da sua religião.”
Entretanto, por outro lado, acredita que esse tema precisaria ser mais
explorado, carecendo ser estudado no curso de Psicologia.
Para C.3, a Psicologia se preocupa em entender o ser humano e por
isso precisa entender a religião também, mas acredita que não se deve
misturar “porque ciência é ciência, religião é religião né, apesar de no começo
elas estarem imbricadas”. C.3 cita Freud como judeu agnóstico que apresenta
uma visão crítica da religião e Jung, como sendo mais aberto ao estudo de
coisas não científicas, como a alquimia, astrologia, mitologia e religião. Para
C.3, “a partir do momento que a gente, começa a entender a religião, a gente
começa a entender um pouco sobre seres humanos”.
Observamos em C.3 a importância atribuída para a necessidade de
conhecer sobre os seres humanos, quer olhando para o comportamento de
249
uma torcida de futebol, quer buscando entendimento sobre sua religião. A
importância do estudo da religião e suas implicações, conforme Paiva (2011), é
o que originou sua proposição de dois campos específicos para isso, uma
Psicologia da Religião e uma Psicologia da Espiritualidade, sendo a primeira
voltada para a instituição e seus aspectos coletivos e a outra para o indivíduo e
sua subjetividade.
C.3 considera importante a liberdade religiosa e também que não se
deve misturar ciência com a religião. Durante um atendimento, por exemplo,
ele acredita que ele precisa ter um olhar científico e também humano “por isso
que não dá pra excluir religião totalmente, porque faz parte do ser humano”.
Quanto à interfarce entre psicologia e religião e a possível relação entre
elas, observamos, a partir dos discursos dos entrevistados, tanto ingressantes
como concluintes, uma semelhança entre os seguintes termos: “não
convergem”, “são distintas”, “não se devem misturar”, “não interfere”, “saber
diferenciar”, “saber separar”; “não há influência” e “campos diferentes”; o que
nos leva a pensar em princípio, que a relação entre psicologia e religião é
excludente, na medida em que são campos distintos de saber.
Ainda, olhando outras expressoões a respeito da religião, encontramos:
“não dá pra excluir religião totalmente”; “faz parte do ser humano”; “o indivíduo
se adere”, “eu religiosa e eu psicóloga”, “as pessoas que se formam em
psicologia também têm uma religião”, “[A Psicologia] vem para entender [...] o
porquê você acredita naquela religião.” Essas expressões nos fazem refletir
que a Psicologia na busca da compreensão, ainda que provisória da existência
humana, por conta de seu caráter de impermanência, precisa se voltar para
experiência tal qual o sujeito a vivência, mesmo que seja uma experiência
espiritual ligada ou não a uma religião.
A interferência do curso de psicologia na religiosidade dos estudantes
Quanto à interferência do curso de psicologia na religiosidade dos
estudantes observou-se que os ingressantes afirmaram não ter havido
qualquer interferência até este momento do curso, diferentemente do discurso
250
dos concluintes, que desvelou certo grau de interferência do curso em sua
religiosidade.
Para C.1, a partir do segundo ano, com a inclusão da disciplina História
da Psicologia, ela passou a se questionar e aos poucos foi se desvinvulando da
igreja, deixando de participar dos rituais.
C.2 disse que, ao longo do curso, a partir do estudo da psicanálise e das
teorias humanistas, passou a questionar sua religião a existência de Deus e
que, com o passar do tempo, disse que foi “descobrindo que Deus estava
dentro de mim”.
C.3 relatou que o curso nao interferiu em seus valores e sua moral
porque há “um tratamento científico das questões dos seres humanos” e que
seu contato com um professor do curso fez com que ele entrasse em contato
com a religião.
A inteferência do curso de psicologia foi notada quer seja pelo contato
com a disciplina “História da Psicologia”, pela leitura de Freud e das teorias
humanistas, ou pelo contato com um professor, o que aparentemente
desencadeou movimentos de aproximação e distanciamento da religião, como
observados em C.1 e C.3.
Retomando um dos objetivos da presente pesquisa que foi o de
investigar a existência da interferência do curso de Psicologia na religiosidade
dos estudantes, baseados na amostra, podemos dizer que houve interferência
do curso, seja reaproximando ou afastando a pessoa da religião, o que foi
observado no discurso dos concluintes.
A religiosidade e a vida acadêmica
A relação entre o tema estudado e vida acadêmica é complexa e
contraditória. Notamos muitas referências para o fato de professores e alunos
intitularem-se ateus, o que parece ser considerado por eles algo relevante.
Segundo C.2,
251
no segundo ano, o professor falou assim... ‘hahahaha... vocês
estão dizendo graças a Deus?... fia aqui você tem que ser
atéia... não pode... aqui a gente não pode... a gente é
psicólogo... não pode ficar acreditando na religião’, [...] eu
falei... nossa... mas, como assim? ... um professor ateu aqui
dentro?
Os debates ocorridos no Sistema Conselhos de Psicologia, resultaram
em um documento que não apenas reconhece o compromisso social da
Psicologia por pautar suas ações segundo o princípio da laicidade do Estado,
mas também demonstra-se contrário a qualquer forma de discriminação e
imposição de dogmas. Ademais, reconhece a importância da religião, da
religiosidade e da espiritualidade na constituição de subjetividades, sendo isto
um Estado de Direito (VERONA, 2013).
Observamos em algumas falas dos participantes que alguns desses
princípios não estão sendo colocados em prática, dentro das salas de aula,
lugar de formação de novos profissionais, ou seja, notam-se formas de
discriminação e também o não reconhecimento da importância da religião na
constituição de subjetividades: “graças a Deus, aqui não é permitido [dizer]”;
“vocês estão dizendo graças a Deus... aqui você tem que ser atéia... não
pode... aqui a gente não pode... a gente é psicólogo... não pode ficar
acreditando na religião”.
Enquanto que o ateísmo pareceu permear abertamente o discurso de
alunos e professores, ao declarar sua fé, segundo relato de C.2, uma
professora o fez porque estava em local reservado, de maneira sigilosa, o que
parece ferir também o princípio da laicidade, cerceando o direito de liberdade
dos indivíduos
Percebemos nas expressões a seguir, o quanto este tema é considerado
polêmico,
tanto
pelos
alunos
quanto
pelos
professores:
“discussões
extremamente exacerbadas”, “trazer um fervor religioso para uma questão que
é científica”, “eu acho que é até meio ruim você misturar as coisas, quando
você mistura, pode causar mal entendidos”.
252
Segundo C.1, em uma situação de aula, ao ser questionada pelos
alunos, sobre sua fé religiosa e sua abordagem, a professora desvinculou a
prossional da religiosa, dizendo:
eu sou a professora, ela falou o nome dela né, ou sou a fulana
profissional e sou a fulana eu, então eu acredito que a religião, o que
vai me fazer bem, é esse segmento eu quero que os meus filhos
sigam, porque isso que eu acho que é o certo.
A religiosidade e a prática profissional
Quanto à religiosidade e a prática profissional, observamos que todos os
participantes ressaltaram a importância do não julgamento, do respeito, da não
discrimininação e da necessidade de conhecimeto sobre as religiões, com o
intuito de melhor compreender a relação do cliente/paciente com a religião.
No que se refere ao campo de trabalho, dois alunos concluintes
consideraram que não seria possível trabalhar em uma instituição religiosa. C.3
acrescentou a necessidade de um olhar científico para fenômenos como a
homoafetividade, os transgêneros e as diversidades sexuais, pois essa é a
maneira como ele olha para estes fenômenos, não os considerando pecado,
mas sim “uma faceta da sexualidade do ser humano, [...] perfeitamente cabível
e aceitável”.
C.1 mencionou o forte papel social que possui a palavra de um
psicólogo, comparando-o ao padre, para a religião: “como se a palavra do
psicólogo fosse algo bem né, como se fosse, pra religião, um padre”.
Jung (1978 apud MOTTA; ROCHA JUNIOR, 2011) reconhece a função
da religião como fato social, histórico e um procedimento humano e a
psicologia não pode negligenciar este conjunto de forças.
Segundo Ancona-Lopez (2004, 2005 apud PAIVA 2009) temas como a
posição do psicólogo clínico frente à religião dos pacientes tem ressaltado a
253
necessidade de um posicionamento deste profissional em relação a esta
matéria.
Destacamos alguns exemplos de como a religião pode interferir
diretamente no tratamento proposto aos pacientes, conforme relataram os
concluintes, baseados em suas experiências como estagiários e como este
tema aparece em situações de atendimento: C.1 mencionou que as pessoas
“têm a religião como algo primordial na vida”, e portanto, se faz necessário
trabalhar no “sentido de buscar outras possibilidades sem interferir no que a
pessoa pensa”; C.2 disse ser “bem complicado”, como psicólogo hospitalar,
atender “pessoas religiosas”, principalmente as Testemunhas de Jeová, devido
a não aceitação de transfusão de sangue.
O concluinte C.3 destacou a necessidade e a importância do
conhecimento das religiões, em especial do cristianismo, por ser uma marca na
civilização ocidental, e cuja ausência deste conhecimento, implicaria em perder
“uma faceta desse ser humano”.
Quantos aos alunos ingressantes, foram ressaltados a importância do
respeito, da isenção de julgamento, e principalmente a necessidade de
conhecimento sobre as religiões, fatores considerados fundamentais para a
atuação profissional.
Hipotetizamos algumas situações em que os alunos ingressantes I.1 e
I.2 teriam que responder a uma demanda de seus pacientes, cujo tema
versasse sobre religiões. Para I.1, ir a um centro espírita ou a uma igreja
diferente da sua, a pedido de um paciente, seria algo que ela faria: “Acho que
não teria problema nenhum ir. Seria mais uma experiência para mim”. Para I.2,
usar um terço ou um patuá durante o atendimento, mediante solicitação do
paciente/cliente, também foi algo que poderia ser atendido: “Ajudando ele a
gente faz de tudo, porque eu acho que isso é o mais importante, porque é por
isso que eu escolhi a psicologia, para ajudar outra pessoa”.
Para a ingressante I.3 foi questionado se ela trabalharia em um
ambiente institucional mantido por uma religião que não a sua. A participante
I.3 respondeu que se ela fosse respeitada no tocante a sua escolha religiosa e
se não lhe fossem impostas regras, como por exemplo “falar bem” da religião
da instituição, não haveria problema.
254
Novamente ressaltamos que o respeito e o direito à liberdade religiosa
de todo cidadão é garantido pelo Estado e tanto as ciências como as práticas
profissionais devem orientar suas ações com base no princípio pétreo da
laicidade do Estado, ou seja, estes princípios constitucionalmente assegurados
garantem aos cidadãos brasileiros o direito de declararem-se adeptos ou não
de qualquer religião.
Pautar suas ações pela garantia destes direitos constitucionais não faz
parte apenas de uma escolha pessoal ou para estar em obediência com o que
preconiza o Conselho Federal de Psicologia, mas também estar cumprindo
aquilo que prevê a Constituição Federal.
Considerações finais
Encontramos nos relatos dos estudantes uma tendência a separar os
dois temas, ciência e religião, bem como a necessidade de se apropriar deste
conhecimento, o que demanda reformas na grade curricular dos cursos de
graduação em Psicologia.
Nosso intuito, ao delinearmos a pesquisa, foi o de compreender este
fenômeno ao longo do curso, razão pela qual, a amostra foi formada por igual
número de ingressantes e concluintes. Por se tratar de uma pesquisa
qualitativa, o material analisado trouxe um recorte, baseado na amostra.
Ressaltamos que o caráter de provisoriedade que é intrínseco à existência
humana, também se faz presente nesta pesquisa.
Ao considerarmos os fenômenos da religiosidade e da espiritualidade,
observamos nos participantes dinâmicas divergentes no sentido de se afastar
ou se reaproximar da religião. Notamos nas falas dos participantes que apenas
a ciência não consegue dar conta das angústias dos seres humanos e estes
vão em busca de novos sentidos para suas vidas, o que encontram na religião.
Observamos movimentos diversos no campo religioso da amostra. Os
ingressantes mantiveram-se na religião de origem familiar. Nos concluintes
percebemos três movimentos distintos: a reaproximação da religião, o
distanciamento e o pluralismo religioso. Nesses movimentos, a religião foi vista
enquanto instituição, gestora da relação com o sagrado, sendo mantida a “fé”
255
nesse Sagrado pela espiritualidade, em que um participante toma a atitude de
reaproximar-se da religião, revestindo sua espiritualidade da religiosiadade.
Em
outro
concluinte,
a
dinamica
é
de
afastamento,
despindo
sua
espiritualidade da religiosidade vivida conjuntamente com sua família. Outro
concluinte, ao dizer que escolheu manter-se na religião da família disse circular
por outras religiões, o que indica a pluralidade de seu campo religioso e uma
perspectiva pluralista em relação à religião.
Outro ponto que gostaríamos de ressaltar diz respeito ao princípio da
laicidade do Estado sob o qual as ações dos psicólogos deveriam ser
pautadas. Levar em conta as dimensões da subjetividade humana significa ter
um cuidado ético, o que não necessariamente significa abordar questões
dogmáticas ou relativas às crenças.
Observamos a importância atribuída para a necessidade de conhecer
sobre os seres humanos e o humano, buscando entendimento sobre sua
religião, importância ressaltada por alguns teóricos que chegam a propor a
criação de dois campos específicos para isso, uma Psicologia da Religião e
uma Psicologia da Espiritualidade, sendo a primeira voltada para a instituição e
seus aspectos coletivos e a outra para o indivíduo e sua subjetividade.
A respeito da admiração e crítica às religiões, observamos que os
aspectos que geram admiração na religião se referem à vida comunitária e a
aspectos da subjetividade da religiosidade e espiritualidade. Por sua vez, as
críticas encontradas nos discurso dos participantes à religião focaram nos
aspectos instituicionais da religião.
Notamos a partir do material colhido e analisado a pluralidade no campo
religioso dos participantes, bem como, a presença do discurso pluralista que
aliena, iguala e banaliza a religiões.
Quanto à interfarce entre psicologia e religião observamos nos discursos
dos ingressantes e dos concluintes que estes são considerados campos
distintos de saber, o que aponta para uma relação excludente.
Quanto à religiosidade e a prática profissional, observamos que em
todos os participantes, tanto ingressantes como concluintes, foi destacada a
importância do não julgamento, do respeito, da não discrimininação e da
256
necessidade de conhecimeto sobre as religiões, com o intuito de melhor
compreender a relação do cliente/paciente com a religião.
Com relação ao campo de trabalho, vimos que, para alguns concluintes,
não seria possível trabalhar em uma instituição religiosa em função da
necessidade de um olhar científico para fenômenos como a homoafetividade,
os transgêneros e as diversidades sexuais.
Consideramos que são necessárias novas pesquisas, no intuito de
aprofundar os estudos sobre este tema de grande relevância. Por tratar de
questões ligadas à existência, consideramos que este estudo contribuiu para
refletirmos sobre formação acadêmica dos estudantes de psicologia e sua
relação com a religiosidade e sobre nós mesmos.
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Sobre os autores
Eliane de Albuquerque Drullis: Estudante de Graduação do curso Psicologia –
UNIP/Campinas.
José Vicente Angelo da Rocha: Estudante de Graduação do curso Psicologia –
UNIP/Campinas.
Rosa Maria Rodrigues de Oliveira: Estudante de Graduação do curso Psicologia –
UNIP/Campinas.
Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo: Possui graduação (bacharelado,
licenciatura e formação) em Psicologia pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (1994), Mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (1997) e Doutorado em Ciências Médicas – subárea Saúde Mental – pela
Universidade Estadual de Campinas (2004). Atua, também, com psicoterapia psicanalítica de
crianças, adolescentes e adultos. Tem experiência no ensino superior na graduação e pósgraduação. Atualmente é coordenadora de curso, professora titular e supervisora de estágio na
Universidade Paulista – UNIP/ Campinas. CV: http://lattes.cnpq.br/4573356259939080
Contato: E-mail: [email protected]
259
Parte IV
O MODO DE SER PARANÓIDE NO PRIMITIVO E NO PSICÓTICO: UMA
ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA
Wolgrand Alves Vilela
Resumo
Trata-se aqui de uma aproximação entre a mentalidade do primitivo e a
do psicótico esquizofrênico através de algumas de suas vivências típicas. Os
relatos feitos pelos europeus em seus primeiros contatos com os povos nativos
da Austrália e da África registrados na obra de Levy-Brühl A Mentalidade
Primitiva foi utilizada e sua análise por Roberto C. de Oliveira. A abordagem
psicopatológica teve por base obras de Jaspers e K. Schneider entre outros,
tendo por referência nossa experiência clínica.
Concluiu-se que o humor delirante no esquizofrênico e a vivência da
participação no primitivo corresponderiam a um sentimento de totalidade, que
no primitivo é coletivo e tem função social, e no psicótico é vivência solitária e
cindida da realidade pela radical transformação no modo de funcionar do eu,
uma redescoberta daquela arcaica vivência.
Palavras-chave:
Mentalidade
do
primitivo;
Esquizofrenia;
Paranóide;
Fenomenologia.
260
O modo de funcionamento da mentalidade primitiva
O mundo é vivido de modo distinto no primitivo e no civilizado. Levyrühl o expõe em sua obra “A Mentalidade Primitiva”
14
, baseado nas
descrições dos europeus em seus primeiros contatos com os povos nativos da
Austrália e África, importante pelo seu registro original, anterior a qualquer
influência.
Algumas diferenças separam a mentalidade primitiva da nossa: sua
aversão
pelas
operações
discursivas
do
pensamento,
sem
significar
incapacidade constitucional de discernimento, mas uma consequência do
conjunto de seus hábitos de espírito que lhe orientam. Sua reflexão
desenvolve-se nas ocupações necessárias à subsistência. O que não está
ligado a isso não ocupa seu pensamento. Estas operações mentais não se
separam dos objetos materiais que as motivam, cessando quando seus fins
são alcançados. Não são praticadas por si mesmas. Em sua vida ocupa-se
com um número tão reduzido de objetos, que seu pensamento produz ideias
pouco numerosas e limitadas, resultando num conhecimento pouco extenso e
ingênuo das leis da natureza, mas sua experiência mística, radicalmente
distinta da científica, destaca um sentimento de totalidade somente possível na
base de sua carga de elementos afetivos. Seu domínio não se limita à
natureza, sentindo-se eles em contato imediato e constante com um mundo
invisível, não menos real do que o outro14.
Essa perspectiva cósmica da mentalidade primitiva é ordenadora de um
mundo mais sentido ou vivido do que conhecido, cuja função não é
desenvolver a parte cognitiva do pensamento, mas compatibilizar o homem
com seu ambiente natural e humano, com vista à sua sobrevivência. “São
ativos e demonstram esperteza em lidar com os temas de observação e
compreensão do seu modo de viver. Sua boa memória é sempre acionada
dispensando-os da reflexão. Detém-se ante a primeira impressão das coisas e
não raciocina se pode evitá-lo. O que não capta imediatamente no percebido é
feitiçaria ou ação mágica, sendo inútil refletir”
14
. A exclusão do pensamento
abstrato e do raciocínio é um hábito na mentalidade do primitivo do seu modo
261
de funcionar. No primitivo as representações são coletivas, sendo seu mundo
envolto em importante componente místico, onde elementos emocionais e
motores estão nelas integrados. Uma síntese emocional antecede e organiza o
mundo antes da percepção distinguir as propriedades do objeto, sendo o
raciocínio afetivo mais frequente no curso da vida individual ou social. Mesmo
em nossa mentalidade há uma função abstrativa e generalizadora inerente à
ação e anterior a toda reflexão, mais sentida e vivida que pensada. Há,
portanto um discernimento natural, primitivo e utilitário das semelhanças,
orientado por aquela função, donde deriva o conceito de realidade própria
vinculada à ação6.
Outra questão é a da participação, para Levy-Brühl não pensada, mas
vivida entre os seres e os objetos ligados em uma representação coletiva, onde
objetos e seres animados e inanimados estão carregados de propriedades
místicas14. Conceituando esse termo, trata-se de um dos elos maiores que
unem o homem ao grupo e ao cosmos: a comunidade dos vivos que habita o
universo e lhe dá sentido, sentimento que une dois seres distintos na aparência
e fenomenologicamente autônomos. Mas a participação não pertence
exclusivamente à mentalidade primitiva, tem também um lugar na nossa: a
mentalidade primitiva é aspecto importante no contexto da mentalidade
humana em geral16.
As representações coletivas são concretas, gerais sem serem abstratas,
servindo ao primitivo como pensamento instrumental indispensável ao seu diaa-dia. A representação habitual na mentalidade lógica implica uma dualidade
numa unidade, onde o objeto cognoscível é apreendido separado do sujeito
cognoscente. Na mentalidade dos primitivos o objeto é mais que representado:
ela o possui e é possuída por ele numa participação física e mística, não só
pensando-o, mas vivendo-o16.
Com o sentimento de participação mais atenuado a representação tornase mais sensível à contradição. O elemento cognitivo vai desempenhando um
papel cada vez maior quando desembaraçado dos elementos emocionais e
motores envolvidos, já que na mentalidade primitiva, o que para nós é
262
contraditório, tal não lhes parece e deixa-os indiferentes. Elas são atropeladas.
Tal ocorre devido a sua orientação mística, que não dá importância às
contradições, físicas ou lógicas, e suas tendências pouco afeitas ao conceitual.
A generalidade do conceito não é só no nível das ideias, já que na
representação coletiva, que é emocional, a generalidade não é conhecida, mas
sentida. A realidade mística é menos representada que sentida. Para LevyBrühl o conceito, mesmo nas sociedades mais diferenciadas é uma espécie de
precipitado lógico de representações coletivas que lhe precederam, e que traz
consigo um resíduo de elementos místicos16.
Para o primitivo o natural e o sobrenatural são distintos, mas não
separáveis. Nas sociedades onde o pensamento conceitual se desenvolveu e
se impôs, os elementos intelectuais tiveram um lugar cada vez mais importante
nas representações do mundo sobrenatural, mas sua categoria afetiva
subsiste, não é eliminada. Corresponde a seres ao mesmo tempo materiais e
espirituais, cuja influência mística tem importante papel e sobrevive na
sociedade moderna.
O pensamento primitivo não é exclusivo deste, mas também da
mentalidade moderna, devendo-se evitar falar do caráter pré-lógico desse
modo de pensar, pois a estrutura lógica do espírito é a mesma em todas as
sociedades humanas conhecidas: todas elas têm uma língua, costumes e
instituições. E de onde provém a expressiva indiferença às contradições mais
evidentes? Para Levy-Brühl isso ocorre porque as participações coexistem num
mesmo momento na consciência, sejam com os ancestrais, totens, terra,
rochedos, vivos e mortos de seu clã, etc. Cada uma delas é sentida
qualitativamente, não combatem entre si, nem se organizam; se justapõem.
Destaca-se um elemento de generalidade, categoria do sobrenatural. Cada
participação é particular, o elemento geral é de ordem afetiva, sem explicação.
Na questão da causalidade para o primitivo o que conta é a causa
mística, que Levy-Brühl chama causalidade mística. Os mistérios e enigmas da
natureza não os intimidam, nem mesmo os convidam a um esforço intelectual.
Logo reconhecem, por trás dos seres e fatos, forças e poderes invisíveis.
263
O que seria para o primitivo o indivíduo tomado em si mesmo? A
questão da individualidade ou identidade pessoal e de seus limites não se
detém na periferia de sua pessoa, estendendo-se além do corpo em elementos
dele dissociados, mas que o simbolizam, como suas secreções e excreções,
cabelos,
unhas,
vestimentas
etc.,
tudo
que
possa
representar
sua
individualidade16.
A mentalidade primitiva possui uma linguagem em comum com a
europeia, dispondo de símbolos que representam o conjunto de seres e
objetos, e embora seu pensamento não se afaste das representações
concretas, o uso de signos de linguagem coloca-os num outro plano. Nela os
conceitos confundem-se com as palavras, não são simples roupagem do
conceito. Entre nós a relação entre as palavras e os conceitos é arbitrária, no
primitivo elas participam daquilo que representam. Pronunciar uma palavra não
só desperta a ideia no entendimento, mas torna-a presente no sentido pleno do
termo. A participação entre o símbolo e o ser que ele simboliza produz seu
efeito, mesmo à distância. Seu sentido revela-se na afetividade graças aos
elementos místicos ou sobrenaturais que a coisa comporta16.
O modo de funcionamento da mentalidade primitiva: importância no
entendimento
do
funcionamento
da
mentalidade
do
psicótico
esquizofrênico
Alguns aspectos no modo de funcionar da mentalidade primitiva são
importantes na compreensão do modo de ser da mentalidade do psicótico
esquizofrênico. Por exemplo, quando se fala da aversão às operações
discursivas do pensamento no primitivo, observamos que esse psicótico faz um
uso limitado dessas operações em certas vivências. Ele gravita e converge
geralmente numa autorreferência que lhe restringe a liberdade de utilizá-la. E
quando se observa uma elaboração delirante rica em seu conteúdo, sua fonte
são aspectos extrapsicóticos na personalidade, destacando-se as temáticas da
vida que lhe são significativas.
264
Assim como no primitivo, nesse psicótico suas operações mentais em
certas vivências típicas não se separam dos objetos materiais que as motivam,
detendo-se ante a primeira impressão que tem das coisas. Um exemplo é a
percepção delirante, fenômeno descrito por Kurt Schneider 12;13: um toco de
cigarro num canto da sala, um papel amassado no chão etc., que para o censo
comum é detalhe banal que passa despercebido, no psicótico captam de um
modo impositivo sua atenção e pensamento, originando aí significações
geralmente no sentido da autorreferência, cujo conteúdo pode ser, por
exemplo, de feitiçaria ou ação mágica. Contudo, um grande abismo separa e
distingue a vivência do primitivo da do psicótico. Enquanto que no primitivo o
seu modo de pensar e agir é caracterizado por esse concretismo, que recorta
um detalhe do seu mundo sensoperceptivo e está inserido numa perspectiva
evolutiva voltada para sua comunidade na questão crucial da subsistência, no
psicótico o caminho é regressivo e solitário, não partilhado com os outros.
O modo de ser paranóide está presente na mentalidade do primitivo
como uma complexa e importante função mental cumprindo papel defensivo
para a comunidade, onde o ego é o eixo de tudo que transcorre ao seu redor.
No civilizado a atitude paranóide persiste como defesa contra as agressões aí
tão comuns. No psicótico ela é redescoberta, mas vivida em seu mundo
solitário.
Outro aspecto na mentalidade primitiva que é redescoberto na vivência
do psicótico é o da causalidade, que naquele é mística e coletivamente
vivenciada, enquanto que neste é solitariamente vivenciada, como algo fora
dele, estranho e que lhe é imposto.
No primitivo sua individualidade não se detém na fronteira do seu corpo,
incorporando nela elementos seus (cabelo, unhas etc.) já localizados fora do
seu corpo. No psicótico esquizofrênico ocorre um fenômeno denominado
transitivismo, onde ele não consegue discernir entre seus processos psíquicos
internos e a percepção externa, experimentando externamente elementos da
sua intimidade pessoal. No primitivo isso faz parte do seu modo de ser e é
partilhado na comunidade, no psicótico é vivência solitária, estranha e imposta.
265
Essas vivências são como figuras num primeiro plano, cujo fundo é um
sentimento de totalidade de um mundo mais sentido que conhecido.
O eu como centro de convergência do mundo.
Nietzsche fala de um escândalo ptolemaico ao observar que a
cosmologia grega e a bíblica são geocêntricas porque antropocêntricas 3. A
terra é concebida como o centro do mundo e o ser humano o eixo de todas as
suas sínteses, toma a si como o centro do mundo, refere a si todos os seus
objetos. Seu egoísmo é ávido de uma justificação mais sublime e encontra-a
em um Deus, louvado por ter criado o universo em função dos homens e estes
à sua imagem. Mas desde Copérnico que o ser humano foi-se afastando desse
centro, a Terra não sendo mais o centro do mundo, apesar dessa cosmovisão
geocêntrica continuar como forma do entendimento humano. Nietzsche faz
uma crítica a esse aspecto do nosso eu necessitar ser o centro do mundo, que
seria o centro do universo, tudo isso legitimado por um Deus que nos criou à
sua semelhança. É de se supor que o primitivo vivenciava essa convergência
do mundo ao seu ego numa forma afetivossensorial, colada ao mundo
sensoperceptivo, experiência compartilhada na comunidade, ao passo que o
psicótico a vivencia em completa solidão, alienado de si próprio, desacreditado
e isolado da comunidade que vê nesse seu modo de vivenciar um sinal de
insanidade mental.
Pensamento mágico e pensamento lógico
O pensamento mágico1 estabelece configurações significativas na base
da aparência das coisas, relações de similitude e distância. Se dois objetos
parecem-se serão tidos como dotados das mesmas propriedades, levando-os a
acumular propriedades por vezes antagônicas e daí à crença de que cada
266
objeto ou força produz seu similar, a ação à distância. Indiferente às causas
mediatas, atribui tudo às potências místicas e ocultas. De início de forma
passiva e depois ofensiva nascem daí dois tipos de magia, defensiva e
desiderativa.
O pensamento lógico dirige a mentalidade e a conduta do civilizado e é
regido pelos princípios da identidade, da causalidade e da relação da parte ao
todo1: um todo só pode ser parte de um todo maior. Partes e todos ocupam no
espaço natural, planos e níveis de hierarquia na ordenação e estruturação do
mundo objetivo.
A estrutura egóica é a mesma no primitivo e no civilizado, aberta ao
mundo e nele apreendendo significações. No primitivo os conceitos são
principalmente do tipo sensível fundado nos dados diretos da experiência
afetiva
sensorial
e
no
civilizado
especialmente
do
tipo
categorial,
suprassensorial. No primeiro caso a ideia está amalgamada afetivamente ao
objeto da percepção e restrita ao utilitário. No segundo, a ideia está livre de
sensorialidade e tende ao polo subjetivo suprassensorial. A fronteira entre eles
é por vezes tênue1;4;16.
O mágico e o lógico são anteriores a qualquer dicotomia, um é o que é
com o outro. O pensamento lógico tem suas raízes no pensamento mágico. Os
escritores e romancistas são criativos nesse jogo do mágico e do lógico.
Captam significações insuspeitadas para o senso comum, tanto nos objetos do
ambiente como em seus personagens, dos quais uma espécie de animismo é
revelada no drama vivido por eles. Num dos contos de Guy de Maupassant 5, “A
Mulher de Paulo”, há uma cena em que ele procura-a desesperado: “Sobre os
gramados dos lagos a lua derramava uma claridade mole, como poeira de
algodão, penetrava nas folhagens, fazia escorrer sua luz sobre a casca
prateada dos choupos, inundava com sua chuva brilhante as copas frementes
das grandes árvores”. Nesse texto a luz da lua é mole e derrama-se como
poeira de algodão, penetra nas folhagens e inunda como chuva copas fremente
o mágico estando em todos nós como fundamento de nossa criatividade no
mundo da razão.
267
A estrutura egóica como lugar de relação: seu funcionamento formal
habitual e no modo de ser psicótico esquizofrênico
Para Jaspers e K. Schneider9;12 o eu tem a seguinte estrutura. 1o)
Oposição em relação ao exterior, a delimitação do que está dentro e fora do
sujeito. É permeável por ser o ego um lugar de relação, uma estrutura aberta
admitindo entradas e saídas. Comporta-se como um sistema que funciona
longe do equilíbrio. O que possibilita manter seu padrão de ordem é sua
capacidade de dissipar para fora o que é traduzido como desordem, driblando
desse modo à tendência para o incremento da desordem ou entropia e
contrariando o segundo princípio da termodinâmica, da tendência ao
incremento da desordem8. 2o) Intencionalidade, o dirigir-se ao mundo dandolhe sentido. 3o) Identidade ao longo do tempo, o sujeito identificar-se como o
personagem de sua história. Traduz o grau de estabilidade da estrutura egóica.
4o) Unidade no momento, condição implícita na estrutura do eu para que cada
vivência: perceber, pensar, sentir e agir seja vivido em sua pureza e
individualidade, sem contaminar-se um com o outro. Essa unidade é
constituída de tal modo que cada vivência redefine a outra em suas
interatuações, de modo que em cada uma delas estão implícitas as outras. A
mudança de um fenômeno para outro é a mudança de um mesmo, que se
muda disto naquilo, mas que ao perdurar fundamentalmente como sendo
aquilo que ele é, constitui a própria condição de possibilidade da mudança sem
contradição. Quando o percebido manifesta-se em pensamento, não é aquele
que se torna este, o que seria uma contradição, mas um todo abrangente (a
unidade no momento) que como condição subjacente a esses fenômenos
típicos, perde um predicado e ganha outro, pois a estrutura dessa unidade no
momento é a pura amalgamação recíproca dos próprios predicados entre si,
que não se reúnem senão uns aos outros. E é essa condição de identidade ao
longo do tempo do fenômeno, bem como de sua unidade no momento, o que
possibilita-nos sua observação. 5o) Atividades do eu, aquelas que se
manifestam quanto ao perceber, pensar, sentir e agir, vividas na intenção: sou
eu que percebo, penso, sinto e ajo. 6o) Consciência do existir, dá-se como uma
268
crença espontânea, não só eu existo, mas todos os objetos e pessoas do meu
mundo.
Nesse modelo o sujeito não é abstraído do cosmos que o envolve,
compõem um mundo. Há uma interação entre observador e aquilo que é
observado de tal modo que, uno e múltiplo, o mesmo e o outro sejam opostos
que possibilitem uma postura interpretativa que se eleve a outra ordem de
significação, onde as contradições sejam superadas. Essa unidade múltipla ou
multiplicidade una é aquilo que se entende por estrutura15;16: uma multiplicidade
unificada por uma ordem, cujo sentido é corresponder intencionalmente à
situação existencial.
Na estrutura egóica as alterações da unidade no momento estão na
base dos fenômenos delirante e alucinatório. Por exemplo, a alucinação
auditiva
que
acompanha
as
ações
do
paciente,
nem
é
fenômeno
sensoperceptivo, por lhe faltar o objeto (apesar de ser vivenciado com
sensorialidade) nem fenômeno pensante, por lhe faltar o elemento subjetivo
não sensorial e o caráter de ser meu. O mesmo se aplica ao delírio, por
exemplo, a percepção delirante. O que é percebido não é reconhecido pelo
sujeito como originário dele próprio, mas uma significação que lhe é imposta.
Essas vivências resultam da quebra daquela unidade no momento e da
intencionalidade estar deslocada para fora do eu: já não são meus os
pensamentos, sentimentos e ações.
No primitivo a intencionalidade pode ser vivenciada fora das fronteiras
do ego numa experiência coletiva, onde o visível (no mundo) e o invisível
(místico) constituem uma unidade coletivamente personificada na figura do
feiticeiro, personagem investido de poderes ilimitados, cujas ações determinam
coletivamente o comportamento dos membros da comunidade. No psicótico a
intencionalidade está deslocada para fora do ego como expressão de uma
radical alteração em sua organização estrutural. Implica uma reordenação para
um nível de organização mais arcaico, com perda temporária ou duradoura
dessa instância integradora (intencionalidade), que vivida fora dele impõe-se
num alto grau de autonomia, passando a controlar aquela outra parte da
269
estrutura egóica, funcionando como uma espécie de organizador em seu
gravitar ptolemaico em torno do que restou do ego original. O centro decisório é
agora vivenciado pelo psicótico como proveniente de fora, o que imprime a
essa vivência um caráter de estranheza.
O ego consegue dissipar a desordem para seu exterior, mantendo com
isso o seu padrão de ordem estrutural8. No psicótico ele não consegue realizar
essa função de forma satisfatória, reorganizando-se noutro patamar de
complexidade, que implica uma nova ordem menos complexa, onde a
intencionalidade de grande importância integradora funciona cindida do resto
da estrutura. Esse deslocamento condiciona a perda temporária ou duradoura
de outra função: a da unidade (das funções) no momento. A estrutura egóica
perde funcionalmente uma parte de si, que de fora passa a reger suas
atividades7;8.
A estrutura egóica na mentalidade primitiva, no civilizado e no psicótico:
eu copernicano versus eu ptolemaico
Klaus Conrad11 descreve dois tipos de estrutura egóica: copernicana e
ptolemaica. Os nomes de Copérnico, sistema heliocêntrico e de Ptolomeu,
sistema geocêntrico já nos dão o sentido que se quer emprestar a essas
estruturas egóicas. A diferença essencial entre elas é que, no eu ptolemaico o
sujeito é o centro do universo, tudo o mais girando e convergindo em torno
dele. É prisioneiro desse modo de ser no mundo e impossibilitado de vivenciálo de outro modo. Já o eu copernicano possui a liberdade de corrigir essa ótica
de ver o mundo. Do ponto de vista da Gestalt a diferença básica entre essas
duas estruturas seria o jogo dialético entre figura, que é a que se destaca num
primeiro plano no mundo percebido e o fundo, que é o que permanece neutro
num segundo plano, mas que na medida em que avança em direção ao
primeiro, vai perdendo a neutralidade e interferindo no significado da figura. O
que numa circunstância é figura pode noutra ser fundo e vice-versa.
Quando a intencionalidade é vivenciada como já não pertencendo ao
sujeito isso já significa uma reordenação da estrutura do eu com destaque da
270
intencionalidade como figura fora dele, contrariando os fundamentos da
fenomenologia de Husserl, do sujeito ser o doador do significado às coisas e
pessoas no mundo2.
Vamos considerar a questão do deslocamento da intencionalidade para
fora do eu do sujeito psicótico pelo caminho inverso da sua constituição: a
internalização da intencionalidade ao eu no sentido evolutivo, onde a estrutura
egóica alcança um patamar mais diferenciado e mais complexo, sendo
necessário para isso um quantum de energia, que se traduz aí como um novo
modo de inter atuação do sujeito no mundo com os outros. Quando essa
trajetória inverte-se, com a dissipação do controle da intencionalidade para fora
do eu psicótico, isso já significa a perda funcional desse elo integrador dentro
da estrutura egóica, sendo aquele quantum de energia decodificado na forma
dos sintomas. Tanto para a mentalidade do primitivo como para a do civilizado
a estrutura de eu é do tipo copernicano, pois não se trata neles de naturezas
distintas. Enquanto no primitivo destacam-se os aspectos afetivo e mágico, no
civilizado é o racional. Vamos considerar a questão da intencionalidade
vivenciada como externa ao mundo íntimo e subjetivo do sujeito. Um caso
extraído da obra de Levy-Brühl14 vai ajudar-nos nessa questão. Um indígena foi
arrancado de sua canoa por um crocodilo e desapareceu, não foi mais visto. A
notícia da desgraça foi levada a sua aldeia. Canoas de guerra foram enviadas
ao lugar. Um dos homens que se encontrava com o indígena na canoa no
momento da sua morte e outro que habitava a orla do rio naquele lugar foram
detidos, acusados de feitiçaria e condenados à morte. Não há causalidade: a
ideia de um acidente nem sequer se apresenta à mentalidade do primitivo,
enquanto a ideia do malefício está sempre presente. O indígena que morreu foi
entregue, os que o acompanhavam e que foram perdoados pela besta feroz, ou
os que na vizinhança viviam, são sem dúvida os culpados.
Existe uma função importante do ponto de vista social nessa postura
paranóide, onde a intencionalidade é vivenciada externa ao eu. É possível que
corresponda a uma arcaica função mental complexa, mas sem deixar
completamente de permanecer como patrimônio da natureza afetivo mística do
ser humano. Ainda é atual em sua possibilidade
de manifestação,
271
especialmente em situações sociais de conflito, onde exista séria ameaça à
integridade das pessoas em sua comunidade, ou, por exemplo, nos sujeitos
predispostos a vivenciar o mundo pelo olhar da perspectiva psicótica.
Os fenômenos da participação e da causalidade mística que no primitivo
significam uma compreensão afetiva mística do seu universo são vividos
sensorialmente como uma totalidade abrangente que lhe é superior
hierarquicamente e definidor do sentido universal das coisas e pessoas. É no
psicótico esquizofrênico que esse mundo invisível é redescoberto em sua
sensorialidade nas pessoas e objetos concretamente percebidos. Uma vivência
central nesse seu mundo transformado e que exemplifica a questão, é o que
denominamos de humor delirante, uma vivência cindida e solitária, não
partilhada na comunidade.
O humor delirante como vivência típica no psicótico esquizofrênico não é
um estado de ânimo puro, mas uma vivência heterogênea que carece de
unidade vivencial. Isso significa que ele já é a expressão de radicais alterações
estruturais do eu: a perda da unidade de suas vivências como consequência do
deslocamento da intencionalidade para fora do seu espaço interno.
O humor delirante e a representação afetiva – mística e coletiva no
primitivo
O humor delirante no psicótico e a representação afetiva mística e
coletiva na mentalidade primitiva (participação) correspondem a duas
categorias ou ordens da estrutura egóica, hierarquicamente distintas. Enquanto
no primeiro caso o fenômeno ocorre numa única pessoa, no segundo só pode
ser vivido com a participação dos outros sujeitos inseridos naquela comunidade
e sua unidade estrutural é fruto dessa participação coletiva, onde o mundo é
apreendido na forma de uma linguagem mística. O conhecimento do mundo é
sensorial e afetivo, cuja finalidade é suplantar a angústia do desconhecido.
Nessa forma de conceber o mundo desponta sempre a figura do feiticeiro, cujo
papel é o de por ordem no universo do primitivo. É essa afetividade que
impregna todas as coisas e pessoas no seu universo que é redescoberta na
272
vivência psicótica do humor delirante, mas aqui destituída daquela função
integradora e social na comunidade, perdida no processo de cisão ou quebra
da unidade funcional das vivências com o simultâneo deslocamento da
intencionalidade para fora do eu.
A conclusão no sentido fenomenológico é reconhecer que a essência da
afetividade vivenciada no humor delirante, não deve ser confundida com o que
entendemos por função da vida afetiva (tristeza, alegria, raiva etc.), que já
expressa por si uma unidade funcional adequada na nossa mentalidade. O
afetivo no humor delirante já é a expressão de uma radical transformação da
estrutura egóica, implicando numa quebra de sua unidade funcional e que
manifesta um realce num primeiro plano de figura daquela arcaica afetividade
mística e mágica no fenômeno da participação no coletivo da comunidade
primitiva. O psicótico esquizofrênico vivencia essa amálgama entre o mundo
invisível e o visível da nossa vida sensoperceptiva, como vivencia o primitivo,
mas pelo caminho da regressão. Só ele tem essa possibilidade de vivenciar
aquela experiência arcaica e que faz parte da evolução histórica da
mentalidade humana. Isso evidencia que ao lado de todo racionalismo, o
mágico e o místico estão presentes em suas raízes, como fonte de criatividade.
Os escritores resgatam essa linguagem animista em seus contos e romances e
é na linguagem da doença que nossos pacientes ensinam-nos sobre essa
dimensão da natureza humana.
Referências
1. BOSS, M. & CONDRAU, G. Análise Existencial – Daseinsanalyse: Como
a
Daseinsanalyse
entrou
na
Psiquiatria.
Análise
Existencial
–
Daseinsanalyse – Revista Brasileira da Associação de Daseinsanalyse.
Nos 1, 2 e 4, p. 23-35 1997.
2. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. Razão e afetividade. O Pensamento de
Lucien Levy–Brühl. [S.l.]: Editora UnB, 2002.
3. CONRAD, Klaus. La Esquizofrenia Incipiente. Madrid México: Editorial
Alhambra, 1963.
273
4. DARTIGUES,
André.
La
Fenomenología.
[S.l.]:
Editorial
Herder
Barcelona, 1981.
5. DELGADO, H. & IBÉRICO, M. Psicologia. Barcelona: Editorial Cientifico
Medica, 1969.
6. FERNÁNDEZ, Francisco Alonso. Fundamentos de la Psiquiatria Actual.
Tomo I. Madrid: Editora Paz Montalvo, 1976.
7. JASPERS, Karl. Psicopatologia General. Buenos Aires: Editorial Beta
1970.
8. JASPERS, Karl. Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo:
Editora Cultrix, 1971.
9. LEVY–BRÜHL, Lucien. La Mentalidad Primitiva. Buenos Aires: Editorial
Lautaro, 1945.
10. MATURAMA, H. R. & VARELA GARCIA, F. De Máquinas e Seres Vivos.
Autopoiése. A Organização do Vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
11. MAUPASSANT, Guy. Obras de Guy de Maupassant. Contos e Novelas
Vols. 1 e 2. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1983.
12. NOBRE DE MELLO, A. L. Psiquiatria. Vol. I. São Paulo: Atheneu
Editora, 1970.
13. PRIGOGINE, Ilya. As Leis do Caos. São Paulo: Editora Edusp, 2002.
14. SCHNEIDER, Kurt. Klinische Psychopathologie. Stuttgart: Georg Thieme
Verlag, 1973.
15. SCHNEIDER, Kurt. Patopsicologia Clinica. [S.l.]: Editorial Paz Montalvo,
1975.
16. TÜRCKE, Christoph. O Louco – Nietzsche e a Mania da Razão.
Petrópolis: Ed. Vozes, 1993.
Sobre o autor
Wolgrand Alves Vilela: possui graduação em Medicina pela Universidade Federal de
Pernambuco (1969), especialização em Psiquiatria pela Heidelberg College (1976) e doutorado
em Medicina (Saúde Mental) pela Universidade Estadual de Campinas (1989). Atualmente é
Professor Doutor da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de
Medicina, com ênfase em Psiquiatria.
274
ESQUIZOFRENIA NA VOZ DE QUEM A VIVENCIA
Adriana Cabello
Lucas Gobato
Lilian L. Ceregatti
Gisele M. Sampaio
Maria da Piedade R. de Araujo Melo (orientadora)
Resumo
Este trabalho teve como propósito ouvir o portador de esquizofrenia,
dentro de um contexto que cada vez mais abre premissas para um contato
mais humanizado com as psicopatologias graves, permeado por influências da
reforma
psiquiátrica
e
de
políticas
de
assistências
de
saúde
mais
comprometidas com os usuários. Tivemos o interesse em conhecer sua própria
concepção a respeito de seu transtorno. Utilizando o método qualitativo de
pesquisa, entrevistamos quatro pessoas diagnosticadas com esquizofrenia.
Seus discursos mudaram nossa forma de pensar, trouxeram-nos uma
compreensão acerca desta patologia e suas manifestações físicas, psíquicas e
sociais. O indivíduo portador de esquizofrenia teve sua história de vida alterada
quando o transtorno psiquiátrico foi diagnosticado. Pensamos que o sujeito que
convive com a esquizofrenia carrega muito sofrimento e precisa construir-se e
descontruir-se permanentemente na busca de seu bem estar e qualidade de
vida.
Palavras-chave: Esquizofrenia; Subjetividade; Psicologia; Conhecimento.
275
Introdução
A esquizofrenia é considerada uma das psicopatologias mais antigas.
Afamada pelo senso comum como “loucura”, é compreendida como uma
doença grave e por consequência a mais severa no que diz respeito às
mudanças de vida do sujeito.
A loucura sempre existiu, o que se modificou foi a moral da sociedade e
a maneira de relacionar-se com ela. Para melhor compreendermos a
esquizofrenia é de extrema relevância abarcarmos em uma breve viagem ao
passado, com o intuito de relembrar como a humanidade conviveu com a
loucura ao longo das eras. Na obra “História da Loucura” de Foucault,
originariamente publicada em 1964 o autor desenvolveu uma grande reflexão
de como o conceito de “loucura” foi sendo alterado de acordo com o contexto
dos séculos passados; primeiramente, antes do período da Renascença a
figura do louco era vangloriada devido à herança de concepções gregas de que
esses indivíduos eram seres místicos, pois o delírio era de caráter irreal e
acreditava-se que através dessa irrealidade estava o acesso ao conteúdo
divino. Essa vertente de pensamento encontrou força durante o período
clássico, pois a capacidade de pensar o irreal cativava e era símbolo de
sabedoria inimaginável (FOUCAULT, 1997).
No período Renascentista com a construção do pensamento crítico, que
era um dos pilares do humanismo ascendente, tal crença do louco como ser
místico foi perdendo seu valor e a população de loucos foi-se tornando um
grupo indesejável. Pois o pensamento crítico, um dos focos desse momento,
não conseguia compreender a loucura; logo a sociedade não conseguiu
encaixá-la no mundo, marginalizando-a. A rejeição iniciou uma série de atos
para que os loucos fossem descartados, embarcações inteiras eram
preenchidas com esses indivíduos e lançadas ao mar, e assim eles foram
fadados à peregrinação; era um mecanismo higienizador, mantendo as ruas
livres da loucura. Até que algo interessante ocorreu: durante muito tempo, até o
fim da idade média a lepra era algo que assolava a população europeia.
Considerada como um castigo divino, esta doença fazia com que os indivíduos
fossem mantidos em uma distância sacramentada, existiam diversos hospitais
pela Europa designados para essa finalidade. Com o fim das Cruzadas, o
276
contato com os focos de contágio foi quebrado e tais hospitais foram
gradativamente se tornando obsoletos. Mesmo assim, de acordo com Silveira e
Braga (2005), alguns séculos passaram-se até que uma necessidade de um
saber específico sobre a loucura fosse de fato estabelecida e a loucura
tomasse o lugar de atenção que antes era destinado à lepra.
Em meados do século XVIII, a loucura passou a integrar os saberes
médicos e a internação passou a ser um cuidado necessário, porém isso não
retirou o valor ideológico da internação que tinha como objetivo retirar o louco
das ruas e estabelecer uma distância com o resto da sociedade; Resende
(1990) afirma que a Saúde Pública e a Psiquiatria tinham tarefas de sanear a
cidade, removendo os focos de infecção, esvaziando cortiços, livrando-se dos
sem trabalho e dos maltrapilhos.
Esse cenário também foi reproduzido no Brasil, até que em 08 de
dezembro de 1852 inaugurou-se o Hospício de Pedro II – foi a primeira
tentativa de um tratamento mais humanitário em solo brasileiro para essa
população. Segundo Lima 2009, o discurso era que o intuito da internação não
era simplesmente uma exclusão da sociedade, mas a possibilidade de uma
reinserção após um tratamento e reabilitação. Porém, o que na teoria parecia
um bom método na prática não foi bem sucedido, o contexto brasileiro não
estava preparado para lidar com essas ideias, ainda existiam divergências
políticas e de interesses entre hospitais e profissionais. As Santas Casas não
tinham um interesse em modificar a forma como a loucura era tratada e esses
ambientes tinham um foco religioso, ainda, gerido pelo catolicismo.
Foi somente com a Proclamação da República que o louco começou a
ser responsabilidade do estado e gradativamente com as mudanças morais e
de direitos humanos um novo direcionamento começou a ser aplicado. Novos
modelos surgiram com a reforma sanitária e mais tardiamente a nomeada
Reforma Psiquiátrica.
Neste cenário surgiu o projeto de Lei n°. 08/91 que tratou de uma
proposta de formalização de todas as demais agregadas e passou por
inúmeros obstáculos; porém, em razão de um processo contínuo e longo de
conscientização com intervenções da mídia e outros fatores, em 2001 foi
aprovada a Lei n.º 10.216, que incorporou mais mudanças (BRASIL, 2001). A
277
Lei n°. 10.216 tem por finalidade a proteção dos direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em
saúde mental: “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras
de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”.
Nesse contexto de reforma ocorreram eventos importantes, como o II
Congresso Nacional do MTSM (Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental) na cidade de Bauru em 1987, quando se adotou o lema “Por uma
sociedade sem manicômios” e, também, a I Conferência Nacional de Saúde
Mental (Rio de Janeiro) – (Ministério da Saúde, Conferência Regional de
Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas, nov.,
2005).
Ocorreu, também, uma intervenção pela Secretaria Municipal de Saúde
na Casa Anchieta, localizada na cidade de Santos, onde houve denúncias de
abusos à integridade dos pacientes. O caso teve repercussão em todo o país,
mostrando que era possível a construção de uma nova rede de cuidados que
substituiria os hospitais psiquiátricos. No mesmo período, foram implantados no
município de Santos os chamados Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS),
que funcionavam 24 horas por dia e tinham como responsabilidade o cuidado
da saúde mental de uma região, com foco nos casos graves, por meio de
vários tipos de ação que permitissem que o usuário pudesse retomar a
autonomia (Portaria nº. 336, BRASIL, 2002).
O primeiro CAPS foi criado na cidade de São Paulo em 1987, com a
função de substituir os antigos modelos manicomiais. O CAPS oferece ao
paciente acompanhamento clínico, dando ao mesmo oportunidade de poder
ser reinserido na sociedade por meio do trabalho, lazer e fortalecimento de
laços familiares (BRASIL, 2002).
No ano de 2002, depois da III Conferência Nacional de Saúde Mental, a
Portaria nº. 336 foi publicada, segundo a qual, no Artigo 1º, item 2, “Os CAPS
deverão constituir-se em serviço ambulatorial de atenção diária que funcione
segundo a lógica do território”. Três diferentes tipos foram criados: CAPS I,
CAPS II e CAPS III (BRASIL, 2002).
O CAPS I oferece atendimento a municípios com população entre
20.000 e 70.000 habitantes. Esses serviços são oferecidos por uma equipe de
278
no mínimo três profissionais de nível superior, como psicólogo, assistente
social, terapeuta ocupacional, pedagogo ou qualquer outro profissional
necessário ao projeto terapêutico. Além desses, mais quatro profissionais de
nível médio, técnico e ou auxiliar de enfermagem, técnico administrativo,
técnico educacional e artesão.
Atendem adultos com transtornos mentais de severidade maior e
transtornos consequentes do uso de álcool e outras drogas. Funcionam nos
cinco dias úteis da semana, e têm disposição para o acompanhamento em
média de 240 pessoas por mês (BRASIL, 2002).
Os CAPS II são de médio porte e cobrem os municípios com população
entre 70.000 e 200.000 habitantes. Os pacientes são em maioria adultos com
transtornos mentais severos e persistentes. Conta com equipe de doze
profissionais no mínimo, com nível médio e nível superior e pode atender em
média até 360 pessoas por mês. Também funcionam nos cinco dias úteis da
semana (BRASIL, 2002).
Em relação ao CAPS III, são os de maior porte da rede CAPS e dão
cobertura aos municípios com mais de 200.000 habitantes. Atende durante 24
horas todos os dias da semana e nos feriados; neles realizam-se acolhimentos
noturnos, nos feriados e finais de semana com no máximo cinco leitos para
eventuais repousos e/ou observações. Internações breves, que duram algumas
horas e no máximo sete dias corridos ou dez dias intercalados em um período
de 30 dias. A equipe deve ser constituída de no mínimo dezesseis profissionais
para esse trabalho, entre eles a formação de nível médio a superior, além de
uma equipe para trabalho noturno e de final de semana. O CAPS III tem
condições para o atendimento de 40 pacientes por turno, tendo como limite
máximo 60 pacientes ao dia (BRASIL, 2002).
Após discorrer sobre o campo de pesquisa, CAPS II, foca-se este
estudo especificamente na esquizofrenia, um dos principais transtornos
mentais graves, estando presente em 1% da população mundial. A
esquizofrenia é considerada uma doença psiquiátrica de base endógena,
caracterizada pela perda de contato do sujeito com a realidade, cujos principais
sintomas são divididos em dois tipos: produtivo e negativo. Produtivos são os
delírios e alucinações caracterizados por responder melhor ao tratamento; no
279
outro extremo, estão os negativos, que são a diminuição da volição e o
rebaixamento afetivo, muito mais resistentes aos tratamentos (PALMEIRA;
GERALDES; BEZERRA, 2009).
Os prejuízos trazidos pela esquizofrenia podem ser experimentados
pelos portadores com grande sofrimento e angústia. O diagnóstico das
doenças mentais pode ser comum aos portadores, as formas de manifestações
podem ser compartilhadas, mas os conteúdos dos sintomas são únicos. Cada
portador experiencia e significa de maneira singular o que é conviver com o
sofrimento.
Para melhor compreensão do trabalho, cabe analisar a definição de
esquizofrenia a partir da descrição da CID 10 e posteriormente do DSM IV,
Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde
(Organização Mundial da Saúde - CID 10, 1993, pg. 85):
Os transtornos esquizofrênicos são caracterizados em geral por
distorções fundamentais e características do pensamento e da
percepção, e por afetos inadequados ou embotados. A consciência
clara e a capacidade intelectual estão usualmente mantidas, embora
certos déficits cognitivos possam surgir no curso do tempo. A
perturbação envolve as funções mais básicas que dão à pessoa
normal um senso de individualidade, unicidade e de direção de si
mesma. Os pensamentos, sentimentos e atos mais íntimos são
sentidos como conhecidos ou partilhados por outros e podem
desenvolver-se delirios explicativos, a ponto de que forças naturais ou
sobrenaturais trabalham de forma a influenciar os pensamentos e as
ações do indivíduo atingido, de formas que são muitas vezes
bizarras. (Organização Mundial da Súde, CID 10, 1993, p. 85).
De acordo com a 4ª edição revisada do Manual diagnóstico e estatístico
de transtornos mentais [DSM-IV-TR] (APA, 1994), para se diagnosticar um
paciente com esquizofrenia, três critérios devem ser atendidos.
Sintomas característicos: dois ou mais dos seguintes, cada qual
presente por grande parte do tempo durante um período de um mês
(ou menos, se os sintomas desapareceram com o tratamento):
1. Delírios.
2. Alucinações.
3. Discurso desorganizado, que é uma manifestação de transtorno do
pensamento formal.
280
4. Comportamento grosseiramente desorganizado (por exemplo,
vestir-se de forma inadequada, chorando com frequência) ou
comportamento catatônico.
5. Sintomas negativos - afetivo achatamento (falta ou diminuição da
resposta emocional), alogia (falta ou diminuição da voz), ou avolição
(falta ou diminuição da motivação).
Se os delírios são considerados bizarros ou as alucinações consistem
de ouvir uma voz que participam em um comentário execução das
ações do paciente ou de ouvir duas ou mais vozes conversando entre
si, apenas o sintoma que é exigido acima. O critério de
desorganização da fala só é respeitado se é grave o suficiente para
prejudicar substancialmente a comunicação (JORGE, 2003, p. 15).
A esquizofrenia foi descrita como doença pela primeira vez pelo
psiquiatra alemão Emil Kraeplin (2009), no final do século XIX, à qual
denominou de “demência precoce” (PALMEIRA; GERALDES;
EZERRA,
2009). Essa locução foi utilizada pelo fato da doença acometer pessoas muito
jovens ou no início da fase adulta, além do fato de, como observado por
Kraeplin, que esses sujeitos adoentados comportavam-se de forma semelhante
à demência por terem um comportamento regredido à infância e muito
desorganizado. No século XIX, os sujeitos acometidos pela demência precoce
eram tratados nos hospitais psiquiátricos de modelo asilar, mantidos por anos
neste sistema, de onde alguns nunca chegaram a sair (ROUDINESCO; PLON,
1998).
O termo esquizofrenia foi criado no século XX pelo psiquiatra suíço
Eugen Bleuler (1911, apud, Palmeira; Geraldes; & Bezerra, 2009), por achar
que a expressão “demência precoce” confundia-se com a demência dos idosos
causada pelo Alzheimer. Segundo o Dicionário de Psicanálise, Bleuler criou a
palavra esquizofrenia para integrar o pensamento freudiano no saber
psiquiátrico. Bleuler acreditava que somente a teoria do psiquismo elaborada
por Freud permitia compreender os sintomas dessa loucura (ROUDINESCO;
PLON, 1998).
Esquizofrenia em grego significa “mente cindida”, pois uma das
características mais marcante da doença para Bleuler é a impressão de uma
personalidade fragmentada.
Antigamente se sabia muito pouco sobre a esquizofrenia, conhecida
como “loucura”; porém nas últimas décadas houve um grande avanço no
281
estudo e tratamento desta doença, colaborando significativamente para
compreender e entender melhor as necessidades de quem convive com este
transtorno mental tão grave. Segundo Palmeira, Geraldes e Bezerra (2009, p.
11):
Derrubar preconceitos e aprofundar os conhecimentos sobre a
esquizofrenia são imprescindíveis para quem deseja ajudar aqueles
que sofrem da doença. A informação é nossa principal ferramenta
neste caminho. A sociedade precisa ser informada sobre as doenças
mentais e perder progressivamente o preconceito em relação a elas.
Um esquizofrênico não deve ter suas aptidões julgadas
exclusivamente sob a ótica de sua doença, como se ele não pudesse
desenvolver habilidades que o afirmassem e destacassem
socialmente. A história reserva exemplos de grandes homens que
desenvolveram a esquizofrenia, como o matemático vencedor do
Prêmio Nobel John Nash, o bailarino russo Vaslav Nijinski e até o Rei
da Inglaterra no século XV, Henrique VI.
Após a Reforma Psiquiátrica e com os avanços nos estudos das
doenças mentais, muitas mudanças positivas aconteceram em relação aos
tratamentos; porém, acredita-se que o foco deva voltar-se ao próprio sujeito,
acolhendo-o e ouvindo-o em sua totalidade. A escuta centrada em cada
paciente proporciona um entendimento maior do sofrimento que está
estritamente ligado à história de vida do doente.
De acordo com Silva (2009) subjetividade é entendida como aquilo que
diz respeito ao indivíduo, ao psiquismo ou à sua formação, ou seja, algo que é
interno, numa relação dialética com a objetividade, que se refere ao que é
externo. É compreendida como processo e resultado, algo que é amplo e que
constitui a singularidade de cada pessoa. Subjetivo é tudo aquilo que é próprio
do sujeito ou a ele relativo. É o que pertence ao domínio de sua consciência. É
algo que está baseado na sua interpretação individual, mas pode não ser válido
para todos. A subjetividade é o mundo interno de todo e qualquer ser humano.
Utilizamos o conceito de subjetividade do dicionário Aurélio (1975),
subjetividade é aquilo que existe no sujeito, individual, pessoal, particular, ou
passado unicamente no espírito de uma pessoa. Uma questão subjetiva é
aquela que muda de pessoa para pessoa, dependendo de suas crenças, suas
convicções, conhecimentos e histórico de vida. Por isso, é entendida como um
espaço único de cada indivíduo, pois cada sujeito instala-se no mundo através
282
de um recorte diferente, a partir de sua construção de crenças e valores
compartilhados pelo meio social em que esse sujeito vive. (ROVER, ORG.
2010).
Segundo Besset, (1997) fala-se em subjetividade na psicologia, na
sociologia, e em diversos campos ligados ao ser humano. De acordo com a
autora, a noção de subjetividade surgiu como produto de certa evolução do
pensamento ocidental. As construções desse termo foram erguidas em
conjunto com profundas transformações sociais, provocadas por mudanças
nas relações de produção.
Em relação à subjetividade dos portadores de esquizofrenia, são
relativamente poucos os autores que procuram, nas transformações sociais
contemporâneas, as raízes de transformações subjetivas. Segundo Lobosque
(2001), a necessidade de considerar a subjetividade dos portadores de
doenças mentais graves decorre de que sua radical exclusão sempre subsidiou
os modelos manicomiais de atendimento, o que serviu de mecanismo
primordial para a exclusão social da loucura.
De acordo com Pereira (2013), a centralidade do indivíduo em sua
dimensão intersubjetiva, em detrimento da supremacia da doença, enquanto
conjunto de sintomas embasa o contexto de reformulação e qualificação da
atenção e tratamento a pessoas com transtornos mentais, desencadeado pela
Reforma Psiquiátrica. Na interface com a Saúde Coletiva, os novos arranjos
implementados na assistência em Saúde Mental no Brasil, pressupõem que:
[...] a saúde das populações, das relações sociais e a produção de
políticas públicas não devem deixar de considerar que as
coletividades são compostas por sujeitos particulares, com
necessidades e desejos singulares e em constantes relações de
poder (Ballarin et al., 2011, p. 604).
De acordo com a autora, a ampliação da compreensão acerca das
práticas clínicas e sociais desenvolvidas, assim como o entendimento das
diferentes variáveis envolvidas no processo saúde-doença são caminhos
necessários para viabilizar a construção de intervenções que de fato consigam
abarcar a complexidade do adoecimento mental. E é nesse sentido, da
coprodução de projetos de saúde e de vida, que entendemos e valorizamos o
283
diálogo com as formas particulares pelas quais os indivíduos constroem
narrativas sobre a dimensão experiencial do processo de adoecer.
Segundo Serpa Junior, et al. (2007), a dimensão sintomatológica dos
quadros psicopatológicos, exclui a dimensão subjetiva da experiência do
adoecimento e seus aspectos relacionais. De acordo com os autores, o estudo
da Psicopatologia na atualidade tem sido frequentemente apresentado em sua
dimensão descritiva e esse modo de operar da Psicopatologia traz embutida
uma concepção de saúde e doença e, antes disso, uma ideia acerca do que
deve estar subjacente à partilha entre o normal e o patológico.
Método
Para efetuar este estudo, que trata de um tema que elucida
singularidade e subjetividade, realizou-se uma pesquisa de campo exploratória
de caráter qualitativo. Consideramos que o contato prévio, desprovido de
hipóteses, com o sujeito pesquisado permitiria delinear os aspectos relevantes
da pesquisa, conforme as significações atribuídas pelos próprios pesquisados
fossem reveladas. Este tipo de metodologia utiliza significações e sentidos
atribuídos pelos pesquisados para não apenas descrever o que foi observado,
mas suscitar reflexões e diferentes percepções do fenômeno estudado
(MINAYO, 2007).
Para o desenvolvimento deste estudo foi escolhida a pesquisa de campo
descritiva com abordagem qualitativa que responde a questões muito
particulares. Preocupamos-nos com um nível de realidade que não pode ser
quantificado, pois trata-se de um universo de significados, aspirações, crenças
e valores. Entendemos que isso corresponde a um espaço mais profundo das
interrelações de fenômenos que não podem ser reduzidos a operacionalização
de variáveis (MINAYO, 2008).
As entrevistas foram realizadas no CAPS II da cidade de Itatiba- SP, que
tem como proposta atender a pacientes neuróticos e psicóticos graves, adultos,
de
forma
mais
humanizada,
considerando
suas
particularidades
e
necessidades específicas.
284
O CAPS II de Itatiba conta com 10 profissionais, quatro psicólogos, dois
médicos, um clinico, um psiquiatra, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem,
um técnico de enfermagem e uma assistente social.
Sujeitos e critérios
Foram entrevistados dentro do CAPS II de Itatiba quatro pacientes
portadores de esquizofrenia. Por se tratar de uma pesquisa sobre a
singularidade do sujeito, a quantidade da amostra não é de relevância
significativa no presente trabalho, pois pode-se alcançar a subjetividade a partir
de um único sujeito.
A faixa etária eleita dos sujeitos da pesquisa foi entre 18 (dezoito) e 75
(setenta e cinco) anos selecionados aleatoriamente nos aspectos: sexo,
crença, etnia e classe social. Deveriam estar diagnosticados há pelo menos
cinco anos, pois nesse período o paciente já tomou conhecimento dos
sintomas da doença e dos tratamentos que se fazem necessários. Foi
imprescindível que os sujeitos da amostra estevissem compensados, ou seja,
não estivessem em crise no momento da entrevista.
Procedimento para coleta e análise de dados
Após aprovação do Comitê de Ética da UNIP, foi contatado o CAPS II
com uma Carta de Consentimento Institucional para agendamento das
entrevistas, que tiveram duração média de 50 minutos a uma hora.
Posteriormente, foi explicado o objetivo da pesquisa aos participantes,
coletando as assinaturas para o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) e preenchido um Questionário para Caracterização da Amostra.
Em seguida, iniciaram-se as entrevistas, a partir da pergunta
disparadora “O que é conviver com a esquizofrenia”?
O método utilizado para tabulação do resultado foi uma análise temática.
Segundo Minayo (2007), a análise temática tem como objetivo descobrir os
núcleos de sentidos que aparecem no discurso do sujeito e cuja presença ou
frequência de aparição podem significar alguma coisa para o nosso objetivo
285
analítico. Esta análise consiste em três etapas: 1) pré-análise; 2) exploração do
material; 3) tratamento dos resultados.
Análise e discussão dos dados
Apesar de a esquizofrenia ser um termo essencialmente psicopatológico
que trás consigo referências de uma doença descrita em manuais médicos,
CID-10 (1993) e DSM-IV (1994), optou-se aqui por conhecer este transtorno
mental a partir da fala e percepção dos sujeitos acometidos pela mesma. Desta
forma o trabalho desenvolvido fundamentou-se em conceitos subjetivos e não
em métodos médico-científicos. Portanto não se pretende abolir os conceitos
sintomatológicos da doença, mas sim tratá-lo de forma simples, segundo a
compreensão do próprio sujeito. Buscou-se compreender o processo do
adoecer,
que
afetado
pela
subjetividade
individual,
nem
sempre
é
compartilhado.
Na sequência serão abordados os temas que consideramos mais
relevantes em decorrência do que emergiu da coleta e análise dos dados: a
percepção religiosa do indivíduo acometido pela esquizofrenia; a experiência
de obtenção do diagnóstico de esquizofrenia; a percepção dos sujeitos
portadores de esquizofrenia a respeito do Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS); a percepção dos portadores de esquizofrenia sobre as relações
interpessoais; relatos de experiências com o hospital psiquiátrico; relação do
esquizofrênico com o trabalho; relato sobre os sintomas da doença.
A percepção religiosa do indivíduo acometido pela esquizofrenia
Vamos tratar da religião aqui como um fenômeno eminentemente
humano, não tendo por objetivo colocar em questão a existência ou não de
uma divindade ou de questões sagradas, levando à risca o objetivo do presente
trabalho de não enquadrar e ou julgar os sujeitos da pesquisa. Portanto,
286
buscou-se conhecer a percepção das experiências religiosas das pessoas com
o diagnóstico de transtorno do espectro esquizofrênico.
A religião é uma importante instância de significações e ordenação da
vida de seus reveses e sofrimento. Ela parece ser fundamental naqueles
momentos de maior impacto para os indivíduos, como perda de pessoas
próximas, doenças graves, incapacitação e morte. Como é elemento
constitutivo da subjetividade e doador de significado ao sofrimento, defendo
que ela deva ser considerada um objeto privilegiado na interlocução com a
saúde e os transtornos mentais. (DALGALARRONDO, 2008)
Sou Católico. Como eu posso falar! A compreensão da... como se
diz... da vida... a importância do outro. Então, isso foi fortalecendo a
minha vida, a crença, a crença em Deus. Então, isso tudo foi
modificando, foi... fui ficando mais feliz, eu fiquei mais feliz. (Verão,
61anos, U).
Observamos que na narrativa da percepção de Verão sobre a religião,
após a sua doença, ele compreendeu-a como sendo fortalecida a sua crença
em Deus, vislumbrando melhor a importância do outro e sentindo-se mais feliz.
Verão relatou ser católico, porém em seu discurso falou sobre o
fortalecimento de sua crença em Deus não necessariamente vinculada à
religião católica.
Tenho três crenças, evangélico, carismático e umbandista... já
participei das três já [...] Ah! Pra falar a verdade hoje em dia eles
comercializam a palavra de Deus pra ganha dinheiro e eu não gosto
disso, só pedem dinheiro. Se você der dinheiro pra igreja você tem
tudo, se não dá nada, você não tem nada, pra igreja (Outono, 42
anos, A).
Na narrativa da percepção de Outono sobre a religião, ele relatou ter três
crenças religiosas, demonstrando ter participado delas no passado. Porém em
seu discurso presente constatou-se sua autenticidade sobre as igrejas
compreendendo-as como um comércio da palavra de Deus, elucidando seu
não contentamento com tal fato.
Eu sou evangélico. Só que é o seguinte, eu sou evangélico, mas
como a minha doença, por exemplo, a gente acredita que Deus fala
com a gente quando tem essa doença. Então, se eu sou evangélico,
eu não posso entrar muito na religião, porque eu posso entrar em
crise (Primavera, 54 anos, J.).
No discurso de Primavera ele demonstrou certa consciência de sua
doença, explicando sobre os riscos da crença de sua religião em seu processo
287
de adoecer, ou seja, surtar. Surpreendentemente Primavera relatou o controle
que precisa ter para participar dos cultos evangélicos.
Em relação à esquizofrenia e à religião uma revisão de literatura aponta
que alguns pacientes são ajudados por sua comunidade de fé, apoiados por
atividades espirituais, confortados e fortalecidos por suas crenças. Entretanto,
há a preocupação de que essas intervenções religiosas possam interferir na
recuperação de pessoas com transtornos mentais graves de forma negativa,
podendo complicá-la especialmente se estão presentes alucinações e ou
delírios (BRAGHETTA, et al. 2011).
Olha, a minha religião, eu fui criada na igreja católica. Agora, adulta, e
bem adulta, como eu estou agora, com 71 anos, a minha religião é
direto com Deus, eu não vou em nenhuma das igrejas, sabe? É direto
com Deus. Converso com Deus, peço ajuda, sou atendida... inclusive,
não sei se seria o caso de pôr católica (Inverno, 71 anos, N).
No discurso de Inverno ela relatou que foi criada na igreja católica, mas
elucidou que hoje sua relação é direta com Deus sem intermediação de
instituições religiosas.
Segundo Mattos (2009), o ser humano sempre procurou entender-se e
entender o mundo a seu redor recorrendo, para isso, a diversos Deuses. Isto
porque, como sugere a máxima “conhece-te a ti mesmo”, o homem não pode
conhecer-se sem referir-se a uma alteridade, ao outro, ao além. Para a
psicanálise, o “sujeito do suposto saber” indica esta forma de crença no outro
que é plenamente consistente, os quais supõem possuir todo o saber que falta
ao sujeito, saber este capaz de nos dar o porquê e o “como” de nosso
sofrimento, tornando legível nosso destino.
Na conclusão desta análise temática, pudemos observar o modo de
construção singular dos sujeitos a respeito de suas percepções sobre a
religião. As narrativas sobre as percepções religiosas configuraram-se como
conteúdo singular, subjetivo e amplo. Compreendemos que o entendimento à
cerca da religião construída pelos próprios sujeitos, foram em sua maioria
completos e ricos, demonstrando o quanto a historia de cada um deles é
própria e única, história esta de vida, pela qual eles captaram suas
experiências e conhecimentos sobre religião.
288
A experiência de obtenção do diagnóstico de esquizofrenia
Primeiramente, para discorrer a respeito da experiência de ser
diagnosticado com esquizofrenia, devemos compreender o que significa
adoecer, linguajar comumente utilizado ao retratar o ato de ser diagnosticado
com o transtorno. Leal et al. (2014, apud Kleinman e col., 1978,1988) descreve
como Disease alterações biológicas, fisiopatológicas e psicofisiopatológicas,
que condizem com o funcionamento normal ou anormal dos órgãos e sistemas
corporais, portanto é um fenômeno observável através da perspectiva de uma
terceira pessoa. No caso da esquizofrenia, existem alterações nesse espectro
de funcionamento que possibilitam o diagnóstico de um médico psiquiatra, que
atua como o observador citado acima.
Apesar de várias teorias sobre a esquizofrenia e os parâmetros de
classificação nosológica como o CID 10 e DSM, observamos nas entrevistas
que os portadores da doença passaram por um longo processo antes de ter o
diagnóstico.
De acordo com o discurso dos entrevistados, observamos dificuldades
dos sujeitos relatarem sobre o início da doença. De acordo com Mari & Leitão
(2000), casos novos de esquizofrenia raramente ocorrem antes da puberdade e
acima dos 50 anos. Quando o começo é insidioso, há uma dificuldade de
estabelecer-se com precisão o início da doença. Porém, essa visão médica a
respeito do adoecer é um recorte do que pode ser determinado empiricamente,
observável e compreensível aos olhos.
Para compreendermos a experiência do sujeito na obtenção desse
diagnóstico, devemos considerar como ele constrói o sentido dessa doença a
partir do momento que é lançado em convivência com ela. Sendo assim,
consideramos que o processo de adoecimento tem início com a autopercepção
de mudanças nas sensações corporais e continua com a rotulação de “doente”,
pelo próprio sujeito, familiares e pessoas próximas. Os significados, símbolos,
histórias de vida, as atitudes em busca de tratamentos, cura, bem estar e
reestabelecimento do que foi alterado pela existência da doença são aspectos
integrantes da experiência de adoecer (LEAL et al., 2014). No trecho a seguir,
289
compreendemos Primavera tentando relacionar-se com as desordens sentidas
por ele mesmo e buscando uma maneira de compreender o que ocorreu com
ele no momento:
Eu fiquei sabendo que... eu comecei a ler as características da
esquizofrenia, e me encontrando nelas, tinha alguns pensamentos
que eram próprios da esquizofrenia, fiquei sabendo, não lembro mais
exatamente quais eram, precisaria ler de novo (Primavera, 54 anos,
J).
Logo em seguida, Primavera descreveu como sua história de vida foi
modificada pelo diagnóstico e relatou como o adoecer modificou sua vivência.
Antes
um
desenhista
com
compromissos
profissionais
e
durante
o
descobrimento da doença viu-se sem ânimo e confuso a respeito da origem de
seu sofrimento. Dentro da perspectiva subjetiva de Primavera, o adoecer diz
respeito a alterações sociais significativas a ela. Logo o adoecer tem um
sentido social e político para o indivíduo, alterando seu modo de viver social
(LEAL, 2014 apud YOUNG, 1981).
Desde que eu me aposentei... então começou a doença em 1987, eu
trabalhava como desenhista né [...] Procurei médicos, clínico geral
para saber o que eu tinha, eu não tinha ânimo para fazer nada. Aí,
depois eu fiquei sabendo do hospital psiquiátrico, lá em Jaçanã, o
Vera Cruz. Aí, eu fui para lá, e pedi para me internar lá, porque, eu
queria saber o que eu tinha. Inicialmente eles me falaram que era
depressão né, mas eu descobri a 5, 6 anos que era esquizofrenia
(Primavera, 54 anos, J).
Inverno tem um discurso semelhante ao de Primavera quando relata a
respeito de sua vida pregressa ao diagnóstico e o momento do primeiro contato
com a doença:
Olha, eu trabalhava num consultório médico com um angiologista em
72. E, eu estava meio agitada, estava meio nervosa...e a partir daí, eu
comecei a ficar com problema [...] Daí, esse médico que me levou
para trabalhar com ele, ele veio em casa e eu estava estranha, muito
estranha. Eu lembro que eu levantei, sentei em uma cama, e eu
falava com ele assim, por sinais, sem a fala, por sinais. Daí, ele falou:
“Olha... falou para a minha colega, tem que internar”, o estado que
ela está não tem como tratar em casa [...] Daí, então, marcamos uma
consulta e fomos no Doutor X. No caso, ele não falou qual era a
minha doença, só depois, que deu um tempo, que daí ele falou pra
minha irmã e ele falou que eu ia ser medicada pro resto da vida, falou
que era possível que eu tivesse alguns surtos nesse tempo. E, de
fato, só que agora, graças a Deus, eu conserve (Inverno, 71 anos, N).
290
Para Outono, a esquizofrenia foi diagnosticada muito cedo em sua vida;
com apenas 15 anos ele descreveu que já tinha o laudo do médico. Após esse
período
retratou
uma
vivência
que
aparenta
ser
permeada
de
institucionalizações:
É, quando eu estava em crise eu descobri a esquizofrenia com 15
anos, ai quase deu leucemia em mim e eu fiquei muitas vezes
internado, desde dos quinze anos já. Eu fiquei na clínica São Luiz de
Juiz de Fora, a primeira vez, depois Hospital Ismael de Amparo, Jaú,
Varzea, Bauru, Indaiá, Indaiatuba e no Hospital Psiquiátrico
Palmeiras. Com quinze anos o médico deu o laudo de esquizofrenia
(Outono, 42 anos, A).
Verão relatou de forma confusa que obteve o diagnóstico após procurar
um auxilio, pois a vivência com os sintomas de alucinações estava sendo
“difícil”, como ele mesmo descreveu:
Foi recente que eu percebi. Porque eu sempre... uma fluência de
vida, assim, então, as pessoas nunca tinham diagnosticado que eu
era esquizofrênico. Eu tinha visões. Foi aí que começou a ficar difícil,
aí eu procurei auxílio, entendeu? (Verão, 61 anos, U).
Compreendemos que a experiência de obter o diagnóstico de
esquizofrenia é única e singular para o indivíduo que, em um determinado
ponto da vida teve que realizar um enfrentamento da doença e construir um
sentido para ela. Assim como exemplifica linguajar comumente utilizado ao
retratar o ato de ser diagnosticado com o transtorno. LEAL et al (2014, apud,
Kleinman e colaboradores, 1978,1988), em sua obra relativa ao processo de
adoecimento e a construção de uma relação do indivíduo com a própria
doença. Os indivíduos entrevistados relataram que receber o diagnóstico de
esquizofrenia envolvia internações e surgimento de sintomas, porém podemos
considerar que existiam particularidades de sua vida privada que foram
alteradas devido ao recebimento do diagnóstico; como no caso de Primavera e
Inverno que romperam sua relação com o trabalho e também Outono que
recebendo
o
diagnóstico
tão
precocemente,
teve
sua
adolescência
interrompida.
A percepção dos sujeitos portadores de esquizofrenia a respeito do
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
291
Os processos de desinstitucionalização para pessoas com históricos de
internação começaram a ser efetuados a partir dos anos 90 e tomaram maiores
proporções no ano de 2002 com uma série de normatizações do Ministério da
Saúde (BRASIL, 2005).
As diretrizes do CAPS (Centro de atenção Psicossocial) descrevem que
é dever do serviço acolher e dar atenção para pessoas acometidas por
transtornos mentais graves e persistentes, de modo que se busquem preservar
os laços sociais do indivíduo em seu território atual (Portaria/GM nº. 336 – De
19 de fevereiro de 2002). O discurso que elege o CAPS como uma modalidade
de atendimento mental de qualidade foi proeminente em toda a amostragem da
referente pesquisa, os entrevistados mostraram um forte vínculo e simpatia
pelo serviço pelo simples fato dele ter abolido as internações manicomiais em
longo prazo:
Eu fiquei muito internado. Daí, a volta coincidiu com a abertura do
CAPS... desse CAPS II. E... Graças a Deus, eu estava com um alívio,
eu estava pedindo não aos manicômios. Isso me aliviou demais.
Graças a Deus! Foi uma fase boa... uma fase boa... nossa, o CAPS II
foi a melhor coisa para mim nessa minha vida inteira. Porque, nossa!
Muito bonito o trabalho deles aqui. Cuida sim, separar não (Verão, 61
anos, U).
Na seguinte fala o entrevistado descreve que suas internações só são
necessárias em momentos de crise, onde ele favorece a internação até que ele
recupere-se:
Foi bom sim eu comecei me tratar no SUS alí embaixo, depois em
2006, 2007 eu vim pra este CAPS. Este CAPS inaugurou em 2006.
Mudou sim, muito, aí foi menos internação né, quando eu tinha uma
crise muito forte eu me internava, só uns três meses até me recuperar
e saía (Outono, 42 anos, A).
Além da redução de internações o CAPS também possibilita atividades
de reintegração do indivíduo na sociedade, através de atividades de produções
artesanais. O trabalho tem como objetivo fortalecer laços comunitários entre os
usuários:
Estou muito bem... O CAPS, nossa, é uma benção para nós. O CAPS
é uma benção. Os pacientes aqui são poucos que precisam ainda
internar. Mas, a maioria, está trabalhando, aqui na sala de fuxico,
292
quem trabalha também na sala… como chama... sala de artesanato.
Eu fico só no fuxico, eu faço bastante coisa, é um... graças a Deus...
(Inverno, 71 anos, N).
Compreendemos através da fala dos entrevistados que as mudanças
proporcionadas pela atenção do CAPS são positivas para que eles possam ter
uma menor incidência de internações. Realidade que anteriormente carregava
um fator de exclusão e segregação do indivíduo portador de esquizofrenia.
Apenas um dos entrevistados abordou as atividades oferecidas pelo serviço em
prol da ressocialização dos usuários, relatando que se sente agradecida por ter
uma pluralidade de opções de atividades disponíveis.
A percepção dos portadores de esquizofrenia sobre as relações
interpessoais
Amarante (2008) narra que ao longo da história presenciamos o
isolamento dos doentes mentais pela sociedade. O presente trabalho não tem
por objetivo interpretar a percepção da narrativa dos sujeitos sobre como eles
relacionam-se com o outro.
Moro sozinho hoje. Eu não estou me sentindo difícil. Me viro bem”.
Tenho bastante amigos, tem muita gente, mas eu não... a doença não
deixou eu ficar muito amigo dos outros. Eu gosto de todos eles, tudo,
assim, eles, elas... mas eu não tenho muito contato com eles, de vez
em quando eu encontro. É difícil explicar, parece que está raspando
alguma coisa assim. [...] a reação com os outros... com os outros, às
vezes, tem uma reação raspando... de incomodar (Verão, 61 anos,
U).
Percebemos que Verão relatou morar sozinho elucidando que não sente
dificuldades quanto a isso. Porém ressaltou a dificuldade em relacionar-se com
as pessoas, mencionando uma sensação de “raspagem”. Segundo Santos
(2006), as alucinações podem ser também cenestésicas – relativas à
sensibilidade –, modalidade do sintoma que agrava ainda mais a dificuldade de
contato ou relacionamento com o outro.
Eu sou viúvo, vai fazer dia 15, agora, 19 anos. Então, o que
aconteceu? Já tinha crise antigamente, né, mas só que não era tão
grave. [...] Tô sozinho inclusive amanhã eu vou encontrar uma pessoa
293
que conheci pela internet. O primeiro encontro, e o coração bate forte,
só que ela não gosta que fuma, eu comprei adesivo para parar de
fumar, amanhã vou usar, comecei a usar hoje, já estou há 24 horas
sem fumar […] Eu tenho um filho agente se dá bem, por exemplo,
teve uma época que eu bebia né aí meu filho, ele sabia da doença
né. Às vezes, agente abusa um pouquinho né, hoje, não, mas
antigamente ele dizia “você tá doente pai”, mas a gente não levava
muito a sério a doença, nem ele nem eu. Quando ele falava que eu
estava doente, eu me achava péssimo, me achava impotente com a
doença, hoje não. Hoje eu levo um papo normal com ele, a gente
conversa, dou dura, dou conselho e ele dificilmente toca no assunto
da doença, porque ele percebeu que eu estou bem. Tenho um
netinho já (Primavera, 54 anos, J).
Primavera relatou ser viúvo, mas demonstrou desejo e contentamento
ao confidenciar ter um encontro com uma mulher. Elucidou também ter um filho
e um neto, explicando as dificuldades encontradas nesta relação no início de
sua doença, porém compreende-a hoje como sendo boa. Observamos a partir
desta narrativa o desamparo familiar, mas, em contrapartida, houve uma
resignificacao da relação de primavera com o filho e neto, buscando uma nova
companheira.
As mulheres só usam agente depois vão embora, e não apresentam
os “fio” pra gente, somem no mundo. Eu queria dar uma pensão nem
isso elas quiseram, sumiram. Eu tive um caso com uma psicóloga em
Várzea e tive uma filha com ela. Mas eu tô cansado de ficar sozinho
já viu, eu tive vários relacionamentos com mulheres, mas não deu
certo, ia e voltava, agora só amizade só com essas mulheres
(Outono, 42 anos, A).
Outono expressou sua indignação com as mulheres compreendendo
que elas usavam-no e abandonavam-no. Relatou suas dificuldades em manter
relacionamentos heterossexuais, queixando-se de estar sozinho. Confidenciou
a existência de uma filha com a qual não tem contato.
Tenho tias e primos, mas ninguém liga pra mim, mais fácil os
estranhos ajudar eu do que os próprios parente. Não tenho ninguém
aqui por mim, sou sozinho, só eu e Deus (Outono, 42 anos, A).
Outono relatou, também, as suas dificuldades na relação com seus
familiares, verbalizando ser mais fácil receber ajuda de “estranhos”, ficando
novamente em evidência no seu discurso a solidão. Para Sousa-Filho et al
(2010), “pensar sobre a participação da família no tratamento de pacientes
psiquiátricos representa um passo importante”. Deve-se considerar que os
294
familiares possuem um papel relevante no processo do tratamento psiquiátrico.
Mas o que ainda se percebe é que muitos familiares apresentam poucas
informações sobre a doença gerando expectativas negativas em relação à
possibilidade de melhora de seu familiar, levando os familiares a não acreditar
na mudança de uma realidade que se mantém insatisfatória durante um longo
período de tempo contribuindo para uma marginalização do paciente
(NÓBREGA, 2006).
Não é brincadeira não, eu falo ninguém acredita, eu falo pro
psiquiatra, mas ele não acredita por eu ser assim... com esses
pensamentos. Eles acham que é... [silêncio] alucinação… isso é
discriminação. Na vila eles me chamam de louco, quando eu passo
as crianças riem e também me chamam de louco. Eu ficava muito
triste, eles diziam ‘olha o louco aí, lá vem o louco!’ (Outono, 42 anos,
A).
A minha família não aceitava que eu estivesse com problema. [...]
Fingida, você é fingida, sempre foi fingida [...] E depois que meus pais
faleceram eu estava muito mal, sabe? Quando eu estava convivendo
com eles. Nossa, eu estava muito mal e, sinto remorso hoje de como
eu cuidava deles (Inverno, 71 anos, N).
Outono e Inverno relataram as dificuldades enfrentadas pela sociedade
e família para aceitação dos sintomas da doença, sendo considerados loucos e
fingidos.
Marcon (2010) destaca que rotular o indivíduo esquizofrênico de louco é
a maneira encontrada pela sociedade para entender o que está acontecendo,
porém tal fato só aumenta o processo de estigmatização e seu isolamento
social, sem compreender o sofrimento que este indivíduo está vivenciando.
Na amostra da presente pesquisa os discursos dos participantes
revelam as dificuldades de vínculo afetivo com o outro, seja com amigos,
parentes, filhos ou companheiros. Observou-se que a maioria dos participantes
não usufruem do suporte familiar.
Face ao exposto, embora dentre os vários sintomas negativos da
esquizofrenia esteja a diminuição da integração social e a dificuldade em
gerenciar diferentes tipos de relações, pôde-se observar que os sujeitos desta
pesquisa, apesar de sentirem-se solitários resgataram sua autonomia, na
medida em que foram capazes de tolerar o sentimento de solidão. Mostrando
serem capazes de cuidarem de si no âmbito financeiro e cotidiano.
295
No entanto, o estudo revelou dificuldades de investimento e manutenção
de vínculos afetivos pelos sujeitos pesquisados, sejam estes nas relações de
amor, amizade, ou entre os familiares e descendentes.
Relatos de experiências com o hospital psiquiátrico
Observaram-se nas entrevistas, relatos referentes à internação em
hospital psiquiátrico e apareceram tantos aspectos positivos quanto negativos
nos relatos em relação a esse tema. Segundo Dalgalarrondo (2003), a
internação psiquiátrica, embora onerosa, continua sendo um recurso
terapêutico indispensável para pacientes graves. De acordo com o autor há um
processo em curso, no Brasil, de reestruturação da atenção à saúde mental e
os hospitais psiquiátricos progressivamente têm deixado de constituir a base do
sistema assistencial, cedendo terreno a uma rede de serviços extrahospitalares de crescente complexidade.
[…] Eu comecei a pensar em tudo que eu passei. Conversei muito
com os profissionais daqui, o G. tem muita experiência trabalhou no
Pinel, e isso foi me ajudando. Tem muitas histórias, eu vivi o
submundo da mente humana. É muito perigoso. Eu cheguei a
almoçar... um acontecimento muito chato, eu estava almoçando no
Pinel, uma comida esquisita, me deu uma ânsia, tinha uma moça
conversando comigo, e eu vomitei, ficou chato até, mas não tinha
como controlar. Comida mal feita, de qualquer jeito, pessoas mal
vestidas, cheirando, cheirando ruim, sujas. Eles abusavam das
pessoas... acredita? tinha os prédios dos homens e das mulheres
separados, quando as mulheres eram bonitas, os enfermeiros
abusavam delas, tudo isso aconteceu (Primavera, 54 anos, J).
No trecho a seguir, Outono contou-nos que a experiência de internação
não foi desagradável a ele quando ela não envolvia maus tratos e abusos
físicos. Depositando que grande parte do bem estar na internação tem
responsabilidade do serviço de enfermagem oferecido, pois muitas vezes
esses profissionais agrediam os internados e também a ele:
Eu tenho um monte de internação, perdi as contas já, faz as contas:
dos quinze anos aos quarenta e dois? […] Dependendo do hospital,
quando agente não é muito mal tratado não tem problema, dá pra
aguenta a internação, o problema é se pega uns enfermeiros que
gostam de maltratar a gente. Eu tinha um azar de pegar uns
296
enfermeiro ruim que só queria sempre me amarra, eu tenho uma
raiva deles que me maltratavam, aí eu fugia. Lá no Palmeiras eu só
ficava amarrado. […] levei vários choques na cabeça. […] fiz
tratamento com eletrochoque, eles colocavam duas batatinhas de
cada lado da cabeça e davam choque, estremecia e amolecia meu
corpo inteiro. Não dói, não dói, você só sente uma descarga elétrica
(Outono, 42 anos, A).
Inverno relatou em seu discurso diversas experiências de internações,
descreveu esse período apenas como “horrível” e que em uma determinada
visita da irmã, disse a ela que seu lugar era no hospital, institucionalizada e que
não voltaria mais:
É... deixa eu ver. Aí, eu fui internada três vezes...Três vezes, porque
eu tive surtos. Em Sorocaba, eu fui internada, deixa eu ver... hospital
de medicina especializada e o Vera Cruz e fiz exames lá, no Vera
Cruz, um aqui em Várzea Paulista. [...] Precisei ser internada na
medicina... a... eu esqueci o nome... Hospital de Medicina
especializada. Fiquei lá, acho que uns cinco meses, fiquei internada.
E eu não melhorava. Era desde, falando coisas que não tinha
cabimento. Independente de onde eu estivesse, ruim, era uma coisa
muito ruim na minha cabeça, muito ruim. Nossa, foi horrível! Daí,
deixei me internar no mental, fiquei no mental... até quando a minha
irmã foi fazer uma visita para mim, eu falei para ela: “Olha, Inês, fala
para a mamãe que o meu lugar é aqui. Eu não vou voltar mais para
casa, porque meu lugar é aqui. (Inverno, 71 anos, N).
Os indivíduos que relataram suas experiências vividas em hospitais
psiquiátricos levaram-nos a compreender que foram de difícil adaptação, com
diversos momentos de sofrimento envolvendo negligência e violência. Porém,
Outono que teve seu diagnóstico de esquizofrenia com apenas 15 anos de
idade e viveu diversas internações ao longo de sua vida, revelou que não
considera a experiência de internação ruim quando ela não englobava
violência. É possível que assim como Inverno e Outono muitos dos sujeitos que
vivenciaram longos períodos de internação e distância de casa começaram a
compreender o ambiente de internação como seu local de pertencimento,
mesmo contendo sofrimento.
Relação do esquizofrênico com o trabalho
A segregação e exclusão social foram secularmente o caminho mais
percorrido por quem padecia de transtorno mental no modelo de tratamento de
cunho asilar, trazendo danos na vida de quem se encontrava com tais
297
enfermidades. Na atualidade, as antigas concepções começam a ser
ressignificadas pelo movimento da reforma psiquiátrica, que revê o antigo
paradigma da segregação e apresenta novas proposições ancoradas na
habilitação psicossocial dos sujeitos adoecidos mentalmente. Durante a história
sempre houve um conceito de que a aptidão e a inaptidão para o trabalho
representavam um critério importante na decisão de julgar um sujeito como
“normal’’ e “anormal’’ ( EZERRA, et al. 2004).
Eu não estou trabalhando com nada mais, eu aposentei. Eu era
bancário, trabalhei eu acho que uns oito, nove anos. Eu gostava. Eu
não trabalhei aqui em Itatiba, só em São Paulo eu trabalhei. Aqui eu
não trabalhei com nada (Verão, 61anos, U).
Verão relatou-nos que gostava de trabalhar, porém hoje encontrava-se
aposentado e sem emprego, mas não fez menções positivas e nem negativas a
tal fato.
Eu trabalhava num consultório médico com um angiologista, em 72.
Estou aposentada. Eu trabalhava na enfermagem, eu trabalhei na
Regional, eu trabalhei nos postinhos, o último lugar que eu trabalhei
foi no SUS, no Papanicolau. Então eu comecei a apresentar problema
(Inverno, 71 anos, N).
Inverno relatou que trabalhou por bastante tempo na área da saúde
sentindo-se impossibilitada de continuar no seu ofício após a doença.
Esta dificuldade relacionada ao trabalhar fica atrelada, frequentemente,
ao curso evolutivo deteriorante da patologia, gerando baixa significativa do
funcionamento pessoal. Além disso, às dificuldades de gerir-se se somam as
concepções sociais que isolam ainda mais as pessoas com transtorno mental
do mundo do trabalho, pois enfrentam preconceitos construídos historicamente
de que são pessoas incapazes (SOUZA, 2006).
Eu fiz um curso de Autocad aqui... eu tinha feito em São Paulo... em
2006, aí fiz de novo agora em 2013, em Itatiba peguei o diploma. Ai
eu conheci um professor de Autocad daqui, que mora aqui perto, aí
ele tava dando aula desde abril e ele tem me ajudado, eu já peguei
serviço, vou trabalhar agora às duas horas. Vou mandar fazer uns
cartões (Primavera, 54 anos, J).
Por exemplo, deixa eu explica pra vocês eu sou aposentado por
invalidez, então me aposentaram em 96. Eu saí da Caixa, em 87 em
88 eu entrei. Quando sai fiquei 3, 4 meses parado. Em seguida o
298
médico me disse que eu não estava bom para trabalhar, saí e fui
trabalhar como desenhista, mas a depressão veio novamente, em 96
me aposentaram. Eu estava com 37 anos. Novo, novo, já penso que
perda de tempo? Tanta coisa que eu podia ter feito. Eu tenho um
sonho de voltar a trabalhar. Eu tenho vontade, vocês não vão
acreditar, eu estou fazendo Autocad, eu queria abrir um escritório,
mas como sou aposentado por invalidez, não posso abrir firma, mas
eu quero. Eu preciso ir atrás de tirar minha aposentadoria para voltar
a trabalhar de novo […] sou conselheiro da saúde também, aqui no
município, voluntário, mas o prefeito aqui é meio devagar […] eu
estou feliz, muito feliz, porque aos 54 anos eu voltei a estudar, e com
54 eu voltei a trabalhar (Primavera, 54 anos, J).
Na vida de Primavera a falta do trabalho pareceu ser mais significante,
pois lamentou o fato de ter sido aposentado pelo médico ainda tão jovem.
Revelou que gostaria de ter produzido muito mais, manifestando o
desejo de voltar a trabalhar. Confidenciando-nos que começou a fazer um
curso de Autocad, tendo como meta abrir um escritório e voltar a desenhar,
profissão que exercia anteriormente. Enquanto não consegue realizar seu
sonho de ter seu próprio negócio, faz trabalhos voluntários em sua cidade.
Contudo, mesmo com as limitações colocadas pela doença, ele
considera-se feliz em ter conseguido voltar a estudar e a trabalhar como
desenhista, orientado pelo professor.
Primavera revelou claramente o desejo de voltar a trabalhar implicado ao
sentimento de validade, felicidade e pertença social como cidadão de direitos, o
qual, ainda que como uma pessoa diferente dos padrões culturais, almeja estar
“incluído” como sujeito de direitos nesta sociedade. Souza (2006) assevera que
a Psiquiatria e o trabalho dos pacientes estiveram sempre, paradoxalmente,
próximos e distantes. Ainda hoje, as pessoas com transtornos mentais graves
pouco conseguem colocar-se no mercado de trabalho. Enfatiza que o trabalho
é fonte de desenvolvimento de potencialidades humanas. E é onde cada
pessoa acometida pela esquizofrenia poderá dar um destino diferente e
singular daquele concedido socialmente, o de incapaz.
Trabalhar deve ser um direito de todas as pessoas, na medida em que
isto tem uma função central na vida de todos, isto é, dos que sofrem ou não de
transtornos mentais graves. A falta do trabalho é potencial fonte de sofrimento
para
os
humanos,
economicamente,
pois
mas
"continua
também
sendo
uma
psicologicamente,
referência
não
só
culturalmente
e
299
simbolicamente dominante, como provam as reações dos que não o têm”
(SOUZA, 2006, apud, CASTEL, 2001).
Eu era metalúrgico, auxiliar de máquina, eu furo as peças, fazia 2.000
furos por dia, batia o recorde, todo dia 3.000, 3.500 furos, das sete da
manhã até às quatro da tarde furando peças, tinha uma hora de
almoço. Aí eu tive uma crise na firma, eles internaram eu, parei de
trabalhar, fui afastado e volto em 2016, faço uma reavaliação para
poder voltar (Outono, 42 anos, A).
Ah não sei se gostaria de voltar a trabalhar, eu tenho muita dor na
coluna quando levei treze tiros nas costas, aí ficou meio difícil, dói
muito aqui (e aponta para região da coluna onde dói), faço uns bicos
trabalhando no mercadão em uma lanchonete de vez em quando
(Outono, 42 anos, A).
Outono contou da percepção satisfatória que tinha com seu trabalho,
porém também fora afastado, após a sua doença. Relatou ter dúvidas quanto a
voltar ou não a trabalhar.
É notória a dificuldade de reinserção no mercado de trabalho
manifestada em cada discurso do sujeito com esquizofrenia, ora participantes
da presente pesquisa. Para alguns participantes arriscamos supor que viverem
em exclusão traz sofrimento psíquico, sobretudo para quem após o
adoecimento mental tenta construir possibilidades de trabalho em uma
sociedade fechada e leiga ao compreender os diferentes.
Observamos
que
todos
os
participantes
percebiam
benefícios
previdenciários por invalidez trabalhista. Contudo, a mesma renda que os rotula
inválidos ou ‘incapazes’ garante-lhes certa autonomia financeira e infere
capacidade de autogestão, pois são sozinhos para administrar suas
economias.
Relatos sobre os sintomas da esquizofrenia
A palavra sintoma, no dicionário, por definição significa: a manifestação
de algo que poderia dar indícios de um diagnóstico. São estas manifestações
ou modificações em formas de sintomas, sinais, indicações ou suspeitas que
apontam para as disfunções orgânicas ou funcionais.
300
A esquizofrenia é uma síndrome psicótica que tem por características
principais os sintomas de: alucinações e delírios, pensamento desorganizado e
comportamentos bizarros (DALGALARRONDO, 2008).
O esquizofrênico sofre uma desorganização mental profunda e seu
comportamento é completamente alterado, segundo Dalgalarrondo (2008, apud
Schimid, 1991), aponta a cisão com a realidade como a dimensão central da
psicose. O delírio e a alucinação são os principais sintomas desta doença e um
relato comum entre os pacientes entrevistados, porém estes sintomas são
vivenciados de forma diferente e particular por cada indivíduo.
Quando pensamos na esquizofrenia, apesar de ser uma síndrome
psicótica, temos que levar em consideração que ela é vivenciada pelos
pacientes de forma singular e subjetiva. Dalgalarrondo (2008), aponta que para
se entenderem os sintomas, precisamos entender os signos, ou seja, os sinais
que se caracterizariam pelo “estímulo emitido pelos objetos do mundo”. O sinal
sempre vem com suas significações, por exemplo: um delírio poderia ser um
sinal de esquizofrenia, porém a forma como aparece e como o sujeito vivencia
ou significa, são os sintomas exclusivos dele. Na psicopatologia os sinais são
objetivos e observáveis no paciente, contudo, os sintomas são as vivências
subjetivas relatadas pelos pacientes. Como ele vivencia e significa suas
experiências.
A reação minha com a vida, com as pessoas, entendeu? Aí, foi
mudando. Mudou a minha compreensão também. Compreendia como
inimizade [...] Eu não via o limite das pessoas, o limite das pessoas.
[…] Quando senti chamar... uma maturidade […] eu estou falando o
doce frutos... das descobertas [...] Mas é um sofrimento muito bom,
não é aquele sofrimento que só leva pra baixo é um sofrimento para
luz mesmo, pra mudança [...] É uma pedreira todo dia, mas faz parte.
É gostoso. A gente tem que prestar atenção no lado bom, porque o
lado bom é o que dá as respostas ao tratamento, a convivência e
tudo (Verão, 61anos, U).
O participante Verão descreveu os seus sintomas como um sofrimento
bom, pois não o “levariam para baixo”, seria uma “mudança para a luz”, relata
que sua experiência com a doença foi de alguma forma transformadora. O
sujeito entende-a como frutos de uma nova descoberta, que apesar de existir
um sofrimento, ele seria “bom”. Ao invés de compreender as pessoas que se
301
aproximam como inimigas, ele transformou-as em “sofrimentos bons e
mudanças positivas”, “como uma pedreira todo dia” do seu sofrimento.
Eu conto para as pessoas e ninguém acredita eu saí as três vezes do
túmulo sozinho. Eles acham que eu tô delirando. Eu sempre saí na
bordoada quebrando os tijolos com as mãos e os pés. Já pensou, se
eles tivessem me enterrado na terra dentro do caixão? Seria mais
difícil. Aí eu tava ferrado (Outono, 42 anos).
Eu levei um tiro na cabeça lá em Bauru da polícia civil. Uns quatro
civil me levaram para uma quebrada atiraram na minha cabeça,
depois vazaram. Passei 6 dias enterrado em Bauru, me enterraram
dentro do cemitério. Olha, tenho marcas na minha mão de quebrar os
tijolos. Eu tenho três casos de morte na minha vida. Me enterraram
três vezes, vivo! A primeira vez, em Bauru com 30 anos, em 2002,
200 eu fui assaltado levei 1 tiros, e outra vez levei uma “punhelada”
na cabeça mais 30 dias, deu 67 dias de morte. Saí três vezes da
sepultura (Outono, 42 anos, A.).
O entrevistado Outono mostrou-nos um exemplo de pensamentos
delirantes que mesmo com argumentos contraditórios, conteúdos bizarros ou
absurdos (PALMEIRA; GERALDES; BEZERRA, 2009), ele irrita-se quando as
pessoas duvidam do que conta. Sua percepção da realidade não é a mesma
compartilhada pela maioria dos neuróticos, porém estruturou e articulou sua
narrativa dentro de uma lógica própria, fazendo, assim parte da sua maneira de
existir.
Eu tinha... tenho umas visões, não é visões, visões já tive já, não
resolveu nada, agora que tem todo um jeito de ler as pessoas... antes
de encontrar com elas, depois de ler também como elas tão
relacionando, se está com problema ou se não, e ajudar. Parece que
eu tenho um encontro com as pessoas antes. E, normalmente,
quando tava marcado com vocês também senti que tinha coisa nova
chegando, mas ele me informou semana passada que viria, aí eu
fiquei preocupado. Eu não posso subir muito... (Verão, 61anos, U).
Outro sintoma da esquizofrenia é a alucinação. Dalgalarrondo (2008),
afirma que a alucinação seria uma alteração na sensopercepção. A percepção
seria a consciência pelo indivíduo do estímulo sensorial dos objetos e fatos
exteriores, complexos ou não (DALGALARRONDO, 2008, APUD, PIÉRON,
1996). Portanto, Verão vivenciou sua doença como um jeito novo de perceber
as pessoas. Como se esse jeito novo de ver as pessoas proporcionasse ao
paciente a sensação de ser útil ao próximo.
302
Ah sei lá perseguição, ouvia vozes vagamente ficava perturbado. A
esquizofrenia tem um quadro horrível pra caramba você fica muito
perturbado pra caramba, dá problema, qualquer coisa te incomoda,
quando eu tô em crise quero ficar socado num canto sozinho sem
ninguém por perto. Eu tive uma crise no começo deste ano fiquei
internado em Amparo, mas eles me amarravam, me maltratavam, uns
três homens grandes me judiavam eu vivia amarrado aí eu fugi
(Outono, 42 anos, A).
O paciente referiu-se a alucinação auditiva como parte do processo dos
seus sintomas, ele descreveu um tipo de alucinação que é denominada de
audioverbal. Nestas ocasiões, quando se sente “perturbado” e incomodado ele
prefere ficar isolado, afastando-se do convívio social. O paciente relatou a
percepção dos sintomas ou das manifestações da doença, através destas
sensações corporais que correspodem a experiências de estranheza e malestar localizadas no corpo, vivências presentes em transtornos psicóticos.
Relatou, também, o desconforto de ser maltratado e judiado quando procurou
respaldo profissional para cuidar da doença. O uso deste tipo de contenção ao
paciente, “o ato de amarrar” é extremamente desconfortável e incômodo,
levando este sujeito a optar por fugir da instituição.
Então minha vida é bem parecida com aquele filme “Uma Mente
rilhante”, só que eu não via vultos né, eu fazia cálculos matemáticos
quando estava em crise. Aí, me deu uma estafa e eu não conseguia
mais avaliar os projetos e não sabia mais o que estava desenhando
eu não conseguia encontrar os desenhos. Fiquei parado sem saber o
que eu tinha. […] Mas, a partir de 87 foi difícil pra mim, ficou mais
complicado. Eu pegava o ônibus para ir de São Paulo a Diadema, pra
mim descer do ônibus as pessoas me empurravam pra eu não me
perder do ponto, aí eu descia e não conseguia fazer nada, sentia uma
confusão mental, alguns pensamentos absurdos (Primavera, 54 anos
J).
Os sintomas apareceram na vida da Primavera, provocando uma
exaustão mental significante. Seus pensamentos ficaram confusos e impediamno de realizar atividades comuns no seu cotidiano, como trabalhar em seus
projetos como desenhista ou pegar o ônibus de São Paulo a Diadema. O
paciente paralisou sua vida por um período, não conseguindo fazer mais nada,
perdeu a capacidade de realizar ações organizadoras (DALGALARRONDO,
2008), envolvido por sintomas da esquizofrenia que são relatados com certa
frequência por alguns pacientes: as confusões mentais e pensamentos
303
absurdos. Primavera vivenciou as dificuldades de compreender ou organizar
seus próprios pensamentos.
Eu começava a chorar muito, não, chorava muito. E... dizia coisas
desconexas, sabe? E, o que mais acontecia? Trabalhar, eu já não
estava conseguindo, sabe? Não estava conseguindo. Daí, fui para a
cama. Não tomava banho, não comia, não dormia [...] Medo, sabe?
Uma coisa muito ruim... daí, fui internada rápido. Me sentia muito mal,
e a minha cabeça era uma trapalhada... nossa... eu não coordenava...
horrível, horrível [...] eu chorava, eu chorava, eu não parava de
chorar. E, cama. Não tomava banho, para comer não tinha condições,
não tinha fome, não tinha nada, não queria comer, não queria falar
com ninguém, em um quarto escuro. Nossa! Tava ruim mesmo
(Inverno, 71 anos, N).
Na paciente Inverno, os sintomas apareceram através de um discurso
desconexo, revelando um grande sofrimento físico e psíquico. Não conseguia
realizar tarefas diárias como trabalhar, cuidar de sua própria higiene ou
sobrevivência básica como comer ou dormir. Expressava um medo do
desconhecido e o sentimento de que algo ruim estava acontecendo com ela,
diante disso se isolava das passoas e chorava compulsivamente. Reclamou
que sua cabeça parecia confusa e apresentava sinais de depressão, que
muitas vezes mascaram o diagnóstico de esquizofrenia, provocando ainda
mais sofrimento, medo e insegurança no paciente (DALGALARRONDO, 2008).
Eu... tenho a doença, eu tentei me matar, tinha medo de ficar assim o
resto da vida, né, aí o que acontecia? Eu não sabia o que eu tinha.
Agora hoje, eu sei o que eu tenho então consigo controlar. O meu mal
também é que eu bebia, eu gostava de tomar cerveja, uísque, sair, aí
eu entrava em crise, psicológicas, conseguia reorganizar tudo, depois
voltar ao normal no dia seguinte e.... conseguir seguir a vida normal.
Só que não era plena como é hoje. Hoje eu estou tranquilo. Hoje eu
não bebo (Primavera, 54 anos, J).
Neste paciente notamos a importância do diagnóstico correto da doença,
pois não conseguia entender o que de fato acontecia com ele, dando indicíos
de que hoje só o fato de saber já o ajudaria a “controlar” os sintomas. Alguns
pacientes relatam que conseguem perceber quando estão entrando em crise e
buscam ajuda, contudo não evitam a crise, mas podem minimizá-la.
O objetivo da pesquisa não foi enquadrar o sujeito nos sintomas que
caracterizam a esquizofrenia, mas colocar sua percepção sobre eles. Sabemos
304
que os sintomas fazem parte do diagnóstico da doença. Porém a forma como o
portador de esquizofrenia vivencia, compreende ou experimenta estes sinais,
são particulares, levando em consideração sua história pregressa e como ele
constituiu-se como sujeito, sendo ele único com sua singularidade e
subjetividade.
Considerações Finais
Implicados em limitações, mas inclinados e movidos por um desejo
intrínseco, foi o que nos motivou a realização deste trabalho no qual tentamos
conhecer a esquizofrenia a partir da narrativa da vivência de cada participante,
entendendo este como o detentor de sua singular verdade.
De acordo com os sujeitos entrevistados percebemos que de fato a
esquizofrenia modificou suas vidas de forma marcante e intensa, contudo, cada
um experienciou essas mudanças de forma única, subjetiva.
Aprendemos muito durante a análise temática, quando notamos a
presença de alguns temas que se tornaram relevantes e decisivos para nortear
os rumos deste trabalho. As narrativas sobre as percepções religiosas
configuraram-se como conteúdo singular, subjetivo e amplo. Compreendemos
que o entendimento acerca da religião, construído pelos próprios sujeitos,
foram em sua maioria completos e ricos, demonstrando o quanto a história de
cada um deles é própria e única.
Compreendemos que as experiências com os hospitais psiquiátricos
foram comuns a quase todos os sujeitos e de um modo bastante significativo.
Percebemos que os pacientes, quando receberam os diagnósticos, passaram
por grandes transformações, como por exemplo, foram privados de trabalhar;
seus pensamentos ficaram confusos, as alucinações, delírios e outros sintomas
impediram-nos de realizar atividades comuns em seu cotidiano.
Além
disso,
os
relacionamentos
familiares
foram
afetados
significativamente: todos os participantes revelaram que atualmente moram
sozinhos com alguma autonomia, mas reclamaram do afastamento familiar,
sendo que somente um participante disse que o afastamento partiu dele e não
de sua família.
305
Notamos através da fala dos entrevistados que as mudanças
proporcionadas pelo CAPS são positivas, inclusive, diminuindo a incidência de
internações. Realidade que anteriormente carregava um fator de exclusão e
segregação do indivíduo portador de esquizofrenia, ao contrário de hoje que
através das atividades oferecidas, o CAPS trabalha em prol da ressocialização
dos seus usuários.
Não podemos compreender o sujeito portador de esquizofrenia em sua
singularidade sem levar em consideração sua vida pregressa, ou seja, como se
constituiu no mundo. Os sinais da doença são descritos no CID 10 DSM IV e
que reunidos compõem o diagnóstico, mas percebemos que cada sujeito
vivencia a mesma doença de forma diferente e isso se torna possível porque
nossa existência é única, assim como nossa subjetividade.
Neste presente trabalho conseguimos produzir bons encontros com os
participantes e nesta relação quebramos “pré-conceitos”, construindo novos
conceitos a cerca da subjetividade do adoecer psiquíco. Constatamos que o
diagnóstico e o tratamento destes sujeitos estavam de acoedo com os nossos
estudos
de
psicopatologia,
porém
não
podemos
desconsiderar
que
classificações nosológicas aprisionam o sujeito em rótulos numéricos de
manuais psiquiátricos, soterrando sua subjetividade.
Enfim, no discurso dos sujeitos fomos muitas vezes surpreendidos por
suas percepções, trazendo-nos mais perguntas do que respostas.
A mensagem que fica é que não nos cabe indagar “que doença tem
esse sujeito”, sem antes se preocupar em entender “que sujeito tem essa
doença”.
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Sobre os autores
Adriana Cabello: Estudante de Graduação do curso Psicologia – UNIP/Campinas.
Lucas Gobato: Estudante de Graduação do curso Psicologia – UNIP/Campinas.
Lilian L. Ceregatti: Estudante de Graduação do curso Psicologia – UNIP/Campinas.
Gisele M. Sampaio: Estudante de Graduação do curso Psicologia – UNIP/Campinas.
Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo: Possui graduação (bacharelado,
licenciatura e formação) em Psicologia pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (1994), mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (1997) e doutorado Ciências Médicas – subárea Saúde Mental – pela Universidade
Estadual de Campinas (2004). Atua com psicoterapia psicanalítica de crianças, adolescentes e
adultos. Tem experiência no ensino superior na graduação e pós graduação. Atualmente é
coordenadora de curso, professora titular e supervisora de estágio na Universidade Paulista –
UNIP / Campinas. CV: http://lattes.cnpq.br/4573356259939080
E-mail: [email protected]
310
GRUPO PSICOTERAPÊUTICO PARA PACIENTES DIAGNOSTICADOS COM
TRANSTORNO ALIMENTAR: O PAPEL DO PSICÓLOGO
Élide Dezoti Valdanha
Manoel Antônio dos Santos
Introdução
Os transtornos alimentares (TAs) são considerados psicopatologias de
etiologia multifatorial, ou seja, há uma combinação de diferentes fatores
desencadeadores e mantenedores dos sintomas. Os principais fatores
descritos pela literatura são: o meio sociocultural, a dinâmica familiar e
aspectos da personalidade do indivíduo (Oliveira & Santos, 2006).
De maneira geral, os pacientes relatam que o início dos sintomas
aconteceu após exposição a algum fator estressante ou traumático, como
comentários sobre seu peso, término de relacionamento amoroso ou perda de
um ente querido. Pessoas com anorexia nervosa (AN) e bulimia nervosa (BN)
passam
a
viver
concomitantemente,
preocupação
em
função
apresentam
excessiva,
receio
do
medo
traços
de
patológico
de
de
personalidade,
mudanças,
engordar
tais
e,
como
hipersensibilidade
e
perfeccionismo (Borges, Sicchieri, Ribeiro, Marchini, & Santos, 2006).
Para
o
tratamento
dos
TAs
é
necessário
acompanhamento
multidisciplinar, que possa abarcar diferentes áreas de conhecimento. São
necessários cuidados com a saúde física, emocional e também com os
familiares dessas pessoas. Assim, o tratamento deve contar com profissionais
de diferentes especialidades: psiquiatria, psicologia, nutrição, enfermagem,
terapia ocupacional e nutrologia, que possam oferecer um cuidado global à
pessoa acometida (Santos, 2006).
A psicoterapia de grupo vem sendo considerada uma alternativa
interessante para o tratamento dos TAs, contrariando a visão sustentada até há
pouco tempo, que contraindicava grupo para pacientes que desenvolviam
esses sintomas. Acreditava-se que o grupo seria uma oportunidade para que
311
os pacientes trocassem dicas patológicas em relação ao comportamento
alimentar como, por exemplo, conselhos sobre restrição alimentar ou dicas
para potencializar os comportamentos purgativos. Atualmente percebe-se que
esses grupos, quando bem conduzidos, podem auxiliar na troca de
experiências, com o intuito de promover a saúde psíquica e nutricional dos
participantes.
Pacientes com TAs tendem a rejeitar tratamento no início dos sintomas,
sustentando um discurso de que não estão doentes, apenas seguem um estilo
de vida diferenciado do comum. Após vencerem essa resistência e iniciarem o
tratamento, há uma tendência de rejeição dos cuidados psicológicos, já que
não percebem a forte vertente emocional do problema (Santos, 2006). No
contexto nacional é notável a escassez de estudos que investiguem as
potencialidades e limites da aplicação da estratégia grupal no contexto do
tratamento dos TAs.
Considerando esses aspectos, este estudo tem por objetivo analisar a
experiência
de
um
grupo
psicoterapêutico
oferecido
para
pacientes
diagnosticados com TA, como parte do tratamento em um serviço
especializado multidisciplinar inserido em hospital-escola.
Descrição do grupo investigado
Trata-se de um grupo psicoterapêutico para pacientes com diagnóstico de
TA, vinculados ao Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares (GRATA)
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP-USP). Esse grupo é oferecido pela equipe de Psicologia do serviço,
formada atualmente por cinco psicólogos e três estagiários em situação de
ensino-aprendizagem.
O grupo, que acontece semanalmente, é aberto e pode ser composto por
pessoas de ambos os sexos – com prevalência de mulheres – e de idades e
camadas socioeconômicas diversificadas. É coordenado por uma psicóloga e
co-coordenado por estagiário de Psicologia. Outro estagiário de Psicologia
participa das sessões, na condição de observador silente.
312
A participação no grupo é obrigatória em dia de retorno ambulatorial e
livre nos demais dias. Em relação à frequência às sessões, a média é de cinco
participantes em cada encontro, que tem duração de 1h30. Não há um tema
fixo agendado, ou seja, são os participantes que escolhem os temas e
assuntos a serem dialogados. As sessões grupais aqui analisadas foram
transcritas de memória pela coordenadora, logo após o término dos encontros
grupais.
Serão apresentados alguns trechos para melhor visualização dos dados.
Para preservar o anonimato, os participantes serão referidos como P1, P2, P3,
e assim sucessivamente. A coordenadora do grupo será identificada pela letra
C.
Resultados e discussão
É possível observar que, quando os grupos são formados por pacientes
em início de tratamento, os principais temas abordados no grupo são
relacionados aos sintomas associados ao TA. No caso de pacientes com AN:
restrição alimentar, isolamento social e empobrecimento afetivo; no caso de
pacientes com BN: perda de controle sobre os impulsos, compulsão alimentar
periódica e manobras compensatórias visando à eliminação dos excessos
cometidos durante os episódios de binge eating. Quando o grupo é composto
por pacientes que estão há mais tempo em tratamento, outras possibilidades
podem ser exploradas nos encontros, como os conflitos internos, dificuldades
de relacionamento e problemas em diversas esferas da vida pessoal.
Em uma sessão de grupo composto por três participantes, duas em seu
primeiro dia de participação e a terceira no extremo oposto, em condição de
receber alta naquele dia, essa última foi convidada pela coordenadora para
compartilhar com as novas colegas como funciona o “grupo da Psicologia”. P1:
“A gente conversa sobre o que a gente quiser. Pode ser sobre o que a gente tá
sentindo, se tem alguma coisa incomodando, sobre a nossa família… Enfim,
qualquer coisa…” (P1, 44 anos, AN).
313
É possível perceber, na fala de P1, que comparece já há muitos anos no
grupo (cerca de 15 anos), uma legitimação em relação à proposta das
coordenadoras, que é dar liberdade para que as participantes tragam o tema
que desejarem para exame no grupo. Em resposta à fala dessa participante,
uma das outras integrantes do grupo, adolescente e iniciante no tratamento,
mostra-se surpresa por ser um grupo em que elas podem selecionar e
direcionar livremente o que será conversado.
Os novos participantes agem das mais variadas maneiras no primeiro
encontro de que participam. Alguns se apresentam falantes, até mesmo
prolixos, e expõem suas angústias em relação à doença e ao tratamento.
Outros mostram-se reservados, silentes, observadores e desconfiados em
relação ao que está acontecendo naquele momento de encontro. A formação
de novos vínculos é, via de regra, ansiogênica, mobilizando defesas. Mas
também se nota que, para alguns, o encontro grupal é uma oportunidade de
reflexão sobre o próprio viver. Independentemente da postura assumida, todos
evidenciam sua surpresa com a pluralidade de ideias e sentimentos que
circulam em cada encontro do grupo. Cabe à coordenadora tranquilizar esses
novos participantes, com o objetivo de auxiliar sua inserção no processo
grupal, estimulando sua atenção, reflexão e diálogo.
Quando o grupo acolhe novos membros, recém-chegados ao serviço, a
turbulência gerada desestabiliza momentaneamente o funcionamento grupal.
Nesse sentido, cada encontro é extremamente dinâmico e mutável, de acordo
com a combinação de elementos psíquicos que prevalecem no encontro dos
indivíduos (Zimerman & Osório, 1997). Os relatos são permeados de dúvidas,
colocadas em pauta na medida em que se sentem menos ameaçados. Surgem
diversos questionamentos direcionados aos coordenadores, relacionados aos
aspectos formais do tratamento, como as faltas, horários, locais, consultas
individuais, agendamento de retornos. Temas já abordados anteriormente, mas
que ainda suscitam angústias e confusões.
P2: O que eu mais fico pensando é sobre porque isso aconteceu
comigo. Assim, eu não acho que meu problema é só com a comida,
314
não. Eu acho que eu tenho um monte de problema e queria saber por
que chegou nesse ponto (P2, 16 anos, AN)
C: Mais alguém do grupo já pensou sobre isso?
P1: Eu concordo com você. Eu acho que a comida é só um jeito
da gente mostrar que tem muitos outros problemas. Eu acho que a
gente tem dificuldade em relacionamento, problema em aceitar
alguma frustração, quando alguma coisa não é do nosso jeito… A
gente tem um monte de problema… Quando a gente sofre algum
trauma também não consegue lidar (P1, 44 anos, AN).
Em um grupo com três participantes com sintomas bulímicos (vômitos,
principalmente), os comportamentos compensatórios foram o eixo principal de
conversa: “um lado que temos, mas que é obscuro e indesejável quando
vivemos socialmente”.
P3: É a primeira vez que eu consigo falar disso aqui, de comer,
comer, comer e vomitar. É difícil falar disso, principalmente quando
tem alguém que não vomita também, alguma anoréxica. Parece que
você sente que o fracasso é maior ainda (P3, 22 anos, AN-BN).
P4: É mesmo, é difícil falar disso. Tô feliz que a gente está
conseguindo. Dá vergonha (P4, 20 anos, BN).
C: O que envergonha?
P5: Vomitar é sujo, nojento, doentio. Ninguém gosta de vomitar.
P4: É desprezível.
P5: Você não come porque você quer, você come sofrendo,
chorando, se dilacerando. E depois vem o vômito para tentar diminuir
isso.
C: Penso em uma sensação corporal para tentar diminuir uma
tristeza, uma emoção, uma dor interna.
P6: No momento parece que é a única coisa que dá pra fazer.
Qualquer coisa que tire a tristeza.
O coordenador deve promover um clima permissivo, que favoreça a
autorrevelação dos membros do grupo, permitindo uma releitura acerca de
315
suas vivências por meio da compreensão dos recursos de enfrentamento.
Acredita-se que o ambiente protegido do setting terapêutico pode facilitar a
adesão ao tratamento. Além disso, o coordenador deve assumir um papel ativo
dentro do grupo, reforçando positivamente aspectos de enfrentamento,
valorizando a comunicação franca e aberta, respeitando o tempo e ritmo das
necessidades de cada integrante e fortalecendo possibilidades de aliança
terapêutica (Santos, 2006). Para Gayotto (2003), o coordenador “é aquele que
coordena uma ação que não lhe pertence, mas dela é guardião”. Assim, o
psicólogo ocupa um importante papel nesta modalidade de atendimento, pois
auxilia na ressignificação das experiências contadas/vivenciadas pelos
participantes.
Para pessoas diagnosticadas com TA, a perda de peso é sentida como
uma conquista, como sinal de triunfo sobre os impulsos, sinalizando
autocontrole. No sentido oposto, ganhar peso seria um fracasso da
autodisciplina, o que se torna inaceitável para pacientes tão controladoras e
perfeccionistas (Gaspar, 2005).
Ao final do encontro grupal mencionado, como proposta da coordenadora,
cada participante foi estimulada a pensar e enunciar uma palavra que
representasse, na sua percepção, aquele momento do encontro grupal. Assim,
surgiram as palavras: impotência, inclusão e fortalecimento. Foi possível
perceber que algumas participantes sentiam-se realmente integrantes ao
grupo, ativas dentro dele e bem recebidas pelas outras e pela equipe de
coordenação, porém os sentimentos de angústia e impotência frente ao TA
também puderam ser vividos e conversados. As participantes parecem buscar
alguém que possa ajudá-las nessa travessia pontilhada de sofrimento, mas
sem se perder em suas dores emocionais, que parecem transbordar para a via
corpórea, excedendo a capacidade de contenção e elaboração psíquica.
Considerações finais
O espaço terapêutico grupal mostrou-se importante ao promover a livre
expressão de sentimentos, o intercâmbio de experiências e a aquisição de
316
insights
sobre
o
estabelecimento
de
padrões
de
relacionamento
estereotipados, de modo a propiciar continência e acolhimento do sofrimento,
além de favorecer a formação de vínculos saudáveis.
Notou-se que uma das tarefas desempenhadas de forma reiterada pelos
coordenadores do grupo foi preservar um clima grupal, que possibilitasse que
os(as) participantes apropriassem-se de suas questões emocionais, ao mesmo
tempo em que desenvolvessem suas habilidades relacionais para aprender
com o outro (aprendizagem por intermédio do outro). Para tanto, o psicólogo
que atua com esses pacientes deve buscar tirar o foco que tradicionalmente
tende a ser colocado unicamente no problema alimentar, na incessante
tentativa de valorizar os recursos pessoais que muitas vezes permanecem
desconhecidos e inexplorados.
Nesse contexto, o psicólogo pode auxiliar no reconhecimento e
aprendizagem de novas estratégias de enfrentamento, fortalecimento de
defesas saudáveis e na promoção de saúde mental.
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ZIMERMAN, D. E., & OSORIO, L. C (1997). Como trabalhamos com grupos.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Sobre os autores
Élide Dezoti Valdanha: Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(FFCLRP-USP). Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde
(LEPPS-USP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo – GRATA (HC-FMRP-USP). Email: [email protected]
Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de
São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde
(LEPPS-USP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo – GRATA (HC-FMRP-USP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Apoio: CAPES, CNPq
Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP.
E-mail: [email protected]
318
TRANSTORNO DE PÂNICO E IDEAÇÃO SUICIDA:
CARACTERÍSTICAS DE PERSONALIDADE ATRAVÉS DO
TESTE DE PFISTER17
Panic disorder and suicidal ideation: characteristics of personality in the
Pfister’ test.
Cicera Andréa Oliveira Brito PATUTTI
(Universidade Paulista – UNIP)
Evandro GOMES DE MATOS
(Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP)
Anna Elisa VILLEMOR-AMARAL
(Universidade São Francisco – USF)
Resumo
Este estudo procurou identificar características de personalidade no Teste de
Pfister que pudessem distinguir pacientes com ou sem ideação suicida.
Noventa e sete pacientes diagnosticados com Transtorno de Pânico foram
divididos em grupos, considerando a presença ou não de ideação suicida.
Foram utilizados os instrumentos o teste de Pfister, Escala de Ansiedade de
Sheehan e Inventário de Depressão de Beck. Os resultados mostraram que
ansiedade e depressão estão mais elevadas entre pacientes com ideação
suicida e que no Teste de Pfister os dois grupos se diferenciaram pela
elevação das cores amarelo, laranja, azul e preto.
17
Artigo derivado da dissertação de mestrado em Saúde Mental pelo Depto. Psicologia Médica
e Psiquiatria – FCM – UNICAMP, com orientação do Prof. Dr. Evandro Gomes de Matos, CoOrientação do Prof. Dr. Luís Alberto Magna e apoio financeiro CAPES, no ano de 2004.
Agradecemos aos colegas do Núcleo de Atendimento dos Transtornos de Ansiedade (NATA)
HC-UNICAMP, pelo apoio e colaboração para conclusão deste trabalho.
319
Palavras-chave: Avaliação psicológica; Pânico; Evidências de validade;
Pirâmides coloridas; Psicodiagnóstico.
Abstract
This study it sought for to identify characteristics of personality in the Pfister´s
Test that could distinguish patients with or without suicidal ideation. Ninetyseven patients diagnosed with Panic Disorder were divided into groups
considering the presence or not of suicidal ideation. Pfister’s test and Sheehan
Scale of Anxiety and Beck Depression Inventory were used. The results have
shown that anxiety and depression are more elevated among patients with
suicidal ideation, and that in the Pfister’s Test both groups are by the elevation
of the colors yellow, orange, blue and black.
Keywords:
Psychological evaluation; Panic; Evidences of validity; Colored
pyramids; Psychodiagnostic.
Introdução
A Organização Mundial de Saúde (OMS) refere que no Brasil há uma
prevalência de 22,6% de transtornos ansiosos, revelando que o impacto
negativo sobre a qualidade de vida não fica limitado aos transtornos mentais
graves, mas também incide sobre os transtornos de ansiedade, em particular
ao Transtorno de Pânico (TP), especialmente no que se refere ao
funcionamento psicológico (Markowitz, 1989 e OMS, 2001).
A caracterização do quadro do TP, segundo o Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR, 2002) requer a presença de
ataques de pânico, recorrentes, caracterizados por início súbito, tem seu pico
atingido, em geral, em 10 minutos, que leva a pessoa a ter preocupação
persistente em relação a novos ataques, que geralmente são acompanhados
320
por pelo menos quatro dos seguintes sintomas: aceleração dos batimentos
cardíacos, sudorese, tremor, dificuldade em respirar, dor torácica ou
desconforto no peito, náusea ou desconforto abdominal, formigamento ou
dormência nas extremidades do corpo, ondas de calor ou frio, medo de perder
o controle ou de ficar louco, medo de morrer, sensação de estranheza da
realidade (desrealização) ou estranheza de si mesmo (despersonalização).
O diagnóstico será feito quando ocorrem pelo menos dois ataques
espontâneos seguidos por um período de pelo menos um mês, considerando
também o medo de novos ataques, mudança significativa do comportamento,
medo de doenças correlacionadas com sintomas do ataque de pânico e o
afastamento de causas médicas (hipertireoidismo etc.).
A literatura aponta como fatores de risco, para a complicação do TP, a
presença de quadros comórbidos, tais como transtornos depressivos,
transtornos de personalidade e abuso de substâncias e, nestes indivíduos,
aumentam as possibilidades da apresentação de comportamentos suicidas
(Beck, 1991; Friedman, 1992; Warshaw, 1995; Florequin, 1995; Henriksson,
1996; Rapeli, 1997; Andrade, 1997 e Placidi et al., 2000).
O suicídio é considerado um problema sério da saúde pública e as ideias
de suicídio são mais comuns que o suicídio completo. O comportamento
suicida, segundo Gliatto (2001), caracteriza-se “como espectro que varia dos
pensamentos suicidas passageiros ao suicídio completo”. Estudos clínicos e
epidemiológicos sugerem a presença de um gradiente de gravidade e de
heterogeneidade
entre
diferentes
categorias,
representativas
do
comportamento suicida, que se manifestam em três domínios distintos: ideias
de suicídio, tentativa de suicídio e suicídio completo (Gliatto, 2001).
O comportamento suicida no contexto do TP tem sido alvo de muitos
estudos. As publicações pioneiras de Coryell (1982) e de Weissman et al.
(1989) descreveram a frequente referência de relatos sobre pensamentos e/ou
tentativas de suicídio, entre pacientes portadores de TP.
Outros estudos enfatizam a necessidade dos profissionais ocuparem-se
da compreensão psicodinâmica do quadro clínico do TP, visto que, muitas
321
vezes, os aspectos dinâmicos evidenciam-se na relação que o sujeito
estabelece entre seu sofrimento e o aparecimento dos sintomas (Gentil e Roso,
1987).
Noyes (1995) e Almeida (2002) apontam a necessidade de considerar os
traços de personalidade e estruturas emocionais no âmbito da psicopatologia.
Cloninger et al. (1998), através de seus estudos, ressaltam que é de relevância
clínica que os perfis de personalidade auxiliem a avaliação dos riscos de
suicídio e o planejamento do tratamento.
Frente a dados ainda pouco explorados, o presente estudo visou levantar
características de personalidade de pacientes portadores de Transtorno de
Pânico, que apresentam ideação suicida atual, avaliando a possível relação
com sintomas ansiosos e depressivos, através da aplicação do Teste das
Pirâmides Coloridas de Pfister, da Escala de Ansiedade de Sheehan, para
medir sintomas ansiosos, e do Inventário de Depressão de Beck (BDI), para
fornecer dados quanto aos níveis de sintomatologia depressiva.
Método
Trata-se de estudo descritivo e transversal. Foi revisto e aprovado pelo
Comitê de Ética e Pesquisa-FCM-UNICAMP, e todos os participantes deram
consentimento informado, por escrito, após completo entendimento do estudo.
Casuística
A amostra foi constituída por 97 pacientes com idade superior a 18 anos,
de ambos os sexos, diagnosticados com TP, na ocasião, segundo os critérios
diagnósticos do DSM-IV-TR, atendidos pelo Núcleo de Atendimentos dos
Transtornos de Ansiedade (NATA)/HC – UNICAMP. Foram considerados
critérios de exclusão a comorbidade com transtornos de personalidade,
quadros orgânicos cerebrais e esquizofrenia, pacientes portadores de
deficiências visuais que interferem na visão cromática (daltônicos, amblíopes) e
pacientes na vigência de tratamento farmacológico para o TP.
322
Os sujeitos foram distribuídos em dois grupos, considerando a presença
ou não de ideação suicida: pacientes sem ideação suicida (SIS) e pacientes
com ideação suicida (CIS).
Instrumentos
Roteiro de entrevista desenvolvido pelo NATA (Protocolo NATA), que
contempla dados sociodemográficos, antecedentes pessoais, comorbidades,
tratamento medicamentosos anteriores e atuais. Escala de Ansiedade de
Sheehan trata-se de instrumento subjetivo, que mede a intensidade de
sintomatologia ansiosa, contemplado por 45 questões que variam de zero a 4,
de fácil entendimento e autoaplicável (Nardi, 1998). Inventário de Depressão de
Beck (BDI) é uma escala de avaliação de depressão amplamente utilizada em
pesquisa e clínica, não tem pretensão diagnóstica. Consiste em 21 itens,
incluindo sintomas e atitudes, cujas intensidades variam de zero a 3 (Calil,
2000 e Gorenstein, 2000). O Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister é um
método diagnóstico para avaliar a estrutura afetiva da personalidade,
principalmente sua instabilidade e perturbação, através do conhecimento da
estrutura dos impulsos (Heiss, 1983). Segundo Villemor Amaral (1978) este
instrumento apresenta-se como um bom recurso projetivo, auxiliando em
estudos de caso e na investigação de traços psicológicos normais e
patológicos. É de fácil administração, não verbal e não requer habilidades
educacionais (Calil, 1991; Souza, 1991 e Villemor Amaral, 2002). A versão
empregada nessa ocasião, já que o teste estava em fase de validação devido
ao parecer desfavorável pelo Conselho Federal de Psicologia, consistiu de
cartão contendo desenho de uma pirâmide, subdividida em 15 quadrículos e
um jogo de quadrículos coloridos, composto por 10 matizes, subdivididos em
catorze tonalidades (Heiss, 1983). Aspectos relacionados aos estados ou
reações emocionais podem ser verificados entre as escolhas das cores, que
também podem ser valorizadas por vários outros índices – que o teste permite
que sejam explorados –, entre eles a amplitude do campo cromático,
considerado como um dos fatores estáveis do teste, devido a determinar a
menor ou maior capacidade de recepção de estímulos (Villemor Amaral, 1978).
323
Procedimentos e Coleta de dados
Os atendimentos foram realizados nas salas do ambulatório geral de
adultos/HC-UNICAMP, onde funciona o NATA.
A primeira entrevista foi realizada na presença do médico residente de
psiquiatria (R2), do psicólogo e, eventualmente, com o acompanhante do
paciente.
A coleta de dados foi realizada em duas etapas:
Primeira etapa: levantamento de dados feito por meio da anamnese
completa, realizada pelo médico-residente (R2). Concomitantemente, o
psicólogo trabalhava com o preenchimento do Protocolo NATA e a aplicação
do BDI e Sheehan. Cada instrumento era lido, em voz alta, para o paciente, e
as respostas eram registradas em folha à parte, para posterior tabulação.
Neste momento, lia-se também o termo de consentimento livre, esclarecendose todas as questões levantadas pelos pacientes. Os pacientes que
preenchiam critérios para TP eram orientados pelo médico-residente quanto à
medicação e exames laboratoriais a serem realizados e o retorno era marcado
para a semana seguinte, para finalizar o procedimento.
Segunda etapa: A aplicação do Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister
foi realizada pela pesquisadora e/ou por outra psicóloga, pesquisadora do
NATA,
treinada,
previamente,
para
a
aplicação
deste
instrumento,
considerando-se as normas para execução preconizadas por Heiss (1983). O
tempo de duração de aplicação de cada teste era de cerca de 45 a 60 minutos.
Análise dos Dados
Os dados foram categorizados, digitados e analisados por meio do
Statistical Package for Social Sciences (SPSS – Versão 6.0, 1993). Utilizamos
tabelas de frequência para as variáveis categóricas e tabelas com médias e
correspondentes desvios-padrão para as variáveis contínuas. A análise
qualitativa das variáveis categóricas foi realizada por meio do Teste de QuiQuadrado, cujo objetivo era verificar a semelhança ou diferença de proporções
324
da amostra, realizando testes em tabelas de contingência para comparar as
proporções e a associação entre variáveis qualitativas. Para a Análise de
Variância (ANOVA) foi utilizada para a comparação e análise de duas ou mais
médias das variáveis (cores e amplitude cromática), e também a comparação
dos diferentes grupos (SIS e CIS). Foi considerada significativa a diferença
quando o p foi igual ou inferior a 5% (p  0,05) (SNEDECOR et al., 1974).
Resultados e Discussão
Os resultados e a discussão serão apresentados simultaneamente,
abordando-se os aspectos quantitativos e qualitativos sob a forma de dados
percentuais e médias alcançados pela amostra (N = 97).
Dados sociodemográficos e a distribuição da amostra em grupos,
respectivamente, estão sumarizados na Tabela 1.
Weissman et al. (1997), em estudo epidemiológico abrangendo 10
países do mundo, trabalharam com pacientes portadores de Transtorno de
Pânico; consideraram variáveis como sexo, idade do início do quadro e
comorbidades, procurando determinar a consistência dos achados em diversas
culturas. A prevalência quanto ao sexo revelou que as taxas são
consistentemente mais altas entre mulheres do que homens. Os resultados
obtidos, nesta pesquisa, mostram concordância com estes dados e a
proporção encontrada indicou que a prevalência do TP é duas vezes maior
entre mulheres do que entre homens (2,4 : 1), proporção próxima à encontrada
por Regier et al. (1984) e por Bernik et al. (1997), que foi de 2,2 : 1.
325
Tabela 1 – Características sociodemográficas dos 97 pacientes com
Transtorno de Pânico
DISTRIBUIÇÃO SOCIODEMOGRÁFICA
SIS
CIS
TOTAL
n (%)
n (%)
n(%)
Feminino
38(53)
34(47)
72 (74)
Masculino
13(0.5)
12(0,5)
25 (26)
Caucasoide
42(53)
37(47)
79(81)
Negroide
9(0.5)
9(0.5)
18(19)
Solteiros
10(43)
13(57)
23(24)
Casados
29(56)
23(44)
52(54)
Viúvos
10(59)
7(41)
17(17)
Outros
2(40)
3(60)
5(5)
Católico
31(57)
23(43)
54 (56)
Evangélico
9(53)
8(47)
17(17)
Espírita
3(37)
5(63)
8(8)
Sexo
Raça
Estado Civil
Religião
Outros
8(44)
10(56)
18(18)
Com relação à idade constatou-se que a média foi de 35 anos, com uma
Escolaridade
amplitude de variação
de 18 a 73. Com relação à idade indicada como o início
dos ataques deFundamental
pânico, os resultados
23(50)
enquanto o estudo de Weissman et al.
Médio
16(53)
Superior
Legenda:
12(57)
revelam
média de 30 anos,
23(50) uma46(47)
(1997) exibiu a idade de 20 anos.
14(47)
30(31)
9(43)
21(22)
326
Segundo dados do ECA, a idade de 30 anos é considerada rara para o início
da sintomatologia.
A comorbidade é considerada um fator de risco para a complicação e
gravidade do quadro de TP (Caetano, 1985; Weissman et al., 1989 e Gentil et
al., 1997).
Weissman et al. (1997) indicam que o Transtorno de Pânico está
associado com o aumento do risco de agorafobia e Depressão Maior (DM).
Verificou-se que em uma considerável parcela da população, deste estudo,
foram identificadas diversas comorbidades, destacando-se pelas maiores
frequências: 53% agorafobia, 34% fobias especificas e 17% fobia social, 70%
depressão, 55% transtornos alimentares e 41% abuso de substâncias.
Os
quadros
comórbidos
estão
em
concordância,
diretamente
proporcionais, com os níveis de sintomatologia depressiva e ansiosa obtidos
por meio do BDI e escala de Sheehan, respectivamente. Assim, constatou-se
uma média de 84% de sintomatologia depressiva, sendo cerca da metade em
nível moderado e o restante em nível severo. Oitenta e oito por cento de
sintomatologia ansiosa, sendo quase metade em nível de ansiedade marcado e
o restante severo.
Pesquisas anteriores mostram que estes dados estão similares,
principalmente, no que se refere à alta incidência de sintomatologia ansiosa.
Caetano (1986) ao comparar pacientes com TP com e sem Prolapso da Valva
Mitral (PVM), utilizando a escala de Sheehan, verificou ausência de diferenças
entre os grupos estudados, já que os escores médios, de pacientes com TP
com e sem PVM foram de 91,3% e 86,5%, respectivamente.
A presença de sintomas ansiosos e depressivos aponta diferenças
estatisticamente significativas entre os grupos (p = 0,002). Pacientes
pertencentes ao CIS apresentaram sintomatologia depressiva elevada, em
nível severo, enquanto no grupo SIS, o nível marcado destacou-se, conforme
dados apresentados na Tabela 2.
Andrade et al. (1997) consideram que é alta a prevalência de sintomas
depressivos em ansiosos e vice-versa, devido à superposição de sintomas
327
comuns às duas síndromes, e que faltam estudos conclusivos sobre esta
relação. Assim, pacientes com Depressão Maior (DM), associada a ataques de
pânico, apresentam uma incidência familiar maior de depressão, pânico, fobias
e alcoolismo quando comparados a pacientes com DM sem nenhum sintoma
ansioso associado. Além disso, sugere que tais pacientes apresentam pior
prognóstico, maior grau de desajuste social e pior resposta à terapêutica
convencional.
Tabela 2 – Tabela de Contingência dos níveis de sintomatologia depressiva nos
grupos.
BDI
SIS
CIS
n (%)
n (%)
Mínima
5 (9,8)
-
Leve
8 (15,7)
2 (4,3)
Moderada
26 (51,0)
18 (39,1)
Severa
12 (23,5)
26 (56,5)
Qui-quadrado (p= 0.002)
Legenda:
Neste trabalho, os sintomas ansiosos severos foram mais frequentes
SIS: Grupo de pacientes Sem Ideação Suicida.
entre pacientes do grupo CIS, enquanto o outro grupo (SIS) o nível de
CIS: Grupo de pacientes Com Ideação Suicida.
sintomatologia
ansiosa
foi
marcado,
sendo
detectada
diferença
estatisticamente significativa, com valor de p = 0.002, conforme apresentado na
Tabela 3.
328
Tabela 3 – Tabela de Contingência dos níveis de sintomatologia ansiosa
nos grupos
SHEEHAN
SIS
CIS
n (%)
n (%)
-
-
Moderada
11 (21.6)
1 (2.2)
Marcada
26 (51.0) 20 (43.5)
Severa
14 (27.5) 25 (54.3)
Leve
Qui-quadrado (p = 0.002)
Legenda:
SIS: Grupo de pacientes Sem Ideação Suicida.
CIS: Grupo de pacientes Com Ideação Suicida.
Parcela substancial dos pacientes da amostra estudada fez menção à
ideação suicida, ficando evidente que este grupo estava significativamente
correlacionado com a presença de sintomatologia ansiosa e depressiva
elevada, quando comparado ao grupo de pacientes que não apresentavam
pensamentos sobre morte (SIS).
Andrade et al. (1997) consideram que pessoas com comorbidade
pânico-depressão apresentam maior número de sintomas e maior risco de
gravidade do quadro clínico, como “ideias ou tentativas de suicídio” e culpa.
Os dados obtidos através do Teste das Pirâmides Coloridas revelaram
uma amplitude do campo cromático predominantemente exagerada (Tabela 4).
Estes resultados apontam a grande capacidade de recepção de estímulos,
próprio de pessoas ansiosas, extrovertidas, lábeis, excitadas e inquietas.
329
Tabela 4 – Tabela de Contingência da correlação da Amplitude do Campo
Cromático nos grupos
AMPLITUDE
SIS
CIS
(n = 45)
(n = 39)
Limítrofe
5 (11,1)
-
Estreitamento
1 (2,2)
3 (7,7)
Normal
19 (42,2) 16 (41,0)
Exagerada
20 (44,4) 20 (51,3)
Qui-quadrado (p = 0.119).
13 casos inválidos.
Legenda:
Avaliando os
resultados obtidos quanto à média de frequência do uso
SIS: Grupo de pacientes Sem Ideação Suicida.
das cores, apresentadas na Tabela 5, verificou-se que os grupos não
CIS: Grupo de pacientes Com Ideação Suicida.
possuem diferenças estatisticamente significativas.
Entretanto foi possível observar que, entre os grupos, algumas cores
possuem média de frequência elevada. Assim, no grupo de pacientes SIS as
cores: vermelho, verde e violeta atingiram uma frequência elevada quando
comparada ao grupo CIS. O valor simbólico destas cores, em combinação,
sugere forte receptividade interna de estímulos e sobrecarga de ansiedade,
que podem conduzir à perturbação ou ao comprometimento do equilíbrio
emocional. Este tipo de combinação, segundo Villemor Amaral (1978),
predispõe o indivíduo a reações do tipo “espetaculares”, próprias de quadros
de histeria.
330
Tabela 5 – Análise de variância da correlação das médias de frequências
das cores nos grupos
CORES
SIS
CIS
P
(n = 45)
(n = 39)
f
f
Vermelho
0.17
0.16
0.79
Laranja
0.08
0.09
0.57
Amarelo
0.10
0.12
0.20
Verde
0.16
0.14
0.29
Azul
0.18
0.19
0.85
Violeta
0.07
0.05
0.19
Marrom
0.03
0.03
0.45
Branco
0.12
0.12
0.94
Cinza
0.05
0.05
0.90
Outras pesquisas, que focaram a personalidade de pessoas
Preto
0.03
0.04
0.16
portadoras de TP, apresentaram em seus resultados uma tendência próxima
13 casos
inválidos.
à que foi encontrada
nesta
pesquisa. No estudo, por exemplo, de Roso et al.
(1987), no qual Legenda:
utilizaram-se do Inventário Multifásico Minnesota de
Personalidade (MMPI) em pacientes portadores de TP, encontraram perfil de
SIS: Grupo de pacientes Sem Ideação Suicida.
personalidade comum, com traços histéricos e depressivos em maior grau e
CIS: Grupo de pacientes Com Ideação Suicida.
hipocondríacos, paranóides e introversivos em menor grau, além da redução
de características esquizóides. Por outro lado, estes autores consideram que
as medidas utilizadas na investigação de traços de personalidade ainda não
são eficientes, uma vez que a análise dos resultados é sempre relativa a
uma determinada situação, não garantindo consistência no decorrer do
tempo.
Em relação ao grupo CIS observou-se elevação da média de frequência
das cores azul, amarelo, laranja e preto. O valor sintomático do preto se acha
diretamente ligado à ansiedade depressiva. Combinações das cores azul,
331
preto, amarelo e laranja sugerem uma paralisação do desenvolvimento
emocional, cuja capacidade de elaboração interna é, em geral, interrompida,
devido ao intenso controle repressor, aliado a índices de imaturidade em lidar
com as dificuldades (Villemor Amaral, 1978).
Silva et al. (2003) procuraram investigar manifestações emocionais que
caracterizassem as patologias do Transtorno Obsessivo-Compulsivo e
Transtorno de Pânico, utilizando para este fim o Teste de Pfister. Encontraram
elevação da porcentagem da cor marrom entre pacientes com TOC e azul
entre pacientes com Transtorno de Pânico (Villemor Amaral, 2002), revelando
similaridade com os achados deste estudo.
Embora, convém ressaltar que somente por meio de assinalamentos
mais profundos, acerca dos algarismos centrais da fórmula, é que se poderia
concluir sobre a eficiência ou grau de perturbação que tais fatores poderiam
representar nas atitudes do indivíduo em face do ambiente.
Conclusão
O Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister demonstrou-se sensível em
detectar
a
ansiedade
depressiva
entre
os
pacientes
pesquisados,
principalmente entre aqueles com ideação suicida. Assim, identificou-se um
grupo marcado pela ideação suicida com níveis predominantemente severos
de ansiedade e depressão, conforme os dados obtidos pelas escalas de
Sheehan e BDI. Estes resultados confirmaram-se por meio dos índices
contemplados do teste de Pfister, quer seja pela grande capacidade de
recepção de estímulos, próprio de pessoas ansiosas, excitadas e inquietas e
pelas cores frequentemente utilizadas, revelando uma ansiedade depressiva
com dificuldade de elaboração interna, o que muito provavelmente é
intensificado pelo excesso de capitação de estímulos do meio e pelos índices
de instabilidade e imaturidade em lidar com dificuldades, psicológicas e sociais,
provenientes do mundo externo.
332
Pesquisas que consideram o tratamento medicamentoso entre estes
pacientes estão sendo realizadas a fim de comparar se estas características
fazem parte de um traço ou se estão ligadas ao estado atual da doença.
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disorder. Arch Gen Psychiatry, vol 54: 305-309, Apr, 1997.
336
Sobre os autores
Cicera Andréa Oliveira Brito Patutti: Possui graduação em Psicologia pela Universidade
São Francisco (1994) e mestrado em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de
Campinas (2004). Atualmente é professor adjunto da Universidade Paulista. Tem experiência
na área de Psicologia, com ênfase clinica, saúde mental e avaliação psicológica.
Evandro Gomes De Matos: possui doutorado em Saúde Mental pela Universidade
Estadual de Campinas (1992). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de
Campinas.
Anna Elisa Villemor-Amaral: Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (1981), com mestrado (1990) e doutorado (1996) em Ciências pela
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/EPM), tendo desenvolvido suas teses na área
de Disturbios da Comunicação e da Avaliação Psicológica por meio de métodos projetivos, no
contexto de saúde, atendimento hospitalar e psicossomática. Fez pós-doutorado na
Universidade da Savoia na França em 2003, trabalhando na perspectiva da Psicopatologia
Fenômeno-Estrutural. Psicóloga clínica com atuação em Psicanálise e Psicodiagnóstico. Foi
membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise e fez diversos
cursos de aperfeiçoamento em psicodiagnóstico. Atualmente é Professora Associada Doutora
do Programa de Pós-Graduação Strico Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco e
líder do grupo de pesquisa Avaliação Psicológica em Saude Mental. É também professora da
Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desenvolve
pesquisas na área de Psicologia da saúde e psicopatologia com Métodos Projetivos,
especialmente o Rorschach, Pfister e Zulliger, sendo Bolsista Produtividade CNPq. Presidiu a
Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos no período de 2002 a 2006 e hoje é
membro de seu conselho consultivo. Foi coordenadora do GT de Métodos Projetivos da
ANPEPP de 2008 a 2012. Membro da International Rorschach Society e da Society for
Personality Assessment.
Correspondência Autor: Cicera Andréa Oliveira Brito Patutti
Endereço eletrônico: [email protected]
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GRUPO DE APOIO MULTIFAMILIAR EM HOSPITAL-ESCOLA:
TRABALHANDO A DINÂMICA FAMILIAR NO TRATAMENTO DA
ANOREXIA E BULIMIA.
Carolina Leonidas
Lilian Regina de Souza Costa
Manoel Antônio dos Santos
Introdução
Os transtornos alimentares (TA) podem ser caracterizados como
psicopatologias que envolvem alterações no comportamento alimentar. A
dinâmica familiar de indivíduos com TA é considerada um dos fatores
precipitadores e/ou mantenedores desses quadros. São, geralmente, famílias
marcadas por relacionamentos do tipo fusional entre mãe e filha, nos quais a
figura paterna encontra-se enfraquecida ou ausente. São famílias com laços
muito estreitos e fronteiras indiferenciadas, condição que dificulta a separação
e individuação dos membros, e que também apresentam uma tendência a
evitar conflitos explícitos.
Dallos e Denford (2008) sugerem que os relacionamentos dentro das
famílias com um membro acometido por TA processam-se sobre uma base
falsa ou frágil, com predomínio de vínculos problemáticos, discussões
frequentes, triangulação, desconforto e relação negativa com a alimentação.
Os autores também propõem que mulheres acometidas por esses quadros
vivenciam sensações frequentes de conflitos reais ou iminentes entre os pais,
além de sentirem-se presas no centro desses conflitos e serem coagidas a
tomar partido de um dos genitores. Hipotetiza-se que a relação de
superenvolvimento entre mãe e filha seja reflexo de tensões implícitas na
relação do casal, que se encontram encobertas pelo TA da filha. Dessa forma,
pode-se considerar que o quadro psicopatológico funciona, para os pais, como
uma “distração” de seus próprios problemas e conflitos (McGoldrick, Gerson, &
Petry, 2008).
Considerando-se o exposto, percebe-se a necessidade de incluir a
família no tratamento, buscando oferecer um espaço onde os membros
possam sentir-se acolhidos em suas angústias, de modo a possibilitar a
338
instalação de mudanças na dinâmica familiar que favoreçam a melhora da filha
acometida. Nessa perspectiva, é preciso pensar em estratégias de intervenção
com os familiares que sejam exequíveis no contexto do tratamento, já que a
abordagem familiar pode ser um importante instrumento terapêutico, na medida
em que permite que esta se torne uma aliada da equipe nos esforços pela
recuperação do paciente (Cobelo, 2004).
Nessa vertente, este estudo buscou trazer à luz alguns aspectos do
funcionamento de famílias de pessoas acometidas por TA, por meio da análise
de sessões de um grupo de apoio multifamiliar.
Descrição do grupo de apoio investigado
Trata-se do grupo de apoio aos familiares de pacientes com TA,
vinculados ao Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares (GRATA) do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HC-FMRPUSP). Esse grupo é coordenado pela equipe de Psicologia do serviço, o qual
foi criado em 1981, junto ao Ambulatório de Nutrologia do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.
O grupo é aberto, de modo que cada sessão apresenta uma
configuração diferente de pessoas e temas. O grupo é multifamiliar, ou seja, os
participantes são familiares que acompanham os pacientes no serviço no dia
do retorno ambulatorial. Os assuntos debatidos são trazidos espontaneamente
pelos participantes, que são estimulados a compartilhar experiências e
sentimentos com os demais integrantes do grupo. Cada encontro tem duração
de, aproximadamente, 75 minutos. A condução do grupo é fundamentada no
referencial psicanalítico.
Neste trabalho foram analisadas cinco sessões, transcritas de memória
pelas
coordenadoras,
logo
após
o
término
dos
encontros
grupais.
Posteriormente, o corpus de pesquisa, constituído pelos dados obtidos por
meio das transcrições, foi submetido à Análise de Conteúdo Temática (Bogdan
& Biklen, 1994) e interpretados à luz da teoria psicanalítica.
No que concerne à composição dos encontros em grupo analisados,
estiveram presentes 23 familiares, sendo que a frequência aos grupos variava
de acordo com a frequência do retorno dos(as) filhos(as) acometidos(as). A
339
maioria dos participantes (N = 16) do grupo de apoio era constituída por mães.
A presença da figura masculina esteve em menor proporção: três pais, um tio
(que assumiu papel de tutor após a morte do pai da paciente) e três parceiros
(namorados, marido). As mães, na sua maioria, eram acompanhantes de
pacientes do sexo feminino, já que, dentre os pacientes, apenas dois eram do
sexo masculino. Desse modo, a maior parte do grupo era composta por mães
que compareceram ao serviço com o intuito de acompanhar suas filhas.
Compreendendo aspectos subjetivos que emergiram no relato dos
participantes
No início dos encontros e, principalmente, nos relatos dos participantes
novatos foram comuns os temas com enfoque na busca de compreensão do
transtorno. Alguns relatos dão testemunho dessa preocupação:
Será que essa doença tem cura? Já ouvi muita gente falar que não,
mas eu queria que ela conseguisse ficar bem...
Não sei o que acontece, elas [as filhas] são tão inteligentes e não
conseguem entender que precisam comer.
Nos momentos iniciais do tratamento, observa-se a necessidade de
acolhimento das angústias manifestadas pelos cuidadores familiares. Esse
acolhimento pode se dar, inclusive, por meio do fornecimento de informações
relevantes para a continuidade do tratamento dos(as) filhos(as). Com o
fortalecimento do vínculo entre os participantes e os esclarecimentos
progressivos de aspectos concretos da problemática, começam a surgir falas
que revelam sentimentos latentes do grupo, que serão melhor detalhados a
seguir.
Os laços que se estabelecem entre os próprios familiares no contexto
grupal permitem que eles percebam suas potencialidades como cuidadores e
valorizem a importância do papel que desempenham, de forma a utilizar seus
recursos internos no apoio ao membro acometido, favorecendo assim sua
recuperação.
O impacto dos relatos positivos nos membros que estão ingressando no
grupo é imediato e promove um clima de união e universalidade, pois desperta
esperança naqueles familiares que se sentem impotentes ou deprimidos, e que
340
não vêem perspectivas de melhora ou superação da situação problemática
(Bechelli & Santos, 2001). É importante que cada membro do grupo perceba
que, além de ser um potencial recurso para ajudar na recuperação do paciente,
também deve se ver como alguém que poderá alcançar bons resultados para si
mesmo, uma vez que o grupo possibilita o autoconhecimento e a
ressignificação de atitudes percebidas como negativas.
Nota-se que as mães trazem fortes sentimentos de culpa em relação ao
transtorno dos filhos. Trata-se de um sentimento difícil de ser percebido de
forma consciente, uma vez que envolve questionamentos a respeito de seu
papel como mãe e, portanto, não é algo relatado com facilidade. No entanto,
após algumas sessões de grupo, é possível perceber algumas falas nas quais
emergem questionamentos a respeito de serem ou não “boas mães”.
Eu não me sinto culpada, mas será que eu não estou conseguindo
dizer “não” quando necessário? Meu filho fala que eu passo muito a
mão na cabeça da F., deixo ela fazer o que quer, mas se ela está
nessa situação, eu também não posso deixar de fazer o que ela me
pede.
A relação de superenvolvimento entre mãe e filha também exacerba os
sentimentos de culpa, sendo factível pressupor que os sintomas de TA podem
ser uma tentativa frustrada de busca da separação-individuação das filhas,
aprisionadas no vínculo fusional e mortífero com a mãe. Esse vínculo especial
acaba por empobrecer o ego e obstruindo o acesso a uma identidade própria.
Por se tratar de um sintoma, no sentido psicanalítico, em vez de quebra da
continuidade da relação indiferenciada, o que ocorre é exatamente o oposto, ou
seja, a relação simbiótica mãe-filha torna-se ainda mais adesiva e simbiótica,
com empobrecimento do ego.
Junto ao sentimento de culpa, as mães também relatam dificuldades em
voltarem atenção às suas próprias necessidades, alegando que, em razão da
preocupação exacerbada com as filhas acometidas, acabam tendo tempo
reduzido para cuidar das suas próprias necessidades. Como consequência, as
demais relações interpessoais ficam prejudicadas, incluindo a própria relação
conjugal. Para ilustrar essa questão pode-se recorrer ao relato de uma das
mães, que mencionou não ter tempo sequer para conversar com o marido,
sendo que o único momento em que os dois encontram-se a sós é na hora de
341
dormir. Nesse momento, o filho com TA costuma ouvir o que os pais
conversam espreitando atrás da porta.
Esse dado corrobora estudos que sugerem que a família como um todo
torna-se prisioneira dos conflitos vivenciados pela pessoa acometida de TA.
Nesse sentido, a família tornaria-se refém do problema, o que tende a paralisála. Com frequência, permanece confinada em uma dinâmica que só perpetua a
sintomatologia do filho, exaurindo suas energias livres em torno de um padrão
de relacionamento que, ao invés de ser benéfico, termina por dar
sustentabilidade aos sintomas psicopatológicos do membro acometido.
Como já pontuado anteriormente, as mães configuravam a grande
maioria dos participantes dos grupos analisados. Esse fato, além de expressar
um aspecto crucial dos TA – a fusão e consequente perda dos limites entre
mãe e filha –, também pode reforçar a ideia socialmente construída de que o
cuidado com a saúde dos filhos seria uma função exclusiva da mulher. Nesse
sentido, a equipe multidisciplinar depara-se com o desafio de trazer os pais
(genitores do sexo masculino) e os parceiros das pacientes ao alcance do
tratamento, tanto para ampliar a rede de apoio social, quanto para evitar
conluios inconscientes com a dupla mãe-filha. Assim, novas possibilidades de
vinculação podem ser moduladas nos padrões de relacionamento disfuncionais
na família como um todo.
A presença de pais (genitores do sexo masculino) no grupo provoca
falas que levam as mães a refletirem sobre outros âmbitos de suas vidas, para
além dos cuidados com os filhos e o lar. É possível notar que, quando há
figuras masculinas presentes, assuntos sobre trabalho, lazer e o próprio
relacionamento do casal são abordados, tirando o foco do filho adoecido e da
existência restrita ao “ser pai/mãe de um filho com TA”. Assim, pode-se pensar
que o pai ajudaria a parceira a olhar para outros aspectos de sua vida que
podem estar sendo negligenciados em função da atenção excessivamente
canalizada para o filho adoecido.
Foram poucos os parceiros de pacientes presentes nos grupos
analisados (apenas três: dois esposos e um namorado). Esses parceiros
relataram a necessidade de, muitas vezes, exercerem funções paternais em
relação às companheiras. Entretanto, o relato dos parceiros por vezes trazia
342
um desejo de proteção tão intenso que parecia invadir os limites da parceira,
fazendo com que estes, de forma inadvertida, assumissem o papel da mãe
“invasiva”. Com a adoção dessa postura, a relação conjugal parece tornar-se
empobrecida e negligenciada.
Para exemplificar esse padrão de relacionamento: um dos maridos no
grupo revelou que fazia seis anos que não se relacionava sexualmente com a
esposa, após dizer que é ele o responsável por todos os cuidados em relação à
alimentação,
à
assiduidade
no
tratamento
e
ao
seguimento
das
recomendações médicas e nutricionais. Evidencia-se que, ao assumir o papel
de cuidador, as fronteiras do relacionamento conjugal foram obliteradas, não
deixando espaço para vicejar a relação afetiva e sexual. Para esse marido, o
grupo aparece como um espaço de conscientização e ampliação da percepção
a respeito do empobrecimento de sua relação conjugal, possibilitando que ele
encontre
novas
formas
de
cuidar
da
esposa,
que
não
impliquem
necessariamente em um distanciamento emocional – e até mesmo físico – do
casal parental.
Outro dado relevante encontrado a partir da análise das sessões foram
as dificuldades, detectadas nos pais, de perceberem os filhos como seres
independentes, individuados e com desejos próprios. Os pais, em muitos
momentos, percebem seus filhos como imaturos e infantilizados, vendo-os
como excessivamente necessitados de proteção e cuidado, terminando por
tentar exercer controle exagerado sobre eles. Esse cuidado pode, muitas
vezes, dificultar que os filhos encontrem espaço seguro para crescer e
desenvolver seus próprios esquemas de autonomia.
Os dados discutidos apontam para as dificuldades das mães em
contribuir para o processo de separação-individuação mãe-filha. Há indícios da
perpetuação do padrão de envolvimento afetivo simbiótico nos vínculos
amorosos construídos pelas pacientes, que buscam encontrar na relação com
o companheiro a reprodução da relação que mantinham com a figura materna.
Esses resultados indicam a importância de propor estratégias que apontem
essa simbiose para os participantes e que os ajudem a pensar novas
estratégias de relacionar-se, contribuindo com a percepção de que é possível
cuidar, sem se misturar com o outro.
343
Considerações finais
A análise dos diálogos do grupo multifamiliar que reúne cuidadores e
familiares de pessoas com TA permitiu elucidar algumas razões pelas quais
esse espaço pode funcionar como uma importante alternativa na construção de
relacionamentos mais saudáveis e indutores de mudança na dinâmica familiar
desses indivíduos. O grupo valoriza a construção desse espaço de escuta
como uma estratégia para o fortalecimento dos familiares. Não se trata
simplesmente de apontar erros e falhas, no sentido de culpabilização dos pais,
mas sim de identificar e aproveitar os recursos de que a família dispõe, como
agente de mudança e melhora da saúde do indivíduo adoecido.
O grupo de apoio aparece, então, como uma possibilidade de
enfrentamento do “aprisionamento” vivenciado pelas famílias, que relatam
sentimentos de viverem em função do transtorno do(a) filho(a). Nesse sentido,
o trabalho dentro do grupo funciona de forma a ajudar os participantes a
descobrirem novas formas de estabelecer conexões entre si e sustentarem
relações emocionais mais saudáveis e satisfatórias, mas com base no respeito
ao espaço e à individualidade de cada um. Além disso, o grupo é também um
espaço de trocas de experiências de sucessos e insucessos que permeiam o
longo e sinuoso caminho do tratamento, podendo transformar-se, sob certas
circunstâncias, em uma fonte para a troca de conselhos, dicas, posturas,
aprendizados e comportamentos, que possam conduzir à resolução dos
problemas comuns entre os participantes.
De forma geral, considera-se que os dados oriundos dos grupos
analisados podem auxiliar a compreensão da dinâmica que rege as famílias
que têm um membro com TA, favorecendo a ampliação das estratégias
utilizadas pelos profissionais responsáveis pela assistência às pessoas
acometidas. Trata-se de um material extremamente denso e rico, que permite
explorar com profundidade o universo das famílias que enfrentam essa
problemática de saúde que merece maior atenção pública.
344
Referências
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básicas. Ribeirão Preto: Legis Summa.
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Dallos, R., & Denford, S. (2008). A qualitative exploration of relationship and
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McGoldrick, M., Gerson, R. & Petry, S. (2008). Genograms: assessment and
intervention. 3ª ed. Nova York: W. W. Norton Co. Inc.
Sobre os autores
Carolina Leonidas: Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq).
Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRPUSP). Bolsista de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –
FAPESP. E-mail: [email protected]
Lilian Regina de Souza Costa: Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq).
Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRPUSP). Bolsista de Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –
FAPESP. E-mail: [email protected]
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Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São
Paulo. Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USPCNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Apoio: CNPq
Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP.
E-mail: [email protected]
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