1 Organizadoras Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo Sílvia Ancona-Lopez Autores: Adriana Cabello; Ana Gabriela Pinheiro S. Annicchino; Andréa Lucas Alves Calvi; Anna Elisa Villemor-Amaral; Carolina Leonidas; Cicera Andréa Oliveira Brito Patutti; Eliane de Albuquerque Drullis; Élide Dezoti Valdanha; Érika Arantes de OliveiraCardoso; Evandro Gomes de Matos; Fabio Scorsolini-Comin; Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes; Gisele M. Sampaio; Iraní Tomiatto Oliveira; Jaíne Meireles Rocha; José Vicente Angelo da Rocha; Larissa de Aguirre Silva; Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira; Leonardo Lopes da Silva; Ligia Corrêa Pinho Lopes; Lilian L. Ceregatti; Lilian Regina de Souza Costa; Lionela Ravera Sardelli; Lucas Gobato; Maria Cristiane Nali; Manoel Antônio dos Santos; Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo; Marilda Gonçalves Dias Facci; Marilia Ancona Lopez; Marina Vieira Madeira; Marizete Gouveia Alves Dos Santos; Marizilda Fleury Donatelli ; Mônica Cintrão França Ribeiro; Nádia Giuliese; Raul de Freitas Dias; Regina Célia Calil Ciriano; Rosa Maria Rodrigues de Oliveira; Wolgrand Alves Vilela; Yurín Garcêz de Souza Santos. DEMANDAS ATUAIS EM PSICOLOGIA Formação e Atuação Profissional São Paulo / SP – Universidade Paulista 2015 2 Ficha Catalográfica 159.9 Demandas atuais em psicologia [livro eletrônico]: formação e D371 Atuação profissional / organizadoras: Maria da Piedade Romeiro de Araujo, Sílvia Ancona-Lopez. – São Paulo, SP: Universidade Paulista – UNIP, 2015; 346 p. 1 livro digital Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-68793-00-8 1. Psicologia. 2. Psicodiagnóstico. 3. Psicoterapias. 4. Formação. 5. Práticas profissionais. 6. Serviços-Escola I. Melo, Maria da Piedade Romeiro de Araujo. II. Ancona-Lopez, Sílvia. III. Título. Demandas Atuais em Psicologia IV. Título: formação e atuação profissional. CDU 159.9 3 "Não queremos trancar o que dissemos... Olharemos para a frente; nossas últimas páginas não serão recapitulação do que fizemos, mas interrogações sobre o tema que, percorrendo surdamente nosso trabalho, abre um campo no qual prosseguir..." Renato Mezan 4 SUMÁRIO Apresentação..........................................................................................................................09 Parte I A ADOÇÃO NO CENÁRIO DOS NOVOS ARRANJOS FAMILIARES: A FAMÍLIA HOMOSSEXUAL EM PAUTA Manoel Antônio dos Santos....................................................................................................10 A FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE: DUAS VISÕES, MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES NO CENÁRIO DA DIVERSIDADE SEXUAL Yurín Garcêz de Souza Santos; Fabio Scorsolini-Comin; Manoel Antônio dos Santos.....................................................................................................................................15 LUDOTERAPIA PSICANALÍTICA NO CONTEXTO DE UM ESTÁGIO CURRICULAR EM ADOÇÃO Marina Vieira Madeira; Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes; Manoel Antônio dos Santos.....................................................................................................................................29 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES IMPLICAÇÕES NAS SOBRE QUESTÕES A DEPRESSÃO VINCULARES PÓS-PARTO MÃE-FILHA: RELATO E SUAS DE UM ATENDIMENTO EM PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO Eliane Albuquerque Drullis Cifali; Regina Célia Ciriano; José Vicente Angelo Rocha; Lionela Ravera Sardelli.......................................................................................................................42 DANIEL, QUE ACREDITA QUE UM DIA PODERÁ SER O QUE SEMPRE FOI, OU SEJA, UMA MULHER: TRANS-FORMAÇÕES NO PROCESSO TERAPÊUTICO DE UMA TRANSEXUAL Yurín Garcêz de Souza Santos; Manoel Antônio dos Santos................................................74 5 Parte II POR UMA CLÍNICA-ESCOLA AMPLIADA: EXPERIÊNCIA DE INSERÇÃO DA PSICOLOGIA NO ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR EM BULIMIA E ANOREXIA JUNTO AO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Érika Arantes de Oliveira-Cardoso; Manoel Antônio dos Santos ..........................................88 DIRETRIZES PSICOTERAPÊUTICAS PARA INTERVENÇÃO COM PACIENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES Manoel Antônio dos Santos, Érika Arantes de Oliveira-Cardoso, Carolina Leonidas, Élide Dezoti Valdanha, Lilian Regina de Souza Costa ..................................................................97 POR UMA PSICOLOGIA SOCIALMENTE ÚTIL: DIÁLOGOS ENTRE PSICOLOGIA ESCOLAR E PSICOLOGIA CLÍNICA Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira; Mônica Cintrão França Ribeiro; Nádia Giuliese .....................................................................................................................103 REFLEXÕES ACERCA DA RELEVÂNCIA SOCIAL-COMUNITÁRIA DAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS EM SAÚDE Leonardo Lopes da Silva......................................................................................................113 A MULTIPROFISSIONALIDADE NA FORMAÇÃO E NA PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE Leonardo Lopes da Silva .....................................................................................................117 ESTÁGIO EM PSICOLOGIA ESCOLAR: COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO Marilda Gonçalves Dias Facci .............................................................................................130 ESTÁGIOS EM PSICOLOGIA E SERVIÇOS-ESCOLA Iraní Tomiatto Oliveira.........................................................................................................146 6 OS SINTOMAS DE NOSSO TEMPO E A APOSTA DO E NO SERVIÇO ESCOLA Maria Cristiane Nali ............................................................................................................153 IMPLANTAÇÃO DO SERVIÇO DE ORIENTAÇÃO AOS PAIS NO CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA: UM PROTOCOLO COMPORTAMENTAL Ana Gabriela Pinheiro S. Annicchino; Jaíne Meireles Rocha; Larissa de Aguirre Silva......................................................................................................................................158 PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO: PRÁTICA CLÍNICA E PROCESSO ENSINOAPRENDIZAGEM Marizilda Fleury Donatelli; Ligia Corrêa Pinho Lopes...........................................................171 OS CUIDADOS DA SAÚDE MENTAL DO PSICÓLOGO: RELATOS DE PROFISSIONAIS DA SAÚDE PÚBLICA Andréa Lucas Alves Calvi; Jaíne Meireles Rocha; Marizete Goveia Alves Dos Santos; Raul De Freitas Dias; Maria da Piedade R. de Araujo Melo.........................................................187 Parte III PSICOLOGIA E ESPIRITUALIDADE Marilia Ancona-Lopez...........................................................................................................221 CIÊNCIA E RELIGIÃO: O ESTUDANTE DE PSICOLOGIA DIANTE DO FENÔMENO RELIGIOSO Eliane de Albuquerque Drullis; José Vicente Angelo da Rocha; Rosa Maria Rodrigues de Oliveira; Maria da Piedade R. de Araujo Melo......................................................................232 7 Parte IV O MODO DE SER PARANÓIDE NO PRIMITIVO E NO PSICÓTICO: UMA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA Wolgrand Alves Vilela...........................................................................................................260 ESQUIZOFRENIA NA VOZ DE QUEM A VIVENCIA Adriana Cabello; Lucas Gobato; Lilian L. Ceregatti; Gisele M. Sampaio; Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo.......................................................................................................275 GRUPO PSICOTERAPÊUTICO PARA PACIENTES DIAGNOSTICADOS COM TRANSTORNO ALIMENTAR: O PAPEL DO PSICÓLOGO Élide Dezoti Valdanha; Manoel Antônio dos Santos ...........................................................311 TRANSTORNO DE PÂNICO E IDEAÇÃO SUICIDA: CARACTERÍSTICAS DE PERSONALIDADE ATRAVÉS DO TESTE DE PFISTER Cicera Andréa Oliveira Brito Patutti; Evandro Gomes de Matos; Anna Elisa VillemorAmaral..................................................................................................................................319 GRUPO DE APOIO MULTIFAMILIAR EM HOSPITAL-ESCOLA: TRABALHANDO A DINÂMICA FAMILIAR NO TRATAMENTO DA ANOREXIA E BULIMIA Carolina Leonidas; Lilian Regina de Souza Costa; Manoel Antônio dos Santos.................338 8 Apresentação A ideia da publicação desse livro digital surgiu a partir do 21º Encontro de Serviços – Escola de Psicologia do Estado de São Paulo e 4º Encontro Nacional de Supervisores de Estágio em Psicologia ocorridos em 2013 na UNIP – Campinas. O objetivo foi reunir um conjunto de artigos sobre temas diversos e atuais em Psicologia que trouxessem reflexões sobre questões contemporâneas, a formação do psicólogo e o exercício profissional. Neste e-book os autores, oriundos de várias universidades brasileiras, apresentam artigos de diferentes campos de pesquisa em Psicologia. Não houve, nesta publicação, a preocupação com a homogeneidade, já que o escopo foi discutir a diversidade e a riqueza do fazer psicológico com contribuições que reflitam o seu desenvolvimento e abram possibilidades de novos fazeres. Esperamos provocar questionamentos que resultem num processo contínuo de reflexão e produção de novos saberes, atendendo a um aspecto importante da universidade que é o de constituir-se em um centro de geração e difusão do conhecimento, articulando as atividades de ensino, pesquisa e extensão, em consonância com as demandas atuais da sociedade. Maria da Piedade R. de Araujo Melo Sílvia Ancona-Lopez Organizadoras 9 ARTIGOS Parte I A ADOÇÃO NO CENÁRIO DOS NOVOS ARRANJOS FAMILIARES: A FAMÍLIA HOMOSSEXUAL EM PAUTA Manoel Antônio dos Santos Resumo No cenário contemporâneo têm emergido novos arranjos familiares. Dentre as novas possibilidades de configuração familiar tem chamado atenção a família constituída por meio da adoção de crianças por casais homoafetivos masculinos e femininos. Considerando-se que este tema é bastante sensível e que comumente desperta opiniões apaixonadas, tanto favoráveis quanto contrárias à prática da adoção sob essas condições, é necessário aproximar-se de tais contextos familiares a fim de investigar suas potencialidades a partir de uma abordagem psicológica. Nesta conferência pretende-se abordar os significados que casais homoafetivos masculinos atribuem à família e à adoção. São elaboradas reflexões a partir dos relatos obtidos com casais que viviam em união estável havia mais de uma década quando adotaram. As entrevistas permitiram elucidar a trajetória do casal, desde o encontro e decisão de constituírem uma vida em comum, até o surgimento do desejo de constituírem família pela via da adoção. Também são enfocadas questões como a transição para a parentalidade e as mudanças instauradas no cotidiano familiar com a chegada das crianças. Os casais têm nítida consciência de seu protagonismo social e da posição que ocupam como pioneiros na prática da adoção formalizada com os nomes dos dois pais (e não apenas no nome de um dos parceiros). Apesar de não haver ainda uma legislação específica que dê respaldo aos casais homossexuais que desejam adotar, nota-se uma disposição em buscar as “brechas” do estatuto legal e contribuir para criar jurisprudência nessa área. Os núcleos familiares constituídos são ancorados em tradições e valores tradicionais, 10 reproduzindo em vários aspectos o modelo hegemônico da família nuclear burguesa. Os casais parentais trazem um claro anseio de serem reconhecidos socialmente como “uma família normal”. Os pais fazem questão de mostrarem que são “iguais, embora diferentes” em relação às outras famílias, demonstrando a diversidade que caracteriza qualquer configuração familiar. Conclui-se que a família constituída por casais homoafetivos e seus filhos adotivos evidencia continuidades e transformações que vêm ocorrendo nas relações de parentesco, conjugalidade e filiação. Palavras-chave: Adoção; Homossexualidade; Família. As configurações familiares discrepantes do padrão tradicional de família questionam aspectos fundamentais associados às formas de união e relações de parentesco. As transformações que vêm ocorrendo nas últimas décadas questionam as fundações culturais e sociais segundo as quais a responsabilidade pela educação e cuidados dos filhos é tida como tipicamente feminina (Ramires, 1997). O fato é que cada vez mais se reconhecem e valorizam os vínculos socioafetivos que sedimentam as relações familiares, em detrimento da vinculação estritamente biológica dos laços consanguíneos. Isso tem contribuído para uma progressiva desnaturalização da família, que evidencia o quanto ela é uma criação humana mutável e contingente, que está reinventando-se e alterando-se a cada época. A construção de arranjos divergentes dos padrões normativos da sociedade ocidental tem atraído a atenção de psicólogos, antropólogos, cientistas sociais e profissionais de Direito. A construção da conjugalidade homossexual, base para a formação da família homoafetiva, enfrenta diversos desafios e obstáculos (Mello, 2005; Moscheta, 2004). No plano jurídico, a entidade familiar ainda é reconhecida pelo Código Civil Brasileiro como a união estável ou em matrimônio entre um homem e uma mulher, ou pela comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes. Não há imposição do casamento, mas permanece ainda a restrição quanto à existência de 11 dois sexos diferentes para o reconhecimento de um casal, ainda que alguns juristas apontem a contradição legal existente, que priva os indivíduos homossexuais de seus direitos. Nesse sentido, são buscadas algumas brechas na lei para que se possa considerar o par do mesmo sexo como entidade conjugal e base para uma unidade familiar. Apesar de corresponder a uma prática milenar, a adoção ainda hoje é atravessada por inúmeros mitos, tabus, preconceitos e estereótipos que se encontram enraizados no imaginário coletivo (Schetini, 1998). A prática da adoção de crianças por casais homoafetivos suscita diversos temores, questionamentos e estranhamento por parte das pessoas. Os dispositivos legais que regulam a adoção no Brasil (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069, de 1990, complementado pela Nova Lei da Adoção, Lei 12.010, de 2009), são omissos e silenciam em relação à família homossexual. Por outro lado, não há nos documentos legais qualquer restrição à orientação sexual do requerente solteiro no processo de adoção. Solteiros podem adotar, assim como casais, se estiverem em união civil ou união estável. Mas o casal, aos olhos da lei, é entendido como formado pela união entre um homem e uma mulher, e não entre dois homens ou duas mulheres. Estudos no Brasil mostram que são inúmeros os casos de homossexuais que têm filhos: casais que recorrem às técnicas de reprodução assistida (inseminação artificial, barriga de aluguel), filhos de relações heterossexuais anteriores, adoção por um dos parceiros ou adoções à brasileira, adoções por homossexuais solteiros (Grossi, 2003; Uziel, 2008). Atualmente, já são diversos casais homoafetivos que tiveram a adoção deferida pelo Judiciário. Por isso é imprescindível compreender os significados que casais homoafetivos masculinos atribuem à família e à adoção. As reflexões aqui elaboradas advêm dos relatos de pesquisa obtidos com casais que viviam em união estável havia mais de uma década quando adotaram. As entrevistas permitiram elucidar a trajetória do casal, desde o encontro e decisão de constituírem uma vida em comum, até o surgimento do desejo de constituírem família pela via da adoção. 12 Os casais têm nítida consciência de seu protagonismo social e da posição que ocupam como pioneiros na prática da adoção formalizada com os nomes dos dois pais (e não apenas no nome de um dos parceiros). Apesar de não haver ainda uma legislação específica que dê respaldo aos casais homossexuais que desejam adotar, nota-se uma disposição em buscar as “brechas” do estatuto legal e contribuir para criar jurisprudência nessa área. Os núcleos familiares homoafetivos constituídos são ancorados em tradições e valores tradicionais, reproduzindo em vários aspectos o modelo hegemônico da família nuclear burguesa. Os casais parentais trazem um claro anseio de serem reconhecidos socialmente como “uma família normal”. Os pais fazem questão de mostrarem que são “iguais, embora diferentes” em relação às outras famílias, demonstrando a diversidade que caracteriza qualquer configuração familiar. Conclui-se que a família constituída por casais homoafetivos e seus filhos adotivos evidencia continuidades e transformações profundas que vêm ocorrendo nas últimas décadas nas relações de parentesco, conjugalidade e filiação. Considerações Finais Vimos que no cenário contemporâneo têm emergido novos arranjos familiares. Dentre as novas possibilidades de configuração familiar tem chamado atenção a família constituída por meio da adoção de crianças por casais homoafetivos masculinos e femininos. Considerando-se que este tema é bastante sensível e que comumente desperta opiniões apaixonadas, tanto favoráveis quanto contrárias à prática da adoção sob essas condições, é necessário aproximar-se de tais contextos familiares a fim de investigar suas potencialidades a partir de uma abordagem psicológica. Percebeu-se que os significados que os casais homoafetivos masculinos atribuem à família e à adoção são pautados em valores convencionais, e que esses 13 protagonistas do cenário da adoção desejam “naturalizar” essa prática, buscando legitimidade junto à população, assim como o reconhecimento de seus direitos. Referências Mello, L. (2005). Novas famílias: Conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond. Moscheta, M. S. (2004). Construindo a diferença: A intimidade conjugal em casais de homens homossexuais. Dissertação de mestrado não-publicada, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP. Ramires, V. R. (1997). O exercício da paternidade hoje. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. Schettini, L. F. (1998). Compreendendo os pais adotivos. Recife: Bagaço. Uziel, A. P. (2008). Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond. Sobre o autor Manoel Antônio dos Santos: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPSUSP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected] Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP. 14 A FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE: DUAS VISÕES, MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES NO CENÁRIO DA DIVERSIDADE SEXUAL Yurín Garcêz de Souza Santos Fabio Scorsolini-Comin Manoel Antônio dos Santos Introdução Este estudo insere-se no quadro de transformações recentes que atravessam o campo social e jurídico (Dias, 2003) e impactam especialmente a família. Antes restrita ao arranjo conjugal clássico, base da família nuclear, hoje a família deixa de ter um único modelo proeminente para ser monoparental, recomposta, homossexual, entre outras configurações possíveis, abrigando padrões de parentalidade e conjugalidade alternativos. A família homoafetiva é uma modalidade de arranjo familiar que vem conquistando crescente visibilidade nos últimos tempos. As recentes transformações ocorridas na relação família-indivíduo-sociedade são ressignificadas nessa nova possibilidade de configuração familiar, que destoa do princípio fundamental que rege o conceito de família: a diferenciação sexual, isto é, a diferença anatômica entre os sexos (Passos, 2005; Perelson, 2006; Perroni & Costa, 2008). Em contrapartida, a família constitui a instituição mais antiga da sociedade, sendo, também, o primeiro espaço que promove a satisfação das necessidades básicas dos indivíduos e, ao mesmo tempo, o lugar que propicia o desenvolvimento da personalidade e da socialização (Salomé, Espósito & Moraes, 2007). Contudo, tratando-se da família homoparental, deve-se levar em consideração que tanto a noção de homossexualidade quanto de família são categorias socialmente construídas e, por conseguinte, produtos históricos resultantes de embates políticos, sociais e culturais que definem e redefinem seus contornos a cada época. Ainda que a família nuclear, modelo inspirador da sociedade ocidental, esteja tornando-se, cada vez mais, uma experiência minoritária (Uziel et al., 2006), com o surgimento e disseminação de arranjos familiares distintos, a ideia tradicional de família formada exclusivamente a partir de uma relação heterossexual, monogâmica e procriadora do casal parental acaba por fixar, no imaginário social, uma norma que 15 serve de fundamento para a classificação de qualquer outra forma de constituição familiar. Nesse sentido, a família nuclear tende a ser vista como natural, imutável e inequívoca, descaracterizando o conceito de família como entidade socialmente construída, assim como ocorre, mutatis mutandis, com a homossexualidade (Santos & Moscheta, 2006). As famílias constituídas a partir de uniões homossexuais e, especificamente, por homens homossexuais, contestam a heteronormatividade e representam um desafio para as disciplinas que tratam da parentalidade, como a Antropologia, o Direito e a Psicanálise, tornando necessário rever conceitos e concepções consagradas desses campos de saber. No que concerne à parentalidade, Zorning (2010) afirma que este é um termo de uso relativamente recente, que foi empregado inicialmente na literatura científica francesa a partir da década de 1960 com o intuito de marcar a dimensão do processo de construção do exercício da relação dos pais com os filhos. Quando se leva em consideração a homoparentalidade masculina – neologismo criado pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas em Paris, em 1997 (Perroni & Costa, 2008) – deve-se atentar para o fato de que a homossexualidade refere-se unicamente ao exercício da sexualidade por determinado indivíduo e que a prática das funções parentais não exige, em absoluto, esse exercício. Ou seja, para os referidos autores, não existe relação entre orientação afetivo-sexual ou práticas sexuais de um indivíduo e sua capacidade para exercer a parentalidade. Contudo, o desejo de inserir-se em um modelo de família que esteja baseado nos moldes da família nuclear, por meio da conjugalidade homoafetiva, acaba por gerar resistências em alguns segmentos sociais, que são ratificadas pela inexistência de leis que legitimem a parceria civil e a conjugalidade entre indivíduos do mesmo sexo. A questão torna-se ainda mais complexa quando existem filhos envolvidos nesse processo, isto é, quando a questão extrapola os limites da conjugalidade e adentra o campo da parentalidade (Perroni & Costa, 2008). Na sociedade contemporânea, como mostra Manzi-Oliveira (2009), a função de pai está estritamente relacionada à figura de provedor das condições materiais de subsistência, sendo aquele membro que oferece suporte material e proteção à família e que não geralmente não tem envolvimento direto no cuidado com os filhos. 16 Assim, os homens mais afastados das tarefas domésticas desempenhariam um papel importante para a constituição do caráter da criança, funcionando como modelo de poder e autoridade a ser internalizado. Seguindo essa linha de raciocínio, Perroni & Costa (2008) afirmam ser recorrente, no imaginário social, a curiosidade sobre as distinções de papéis parentais em arranjos formados por pares homoafetivos. Afinal, quem seria o “pai” e quem seria a “mãe” em uma família homoparental? Entretanto, ainda segundo esses autores, esse seria um falso dilema, uma vez que esse questionamento desconsidera o fato de que um homem gay não se transforma em uma mulher devido à sua inclinação afetivo-sexual ser orientada para alguém do mesmo sexo biológico que o seu, da mesma maneira que uma mulher lésbica não se converte em um homem pelo mesmo motivo. Em se tratando da função parental, a função “paterna” ou “materna” pode ser desempenhada por qualquer um dos parceiros, mesmo que seja, por vezes, exercida de forma mais evidente por um ou outro dos membros da parelha que compartilha um projeto de vida afetiva, sem que isso os transforme em alguém do sexo oposto ao seu (Perroni & Costa, 2008). Complementando essas ideias, Saffioti (1987) mostra que a paternidade deve – ou ao menos deveria ir – além da função tradicional de provedor, que é um legado da sociedade patriarcal e sexista. E mais: o homem deveria refletir sobre essa dimensão da vida e da paternidade que é o cuidado parental, que não se resume apenas ao trabalho de alimentar, banhar ou trocar as fraldas de um bebê, por exemplo, mas inclui também o compartilhamento de atividades prazerosas a partir da convivência com os filhos. O cuidado parental implica, ainda, em observar e contribuir para com o processo de desenvolvimento do ser em desenvolvimento, apreender a perspectiva peculiar da criança, seus medos, ansiedades, angústias e preocupações, assim como sua espontaneidade, sua maneira direta de expressar emoções e demonstrar suas necessidades. Isso mostra-se importante, segundo a referida autora, uma vez que possibilita ao homem pai uma oportunidade para repensar sua própria vida e reavaliar os valores que a pautam, o que o auxilia a desnaturalizar o modelo de paternidade enraizado no imaginário da sociedade heteronormativa e homofóbica. 17 Desse modo, o convívio entre pais e filhos não seria benéfico apenas para as crianças, mas traria elementos valiosos e ricos, sobretudo, para o homem empenhado no exercício da função paterna, sendo essa atitude não apenas um dever, mas antes um direito do homem (Saffioti, 1987). Entretanto, em que pesem as mudanças e transições operadas na noção de família, ainda prevalece a visão tradicional. Sendo moldada por elementos culturais, econômicos, sociais, de gênero e de etnia, a maneira pela qual um homem relaciona-se com seus filhos estabelece e atesta o que é ser homem, além de definir qual é a sua função e seu papel dentro de um determinado contexto interacional. No marco definido pelos elementos aqui arrolados, a paternidade já foi descrita como função masculina, “coisa de homem”, que delineia a identidade no sentido de que, se esse homem é pai, ele é, de fato, homem. A paternidade, dessa maneira, afirma e confirma a posse da masculinidade, na medida em que oferece um dos caminhos mais desejados para levar um homem a aceder ao universo masculino adulto, enquanto na mulher a condição feminina é reafirmada pela maternidade. Por ser contestado com certa facilidade no caso do homem, esse caminho de mostrar ao mundo que se é homem via paternidade é um tanto quanto mais complexo, ainda mais quando o homem em questão tem uma orientação homossexual (Moris, 2008). Objetivos O presente estudo teve como objetivo apresentar novas possibilidades de ser família – colocando em cena a família homoafetiva, a partir da perspectiva de seus próprios protagonistas. Como fundamentação teórica também se tece uma discussão do contexto de construção histórica dos conceitos de paternidade, parentalidade e homossexualidade, mais especificamente na conjunção desses três elementos, que aqui aparece representada no construto da homoparentalidade masculina. Ademais, se objetivou compreender de que modo a homoparentalidade é construída e vivida em uma sociedade heteronormativa. A hipótese a ser investigada é se esse tipo de parentalidade pode ser visto como uma busca pela desnaturalização do modelo tradicional de família – a família nuclear – que é apresentado como norma, enraizada no imaginário social como única possibilidade correta e possível de constituição familiar. 18 Método Este estudo de caso é um recorte de uma investigação mais ampla, que visa investigar a homoparentalidade masculina. Tendo em vista as novas configurações familiares que, a cada dia, têm ganhado visibilidade no contexto brasileiro e global, entende-se ser o estudo de caso uma opção metodológica pertinente, uma vez que permite conhecer em profundidade determinada realidade pouco explorada. O caso aqui relatado diz respeito às histórias de Paulo e Vinícius (nomes fictícios), dois homossexuais solteiros e pais. O contato com os participantes deu-se por meio da rede de contatos profissionais dos pesquisadores. Ambos são integrantes de um grupo de reflexão comunitário, voltado para a discussão da temática da diversidade sexual. No caso de Paulo, a experiência da paternidade deu-se por meio de uma relação heterossexual anterior, da qual resultou um filho biológico, Gustavo, hoje com 16 anos. A entrevista foi realizada na sala da residência do participante, onde também vive a mãe do entrevistado e, eventualmente, seu filho. Já no caso de Vinícius, o processo de filiação deu-se por meio da adoção. O participante adotou a filha de uma prima, que na época em que engravidou tinha 17 anos e não apresentava condições nem desejo de cuidar da criança. A entrevista foi realizada na sala da casa do participante, que mora sozinho e, eventualmente, recebe sua filha, Marina, de cinco anos, que vive com uma tia-avó, irmã da mãe de Vinícius. Tabela 1. 19 Características sociodemográficas dos participantes e dos filhos Participantes Idade Profissão Filho(a), idade (anos) Paulo 40 (anos) Auxiliar de Gustavo, 16 Enfermagem Vinícius 39 Fotógrafo Marina, 5 As entrevistas se basearam no método de História de Vida. Foi solicitado aos participantes que contassem, de forma livre e como melhor lhes parecesse, suas histórias de vida, sem que houvesse a necessidade de obedecer uma sequência cronológica dos fatos para construir esse relato. Esse recurso metodológico tem o propósito de permitir alcançar uma visão ampliada da vida dos entrevistados, no intuito de que se permita conhecer aspectos gerais de suas histórias que possam ser relevantes para a análise do material do estudo. Ao final, foi pedido que os participantes respondessem a algumas questões adicionais elaboradas pelos pesquisadores com base na literatura da área, com o propósito de complementar os dados fornecidos. Assim, caso não tivessem emergido espontaneamente no discurso dos participantes, eram formuladas questões relativas a pontos específicos de suas trajetórias de vida, principalmente no que se refere à assunção da homossexualidade, aspectos da vida familiar, suas noções de paternidade e o que eles entendem por família. Esse segundo momento da entrevista teve a função de aprofundar os aspectos já relatados pelos participantes na primeira parte, além de complementar informações relacionadas diretamente aos objetivos do estudo. As entrevistas foram audiogravadas e tiveram duração de 1h40 e 40 minutos, respectivamente. Posteriormente, os registros foram transcritos na íntegra e literalmente, constituindo, assim, o corpus de análise. Em seguida, o material foi submetido à análise de conteúdo na modalidade temática, que permitiu elencar os núcleos de significado que emergiram nos relatos. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a fim de que um acordo de confidencialidade fosse firmado entre pesquisadores e participantes, garantindo, assim, o sigilo em relação às informações fornecidas e o 20 princípio de que os dados obtidos no estudo serão utilizados apenas para fins acadêmicos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição à qual os pesquisadores são vinculados. Resultados e discussão A partir do corpus de análise, constituído pelas transcrições literais das entrevistas realizadas, foi possível identificar três eixos temáticos: (1) a construção da sexualidade; (2) as relações familiares constituídas ao longo da vida de cada um; e (3) a forma como cada participante se constituiu como pai. A história de Paulo: identificar-se para diferenciar-se No que se refere à construção de sua sexualidade (categoria temática 1), Paulo afirma que, na tentativa de ser um homem diferente daquele modelo que estava colocado em sua realidade familiar, começou a se relacionar com homens, afetiva e sexualmente, buscando com isso “aprender a ser homem”. Assim, por meio da imitação, Paulo buscava identificar-se com os homens com os quais se relacionava afetiva e sexualmente, conseguindo, assim, se distanciar do jeito de ser de seu “pai de criação”. Paulo queria aprender, com os homens, a como se relacionar com as mulheres, ainda que afirme sentir-se atraído por pessoas do mesmo sexo desde os seis anos de idade. Desse modo, Paulo acabou por se envolver afetivamente com outros homens e “apaixonando-se” pelo masculino, até que decidiu assumir sua orientação homoafetiva. Outro fator relevante na história de vida de Paulo e que é passível de análise diz respeito às relações familiares estabelecidas pelo entrevistado (categoria temática 2). Paulo foi criado por sua mãe biológica e seu marido, mesmo sendo filho biológico do primogênito dos patrões de sua mãe. O entrevistado afirma que não conseguia identificar-se com seu pai de criação e, concomitantemente, não era reconhecido como filho de seu pai biológico, tendo, assim, dois pais e nenhum, pois não se reconhecia em nenhum deles. 21 Em contrapartida, Paulo afirma que a figura de sua mãe foi o elemento vital que lhe inspirou “força e caráter”, além de ser a pessoa que o auxilia, hoje em dia, na relação com seu filho, Gustavo. De acordo com o relato do participante, esses aspectos de sua relação com seus pais foram de extrema importância para a construção de sua sexualidade, sendo possível, então, encontrar um paralelo entre os dois primeiros eixos temáticos selecionados para a presente análise. Em outras palavras, a relação de Paulo com seus pais tem, de acordo com o entrevistado, consonância com a sua constituição como pai. Dessa forma, o participante afirma tentar transmitir para Gustavo os valores que aprendera em casa, principalmente com sua mãe. Assim, pode-se identificar, em seu relato, a transmissão intergeracional que marcou sua trajetória, dando continuidade à história herdada de sua família de origem. Por outro lado, o fato de ele não dividir o mesmo teto com o filho, que apenas visita-o em alguns momentos, parece reeditar sua história de desamparo pelas figuras paternas (o pai biológico e de criação). Em relação à forma como se constituiu como pai (categoria temática 3), podese afirmar que, para Paulo, ser pai transcende o modelo que está impresso no imaginário social sobre o conceito de paternidade, sendo esta uma experiência única para cada indivíduo. Seguindo o fio dessa argumentação, o participante reconhece, na paternidade, um elo, uma conexão profunda entre pai e filho, que se aproxima, de acordo com sua percepção algo idealizada acerca dessa relação, à “magia”, ao encantamento. Biologicamente, afirma o participante, todos os homens apresentam a capacidade de serem pais, contudo, considera que qualquer tentativa de explicação do sentido de paternidade é muito pobre para significar o que consiste essa experiência de fato. Ademais, para o entrevistado só se aprende a ser pai quando se está imerso em uma relação de afinidade com o filho, evidenciando, em sua fala, o caráter de construção compartilhada do significado de parentalidade, sendo este unicamente estabelecido na relação pai-filho. Para Paulo, em seus aspectos básicos, não existem diferenças significativas entre a parentalidade exercida por um homem gay e a parentalidade exercida por um homem heterossexual, embora este último seja o modelo reconhecido e legitimado como verdadeiro, único e respeitável em uma sociedade heteronormativa. 22 A história de Vinícius: o despertar de um desejo Os mesmos três eixos temáticos puderam ser identificados a partir da análise da entrevista realizada com Vinícius. Assim, no que diz respeito à construção de sua sexualidade (categoria temática 1), é possível depreender do relato do participante que esta deu-se como um despertar. Vinícius conta que, até seus 21 anos, não tinha se dado conta de seu desejo por homens, afirmando, ao mesmo tempo, que não entendia a reação de seus amigos heterossexuais ao se depararem com uma mulher. Mesmo tendo mantido alguns relacionamentos heterossexuais de longa duração, o entrevistado afirma que só foi entender, de fato, a força e o significado do desejo quando olhou para um homem com intenções que iam além de uma relação de amizade. O participante indaga-se sobre a origem desse desejo por homens, reconhecendo seus vários relacionamentos anteriores com mulheres como expressão de uma possível repressão de seu desejo homossexual. Para Vinícius, as dificuldades em relação à assunção de sua homossexualidade não estão diretamente relacionadas à orientação sexual, mas sim, ao fato de ser negro. O participante afirma que tinha dificuldade em entender a aproximação das pessoas, se estavam procurando sexo casual ou um relacionamento sério, e atribui essa confusão mais à cor de sua pele do que ao seu desejo por pessoas do mesmo sexo. Essa dúvida em relação às reais intenções do outro tem como pano de fundo a crença disseminada na cultura de que o homem negro é um prodígio de virilidade, encarnação da potência, graças ao seu vigor e compleição física. Séculos de relações promíscuas, muitas vezes abusivas, entre senhores e escravos na sociedade colonial, certamente contribuíram para reforçar esse estereótipo sexual que cerca o corpo negro no imaginário social. As relações familiares estabelecidas por Vinícius ao longo da vida (categoria temática 1) e a forma como ele entende família podem ser relacionadas diretamente ao modo como construiu o “ser pai” em sua experiência pessoal (categoria temática 3), o que permite estabelecer uma aproximação entre esses eixos temáticos selecionados para análise. O participante afirma, em seu relato, que o mais importante em uma família é o amor, derivando desse sentimento básico o respeito e o carinho, que seriam as bases para as trocas afetivas estabelecidas entre os membros da célula familiar. 23 Nesse sentido, Vinícius atribui o seu desejo de ser pai às suas relações familiares solidamente constituídas. Isso fica evidenciado quando Vinícius percebe-se, no decorrer de seu relato, como uma pessoa “egoísta”. Afirma que tem muito medo da solidão e atribui esse fato à forma pela qual os relacionamentos em sua família são estabelecidos, sempre pautados em estreita proximidade e contato afetivo, derivando daí o seu desejo pela paternidade. É interessante notar que, no caso de Vinícius, parece não existir, até o momento da entrevista, a preocupação por parte do participante quanto à assunção de sua homossexualidade. O entrevistado afirma que seu núcleo familiar mais próximo, formado pela mãe e irmã, é consciente de seu desejo e de suas relações com outros homens, entretanto, o resto da família não tem conhecimento sobre esse aspecto de sua vida, incluindo sua filha. Vinícius tampouco mostra preocupação com a eventual descoberta de sua condição homossexual por parte da filha, afirmando que, para ele, a revelação acontecerá naturalmente com o passar dos anos. Assim, um aspecto relevante que emerge na entrevista com Vinícius é a forma particular que o assumir-se gay (“sair do armário”) pode adquirir em sua trajetória de vida. Esse participante revela sua condição homossexual apenas para algumas pessoas seletas de sua rede social, de modo que o modo como ele exerce os cuidados parentais está atravessado por esse “segredo” guardado a sete chaves e que é mantido na relação com a filha. Considerações finais A partir da análise empreendida, pôde-se constatar que o contexto da família homoparental exibe diferenças em sua forma de organização e funcionamento, isto é, dentro de uma das várias possibilidades de arranjos familiares existem variadas formas de composição da família. Nesse sentido, como afirma Zambrano (2006), existem três maneiras de se exercer a homoparentalidade. A primeira mostra-se quando existem filhos concebidos em relações heterossexuais anteriores, como no caso de Paulo, que teve seu filho, Gustavo, a partir de uma relação heterossexual anteriormente estabelecida. A segunda possibilidade de estruturação da família homoparental diz respeito à adoção legal que, contudo, frequentemente é feita em nome de apenas um dos parceiros devido às barreiras decorrentes da inexistência 24 de uma legislação brasileira que proteja os direitos da família homoafetiva, em face dos preconceitos que circundam a homossexualidade. Essa segunda forma de configuração familiar pode ser exemplificada com o caso de Vinícius que, por meio da adoção, hoje é pai de Mariana. A terceira maneira de formação da família homoparental vem acompanhada por inovações tecnológicas, como a inseminação artificial no caso de casais de mulheres que têm como doador de sêmen geralmente um amigo gay ou um desconhecido (Zambrano, 2006). Existe ainda, de acordo com Grossi (2003), uma quarta maneira de exercício da homoparentalidade: a chamada coparentalidade entre gays e lésbicas, que pode se dar entre dois casais, entre um casal de lésbicas e um gay ou entre um casal de gays e uma lésbica. Em relação a essa quarta possibilidade de ser família, pode-se considerar o exemplo de Paulo. A mãe de seu filho biológico, após a separação do casal, acabou por se envolver afetivamente com mulheres e, atualmente, vive em união estável com outra mulher, o que faz com que Gustavo tenha a guarda compartilhada entre seu pai e sua mãe e ainda receba os cuidados parentais por parte da companheira da mãe. Se analisados os significados que os entrevistados atribuem à experiência da paternidade, pode-se notar que, mesmo com diferenças apreciáveis, tanto Paulo quanto Vinícius apresentam uma visão um tanto quanto ampliada do conceito de parentalidade, quando comparados a outros pais. Nesse sentido, em estudo realizado por Freitas et al. (2009), foram analisados os significados que homens homossexuais atribuíam à experiência da paternidade. Por meio da análise do discurso dos entrevistados pôde-se entender que os participantes concebiam a paternidade como um novo encargo social, vinculando-a mais à provisão material da família do que ao espaço de envolvimento afetivo com os filhos. Já em outro estudo, realizado por Moris (2008), com pais homossexuais que já haviam vivenciado anteriormente um relacionamento heterossexual estável nos quais desempenharam o papel de pai, a concepção de paternidade para os 15 homens entrevistados estava intimamente inserida no contexto desses antigos relacionamentos heterossexuais. Ou seja, a concepção de paternidade desses homens era tradicional, própria do modelo nuclear de família que fora constituído com a complementaridade de um pai e de uma mãe. Assim, depois de aceitarem 25 sua homoafetividade e de separarem-se dos respectivos parceiros heterossexuais anteriores, esses pais viam-se (e agiam) no pleno exercício de sua paternidade como homens pais divorciados. Pode-se depreender, então, comparando os dois estudos, que ao se reconhecerem seja como heterossexuais ou homossexuais, os homens que são pais acabam por considerar sua função do mesmo modo, isto é, percebem-se como responsáveis pelo sustento da família. Portanto, ainda se mostram muito apoiados no modelo tradicional de família vigente em nossa sociedade. Entretanto, ainda que os achados das referidas pesquisas tenham sido corroborados de um modo geral pelos participantes do presente estudo, tanto Paulo quanto Vinícius apresentaram, ao mesmo tempo, uma visão ampliada do conceito de paternidade, uma vez que, para eles, a paternidade extrapola o simples desempenho do papel de provedor e mantenedor das condições materiais que medeiam a relação pai-filho. Mais do que isso, a paternidade está baseada nas relações afetivas estabelecidas nessa díade. Assim, levando-se em consideração os relatos apresentados pelos entrevistados e a multiplicidade atual de configurações familiares – família conjugal clássica, monoparental, recomposta, homossexual – fica evidente que a paternidade na contemporaneidade deixou de ser estritamente biológica para se tornar socioafetiva. A partir das análises das entrevistas e das discussões com a literatura, apontase a necessidade de maior emprenho das disciplinas que versam sobre a parentalidade, como a Psicanálise, o Direito e a Antropologia, no sentido de que os discursos dos que vivem em contextos de configurações familiares distintas daqueles modelos estabelecidos como norma na sociedade possam também ser legitimados como válidos e possíveis. Dar visibilidade a essas novas possibilidades de ser família faz com que elas alcancem notoriedade e, assim, possam contribuir para desconstruir conceitos enraizados no imaginário social. O caráter socialmente construído da noção de família, da parentalidade e da própria homossexualidade pode ser evidenciado nos relatos produzidos pelos protagonistas incluídos no presente estudo, refletindo a construção de um novo conceito, a homoparentalidade, que por sua vez está ancorado na percepção dos próprios indivíduos que a 26 exercem. Ademais, os relatos obtidos nesta investigação dão testemunho da necessidade de desnaturalização dos discursos hegemônicos. É importante salientar que afirmar a existência de novas formas de ser família não significa o mesmo que dizer que o modelo tradicional de família – a família nuclear – esteja deixando de existir, mas apenas que novas possibilidades estão surgindo no cenário contemporâneo (Passos, 2005) e que estas demandam o olhar das disciplinas que se propõem a discuti-las. Ou seja, a teoria deve estar pautada na prática individual, na singularidade que compõe cada caso, para que a legitimação da diferença prospere, facilitando, assim, o florescimento de padrões menos estereotipados de pensamento. O importante é que se atente para o fato de que os novos arranjos familiares devem ser examinados, assim como o padrão tradicional de família, como possibilidade legítima para aqueles que o vivenciam, deixando de lado os discursos patologizantes e preconceituosos sobre essas formas de ser família. Referências Dias, M. B. (2003). Paternidade homoparental. In: Direito de Família e psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago. Freitas, W. M. F., Silva, A. T. M. C., Coelho, E. A. C., Guedes, R. N., Lucena, K. D. T., & Costa, A. P. T. (2009). Paternidade: responsabilidade social do homem no papel de provedor. Revista de Saúde Pública, 43(1), 85-90. Grossi, M. P. (2003). Gênero e parentesco: famílias gays e lésbicas no Brasil. Cadernos Pagu, 21, 261-280. Manzi-Oliveira, A. B. (2009). Adoção por casais homoafetivos: relato de seus protagonistas. Monografia de conclusão do Programa de Optativo de Bacharelado em Psicologia – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. Moris, V. L. (2008). Preciso te contar? Paternidade homoafetiva e a revelação para os filhos. Tese de Doutorado não-publicada – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Passos, M. C. (2005). Homoparentalidade: uma entre outras formas de ser família. Psicologia Clínica, 17(2), 31-40. 27 Perelson, S. (2006). A parentalidade homossexual: uma exposição do debate psicanalítico no cenário francês atual. Revista Estudos Feministas, 14(3), 709730. Perroni, S. & Costa, M. I. M. (2008). Psicologia clínica e homoparentalidade: desafios contemporâneos. Fazendo Gênero 8: Corpo, violência e poder. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Saffioti, H. I. B. (1987). O poder do macho. São Paulo: Moderna. Salomé, G. M., Esposito, V. H. C., & Moraes, A. L. H. O significado de família para casais homossexuais. Revista Brasileira de Enfermagem, 60(5), 559-563. Santos, M. A. & Mosheta, M. S. (2006). Metáforas da vida a dois: sentidos do relacionamento conjugal produzidos por um casal homoafetivo. Revista Brasileira de Sexualidade Humana, 17(2), 217-232. Uziel, A. P., Andrade, R., Antonio, C. A. O., Ferreira, I. T. O., Machado, R. S., Medeiros L. S. M., Moraes, M. B., & Tavares, M. (2006). Parentalidade e conjugalidade: aparições no movimento homossexual. 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Pesquisador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq) e do grupo A Análise do Discurso e suas Interfaces (AD-USP-CNPq). E-mail: [email protected] Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPSUSP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected] 28 LUDOTERAPIA PSICANALÍTICA NO CONTEXTO DE UM ESTÁGIO CURRICULAR EM ADOÇÃO Marina Vieira Madeira Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes Manoel Antônio dos Santos Introdução A adoção, de um modo geral, é uma prática realizada desde os primórdios da humanidade. Seus objetivos e motivações foram estabelecidos e remodelados de acordo com os costumes e crenças de cada época. O contexto histórico da adoção passa, portanto, por momentos em que foi supervalorizada, como no Antigo Egito, assim como por momentos em que foi praticada de forma descontrolada e desrespeitosa, como por meio do tráfico de crianças que perderam os pais no pósSegunda Guerra Mundial (Pereira, 2011). Recentemente, em 2009, foi promulgada a Nova Lei de Adoção (Lei n. 12.010/2009), que tem como foco o bem-estar e o desenvolvimento da criança, sendo também um meio legal de proteção à família que vai se formar a partir da adoção (Costa et al., 2011). Essa lei vai ao encontro do conceito de “adoção moderna” (Pilotti), que denota a busca por uma família para a criança, ao invés de uma criança para a família, como na adoção clássica. Contudo, Paiva (2004) ressalta que, apesar dessa atual mudança de concepção geral, a realidade é que aspectos histórico-culturais muitas vezes ainda interferem prejudicialmente no olhar para os interesses da criança, nem sempre garantindo a proteção da mesma ao colocá-la em uma família substituta. Nesse sentido, é importante pensar que a Nova Lei de Adoção é um ponto de partida fundamental para uma mudança significativa das percepções acerca desta prática, mas é necessário cuidado e atenção constantes na hora de transformar os preceitos legais em ação. França (2001) define adoção como um encontro de necessidades, ou seja, é o “encontro da necessidade da criança de estabelecer um campo psíquico (entre a imediatez biológica e a perenidade) e da necessidade do adulto de transcender sua 29 condição mortal através da filiação psíquica” (p. 79). Além disso, ao viver o caos desintegrador do pós-nascimento, a criança precisa de um ambiente acolhedor, sendo o adulto, no caso os pais adotivos, o responsável por oferecer esse ambiente ao recém-nascido e, de alguma forma, dar sentido à experiência vivida (Maggi, 2009). Hamad (2001) segue a mesma direção, colocando a vida da criança como fruto de desejos, tanto daqueles que a aceitaram como ela é, quanto dela mesma que aceitou viver, mesmo com as condições complicadas, considerando fundamental valorizar a escolha da própria criança para que a adoção não se torne algo difícil e imprevisível. A família adotiva é permeada por fantasias inconscientes, assim como todas as famílias, mas, na primeira, a quantidade de emoções envolvidas é ainda maior (Rosa, 2008). Como exemplo de fantasias inconscientes presentes na criança adotada, a referida autora menciona a existência de uma crença de que foi por não merecer o amor da mãe que ela foi colocada para adoção, de que a culpa por ter sido abandonada é dela e não das dificuldades ou impossibilidades dos pais, o que provoca na criança o sentimento de que não merece ser amada. Outro exemplo é a fantasia inconsciente referente ao medo da perda, sendo comum a utilização de estratégias para se proteger contra novas perdas, contra um novo abandono, por meio da evitação de emoções fortes e do engajamento em relacionamentos mais profundos. Isso pode ser sentido pela mãe adotiva como uma rejeição. Se não houver o devido preparo para lidar com essa situação, pode acarretar uma permissividade diante do filho, em uma falta de apropriação, que pode ser por ele sentida como uma nova rejeição. Essa permissividade, ou até mesmo a ideia incorporada de que se devem evitar novas separações e sofrimentos à criança adotada, vai ao encontro do que Hamad (2001) assinalou sobre não permitir dar à criança seu estatuto de criança como qualquer outra. Em contrapartida, segundo Gomes (2006), para Winnicott a questão das fantasias inconscientes ou desejos dos pais não é tão relevante para o desfecho da adoção, sendo, porém, realmente fundamental que exista uma capacidade da família de cuidar da criança, estando dispostos a adaptarem-se às necessidades da mesma ao longo de seu processo de amadurecimento. Winnicott (1997) acredita que uma história de adoção pode ser uma adoção humana comum, desde que o 30 processo de adotar transcorra bem, ou seja, depende fundamentalmente da história inicial do bebê. Com a vivência de muitas falhas básicas iniciais, envolvendo necessariamente um fracasso em relação ao que Winnicott denominou preocupação materna primária e holding por parte da mãe biológica, a criança que foi abandonada busca, ao longo de sua vida, recursos para a reparação de tais falhas. O encontro com a mãe adotiva pode ser muito bem-sucedido, haja vista que, segundo Briani (2007), a mãe adotiva pode suprir necessidades básicas da criança, à medida que estabelece com ela uma relação íntima, calorosa, regular e constante. Além disso, pode desenvolver também uma capacidade de holding, ajudando seu filho a sentirse compreendido e contido em suas angústias e agonias primitivas. A angústia de separação é muito presente na prática clínica com pessoas adotadas, sendo que os mecanismos de defesa mais frequentemente percebidos nessas pessoas são: repressão, deslocamento e negação dos afetos (Briani, 2007). Em consequência do exposto, e mais ainda como parte do próprio desenvolvimento tanto de crianças adotadas como não adotadas, a criança pode apresentar uma agressividade aparentemente sem motivos, ou de difícil compreensão. Contudo, o olhar winnicottiano traz a ideia de que é pela destruição dos objetos que o bebê descobre o mundo como estando lá desde sempre, sendo que ocorre a transição do mundo dos objetos subjetivos para os objetos objetivamente percebidos (Tomassi, 1997). A partir dessa percepção é possível pensar na agressividade de uma forma mais positiva, voltada para uma questão de motilidade, de busca por compreensão e adaptação ao ambiente. Descrição do paciente Lúcio (nome fictício) é um menino de 10 anos, filho de Cláudia, que o adotou quando ele ainda era recém-nascido. Lúcio tem um irmão mais velho, também adotivo (Vinícius), que apesar de mais velho foi adotado depois de Lúcio, quando este tinha 5 anos. Segundo a mãe, a segunda adoção foi um pedido do próprio filho, que dizia querer um irmão. Cláudia conta que é mãe solteira e que Lúcio costumava ser um menino tranquilo e carinhoso, mas que após a chegada do irmão passou a 31 apresentar comportamentos agressivos e distanciou-se da mãe. Ano passado (2012), por incentivo do irmão, Lúcio quis conhecer a mãe biológica. Cláudia atendeu seu pedido e em dezembro ele foi apresentado à família biológica (descobriu que tem três irmãos, sendo dois mais velhos e um mais novo). A mãe relata que esse contato foi tranquilo e, apesar de serem acontecimentos aparentemente marcantes, a mãe não entra muito em detalhes sobre o que se sucedeu. Outra questão que se apresenta nessa família é referente à cor da pele, visto que Cláudia e Vinícius são negros e Lúcio é branco. Na entrevista inicial Cláudia falou brevemente a respeito disso, mas Lúcio raramente traz essa questão na terapia. Trata-se, assim, de uma família adotiva que vive uma situação peculiar de adoção inter-racial. Atualmente, Lúcio está cursando o 5º ano em uma escola pública, sendo que até o ano passado ele e seu irmão estudavam em escola particular. Os dois estão na mesma sala, por questões estruturais da própria escola (há uma única classe no período da tarde). Lúcio tem trazido às sessões muitos assuntos referentes à escola, contando sobre as diferenças que vem percebendo entre a atual escola e a antiga, sobre seus amigos e algumas dificuldades que encontra (está de recuperação esse semestre). É importante destacar aqui que sua mãe encontra-se em atendimento psicológico por outra estagiária, no mesmo serviço clínico, e que buscou atendimento também para Vinícius, sendo que, possivelmente, este vai ser iniciado no segundo semestre desse ano. Durante o ano de 2012, Lúcio esteve em atendimento na clínica-escola por outro estagiário. Após as férias deu-se a mudança de estagiário-terapeuta. Assim, está sendo acompanhado pela atual terapeuta desde março de 2013, com frequência de duas vezes por semana. Os dias da semana em que ele vem ao atendimento foram mantidos, tendo mudado apenas o horário de um deles (ao invés das 8h00 passou para as 9h00), o que pode ter influenciado no que diz respeito à redução dos atrasos, que eram muito mais frequentes no ano anterior. No total foram realizadas 32 sessões ludoterápicas, tendo havido 10 atrasos (que variaram entre 5 e 35 minutos) e uma falta, justificada devido à morte da avó. 32 Resultados e discussão Para apresentar o processo percorrido no atendimento de Lúcio até o momento foram organizados quatro momentos principais, divididos de acordo com o que predominava nas diferentes fases vividas por Lúcio em terapia, sendo elas: Testes à Capacidade de Tolerância da Terapeuta e Formação do Vínculo; Exposição Clara de Conteúdos Internos; Introspecção; Relativa Estabilidade. 1º Momento: Testar a Capacidade de Tolerância da Terapeuta e Formação do Vínculo: Este foi um momento bastante desafiador, Lúcio parecia desconfiado e desanimado com o processo que se estava iniciando, e por diversos momentos tentava alguma forma de ataque à terapeuta. Iniciaram-se, então, extensas conversas a respeito de brinquedos falsos ou verdadeiros, pessoas pobres ou ricas, apresentando uma angústia referente ao quanto tem dúvida não só em relação a sua própria existência (falsa ou não), mas também do quanto o que chega pra ele, o que é oferecido a ele é falso, é pobre, o que pode ser estendido para a área dos afetos recebidos por Lúcio, ou seja, uma dúvida do quanto o amor que chega até ele é de fato real, ou se é falso, temporário, ou passível de ser destruído. Analisando a entrevista inicial realizada com a mãe, foi possível identificar algumas falas que podem ser relacionadas com esses sentimentos da criança, principalmente quando a mãe conta como foi o encontro do filho com sua mãe biológica, ocorrido em dezembro do ano passado por pedido do próprio Lúcio, devido à influência e provocação do irmão, segundo Cláudia. No decorrer do relato, a mãe disse frases como: Cláudia: “Eu disse a ele que se ele quisesse podia chama-la de mamãe, ele disse que tudo bem, mas por fim acabou não chamando... Mas eu falei pelo menos, até porque é mãe dele também né?” Diante disso, o amor e a preocupação da mãe ficam em um nível de racionalidade extremo, o que faz com que pareçam muito frágeis e dispensáveis, podendo Lúcio acreditar que reencontrar a mãe biológica não gera nenhum receio em sua mãe adotiva, o que se relaciona diretamente com seus anseios a respeito da veracidade dos afetos que o rodeiam. Segundo Levinzon (2006), para os pais adotivos o medo de perder o filho aparece como um fantasma permanente, em graus diferentes em cada família, como se a falta de um elo consanguíneo não 33 garantisse a solidez do vínculo que liga os pais a criança. Lúcia pode, portanto, acreditar de alguma forma que os laços de sangue são fortes o suficiente para suprir qualquer laço que ela criou com Lúcio desde seu nascimento e, diante disso, viu-se sem recursos para lutar ou sentir merece mais o amor de seu filho do que a mãe biológica dele. Em sua primeira sessão, Lúcio mostrou-se muito inseguro, quis que sua mãe entrasse junto, e só quando eu o chamei para me apresentar e para ver o que tinha na sua caixa lúdica (mantida da terapia do ano passado) é que foi possível que sua mãe saísse da sala. Disse por diversas vezes que não gostava de nada que tinha ali, trazendo para a sessão uma sequência de “nãos”, para os brinquedos, para mim e para a terapia como um todo. Tentou de diferentes formas atacar os limites do setting terapêutico, jogando bolinhas de papel no ventilador e massinha molhada no teto, de forma bastante impulsiva, e, por fim, usou tanta força com sua caixa lúdica que esta quebrou. Tudo isso transparece a maneira como os impulsos agressivos de Lúcio estavam dominando seu mundo interno, de forma a ser difícil controlar e necessário haver um espaço para expressá-los. Na quinta sessão, Lúcio já estava criando um pouco mais de confiança e segurança naquele ambiente, e foi então que em meio a uma brincadeira de caça ao tesouro ele fez uma pergunta muito significativa. Ao esconder um soldado em um lugar muito difícil percebeu que a terapeuta não estava encontrando, e então começou a dificultar ainda mais colocando tempo limite, até disse sucessivas vezes: “Você vai desistir? Vai desistir é?”. Parecia que ele estava testando até onde a mesma daria conta de encontrar aquilo que ele tanto escondia, e então a mesma respondeu: “Eu não! Eu não vou desistir”. Os aspectos simbólicos envolvidos por detrás dessa brincadeira foram muito significativos tanto para a terapeuta quanto pra o paciente, representando confiança e segurança. Apesar dessa aproximação, Lúcio continuou seus testes ao ambiente terapêutico, fazendo misturas com cola, massinha e outros objetos, as quais dizia ser macumba, ou algo que não sabia o que era e nem porque fazia, e pedindo para guardar até a próxima sessão, repetiu isso por três sessões, e na quarta deixou apenas água no pote, e na sessão seguinte colocou sua mão na água e disse: “Olha, ainda está gelada”. Esse último acontecimento pode caracterizar um final dos 34 testes iniciais à terapeuta e uma formação de vínculo com a mesma, visto que além de ter deixado água ao invés de macumba para que a terapeuta guardasse, ainda reconheceu o quanto havia sido bem guardado e conservado do jeito que ele deixou até a próxima sessão, tendo o setting terapêutico transformado-se em um ambiente confiável. 2º Momento: Exposição clara de conteúdos internos: Nesse segundo momento, Lúcio começou a falar abertamente sobre suas angústias, raivas e sobre desejos bastante profundos, quase que em um movimento catártico. Na 7ª sessão Lúcio estava parecendo nervoso. Havia trazido um conjunto de Lego, mas não se interessou por ele, deixou em cima da mesa e sentou-se na poltrona, sendo que foi nesse momento que ouviu a voz de sua mãe na sala de espera, o que foi o estopim para que tudo começasse a ser dito e sua agressividade começasse a tomar forma. Após um breve silêncio Lúcio diz que sua mãe chegou na sala de espera, e que estava ouvindo sua voz (ela estava estacionando o carro), quando questionado sobre como ele se sentia em saber que a mãe dele o aguardava lá, ele responde: Lúcio: Me irrita! T: O que mais te irrita? Lúcio: O menino da minha escola que me bate e me chama de filho da puta. Mas eu pego ele, bato nele, estrangulo ele e jogo ele no lixo [...] [Nesse momento está sentado de costas para mim]. Às vezes eu tenho vontade de matar ela, tenho muita raiva, não gosto dela, ela é muito chata, não queria ter sido adotado por ela, queria ter sido adotado por alguém que quisesse ser mãe [...] É uma bosta ter parente, não queria ter, só gosto do meu tio [...]. Faz um desenho na lousa de um rosto sem boca, como se a mesma estivesse tampada com um lenço, e diz: “Não conta pra ela se não ela me bate”. [Então eu reforço que ali é nosso espaço, que o que acontece ali só nós sabemos e que nada do que ele dizia ali eu contaria para a mãe dele]. As críticas que Lúcio fez à mãe são fortes e cheias de conteúdo para serem refletidos, e chamam atenção, principalmente por terem sido ditas por uma criança de 10 anos. Em relação a este trecho, é possível associar a ideia de Winnicott (1997) de que muitas crianças adotadas, à medida que vão crescendo começam a pensar que se tivessem podido escolher, não teriam escolhido os pais que lhe foram 35 destinados, porém, na adoção, assim como os pais adotivos se arriscam, também se arriscam as crianças adotadas. Na 9ª sessão fica claro como Lúcio usou do mundo externo para tentar dar sentido para tudo o que estava sentido, para tentar transformar isso em algo que possibilitasse seu desenvolvimento. Nesta sessão ele criou os personagens que passou a utilizar constantemente nas sessões, são eles: a Burra (boneca Barbie), o Burrinho (bebê da família lúdica) e o Zé Ninguém (homem da família lúdica). O manuseio que Lúcio fez baseou-se em encher a Burra de cola e colar o Burrinho no peito dela, e ao tentar me explicar disse: “O bebê cagou ela”, depois amarrou bem firme com um barbante e escreveu “SOCORRO” no peito do bebê. Sobre o Zé Ninguém disse que ele era filho das drogas, e fez um outro rosto para ele, para que ele ficasse mais feio ainda. Vale ressaltar que os nomes foram dados no final, após tudo já estar pronto, e que ele queria grudar no corredor da clínica para que todos vissem a Burra, mas como isso não era possível acabou grudando na tampa de sua caixa lúdica (apenas a Burra e o Burrinho). Essa pode ter sido a maneira que ele encontrou de tentar elaborar esses conteúdos ainda muito primitivos e sem forma dentro dele, e apesar de nessa sessão tudo ainda ter ficado muito confuso e intenso, é importante dizer que no decorrer do atendimento ele foi desconstruindo um pouco do desespero passado por essa cena inicial, visto que em diferentes sessões foi desfazendo a colagem que realizou na caixa lúdica, e foi deixando tudo guardado na caixa, sendo que atualmente quase não usa mais, exceto o Zé Ninguém que ele frequentemente diverte-se jogando-o contra a parede, de forma bastante agressiva e violenta. 3º Momento: Introspecção: Após toda a agitação do segundo momento, Lúcio, em determinada sessão, organizou a sua caixa lúdica, como quem organiza seu mundo interno, limpando e criando espaço para o que ele realmente usava dali. E depois disso, entrou num momento mais introspectivo, mais silencioso e aparentemente calmo, no qual fez muitos desenhos e que evitou falar mais do que explicações sobre o que tinha desenhado. Apesar da tranquilidade que Lúcio passava, os conteúdos de seus desenhos eram bastante agressivos, trazendo sempre diabos, zumbis, morte, dragões, entre outros. O mais impactante foi um que cabeças mortas nasciam das árvores, o que pode em determinada instância ser 36 associado com a história de Lúcio, que passou por muitas tentativas de aborto, e também viveu na pele o abandono, permitindo refletir sobre o quanto ele não podia mesmo sentir que nasceu morto, que já nasceu num contexto de rejeição e o quanto ele não compreende isso, o quanto isso ainda é angustiante para ele. Parece que muito desse potencial destrutivo vivido logo no início de sua vida foi introjetado por Lúcio, de forma a deixá-lo perdido em meio a seus impulsos agressivos, sendo que a terapia passou a desenvolver o papel do espaço em que tudo isso pode aparecer para que seja transformado em algo que vá em direção a uma melhor convivência com todos esses conteúdos e com toda sua história. Isso perdurou por aproximadamente um mês, sendo que na 24ª sessão esse momento foi radicalmente finalizado. Lúcio chegou na sala de espera 20 minutos atrasado, dizendo que não queria entrar, que não gostava de nada ali, e sua mãe mostrou-se muito irritada com essa situação, forçando-o a entrar na sala, primeiro fisicamente e depois em forma de “chantagem”. Ele entrou, permaneceu os 20 minutos restantes, porém em silêncio, produzindo muito barulho com as mãos e com os pés continuamente até o fim da sessão. Apesar dessa sessão ter parecido ameaçadora à continuidade da terapia, na sessão seguinte Lúcio compareceu e o processo continuou sem que voltassem no que aconteceu na sessão anterior. 4º Momento: Relativa Estabilidade: Nesse momento, a influência de Cláudia como participante indireta do contexto terapêutico de Lúcio fica evidente, sendo que o aspecto estável desse momento foi justamente a experiência com Lúcio, que parecia estar mais confiante na terapia, mais à vontade e mais preparado para lidar com seus conteúdos internos. O que estava relativizando essa estabilidade era Cláudia, que passou a fazer sutis ataques à terapeuta e ao contexto geral da terapia de Lúcio. Com Lúcio esse momento está sendo de muita conversa, e de alguns “rituais”. Um deles é pegar o Zé Ninguém em algum momento da sessão (geralmente no início) e chutá-lo ou jogá-lo contra a parede, sem grandes explicações, e como algo que transmite uma sensação de alívio. Às vezes Lúcio me chama para participar desse ritual, e parece se divertir muito em ver o Zé Ninguém nessa situação em que ele o coloca. Acredito que isso possa se relacionar à percepção que Lúcio tem sobre o setting, como um espaço no qual ele pode expor 37 sua agressividade, e agora ele está conseguindo dosar melhor essa agressividade de modo a precisar expressá-la, porém conseguindo fazer isso de maneira menos explosiva. Outro ritual seria o de soltar puns na sessão, pois Lúcio por três vezes soltou pum na sessão, e fala disso de modo divertido e espontâneo. Isso pode ser muito significativo para o contexto terapêutico, visto que o pum pode ser interpretado de diferentes formas pela psicanálise, e uma delas é como uma expressão de agressividade, como uma falta de controle dos impulsos agressivos, o que pode ser visto como uma evolução vivida pelo paciente de modo a estar se dispondo a entrar em contato com essa agressividade, com esses impulsos, e também estar fazendo isso de uma forma menos confusa e desorganizada como era no início de todo esse processo. Simultaneamente a esse momento de Lúcio, aconteceram alguns ataques por parte de Cláudia à própria terapia do filho, ataques que em alguns momentos ficaram bem evidentes. Como exemplo, em uma sessão Cláudia deu o cartão de presença do terapeuta antigo de Lúcio para que o filho levasse para a atual terapeuta, o que de alguma forma estaria gerando uma instabilidade dentro do setting terapêutico ao fazer com que não só a terapeuta, mas também Lúcio lembrasse da experiência vivida no ano anterior, a qual levou muito tempo para ser elaborada e para que fosse possível dar um lugar à mesma e construir o atual vínculo. Em outro momento, no dia que Lúcio não quis entrar na sala de atendimento, a mãe trocou o nome da terapeuta do filho com o de sua própria terapeuta, o que pode ser visto como muito mais que um ataque, mas também um sinal do quanto os dois estão misturados dentro dela, e o quanto é difícil pra ela separar até mesmo o momento da terapia, sendo fundamental considerar como Lúcio sente tudo isso, como pode se perceber misturado e até mesmo desenvolvendo papéis para essa mãe que na realidade não são de sua responsabilidade. Por fim, em outra sessão Lúcio chegou um pouco manhoso, dizendo que não queria entrar na terapia porque estava com vontade de vomitar; a mãe, numa tentativa de descontração, comentou sobre o novo corte de cabelo dele, e disse “Nossa filho, você tá parecendo mais filho da tia do que da mamãe” (como tia ela estava se referindo à terapeuta). Isso causou bastante incômodo na terapeuta, pois, mais uma vez, tratou com certo descaso a 38 possibilidade de o filho ser mais filho de outra pessoa do que dela, ou outra pessoa merecer mais que ela ser mãe dele, enfim, pode ter reforçado dentro dele a diferença entre os dois, e ter contribuído para a angústia de Lúcio a respeito da veracidade do amor que ele recebe de sua mãe. Apesar de tudo, essas falas da mãe contribuem para que a terapeuta possa conhecer um pouco melhor as relações do filho com a mãe, possibilitando compreender as influências desses conteúdos para o que é trazido na terapia, e também compreender um pouco do que a terapia pode estar provocando nessa relação. Considerações finais Lúcio, ao longo de todo o processo terapêutico, apropriou-se muito bem do espaço que lhe era oferecido para expressar seus conteúdos mais íntimos e inquietantes. A partir do panorama traçado no presente trabalho é possível notar claras mudanças em Lúcio, e isso é confirmado pelo discurso da mãe em uma conversa de acompanhamento realizada no final do semestre, quando a mesma diz que este passou por um momento em que não tinha paciência com ela, demonstrando muita raiva, mas que naquele momento estava tudo mais tranquilo, que melhorou seu desempenho na escola, não tendo recebido mais reclamações e que Lúcio tem obedecido mais os horários que ela coloca para que ele e o irmão façam tarefas. Cláudia mostrou-se muito disposta e atenta ao filho, inclusive quando a conversa foi sobre momentos difíceis da terapia, como o dia em que Lúcio não quis entrar. Diante do exposto, no intuito de compreender a evolução do processo terapêutico, é possível supor que a psicoterapia está exercendo a função de holding, ao sustentar angústia veiculadas por meio das falas, ações, criações e brincadeiras. Aos poucos a mente da terapeuta, pensando junto com a mente do paciente sobre o que é trazido para dentro do setting, tem permitido que os impulsos reconfigurem-se, de forma a permitir que ele conviva mais tranquilamente com esses aspectos, o que 39 parece estar refletindo-se em suas relações familiares e em seu desempenho escolar. Referências Briani, A. C. T. (2008). A subjetividade na adoção: Um pequeno ensaio. Contemporânea: Psicanálise e Transdisciplinaridade, 6, 36-54. Costa, C. S. O., Pacheco, S. R. P., Silva, L. P. Meirelles, M. Z., Steinbrenner, M. A., Prola, J. F., Sulzback, F., Barboza, M. T., Castro, M., Mallmam, F. S., & Souto, R. B. (2011). Um estudo acerca da nova lei de adoção. Caderno de Resumos do XVI Seminário Interinstitucional de Ensino Pesquisa e Extensão. Unicruz, Cruz Alta, Rio Grande do Sul. Gomes, K. (2006). A adoção à luz da teoria winnicottiana. Winnicott e Prints, 1(2), 51-68. Hamad, N. (2011). A criança adotiva e suas famílias. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. Levinzon, G. K. (2006). A adoção na clínica psicanalítica: O trabalho com os pais adotivos. Mudanças: Psicologia da Saúde, 14(1), 24-31. Maggi, N. R. (2009). A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: O registro identificatório e os recursos no processo de simbolização. Estudos de Psicanálise, 32, 141-146. Paiva, L. D. (2004). Adoção: Significados e possibilidades (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo. Pereira, A. K. (2001). Adoção e queixas na psicoterapia psicanalítica de crianças. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Pereira, C. F. (2001). O que eu queria mesmo era ter nascido da barriga da mamãe. Psychê, 5(8), 79-94. 40 Rosa, D. B. (2008). A narratividade da experiência adotiva: Fantasias que envolvem a adoção. Psicologia Clínica, 20(1), 97-110. Tomassi, M. C. F. (1997). O conceito de agressividade na obra de Winnicott. Infanto: Revista de Neuropsiquiatria da Infância e Adolescência, 5(2), 73-76. Winnicott, D. W. (1997). Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artmed. Sobre os autores Marina Vieira Madeira: Graduanda em Psicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Departamento de Psicologia da FFCLRPUSP. E-mail: [email protected] Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes: Psicóloga da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), responsável pelo Serviço de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar da Clínica de Psicologia. Doutora em Ciências, área Psicologia Clínica e Psicodiagnóstico Interventivo, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). E-mail: [email protected] Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPSUSP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected] 41 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEPRESSÃO PÓS-PARTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS QUESTÕES VINCULARES MÃE-FILHA: RELATO DE UM ATENDIMENTO EM PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO Eliane Albuquerque Drullis Cifali Regina Célia Ciriano José Vicente Angelo Rocha Lionela Ravera Sardelli Introdução O presente trabalho resultou de um estudo de caso atendido segundo parâmetros do processo Psicodiagnóstico Interventivo, tradicionalmente de abordagem fenomenológica, mas, nesse caso, com utilização também de pontos de compreensão baseados na teoria psicanalítica. O atendimento foi realizado em Clínica-Escola de Psicologia da Universidade Paulista, em Campinas, e tratou da depressão pós-parto e de suas implicações nas questões do vínculo mãe-filha, bem como de sua influência no desenvolvimento infantil da criança acompanhada neste caso. Tivemos como objetivo estudar o processo Psicodiagnóstico realizado em uma menina de 4 anos acompanhada primeiramente de sua mãe, no que concerne a compreender a influência das relações primitivas estabelecidas entre ambas no desenvolvimento psicológico dessa criança, em decorrência de quadro de depressão pós-parto, reconhecendo a importância do contexto familiar na constituição dos conflitos. Buscou-se, ainda, refletir sobre o processo do Psicodiagnóstico Interventivo e sobre as mudanças ocorridas na relação mãe-filha durante o procedimento. O atendimento do caso estudado foi composto de nove encontros realizados no espaço da clínica-escola e de uma visita domiciliar. Os dados foram coletados por meio da observação participante em entrevistas clínicas, horas de jogo diagnósticas, realização de testes na criança, atividade de colagem em família, tendo todas essas atividades gerado relatórios clínicos que continham relatos dos 42 fatos observados e suas análises teórico-clínicas. Utilizou-se, portanto de método clínico qualitativo para estudo de caso. Durante todo o processo de psicodiagnóstico, a mãe permaneceu próxima à sala de atendimento, a pedido da menina, parecendo ser essa proximidade conveniente a ambas. Levantou-se a hipótese de que as dificuldades na separação mãe-filha provavelmente existiram em consequência do grave quadro de depressão pós-parto vivenciado pela mãe no início da vida da criança. Com o decorrer das sessões, a criança demonstrou um movimento progressivo de independência, como se ela estivesse sendo, a cada passo, preparada para iniciar o processo de separação-individuação, porém mostrando a necessidade de que a mãe a acompanhasse nesse desenvolvimento. Do ponto de vista da dinâmica mãe-filha pode-se dizer que o caso denuncia, a priori, dificuldades da mãe em perceber as necessidades de seus bebês, denotando problemas no estabelecimento dos vínculos primários. A devolutiva conjunta para criança e pais foi permeada pela presença de comportamentos não observados anteriormente no que diz respeito ao processo de construção da autonomia, por parte da menina, e do respeito, por parte dos pais, às peculiaridades que compunham seu universo psíquico, evidenciando, ao final, o aspecto terapêutico do processo pela evolução do caso. Discussão crítica reflexiva sobre os dados encontrados Luiza é uma garota de quatro anos que, segundo sua mãe, Julia, não permanece longe dela e apresenta problemas de comportamento na escola. Ao considerarmos as queixas trazidas na primeira entrevista em relação ao “motivo manifesto” (Arzeno, 1995) pelo qual a mãe traz sua filha ao psicodiagnóstico, nota-se uma série de ambivalências em seu discurso, a saber: coloca seu desejo ardente de amamentar o filho mais velho, mas fala ao mesmo tempo suas impossibilidades em fazê-lo; coloca que a filha possui baixa autoestima, mas diz, em outro momento, que Luiza possui espírito de liderança (característica comum aos seus dois filhos, conforme relato de Julia); mais adiante fala sobre a 43 timidez de Luiza que chora na ausência da mãe: “Ela não fica com ninguém além de mim” (sic mãe). Mas, depois, cita que ela participa das atividades com os monitores de hotéis em tempo integral, durante viagens com os pais e, ainda, que é de fácil adaptação à escola; coloca também que o pai possui pouco tempo disponível para dar atenção aos filhos, mas, segundo seu próprio relato, o pai sacrifica-se saindo uma hora mais cedo de casa de manhã para poder deixar Luiza na escola e, ao final da tarde, busca a filha e leva-a para casa todos os dias; diz que há pouca convivência com a avó materna de Luiza, devido a esta morar muito longe e, depois, coloca que a distância entre as duas residências resulta em um percurso de cerca de trinta minutos de carro. Tais ambiguidades e dificuldades de discriminação, evidenciadas no discurso materno, nos conduziram à hipótese de haver outros motivos subjacentes, latentes e inconscientes que poderiam estar nesse caso ligados à relação confusional, simbiótica e ambígua no âmbito da relação pais e filhos, já que se sabe que a falta de discriminação da realidade pelos progenitores pode dificultar o bom desenvolvimento afetivoemocional e mesmo perceptivo e cognitivo da criança, desde bebê (Arzeno, 1995, p. 23). Os dois episódios de depressão pós-parto da mãe Júlia compreendidos à luz da Psicanálise apontam para ausência de investimento libidinal em seus bebês, ou seja, tanto Luiza quanto o irmão Caio, após cinco dias de vida, passaram a ser cuidados pela avó materna e pelo pai, destacando-se nesse período a internação em hospital psiquiátrico da mãe para tratamento do quadro depressivo, tanto na primeira quanto na segunda gestação, sendo os bebês privados, portanto, dos cuidados relativos ao holding e handling, bem como do aleitamento materno. Em “Sobre o Narcisismo: Uma introdução”, Freud descreve que a manutenção do investimento em si mesmo indica a dificuldade que envolve o ato de abrir mão do autoinvestimento: "como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação que outrora desfrutou" (Freud, 1914, p.100). Nesse sentido, a mãe pode ter tido muita dificuldade em abandonar a posição de filha (posição narcísica) para tornar-se mãe, mantendo seus investimentos narcísicos primários, num processo inconsciente. 44 A mãe Julia relatou ter cuidado de seu próprio irmão mais novo durante a depressão pós-parto de sua mãe, o que pode tê-la feito registrar de forma primitiva e inconsciente, permanecendo, portanto, inacessíveis à memória consciente sensações e sentimentos como, por exemplo, o desejo de uma apropriação indevida do filho de sua mãe, desejo este frustrado após a melhora de sua progenitora. Júlia “apropriou-se” do filho de sua mãe, da mesma maneira que sua mãe (e outros) precisaram apropriar-se de seus filhos Luiza e Caio, para que estes fossem cuidados durantes os primeiros meses de vida. Julia relatou recordar-se da depressão pós-parto de sua própria mãe, lembrando-se dela na cama, prostrada, parecendo “estar morta”, identificando-se, dessa forma, com “a mãe morta” e repetindo em si, por ocasião do nascimento de seus filhos, o estado depressivo e sem vida de sua mãe. A rejeição de Julia para com os filhos Luiza e Caio pôde ser também observada nos atos falhos cometidos em seus relatos durante o grupo de mães do qual participou, ocasião em que disse: “a depressão que eu tive contra o Caio” ou em “eu tentava fazer coisas ruins para o Caio”, quando quis dizer ao grupo de pais e aos coordenadores que tentava fazer coisas boas (negritos nossos). Tais falas ilustram os sentimentos inconscientes de agressividade dirigidos contra os filhos bebês, que pode ser compreendido da seguinte maneira: ao considerarmos a raiz narcísica da escolha de objeto e o aspecto econômico do aparelho psíquico, temos que o investimento libidinal no outro implica em um dispêndio de energia que não poderá ser investida no ego, donde inicialmente o outro pode representar uma ameaça à própria soberania do indivíduo (Freud, 1930 [1929]) – nesse caso, da mãe. No momento de tornar-se progenitora, algo relatado como desejado, ela passa a requerer cuidados, tornando-se ela própria o bebê, o centro das atenções, apresentando aí uma vivência regressiva. Também, durante o grupo de pais ela, em certo momento, disse referindo-se ao filho de 11 anos e à filha de quatro: “eu trato eles como meus bebês”, “eu ponho comida no prato”. Ao dizer isso a mãe mostra o quanto possivelmente busca compensar o momento em que, na infância primitiva, não lhe foi possível tratá-los a contento, estando subjacente nessa comunicação um vestígio de um sentimento de culpa. Todavia, há que se diferenciar o bebê “real” do “ideal”: segundo relato de 45 Julia, Luiza ficava “horas no bebê conforto, dormindo quietinha”, o que permitia que a mãe fosse a lugares públicos como restaurantes, por exemplo, sem ser incomodada, indicando que havia momentos de harmonia entre mãe bebê. Julia relatou que precisou durante sua depressão ser internada em hospital psiquiátrico por um mês, deixando Luiza aos cuidados do pai e dos avós. Informou que, nesse período, após seu retorno da internação, ao ver Luiza sendo cuidada pelo marido e pelos demais familiares, não sentia nada por ela: “meu coração não batia”, dizia ela. Observou-se mais um exemplo de retirada do investimento libidinal, que pode ser entendido como mecanismo de defesa (Freud, 1914) contra o sofrimento. De acordo com Winnicott (1956), o bebê encontra-se em uma situação de dependência desde a gestação e após o nascimento, o que tende a diminuir à medida que a mãe consegue auxiliá-lo em seu processo de integração do self. Nos últimos meses de gestação até alguns meses após o parto a mãe deve experimentar o estado de “preocupação materna primária”, que consiste em saber atender às necessidades vitais de seu filho, o que é possível dada uma sintonia sutil que esta estabelece com o bebê. Segundo o autor, a mãe passa a sentir o que o bebê sente e necessita, constituindo uma relação considerada recíproca e complementar. O estudo de Esteves (2011) sobre a preocupação materna primária na gestação e parto pré-termo ressalta que: O processo de tornar-se mãe envolve mudanças significativas na vida da mulher, sendo considerado uma transição, que tem inicio na gestação e prolonga-se até os primeiros anos da criança. Nesse sentido, muitos autores têm destacado que os primeiros contatos entre a mãe e o bebê, que acontecem ainda na gestação e seguem após o nascimento, determinam a natureza das suas relações subsequentes [...] nesta época, são estabelecidos os padrões individuais de interação, os quais passariam a ser relativamente duradouros (Esteves, 2011, p. 76). Dado o estado de depressão pós-parto da mãe de Luiza, estes primeiros contatos descritos por Winnicott e ressaltados em Esteves não puderam ser vivenciados pela díade mãe-bebê, o que em parte, auxilia o entendimento da natureza das relações que se estabeleceram a partir de então. 46 Além disso, há que se considerarem os aspectos que envolvem a triangulação edípica uma vez que Luiza, segundo a teoria freudiana, encontrava-se na fase em que deveria encaminhar-se para a dissolução do complexo de Édipo, que resulta na introjeção da lei, sendo um momento determinante para constituição do sujeito (Freud, 1912). E, a este respeito, notou-se que a progressão para o Édipo ainda não havia ocorrido nessa criança. A mãe relatou que atualmente o pai era responsável por buscar Luiza na escola ao final da tarde e que a menina permanecia acordada conversando com o pai durante o trajeto de volta, e que no ano anterior, quando os dois filhos eram trazidos pela mãe, pois estudavam no mesmo período, voltavam para casa agitados, brigando durante o mesmo percurso. O relato do contato entre o pai e Luiza denotava uma vez mais a ambiguidade no discurso da mãe, pois ao mesmo tempo referia que a criança recusava-se a sair sozinha com o pai, nem mesmo para passear, caso a mãe não estivesse presente. A aproximação da menina para com o pai (momento esperado na fase edípica) parece estar ocorrendo longe dos olhos da mãe, embora o relato da mãe Julia aponte para a predominância do vínculo mãe-bebê, sem ainda ter ocorrido a entrada do terceiro elemento, o pai. No caso de Luiza, dando prosseguimento ao psicodiagnóstico, foi realizada junto à mãe a anamnese clínica. A anamnese “tem por objetivo primordial o levantamento detalhado da história de desenvolvimento da pessoa.” Trata-se de uma técnica de entrevista estruturada cronologicamente, cuja utilidade destaca-se no atendimento psicológico infantil, sendo usada por muitas abordagens. (Tavares, 2000, p.50). Segundo Cunha, “a história e o exame do estado mental do paciente também constituem os recursos básicos de um diagnóstico”, pois estes “permitem a coleta de subsídios introdutórios que vão fundamentar o processo psicodiagnóstico” bem como alerta que o simples acúmulo de dados, mesmo que colhidos sistemática e formalmente podem não contribuir para o “entendimento do caso.” (2000, p.57). A coleta completa de dados é difícil, pois o cliente pode não saber todas as informações ou omiti-las por mecanismos defensivos. Cunha também salienta que é 47 “importante associar a perspectiva histórica a uma abordagem dinâmica” (Cunha, 2000, p.60). Azevedo (2002) destaca que o “psicólogo é um profissional do desenvolvimento humano.” Disto decorre a importância da investigação diacrônica. Sob o olhar fenomenológico-existencial, considera que esse profissional precisa levar em conta o desenvolvimento como movimento, atentando-se para alguns postulados, como a temporalidade e a existência que precede a essência. Ao retomarmos o conceito de Inconsciente freudiano, temos que ao homem é revelado o desconhecimento de si mesmo e com isso o descontrole das ações que se pensava anteriormente controladas e entendidas. Isto abre caminho para pensarmos que sempre haverá em nossas atitudes falhas que nos escapam, ou seja, conteúdos recalcados que surgem colocando-nos em desajuste diante de diversas situações e, assim, interferindo na forma como nos relacionamos com os outros (Freud, 1905). Estes conteúdos recalcados, capazes de provocarem os desajustes citados por Freud em sua teoria sobre o Inconsciente, foram evidenciados durante a anamnese de Luiza, colocando em risco o tempo determinado para a entrevista, não fosse o empenho dos estagiários em redirecionar a mãe para que esta respondesse às questões sobre Luiza, impedindo-a de deter-se sobre longos e exaustivos detalhes relativos ao filho de doze anos Caio, irmão de Luiza. Ao observarmos as sucintas respostas de Julia (mãe), como: “foi ótimo”, “foi tranquila”, “foi super bem”, “muito bom”, “sim”, “não” às questões sobre a menina, há que se computar uma segunda resposta imediata a estas e mais detalhada, carregada de emoção, com informações relativas ao filho Caio, como se a história que Julia desejasse contar, por ocasião da anamnese da filha, fosse a do menino e não da garota, ou mesmo como se confundisse as duas histórias, fusionando-as. Silva (2009, p.267) apresenta o sujeito da psicanálise como pertencente a uma classe paradoxal: “faz parte de um conjunto, sem render-se a ele”. A família como um grupo “forja uma identificação para o sujeito”. Porém, se o sujeito resumirse a apenas isto poderá sofrer um apagamento de si mesmo. Luiza possui uma não imagem, não é configurada em sua individualidade em sua família por sua mãe, a figura de Caio é quem ocupa o discurso desta, causando o apagamento de Luiza, ou 48 fusionando-os em uma única imagem, indicando sérias dificuldades de discriminação. Freud (1911), em seus estudos, trata do esquecimento temporário de nomes próprios, sendo que o principal motivo disso seria o conteúdo recalcado: “Sou forçado a reconhecer a influência de um motivo nesse processo [...] Eu queria, portanto, esquecer algo; havia recalcado algo.” Tomando esse princípio como referência, poderíamos inferir que conteúdos recalcados da mãe a respeito de sua filha Luiza ou relativos à experiência da maternidade fizeram-na desviar o assunto inconscientemente para o filho, fusionando as experiências em uma só. Um outro ponto de dificuldade de discriminação foi observado quando a mãe, nas primeiras entrevistas, relatou traços marcantes de liderança existentes em Luiza em seus relacionamentos. Observamos que esta liderança não se configurou durante a realização das sessões de hora de jogo em grupo com a garota, sendo estas marcadas pela presença de um movimento resistencial progressivo por parte da mesma, o que remetia à relação de dependência existente na díade mãe-criança, caracterizada por rejeitar a entrada de terceiros como os terapeutas e outras crianças do grupo de psicodiagnóstico. Há que se considerar que a influência exercida sobre o comportamento, pensamento ou opinião no outro, esperada de um líder, de fato pôde-se fazer presente mormente na relação simbiótica mãe-criança, sendo que para a mãe, Luiza se constituía como representante simbólico da figura de líder, na medida em que exercia influência no comportamento, pensamento e opinião da mãe, passando a comandá-la – ou seja, para a mãe Julia, Luiza exercia o papel de líder, o que possivelmente em outras esferas não se mostrava, a exemplo do que se observou durante nas horas lúdicas grupais. Ao tomarmos o conceito kleiniano (1946) de identificação projetiva, típica da posição esquizo-paranóide, temos que, dentre os objetivos dessa identificação, encontram-se a projeção do self para dentro de um objeto a fim de controlá-lo, evitando assim qualquer sentimento de separação. Invade-se assim um objeto para apoderar-se de suas capacidades. Tais mecanismos buscam evitar a separação, a dependência, a admiração excessiva e as sensações de inveja, raiva e perda (Joseph, 1983). 49 Joseph enfatiza dois pontos importantes com relação ao indivíduo que utiliza estes mecanismos: Primeiro, o poder onipotente desses mecanismos e fantasias; segundo, como, na medida em que se originam numa constelação particular, profundamente interligada, não podemos, em nosso pensamento, isolar a identificação projetiva da onipotência, da cisão e das ansiedades resultantes que a acompanham. Na verdade, veremos que são todas partes de um equilíbrio, rígida ou precariamente mantido pelo indivíduo, a seu próprio modo (Joseph, 1983, p. 174). Observamos na mãe Julia a presença da onipotência, da eminente ameaça de cisão e das ansiedades, resultantes do processo de identificação projetiva, formando um precário equilíbrio mantido também pela filha Luiza, provavelmente em resposta defensiva aos sentimentos de rejeição sofridos durante a depressão pósparto que acometera sua mãe, e que ressurgia, por exemplo, numa das falas que a progenitora costumava usar quando a garota não agia como ela queria: “vou trocar você por outra menina”. Segundo Klein, a passagem da posição esquizo-paranóide para depressiva reflete a diminuição dessas projeções, fazendo com que o indivíduo seja capaz de tolerar sua dependência dos objetos. Este processo pode ser facilitado com a presença de uma mãe que seja capaz de tolerar e conter as projeções da criança, compreendendo seus sentimentos, favorecendo a integração do ego, levando-a à diminuição da projeção e a uma maior preocupação com o objeto (Klein, 1959). Segundo Joseph, “nas suas formas iniciais, a identificação projetiva não tem consideração pelo objeto e, na verdade, frequentemente ela é autoconsideração, quando se destina a dominar, independentemente do custo para o objeto” (Joseph, 1983, p. 174). Notou-se que Luiza exercia o domínio sobre o objeto, apresentando autoconsideração e consequente não consideração pela mãe, retribuindo a esta, por meio de suas atitudes, o mesmo sadismo impresso na fala da mãe ao dizer que iria trocá-la por outra menina. Como na brincadeira “cabo de guerra”, encontram-se as duas a medirem forças, estando no momento, empatadas e, ao que nos parece ambas perdendo, pois a queixa trazida pela mãe deflagra a presença de sofrimento psíquico para ambas. Numa relação de amor e ódio controlador, nenhuma pode 50 deixar a brincadeira (vínculo simbiótico), ora por medo de ser a que é abandonada, ora por culpa de ser a que abandona. Observou-se em vários momentos das sessões de hora e jogo com a criança que Luiza desfazia-se dos brinquedos da caixa de maneira displicente, demonstrando superficialidade e ausência de envolvimento pessoal; seu referencial era a mãe que permanecia ao corredor, do lado de fora da sala de atendimento psicológico, sob o olhar vigilante, furtivo e intermitente da filha. Ficara a mãe do lado de fora da sala e, portanto, fora de seu controle imediato, segundo uma possível fantasia de Luiza, como quando ela própria bebê ficou excluída dos primeiros cuidados pela mãe, devido à depressão pós-parto da progenitora. Luiza, face à frustração de ter sido separada da mãe na sessão, mostra-se de maneira superficial, desinvestindo libidinalmente no encontro com outros do grupo, uma vez que suas relações parecem estar baseadas na dualidade: ela e a mãe, ela e o irmão, ela e o pai, ela e a professora, ela e a melhor amiga. Muitos autores destacam que os primeiros contatos entre mãe e bebê, que começam na gestação, prolongando-se até os primeiros anos de vida da criança, são determinantes da natureza das relações subsequentes, estabelecendo modos de interação que podem tornar-se duradouros, o que pode explicar, em parte, as vivências entre Luiza e sua mãe. Quanto às produções gráficas da menina, temos que as crianças em idade pré-escolar podem expressar-se por meio da arte: “as mudanças nos desenhos feitos por crianças pequenas parecem refletir o amadurecimento cerebral, tanto quanto o dos músculos.” (Kellogg apud Papalia et al., 2006, p. 244). As representações são funções do desenvolvimento psíquico, juntamente com as funções cognitivas e afetivas; as representações são funções com “as quais representamos um significado qualquer (a um objeto), usando um significante determinado: imitação diferida, jogo, desenho, linguagem e a imagem mental” (Goulart, 2009, p.23). Crianças com dois anos de idade rabiscam – não aleatoriamente, mas em padrões como linhas verticais e em zigue-zague. Com três anos, as crianças desenham formas – círculos, quadrados, triângulos, cruzes e X – e depois 51 começam a combinar as formas em desenhos mais complexos. A fase pictográfica normalmente se inicia entre quatro e cinco anos. (Papalia et al., 2006, p.244, itálicos do autor). Os desenhos realizados por Luiza durante os atendimentos apresentaram inconformidade com o esperado para a idade, assemelhando-se aos desenhos de crianças entre dois e quatro anos. Goulart (2009) destaca que, de acordo com Piaget, em sua análise do desenho infantil, baseada nos estudos da obra de Luquet, o desenho desempenha uma função semiótica entre o jogo simbólico e a imagem mental, podendo-se concluir, segundo ele, que o desenho desenvolve-se em consonância com o desenvolvimento da imagem mental da criança. Todavia, a partir de uma perspectiva fenomenológica é peremptório observar um desenho sem “ideias preconcebidas”, devendo-se ouvir as interpretações da criança sobre seu desenho enquanto desenha e depois de desenhar, o que “possibilita penetrar em todo um campo de conexões associativas, semânticas e afetivas” (Aguiar, 2004, p.23 e 24). A criança, deste modo, não é mero objeto de estudo, mas “ser-no-mundo”, capaz de receber e entender informações, e dotada de direitos. O conhecimento psicológico fica em suspenso, busca-se o conhecimento do outro a respeito de si mesmo. Assim, o que se pode inferir sobre os desenhos, usando-se da base teórica respectiva, precisa ser suspendido, a fim de que seja possível verificar com Luiza os significados que esta atribui aos seus desenhos. Em um dos desenhos feitos por ela, parece haver um esboço do que seria uma figura humana, embora disforme. O conjunto de sua produção pode refletir o universo em que vive, onde não há integração de ego suficiente que proporcione segurança para que ela dirija-se ao outro, permanecendo na relação dual. Ao terminar cada desenho, com exceção de um deles, dirigia-se até a mãe para mostrar sua produção, denotando a necessidade de reafirmar a relação dual. Porém, em uma sessão posterior, o desenho de Luiza difere das suas produções gráficas realizadas nas horas lúdicas anteriores. Nele verifica-se aspectos da fase pictográfica inicial, que surge entre quatro e cinco anos. 52 Mèridieu (2006, p.09,14,17-18) define o desenho como “modo de expressão próprio da criança [e que se] constitui uma língua que possui seu vocabulário e sua sintaxe”, destacando que a evolução do desenho depende da evolução da linguagem, seguindo também, paralelamente à evolução psicomotora da criança, sendo conveniente a adoção de uma perspectiva psicodinâmica em relação ao desenvolvimento da criança com aspectos de regressão aos estágios do grafismo, “regressões significativas de um distúrbio profundo ou de uma crise passageira”. Desta forma, “a interpretação de um desenho – isolado do contexto em que foi elaborado e da série dos outros desenhos entre os quais se inscreve – é, portanto, nula”. O contexto onde Luiza realizou seus desenhos é a hora lúdica dentro do processo psicodiagnóstico, que Fernandez (2006) aborda como “outro elemento que temos que levar em conta – a sessão – [sendo] concebida como uma oscilação permanente entre transferência e a relação como uma reinscrição dos afetos pelos dois psiquismos”, o do psicólogo e o do cliente – no caso, a criança. A respeito do desenho de Luiza, feito nesse momento, podemos dizer que este encontra-se adequado ao esperado para sua idade, enquanto que os desenhos de sessões anteriores serviram-nos para levantar hipóteses sobre a existência de um estado regressivo profundo ou passageiro na criança. No entanto, há que se considerar que muitos dos desenhos foram realizados por sugestão da mãe, nas idas e vindas ao corredor que a criança realizava, e que a menina, por sua vez, produziu-o para a sua mãe, o que nos remete à díade mãefilho mais uma vez. Em outros momentos, ela furtivamente olhava os desenhos de outras crianças do grupo e fazia pequenas tentativas de realizar os seus próprios, mesmo que de forma tímida e insegura. Isso nos remetia a um dos conflitos básicos de Luiza que, nesse período, precisava romper o vínculo simbiótico psicológico com sua mãe, caminhando-se do narcisismo, “que é a base da autoestima, da valorização de si mesmo,” para a situação triangular (Griffa, 2010, p.210-211). Verificamos também o sentimento de onipotência, típico do narcisismo, nessa atividade quando “a atitude complementar da mãe permite a satisfação da quase totalidade das necessidades do bebê.”, quando Julia completava as ações de Luiza em sua fala, por exemplo, dizendo para a filha que pedisse o lápis para desenhar ou 53 em sua sugestão sobre o que deveria ser desenhado. A regressão de estágio do grafismo observada nos desenhos anteriores de Luiza pode estar relacionada ao aspecto não prazeroso da relação narcísica que é “ansiedade de morte e o medo do aprisionamento.” Verificam-se assim tentativas de fusão entre mãe e filha, típicas do narcisismo, onde a “possibilidade de superá-lo repousa na atitude da mãe; ela pode ou não deixar espaço para um terceiro, o pai, abrir ou fechar esse vínculo dual que até então foi mutuamente satisfatório”. Isto pode estar dificultando a passagem no Complexo de Édipo que “desempenha um papel fundamental na estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano.” (Griffa, 2010, p.214-215, 218). Assim, a depressão pós-parto da mãe de Luiza compreendida à luz da Psicanálise, aponta para ausência de investimento libidinal no objeto. Nas sessões de psicodiagnóstico interventivo, ao tomarmos a fala do pai, percebemos que, de alguma maneira, houve investimento libidinal no bebê por parte dele: disse que, no período em que a mãe esteve ausente, trocava fraldas, dava banho, colocava para dormir, fazia praticamente tudo, passando inclusive a trabalhar em casa. Disse ainda que a sogra e sua mãe ajudavam quando ele pedia e que “o Caio ajudava muito também” (sic), acrescentando que nunca imaginou que tivesse que fazer isso (trocar fraldas, dar banho etc.), mas que tudo foi “super bem, super tranquilo” (sic pai), aliás falas comuns usadas por ambos os pais; para eles sempre foi tudo bem, tudo tranquilo, mesmo em episódios em que a vida do bebê Luiza corria risco. Freud descreve em “Sobre o Narcisismo: Uma introdução” que a manutenção do investimento em si mesmo indica a dificuldade que envolve o ato de abrir mão do auto-investimento (Freud, 1914). Com relação ao relato do pai de Luiza, considerando-se os traços culturais da sociedade ocidental e o entorno que envolveu nascimento e primeiros meses de vida de Luiza, não parece ter havido dificuldade para ele abrir mão, temporariamente, de sua rotina para adequar-se à nova realidade. Em contrapartida, apesar da tranquilidade com a qual tais momentos são narrados pelo pai, sabe-se que os cuidados para com o recém nascido não se resumem em trocar, alimentar, embalar e higienizar, pois a situação de dependência, que vai desde a gestação até meses após o nascimento, segundo 54 Winnicott (1956), passa também pelo sentir o que o bebê sente e necessita, formando uma relação complementar com o cuidador. Devido à depressão pós-parto da mãe de Luiza, estes primeiros contatos não puderam ser vivenciados pela díade mãe-bebê e, mesmo sendo vivenciados com o pai e provavelmente com as avós, é possível que algo se tenha perdido, o que em parte, auxilia a explicar a natureza de insegurança e ansiedade nas relações que se estabeleceram a partir de então, mesmo considerando-se a entrada da mãe, como cuidadora, após alta médica. As atitudes incongruentes da mãe puderam, então, ser notadas desde muito cedo na vida dessa criança. Por ocasião do psicodiagnóstico, ao responder a pergunta sobre o que havia sido falado para Luiza a respeito do CPA, a mãe, dizendo ter seguido a orientação dos estagiários, disse para Luiza que “ela iria para um lugar para que ela ficasse mais calminha” (sic). De acordo com Azevedo (2002), é importante contar para a criança sobre sua ida ao psicólogo e, como forma de elucidar as preocupações dos pais, a autora sugere a seguinte pergunta: “Por que mesmo vieram me procurar?” No caso de a resposta ser que o filho está agressivo e que os pais não sabem mais o que fazer, a autora ressalta que os pais devem dizer exatamente isto para a criança, acrescentando “[...] não se esqueçam do ‘não sei mais o que fazer’, não digam apenas ‘você está agressivo’” (Azevedo, 2002, p. 109). Apesar de ter sido orientada pelos estagiários de psicologia, na segunda entrevista com os pais, em como poderia falar com Luiza, incluindo em sua fala o real motivo da consulta, isto é, a relação de dependência e controle que existia entre ambas, a mãe pareceu ignorar as orientações bem como sua importância, sugerindo um “ficar mais calminha” que não parece constar dos objetivos do processo psicodiagnóstico. Escutar uma coisa e repetir outra, querer e não querer, desejar a liberdade e independência da filha versus o desejo de tratá-la como “meu bebê”, realidade versus idealização, estes são exemplos de aspectos antagônicos que parecem permear o discurso da mãe de Luiza. Tal discurso ambíguo deve deixar a criança confusa em relação a seus desejos de crescer e se desenvolver: seria permitido sair 55 de perto da mamãe? E se o fizer, deixaria seu lugar para outrem e perderia outra vez o seu? Considerando-se os aspectos da triangulação edípica, uma vez que Luiza deveria encontrar-se, segundo Freud (1912), na fase que se encaminha para a dissolução do complexo de Édipo, resultando na introjeção da lei, momento determinante para a constituição do sujeito, nota-se que existe uma progressão para o Édipo que ainda não ocorreu mas que pode estar iniciando-se. O seguinte relato do pai acena para a existência de uma aproximação e identificação com a mãe, saindo da dualidade, e indo para a triangulação: disse que Luiza é uma menina muito carinhosa, que gosta de abraçar, de beijar, e que fica ‘super bem’ com ele, principalmente aos finais de semana, quando a mãe está por perto. O Édipo, como movimento integrador da realidade, a partir da inserção de um terceiro, o pai, representaria a Lei, impondo limites para a relação mãe-criança, face ao interdito, que deslocaria a criança da relação dual com a mãe, momento determinante para a constituição do sujeito (Freud, 1912). A sessão em psicodiagnóstico denominada visita familiar e a atividade lúdica “A nossa casa” conforme proposto por Almeida em “A nossa casa: uma sessão estruturada na terapia de famílias com crianças” vem atender a exigência de dedicar um olhar à interação familiar que se apresenta “cada vez que uma criança é encaminhada para avaliação; sendo preciso contextualizar o que se apresenta como sintoma.” (Cruz, 2000, p.55). A família é vista como um sistema, “sistema entre sistemas; um sistema ativo, em constante transformação, autorregulável, mas igualmente aberto à interação com outros sistemas.” (Cruz, 2000, p.60). Para Minuchin (apud Garcia, Souza, Holanda, 2005, p. 475), [...] a estrutura familiar é um conjunto invisível de exigências funcionais que organiza as maneiras pelas quais os membros da família interagem. A origem dessas expectativas está mergulhada em anos de negociação explícita e implícita entre os membros da família, frequentemente, em torno de pequenos eventos do cotidiano. Assim, o sistema oferece resistência à mudança. Quando surgem situações de desequilíbrio no sistema, é comum que os membros da família façam reivindicações de lealdade familiar e manobras que induzem culpa. O que se espera de normalidade é que a família adequese às mudanças internas e externas, adaptando-se às novas circunstâncias sem perder a continuidade. 56 O sintoma de Luiza, ou seja, sua ligação excessiva com sua mãe, nessa perspectiva, é visto como linguagem, “como mensagem não-verbal no campo da comunicação.” E, “sob essa ótica, na qual o indivíduo é parte integrante de um contexto de interações, o comportamento diferente, o sintoma, assumiria um significado específico” relacionado ao contexto e às relações que o compõem (Cruz, 2000, p.60). Durante o procedimento de Visita Familiar, dando prosseguimento ao processo do Psicodiagnóstico Interventivo, na atividade “A nossa casa”, onde se sugere que todos da família façam um desenho conjunto representando o lar, destacou-se o estilo relacional da família, principalmente na definição do território de cada um de seus membros, quando todos desenharam a partir dos cantos da cartolina, como se desenhassem em quatro folhas de sulfite separadas, no entanto, a possibilidade de permeabilidade entre os desenhos manteve-se, pois nenhum dos integrantes desenhou bordas definidas de separação, ou algo parecido, embora os desenhos fossem isolados. Quanto ao estilo individual, cada integrante desenhou sem nenhuma interferência direta do outro: “vou desenhar o lugar que eu mais gosto” (sic pai); o irmão se propôs a desenhar seu X-Box (aparelho de jogo de video game); Luiza empolgou-se ao desenhar a piscina e a mãe, apesar de verbalizar diversas vezes que não sabia desenhar, empenhou-se em participar e em dar sua colaboração. As interações familiares nessa atividade deram-se de maneira cordial: o pai sorrindo para a mãe durante a escolha das canetas coloridas; a mãe, ao dizer que não sabia desenhar, foi acompanhada por seu filho com o mesmo comentário; Luiza perguntou aos demais o que faltava em seu desenho, ao que o pai respondeu: “a piscina”. Quanto aos movimentos interacionais da família verificou-se a relação diádica entre Luiza e sua mãe dificultando e sobrepujando as relações triangulares de Luiza: A ligação estrutural que ajuda a determinar a autonomia individual de cada membro é caracterizada pela relação triangular entre os pais e a criança, pois numa relação dual não é possível ocorrer diferenciação se nenhuma das duas 57 partes envolvidas é capaz de estabelecer uma relação com uma terceira pessoa. (Tosin, 2005, p.18) Tosin, ao elencar os conceitos fundamentais da Terapia Familiar, destacou a relevância da relação triangular: O modelo mais usado para estudar as relações é o diádico, que está baseado em explicações lineares de causa e efeito. Ampliando a observação do sistema de relações, este modelo torna-se limitado, pois separa o sistema em unidades desconsiderando o todo (Tosin, 2005, p.19). Luiza encontra-se em relação diádica com sua mãe, resistindo à entrada em relações triangulares, apenas, variando esse modelo dual, ora para Luiza-pai, ora Luiza-irmão, retroalimentando a manutenção e evolução do sintoma e a relação entre este e a organização atual do sistema familiar. Em relação ao ciclo familiar: Os sintomas podem desaparecer com o tempo, quando o próprio sistema encontra recursos para superar a crise e tem flexibilidade para utilizá-los num novo equilíbrio. Caso a família não consiga se rearranjar devido a sua rigidez, o sintoma agrava-se nas fases subsequentes, caracterizando um funcionamento patológico crônico (Tosin, 2005, p.21). Tosin (2205) também destaca a importância da terapia para a promoção e restabelecimento do processo desenvolvimental, onde os sintomas podem ser usados para sinalizar as dificuldades do sistema em cumprir esta etapa. Deste modo, o sintoma de Luiza pode ser visto como uma mensagem que denuncia o atual momento da família, que também repercutiu na voz do pai quando disse que o desenho realizado significava para ele exatamente como era a sua casa. Outro conceito fundamental que reverberou nas palavras do pai e no sintoma de Luiza é o da metáfora para que na atividade “cada membro tem a possibilidade de identificar padrões interativos, de se ver na relação com o outro, tanto como 58 participante, quanto como observador” (Cruz, 2000, p.61), e “o sintoma apresentado por um paciente ou por uma família pode tornar-se uma metáfora de um problema de relação, uma tentativa de conciliar necessidades contraditórias por meio de um símbolo capaz de refletir significados múltiplos” (Andolfi apud Tosin, 2005, p.23). O sintoma de Luiza, além de representar sua necessidade de rompimento do vínculo simbiótico psicológico com sua mãe para dirigir-se à situação triangular e o medo dessa separação, sistemicamente também representa a necessidade desenvolvimental da família como um todo, indo do subsistema relacional dual entre Luiza e sua mãe, para um sistema triangular, onde o pai assume seu verdadeiro papel de interditar o poder da mãe sobre os filhos e deixar o papel inicial, assumido por ele, de seu substituto. Deixar esse padrão, para todos, se constitui em um desafio. Passemos então, para outro momento do psicodiagnóstico onde, nas horas lúdicas pudemos analisar o brincar. Papalia, Olds e Feldman (2009, p.291) definem o brincar como “o trabalho das crianças, e isso contribui para todos os domínios de desenvolvimento.” [...] “por meio das brincadeiras, a criança estimula os sentidos, aprende como usar os músculos, coordena a visão como o movimento, obtém domínio sobre o corpo e adquire novas habilidades.” Pode-se acrescentar que “o jogo é linguagem da criança por excelência, a ponto de representar para ela o que a palavra representa para o adulto.” (Griffa, 2008, p.252). Efrom (2003, p.214-233) nos propõe compreender a Hora de Jogo Diagnóstica a partir da análise de alguns indicadores: escolha de brinquedos e de brincadeiras, modalidade de brincadeiras, personificação, motricidade, criatividade, capacidade simbólica, tolerância à frustração e adequação à realidade. Deste modo, utilizaremos alguns desses indicadores percebidos nas sessões de hora de jogo grupal, como o proposto pelo Psicodiagnóstico Interventivo (Ancona-Lopez, 2013) para a compreensão de Luiza. Luiza escolheu brincar em uma das horas lúdicas com o jogo “pequeno arquiteto” e, posteriormente, escolheu a atividade de desenhar, a partir da modalidade de abordagem de aproximação, estruturando o campo de aproximação para início da atividade. Vai assim, de um jogo mais estruturado para uma atividade menos estruturada. Ambas as atividades correspondem ao seu estágio 59 desenvolvimental, onde, conforme Soifer (1992, p.100), a criança “utiliza cubos de madeira” construindo algo e no desenho “tem ideia do que vai fazer antes de realizar o desenho.” Também, notou-se que na brincadeira de construir como na de desenhar houve começo, desenvolvimento e fim da atividade. Percebeu-se também a intencionalidade para se realizar uma tarefa. Luiza, no jogo “pequeno arquiteto”, apresentou inicialmente certo grau de rigidez, ao construir e ver desmoronar sua construção parecia não sentir nada, rigidez defensiva “geralmente utilizada diante de ansiedades muito primitivas para evitar a confusão.” Posteriormente, no desenhar manifestou maior plasticidade. (Ocampo et al., 2003, p.218). Em relação à motricidade, sabemos que “um bom uso do corpo produz prazer e resulta num fortalecimento egóico que permite o alcance de novos ganhos e facilita a sublimação, quando a criança está preparada para isso.” (Ocampo et al., 2003, p.222). Luiza demonstrou habilidades motoras adequadas a sua etapa desenvolvimental como preensão e manejo, possibilidade de encaixe e descolamento geográfico. Quanto à capacidade simbólica M. Klein declara que “o simbolismo constitui não só o fundamento de toda fantasia e sublimação, mas é sobre ele que se constrói a relação do sujeito com o mundo exterior e a realidade em geral.” (apud Ocampo et al., 2003, p.227). Deste modo, podemos destacar que a escolha de uma atividade estruturada para uma atividade menos estruturada como o desenhar, deveu-se à liberdade de ação sugerida pelas instruções da hora do jogo, onde pudemos observar que Luiza em consultas anteriores sempre foi resistente para entrar, permanecer na sala e realizar atividades, ou seja, brincar, mas que posteriormente participou desde o início com relativa independência de sua mãe, indo apenas uma vez ao encontro desta fora da sala de atendimento, no corredor, durante toda a sessão, o que não se viu em sessões iniciais, aparentando assim equilíbrio, uma melhora da confiança em suas possibilidades egóicas e na liberdade interna, com a qual pode dar “livre curso à fantasia.” (Ocampo et al., 2003, p.233). Outro elemento importante foi a fala da mãe: “lembra o que nós combinamos.” (sic) para sua filha Luiza, quando esta ao entrar na sala, sai e vai ao encontro dela e 60 ao ouvir sua mãe, retorna para a sala. Winnicott ressalta o quanto os pais sentem-se culpados, mesmo sem saber disso, em relação ao que fizeram ou deixaram de fazer em relação a seus filhos. (1993, p.110). Trata-se da “ideia de que alguém pode sentir-se culpado sem o saber.” E que “alguém [pode estar] atuando movido por um sentimento de culpa e que talvez não saiba disso.” Julia, a mãe de Luiza, na ambivalência que já demonstrou anteriormente em seu combinado com a filha, evidencia seu sentimento de culpa pela filha sair da sala e procurá-la, enquanto outras crianças não o fazem, mesmo que não tenha consciência desse sentimento, buscando que todos ali saibam que ela “combinou” com a filha sobre a possibilidade dessa ir e crescer, separando-se dela. Para Winnicott (1993, p.117) “é o sentimento de culpa [que torna a mãe] sensível,” e que se os filhos pudessem escolher suas mães, escolheriam mães assim. Assim, com o tempo, o choro habitual de Luiza que acontecia no início de todas as sessões, face à eminente separação da mãe, não se fez mais presente. Pai, mãe e, principalmente filha, subiram, então, calmamente para a última atividade em grupo do psicodiagnóstico, a entrevista devolutiva para pais e criança em conjunto. Luiza estava visivelmente feliz, cercada da atenção exclusiva dos pais, dialogando com eles durante quase toda a atividade, assim como com alguns estagiários. Trazia na cabeça uma tiara que, pela primeira vez, mostrava seu rostinho em sua totalidade, livre dos cabelos que, em outros momentos, escondiam sua face. A clareza de seu rosto, a espontaneidade de seus gestos, palavras e atitudes mostravam o desejo de Luiza: gozar da atenção exclusiva dos pais. É possível que parte dessa aparência desleixada apresentada durante o processo do psicodiagnóstico deva-se a que percebêssemos a representação do conflito configurado pela ausência inicial dos cuidados maternos, quando recém-nascida, devido à internação de sua mãe e ao posterior período de depressão pós-parto, tornando-se uma forma de comunicação inconsciente dos fatos, mas agora transformados pela atenção e cuidado vivenciados durante os atendimentos. René Spitz (1945) observou a reação de bebês precocemente separados de suas mães e deu o nome de “hospitalismo” ao conjunto de perturbações físicas e mentais advindas da carência afetiva observada em crianças, principalmente nos 61 dezoito primeiros meses de vida, seja por motivo de abandono, seja por terem sido hospitalizadas por um longo período. Este quadro também se aplica às crianças que, por alguma razão, sofreram separações de suas mães ou que receberam cuidados nitidamente insuficientes, sem que a maternagem fosse compensada por outras pessoas. Spitz foi um dos primeiros estudiosos a chamar atenção para os efeitos da ausência de carinho, de laços verdadeiramente humanos e de cuidados maternos como sendo um dos principais fatores responsáveis pela mortalidade das crianças internadas em hospitais e instituições, salientando que a privação afetiva precoce provocava dor psíquica (depressão) no bebê, mobilizando pulsões de morte, e que estas situações poderiam ocorrer após período de hospitalização da mãe. Segundo observou o autor, quanto mais cedo o filho é separado da mãe, mais graves são os distúrbios, ainda que possam ir atenuando-se com o reencontro ou com cuidados compensatórios. Nos primeiros oito meses de idade, período em que se forma a relação objetal com a mãe, se a separação durar mais de cinco meses, os distúrbios podem ser irreversíveis. No caso de Luiza, o período de internação de sua mãe foi de quinze dias e, os cuidados recebidos por parte do pai, avós e do irmão Caio, foram suficientes para que ela não apresentasse as perturbações físicas e mentais severas, às quais se referiu Spitz (1945) em seus estudos. Para Bowlby (1977), a vida do bebê e sua capacidade de relacionar-se com os outros, a começar pela mãe, estão fundadas em uma base orgânica e biológica e o apego é uma reação primária, uma manifestação da estrutura instintiva da criança e não resultado de uma aprendizagem. Pelo contato físico, constrói-se um mundo de sensorialidade, a partir do qual se desenvolve a capacidade de apegar-se à mãe, reconhecendo-a. Luiza esteve, inicialmente, privada desse contato com sua mãe. Segundo relato de Julia, mãe de Luiza, a partir do momento em que esta disse à menina que “iria trocá-la por outra menina”, o “grude” (sic) aumentou e a menina passou a solicitar ainda mais a atenção por parte da mãe, demonstrando insegurança. Durante a atividade de colagem conjunta mãe-pai-filha, outro fazer proposto no Psicodiagnóstico Interventivo, Julia respondia à Luiza repetidamente, dizendo: “ah, tanto faz” ou “você que sabe”. Estas expressões reportam a uma situação de ambivalência, característica já anteriormente observada em Julia: ao mesmo tempo 62 em que a mãe parece dar à criança liberdade para escolher e decidir, de acordo com suas preferências, mostra por outro lado certa indiferença preferindo não opinar, não situando à criança seu posicionamento. Faz-se presente, porém como ser ausente, aquele que não opina. Para alguém que solicita, requisita, clama por esta mãe vinte e quatro horas por dia, o significado da expressão “tanto faz”, recebido por Luiza ao longo de toda uma existência poderia simbolizar mais uma vez o abandono e a indiscriminação. Sem referências, a criança não se situa, encontra-se sem sinais palpáveis e seguros para prosseguir em seu desenvolvimento. Embora a fusão mãe-bebê seja essencial durante os primeiros meses, esta deve terminar gradualmente (Winnicot, 1987), à medida que a mãe consegue auxiliar o bebê no processo de integração. Em outras palavras, a mãe tem de poder renunciar a seu desejo de ser uma mãe perfeita, sempre satisfatória, para ensinar ao bebê a lidar com a frustração, o que lhe dará o gosto de ir conquistar o mundo a fim de suprir a falta sentida. Para Winnicott, O apoio do ego materno facilita a organização do ego do bebê. Com o tempo, o bebê torna-se capaz de afirmar sua própria individualidade, e até mesmo de experimentar um sentimento de identidade pessoal. Tudo parece muito simples quando vai bem, e a base de tudo isso encontra-se nos primórdios do relacionamento, quando a mãe e o bebê estão em harmonia (Winnicott, 1987, p. 9). Todavia, diante de uma mãe impedida, sejam quais forem as razões para esse impedimento, o bebê, sempre ávido por este contato, agarra-se a ela ainda mais. No caso de Luiza, o comentário de sua mãe, dizendo que iria trocá-la por outra menina, fez com que ela, ávida como um bebê, se agarrasse ainda mais a sua mãe, regredindo às suas vivências primitivas de abandono. Caso a mãe não responda a suas solicitações, a criança desiste, voltando-se cada vez mais sobre si mesma até apresentar todos os sintomas do hospitalismo de Spitz (1945), a menos que uma mãe substituta garanta a função de maternagem de que ela necessita. Quando a mãe está deprimida, a exemplo do que ocorrera no caso de Luiza, a mãe está menos disponível, menos atenta, muitas vezes limitando-se aos cuidados essenciais que devem ser fornecidos ao bebê, deixando de acalentá-lo, 63 acariciá-lo, transmitindo afetos depressivos da mãe para o bebê, fatos determinantes para aquisição de sua futura autonomia. A menina Luiza demonstrou, tanto na atividade de colagem, como em seus desenhos a necessidade de consultar os pais sobre como fazer e o que fazer e, quando estes se antecipavam, quer seja passando a cola no verso da figura, ou escolhendo o lugar onde colá-la, diferente daquele escolhido por Luiza, esta não impunha seu desejo, aceitando a atuação e sugestões dos pais. O psiquiatra infantil Rufo (1945) explica que quanto maior capacidade de a criança suportar a ausência materna, mais ela sentir-se-á segura para explorar o mundo externo. A criança insegura, por sua vez, buscará a mãe ou a evitará de modo evidente, sem por isso conseguir investir outras pessoas ou outros objetos. Na ausência da mãe, privado de referências, o bebê retrai-se e, ao invés de abrir-se para o exterior, a criança insegura passa a ser autocentrada. Para o autor, um apego inseguro, todavia, é melhor do que nenhum apego, pois, ainda que a criança possa vir a ter dificuldade de desapegar-se, isto ainda seria melhor do que ela ficar impossibilitada de estabelecer outros laços. Seguimos, assim, na corda bamba da oscilação dependência versus autonomia [...] a solução do conflito entre dependência e autonomia, entre liberdade e apego não é definitiva, e é um paradoxo que nunca se resolve, sendo atualizado permanentemente nos altos e baixos da nossa vida amorosa. O relacionar-se significa encontrar um mágico equilíbrio nesse movimento (Canongia & Berlinck, 2010, p. 26). Este paradoxo parece permear a relação entre Luiza e sua mãe, estendendose para o irmão Caio: a dependência de Luiza com relação à mãe gera nesta a sensação de estar sendo consumida e “sufocada” (sic mãe) pela menina e, em contrapartida, a mãe diz que Luiza é o seu bebê. O irmão Caio por passar horas entretido com seus aparelhos eletrônicos, aparentemente goza de certa liberdade e autonomia para realizar suas atividades, sendo, no entanto, criticado por isto. Na verdade, o isolamento de Caio pode mostrar a outra face da moeda do apego desmesurado pela falta, isolando-se como defesa para não sofrer a falta do objeto. Na última hora lúdica diagnóstica, Luiza demonstrou modalidade de abordagem na forma de aproximação. Entrou na sala, escolheu os brinquedos e 64 iniciou o desenvolvimento de sua atividade. Nas sessões anteriores as formas de abordagem foram de observação à distância e/ou dependência do estagiário. Quanto ao tipo de Jogo, verificou-se progresso com começo, meio e fim das atividades, incluindo processos de socialização como no momento em que brincou de casinha com outra criança pertencente ao grupo. Sobre a modalidade de brincadeiras de Luiza percebeu-se maior plasticidade no brincar do que antes, onde a criança expressou um amplo espectro de sua vida emocional de modo integrado e fluente. A motricidade mostrou-se adequada novamente para sua idade o que lhe permite “o domínio dos objetos do mundo externo e a possibilidade de satisfazer suas necessidades com autonomia relativa.” (Ocampo et al., 2003, p.222). No aspecto da criatividade verificou-se no desenho de Luiza um “ego plástico capaz de abertura para experiências novas.” (Ocampo et al., 2003, p.223). Também demonstrou evolução gráfica em relação aos desenhos anteriores. Quanto à adequação à realidade e resistência à frustração e separação da mãe, foi surpreendente quando a supervisora fechou a porta, colocando um limite na relação sensorial e visual da criança para com sua mãe que permaneceu sentada ao corredor. Percebeu-se, pela primeira vez, a possibilidade de Luiza desprender-se da mãe e atuar de acordo com sua idade cronológica, demonstrando a compreensão e a aceitação da realidade. A atitude de Luiza de continuar suas atividades lúdicas com a porta da sala de atendimento fechada, naturalmente e despretensiosamente, o que antes não era possível, nos permitiu levantar a hipótese sobre o efeito terapêutico do processo diagnóstico, mesmo não sendo este seu objetivo, no sentido de capacitar Luiza e sua mãe a lidarem com a dor e para romperem o vínculo simbiótico psicológico existente entre ambas, caminhando do narcisismo primário “que é a base da autoestima, da valorização de si mesmo” (Griffa, 2010, p.210-211), acedendo à situação triangular. No desenho feito, a criança aparece sozinha, talvez, confirmando uma maior integração do eu. Encontramos em Mahler que a angústia existencial humana é “[...] a eterna luta do homem contra a fusão e o isolamento [...]” (Mahler, 1979). Ao retomarmos a fala da mãe de Luiza ao dizer que a menina “não largava dela para nada”, nas primeiras sessões e compará-la à maneira como Luiza dirigiu65 se à sala de atendimento e interagia com os estagiários e outras crianças, observamos importante mudança, relacionada diretamente à queixa inicial. Segundo Mahler (1979), o ciclo vital pode ser julgado como um processo mais ou menos bem sucedido de distanciamento da mãe simbiótica e de introjeção da sua perda, sendo este trajeto percorrido por ambos, mãe e bebê. No caso de Luiza, observou-se que possivelmente parte dos comportamentos regredidos da criança, recebia o incentivo, ainda que inconsciente da mãe, para sua manutenção, pelos seus próprios conflitos e imaturidade emocionais, provavelmente não tratados a seu tempo. Podemos ilustrar isso pela fala da mãe, em sessões anteriores: “eu trato eles (os filhos) como meus bebês” (sic mãe). Segundo Mahler, A mãe transmite – de inúmeras maneiras – uma espécie de “plano referencial de espelho” ao qual se ajusta automaticamente o self primitivo do filho. Se a “preocupação inicial” da mãe com seu bebê – sua função de espelho durante a primeira infância – é imprevisível, instável, dominada pela ansiedade ou hostil; se a confiança em si própria como mãe é fraca, a criança em processo de individuação tem de haver-se sem um plano de referência seguro para “comparar”, perceptiva e emocionalmente, o parceiro simbiótico (Mahler, 1982, p. 73). Acredita-se que este “plano de referência” a que Luiza teve acesso, transmitido por sua mãe, tenha contribuído para determinar a natureza das relações que ela estabeleceu com o meio, não se constituindo em um plano seguro o suficiente para que ela dirigisse-se ao terceiro, denotando um núcleo confusional e indiscriminado em seu eu. Com o decorrer das sessões e o estabelecimento de vínculos com os estagiários e com o grupo de atendimento psicológico em psicodiagnóstico interventivo, Luiza demonstrou um movimento progressivo de separação da mãe que culminou e coincidiu com o final do processo do psicodiagnóstico, como se ela estivesse sendo, a cada sessão, preparada para dar este passo em direção a sua individuação. Luiza demonstrou estar em condições de iniciar este processo de separaçãoindividuação, necessitando, no entanto, da participação e permissão de sua mãe, pois conforme mencionado por Mahler “enquanto as crianças crescem e sua personalidade se desenvolve, mostrando crescente complexidade, continuamos a encontrar, como seu núcleo central e impregnando-a inteiramente, o resíduo da mais 66 primitiva relação mãe-filho” (Mahler, 1982, p. 34) que nesse caso tratou-se de um resíduo de um núcleo confusional e indiscriminado. Bem, na entrevista final devolutiva para pais em conjunto com a criança, diferentemente de seu comportamento durante a atividade de colagem anterior, Luiza não consultou os pais sobre como fazer e o que fazer durante a construção conjunta do livro história, mostrando certa autonomia com relação a suas escolhas, impondo seu ritmo, ditando o tom da atividade, enquanto seus pais, por sua vez, não se anteciparam e souberam aguardar Luiza pacientemente, observando seu empenho e habilidade ao escolher e colar as figuras, contar a história. A mudança parece ter ocorrido para todos os envolvidos, inclusive para os estagiários, que a essa altura, ao observarem tais mudanças, deram-se conta de que iriam levar na bagagem a grata experiência de seu primeiro atendimento-supervisionado em uma clínica-escola. Considerações finais No processo do psicodiagnóstico interventivo aqui relatado, para a compreensão do caso e para o planejamento de intervenções, levamos em conta os conceitos de Margaret Mahler (1979) de “separação e individuação” e de “plano referencial de espelho”. Para Mahler, o ciclo vital pode ser julgado como um processo mais ou menos bem sucedido de distanciamento da mãe simbiótica e de introjeção da sua perda, sendo este trajeto percorrido por ambos, mãe e bebê. Se o “plano referencial de espelho” oferecido pela mãe não for seguro, a criança permanece sem norte perceptivo e sem pontos de discriminação que possibilitem seu acesso à realidade e que permitam seu desenvolvimento psicossocial e emocional. No caso estudado, observou-se que possivelmente parte dos comportamentos regredidos da criança recebia o incentivo, ainda que inconsciente, da mãe para sua manutenção. Acreditamos que, pela depressão pós-parto, a mãe não pôde oferecer um plano de referência confiável para o desenvolvimento de sua 67 filha, contribuindo para determinar a natureza das relações de dependência e de insatisfação que a menina estabeleceu com o meio, não se constituindo em um plano seguro o suficiente para que se dirigisse ao terceiro. Pode ter sido criado, então, um núcleo confusional em seu eu, prejudicando seu acesso à individuação. Outro ponto teórico de apoio importante foi a teoria de Winnicott (1956) de acordo com o qual o bebê encontra-se em uma situação de dependência desde a gestação até após o nascimento, o que tende a diminuir à medida que a mãe consegue auxiliá-lo neste processo de integração. No caso atendido, a mãe não pode experimentar o estado de preocupação materna primária, que consiste em saber atender às necessidades vitais de seu filho logo antes e logo após o parto, dada a uma sintonia sutil que ela não pode estabelecer com seu bebê. Segundo o autor, normalmente a mãe passaria, nesse período, a sentir o que o bebê sente e necessita, constituindo uma relação considerada recíproca e complementar. Não havendo essa possibilidade pela depressão pós-parto da mãe e pelo risco de vida sofrido pelo bebê, a criança cresceu insegura com dificuldades na integração do self. Assim, no caso estudado, a menina mostrou dificuldade em distanciar-se do vínculo materno primário, estando impedida a conquista de sua autonomia e a entrada do pai na relação, havendo insegurança para explorar o mundo externo e para investir em outras pessoas e objetos, que não a mãe, pois ainda esperava desta receber apoio como um pequeno bebê. Percebemos, assim, a importância das primeiras relações para o bom desenvolvimento afetivo e social e a possível influência da depressão pós-parto nos desvios de desenvolvimentos futuros, como no caso atendido. A atualidade dos conceitos de “separação-individuação” e de “plano referencial de espelho” idealizados por Mahler, bem como da importância do processo de “preocupação materna primária” colocado por Winnicott ficam, então, nesse trabalho, sinalizados. Procuramos neste artigo ressaltar as temáticas estudadas, destacando suas manifestações simbólicas nas diversas fases do psicodiagnóstico interventivo no caso de Luiza e em sua relação familiar, em especial com sua mãe, buscando destacar a construção de um saber de forma paulatina e a compreensão dos 68 conflitos de natureza psíquica nas diversas partes do psicodiagnóstico, mostrando que todas essas partes podem formar, ao final, um todo compreensivo. No caso de Luiza e de sua família tais conhecimentos foram corroborados pelos pais e pela criança na entrevista final devolutiva, onde foi possível observar a abertura para o inicio de uma nova configuração nas relações familiares e, principalmente da mãe Julia e da filha Luiza. No entanto sabemos que se trata de apenas um inicio e que as resistências às mudanças são, quando se tratam de movimentos de natureza inconscientes, infindáveis. Como estudiosos do humano, pudemos, no entanto, aprender com a experiência. Referências AGUIAR, E. A Postura Fenomenológico-Hermenêutica. In: AGUIAR, E. Desenho Livre Infantil: leituras fenomenológicas. Rio de Janeiro: Epapers, 2004. p.15-27. ALMEIDA, T. A Nossa Casa: Uma sessão estruturada na terapia de família com crianças. In: CRUZ, H. M. (org.) Papai, Mamãe, Você... e Eu? Conversações terapêuticas em famílias com crianças. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. ANCONA-LOPEZ, Marilia. Contexto geral do diagnóstico psicológico In: TRINCA, Walter (org.) Diagnóstico Psicológico – a prática clínica. São Paulo: EPU, 1984. p.113. ANCONA-LOPEZ, S. (org.) Psicodiagnóstico Interventivo: Evolução de Uma Prática. São Paulo: Cortez Ed., 2013. ARZENO, M.E.G. O primeiro contato na consulta. In: ARZENO, M.E.G. 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Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre a Infância, a Adolescência e a Família (LEIF) do Núcleo de Estudos Multidisciplinares em Psicologia (NEMPSI) da Universidade Católica Dom Bosco – MS. Supervisora de estágio em Psicologia Clínica na Graduação em Psicologia e Orientadora no Mestrado em Psicologia. Atualmente é professora titular na Universidade Paulista e na Faculdade de Americana. E-mail: [email protected] Lionela Ravera Sardelli Sardelli: Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1984) e mestrado em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Atualmente é professor adjunto da Universidade Paulista. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em intervenção terapêutica, saúde mental e avaliação psicológica. E-mail: [email protected] 73 DANIEL, QUE ACREDITA QUE UM DIA PODERÁ SER O QUE SEMPRE FOI, OU SEJA, UMA MULHER: TRANS-FORMAÇÕES NO PROCESSO TERAPÊUTICO DE UMA TRANSEXUAL Yurín Garcêz de Souza Santos Manoel Antônio dos Santos Introdução A transexualidade é considerada um fenômeno complexo e multifacetado. Nesse contexto, o conceito de transexualidade que emerge das diversas teorias que abordam a questão da diversidade sexual aponta para um aspecto consensual: a existência de uma incoerência radical e irredutível entre sexo e gênero (Arán, 2006). E o que é o sexo? De acordo com Picazio (1998), entende-se por sexo biológico aspectos relacionados às características genotípicas e fenotípicas de um corpo, variando ao longo de um continuum que tem, em um de seus extremos, o homem e, na outra extremidade, a mulher, sendo seu ponto intermediário o hermafrodita. Por essa perspectiva biologicista, o que definiria como seremos tratados quando nascemos – se como meninas ou como meninos – são as gônadas sexuais. O gênero, por sua vez, está relacionado, ainda de acordo com Picazio (1998), à identidade sexual, ou seja, a como a pessoa que possui determinado corpo acredita ser. Assim, a identidade sexual varia, como o sexo biológico, em um continuum que tem, em seus extremos, o “ser homem” e o “ser mulher”, mas que tem como ponto central o transgênero. De maneira geral, o pressuposto inicial é o de que o sexo é definido pela natureza, fundamentado na organicidade do corpo, que define o equipamento biológico e genético com que nascemos, enquanto que o gênero seria adquirido por meio da cultura. Entretanto, essa concepção está baseada na percepção de que o sexo biológico – isto é, ser homem ou ser mulher – é um dado natural, não tributário de aspectos históricos e sociais em seu desenvolvimento conceitual, e que o gênero, ao contrário, é resultado de uma construção social e histórica. Levando-se em consideração esses pressupostos, vê-se que, se por um lado a tese é determinista e por outro construtivista, a possibilidade de compreensão das subjetividades e das sexualidades acaba ficando extremamente restrita (Arán, 2006). 74 O indivíduo transexual é entendido, de acordo com Becker (2008), como sendo aquele que invalida as regras básicas da diferenciação entre seres humanos e, em decorrência desse fato, é enquadrado no conceito de desviante de uma norma heterossexualmente definida. Transexual é aquele que infringe uma regra que pode ser entendida como produto de um consenso social estabelecido por determinada comunidade em dado período histórico ou, ainda, fruto de uma construção do que é desviante da norma heterossexual e, como tal, classificado como indesejável, abjeto ou patológico. A palavra transexualidade tem sua origem na língua inglesa que, por sua vez, tomou-a do latim trans e sexualis, conotando a noção de passagem de um sexo para outro. Contudo, refere-se a um estado psíquico, uma vez que é sobre o aspecto da identidade e da vida afetivo-sexual que se dá a obstinada busca por adequação dos indivíduos trans (Pinto & Bruns, 2003). Colocada em uma perspectiva histórica, a marca de nascimento do fenômeno da transexualidade na nossa era é a intervenção, praticada por Christian Hamburger em 1952 na Dinamarca, em um jovem de 28 anos, que fora batizado como George Jorgensen, ex-soldado do exército norte-americano. No ano seguinte, Harry Benjamin criou o conceito de transexualismo e, fundamentado em estudos biológicos do século XX, propôs que não existiria uma divisão claramente marcada entre o “masculino” e o “feminino”, sendo insuficiente a determinação da sexualidade de um indivíduo baseada exclusivamente nas diferenças anatômicas (Arán, Zaidhaft & Murta, 2008). Ainda de acordo com esses autores, para Benjamin a sexualidade seria composta por diversos aspectos, como cromossômico, genético, anatômico, genital, gonático, legal, germinal, endócrino, psicológico e social, sendo que é a prevalência de um desses fatores que definirá o sexo de um indivíduo, em conjunto com a influência do ambiente no qual ele está inserido. Nesse sentido, os “sexos” não são fixos, sendo passíveis de modificação por meio de tratamentos hormonais ou procedimentos cirúrgicos (Arán, Zaidhaft & Murta, 2008). No Brasil, em 1997, o Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da Resolução 14.821, autorizou a realização de cirurgias de transgenitalização em pacientes transexuais, afirmando seu caráter terapêutico. Assim, a legitimação da 75 prática no país partiu do pressuposto de que a pessoa transexual é portadora de desvio psicológico permanente de identidade sexual, rejeitando o fenótipo e tendendo à automutilação ou autoextermínio (Arán, Murta & Lionço, 2009). Ainda de acordo com essas autoras, para que seja realizada a cirurgia, o paciente deve preencher critérios mínimos, que incluem avaliação de equipe multidisciplinar e acompanhamento psicológico por um período mínimo de dois anos, configurandose, assim, o diagnóstico de “transexualidade”. Nota-se, aqui, a acepção que o termo “transexualidade” adquire no discurso biomédico. O conceito atual de transexualidade, no que se refere à psiquiatria e também à psicanálise, parte do pressuposto de que existiria uma psicopatologia, um “transtorno de identidade de gênero”, haja vista a não conformidade entre sexo e gênero. Contudo, se levado em consideração ainda o vértice psicanalítico, a transexualidade pode ser vista, também, como uma psicose, uma vez que existe a recusa da diferença sexual, que é base da castração simbólica que inscreve o sujeito no plano da cultura e da sociedade (Arán, 2006). Fica evidente nesses discursos científicos que a concepção de transexualidade, para diferentes áreas do conhecimento, está fundada em uma noção normativa, tanto dos sistemas de sexogênero quanto da diferença sexual. Segundo a referida autora, em um modelo cartesiano de entendimento, a matriz binária heterossexual se apresenta, então, como um sistema regulador tanto das sexualidades quanto das subjetividades dos indivíduos. Em contrapartida, de acordo com Butler e Rios (2009), se receber o diagnóstico de transtorno de identidade de gênero significa, até certo ponto, ser considerado doente, anormal, disfuncional, errado e, por conseguinte, estar sujeito à estigmatização em consequência desse diagnóstico, alguns psiquiatras ativistas e as próprias pessoas trans têm argumentado no sentido de que o diagnóstico deveria ser completamente eliminado. Nessa vertente, afirma-se que a transexualidade não é um transtorno psiquiátrico e não deve ser entendida como tal, o que sugere que as pessoas que se identificam no devir trans estariam engajadas em um exercício de busca de autonomia e autodeterminação (Butler & Rios, 2009). No tocante à discriminação sofrida por indivíduos trans, um estudo realizado por Carrara, Ramos e Caetano (2003) revelou que travestis e transexuais são alvos 76 preferenciais de práticas discriminatórias e de violência verbal, atingindo 65,4% das ocorrências, em comparação com o que sofrem os gays, lésbicas e bissexuais (41,5%). O mesmo estudo revelou ainda que, no que se refere às agressões físicas, a proporção de ações dirigidas a indivíduos transexuais ou travestis aumenta para 42,3%, ao passo que para lésbicas cai para 9,8%, em contraste com gays (16,6%) e bissexuais (7,3%). Para alguns profissionais de saúde, assim como para alguns operadores do Direito, a despatologização da transexualidade é, além de desejável, uma tendência histórica inevitável. Se, por um lado, possa parecer que os discursos médicos e jurídicos assumem sempre feições monolíticas, ingênuas e acríticas, essa visão estreita escamoteia a pluralidade de sujeitos advindos de variadas formações acadêmicas, que tratam do tema com seriedade e respeito pelo indivíduo que vive a condição trans, deixando de lado padrões patologizantes (Almeida, 2012). Nesse contexto, como afirmado por Lionço (2008), o Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, mostrou estar na vanguarda frente ao tema ao assegurar um atendimento humanizado, livre de preconceito e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, assegurando, também, o uso por parte dos profissionais de saúde, do nome social para travestis e transexuais, como uma estratégia de promoção do acesso ao sistema. Toledo e Pinafi (2012) afirmam que a intervenção clínica, dentro do contexto da diversidade sexual, é feita no rompimento dos limites e das fronteiras, por meio de um intercessor definido como agente disparador do movimento em direção à mudança, ou seja, à transformação. Para as referidas autoras, a clínica não deve levar o paciente a cristalizar uma identidade rígida, seja ela qual for, mas, ao contrário, deve produzir e garantir a liberdade, plena de responsabilidades, do fluxo existencial, fazendo com que sejam asseguradas novas possibilidades e modos de ser. Assim, seriam possíveis novos modos de subjetivação, que permitam aceder outras configurações de sujeito. Ainda é escassa, no SUS, a oferta de espaços de intervenção e acolhimento para a população LGBT, especialmente travestis e transexuais. Também se observa uma flagrante carência de investimentos na formação de profissionais de saúde com sensibilidade e competência técnica para operar com essa franja da sexualidade 77 humana. Também há escassez de estudos dedicados ao contexto psicoterapêutico em que são acolhidas as pessoas trans. Considerando o exposto, o presente estudo tem por objetivo apresentar aspectos do atendimento psicoterapêutico de uma paciente transexual homem-para-mulher, atendida no contexto de uma clínica psicológica universitária, que oferece um serviço de assistência voltado à população trans. Método Trata-se de um estudo de caso, que se apresenta como uma amostra da prática clínica realizada nos anos de 2012 e 2013, referente a atendimentos psicológicos individuais a pessoas inseridas em contexto de diversidade sexual. Por meio do estágio denominado “Intervenções Psicológicas Inovadoras: Trabalhando com Casais, Grupos e Pessoas Homossexuais”, oferecido pelo curso de graduação em Psicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, e mantido pelo Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Social – VIDEVERSO, foram realizadas, na clínica-escola, atendimentos semanais, baseados em uma abordagem psicodinâmica, com paciente transexual homem-para-mulher. Os atendimentos iniciaram-se em março de 2012 e tiveram seu término em maio de 2013. As sessões tinham duração de 50 minutos e foram realizadas em uma mesma sala de atendimento da instituição, a fim de que se preservasse o setting terapêutico. A paciente, Beatriz (nome fictício), que anteriormente se chamava Daniel (nome de batismo fictício), tinha 22 anos. Foi encaminhada por meio do serviço de acolhimento e triagem da clínica-escola. Assim, além do acompanhamento psicoterapêutico realizado na clínica psicológica, Beatriz também fazia tratamento hormonal havia seis meses, com acompanhamento quinzenal no Ambulatório de Estudos da Sexualidade Humana do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo. A partir desse acompanhamento, buscou atendimento psicológico, a fim de cumprir um dos requisitos necessários para receber indicação para a cirurgia de transgenitalização. O processo psicoterapêutico foi desencadeado após uma entrevista inicial, na qual 78 se buscou oferecer acolhimento para que as demandas da paciente fossem explicitadas ao psicoterapeuta e que se firmasse o contrato de trabalho. A partir de então iniciaram-se as sessões de psicoterapia. As sessões foram transcritas de memória pelo pesquisador-psicoterapeuta, ao final de cada sessão, constituindo o corpus de pesquisa. Resultados e discussão A trajetória clínica de Beatriz é marcada por uma série de vicissitudes e conflitos familiares. Inicialmente, alegou que buscara a psicoterapia apenas como uma exigência do processo para se qualificar para a cirurgia de redesignação sexual. No entanto, a paciente apresentou, em seu discurso, demandas outras, passíveis de análise e reflexão. No que se refere ao seu desenvolvimento emocional, Beatriz mostra-se, desde sua infância, como não identificada ao seu sexo biológico, o que gerou muitos conflitos e embates desde etapas precoces de seu desenvolvimento, principalmente com seus pais. Durante a infância, a paciente relata que sempre foi solitária e, em decorrência da percepção que tinha de sua própria sexualidade, não conseguiu estabelecer vínculos significativos com amigos durante o período em que permaneceu na escola. É interessante notar que, ainda que na sua percepção sobre a infância prevaleça a convicção de ter sido uma pessoa solitária, foi no contato com o outro que Beatriz encontrou um nome com o qual se sentia confortável. Isto é, a paciente afirma ter escolhido seu nome social a partir de uma aluna de sua turma, que era considerada a mais bonita da escola e que se chamava Beatriz. A relação com seus familiares também se mostrou, no relato da paciente, conflituosa. Sua mãe dizia, desde sua adolescência, que ao completar a maioridade a expulsaria de casa devido a seu comportamento, por ela considerado anormal e motivo de desgosto familiar. De fato, cumprindo o prometido, ao completar 18 anos, a mãe de Beatriz a mandou ir embora de casa. Ela conta que dormiu na rua por uma noite. Ainda que contrária à vontade de seu pai, a opinião da mãe prevaleceu e Beatriz permaneceu por um ano distante do seu contexto familiar. Auxiliada por uma senhora, amiga da família, a paciente conta que conseguiu manter-se viva durante esse período, até que, em decorrência de um pedido de seu irmão mais velho, a 79 mãe a acolheu novamente no convívio familiar. Desde então, a relação entre as duas foi restaurada e parece estar relativamente tranquila no momento atual. É possível notar, então, uma inversão no comportamento da mãe. Se antes Beatriz era motivo de vergonha, no período em que durou o atendimento psicológico, de acordo com seu relato, a convivência com sua mãe mostrava-se relativamente tranquila e harmoniosa, o que foi evidenciado pelo fato de sua genitora não mais tratá-la pelo nome de batismo, Daniel, mas por seu nome social. Isso gerava grande contentamento na paciente. Em relação ao pai, Beatriz afirma que sempre manteve uma relação distante com seu genitor, a despeito de ele ter mostrado-se contrário à sua expulsão de casa quando ela completou a maioridade. Nesse sentido, relata um episódio instigante, ocorrido aos 15 anos de idade. Beatriz conta que entrou no banheiro de sua casa acidentalmente, enquanto seu pai urinava e, por conseguinte, foi duramente ofendida e ridicularizada por ele. Depois do ocorrido, relata que era por ele observada por diversas vezes pela janela do banheiro enquanto tomava banho, o que suscitava muita angústia na paciente. Seu pai, ao contrário de sua mãe, não a tratava pelo nome social, mas insistia em referir-se a ela por meio de seu nome de batismo. Beatriz afirma que, desde sua infância, era temente a Deus e pertencente a uma organização religiosa evangélica denominada Metodista Renovada. A paciente relata que participou do coral da igreja até sua adolescência quando, por conta da mudança de voz, própria da puberdade, foi distanciando-se dessa atividade que tanto lhe dava prazer. É curioso notar que a família sempre ia unida às reuniões da igreja e, ainda que existissem conflitos no âmbito das relações familiares, na igreja Beatriz encontrava paz e tranquilidade. A paciente deixava claro que, para sua religião, o fato de ela sentir-se em desacordo com seu corpo, ou seja, de ser transexual, equivalia a “estar em pecado”. Entretanto, ela acreditava que Deus amava-a e aceitava-a como ela era, caso contrário, não teria permitido que ela viesse ao mundo. O vínculo que mantinha com a religião influenciava diretamente sua relação com sua sexualidade. Beatriz não se permitia sentir prazer, afirmava não pensar em “coisas erradas” e que sexo, para ela, só seria possível após o casamento. 80 Nesse sentido, levando-se em consideração o modo como se deu a construção de sua sexualidade, a paciente, durante as sessões, não conseguia pronunciar termos relativos ao sexo, como órgãos genitais, masturbação, orgasmo, entre outros. Sentia-se extremamente desconfortável e, por vezes, ocultava seus olhos com as mãos ao se referir a esse tema, em expressão indicativa de vergonha. Ao mesmo tempo, afirmava não gostar dos atendimentos realizados no Ambulatório de Sexualidade, onde fazia acompanhamento hormonal e também terapêutico, justamente pelo fato de que lá aconteciam discussões que tinham em seu cerne a questão da sexualidade, o que forçava a paciente a ter que entrar em contato direto com esse aspecto de sua vida. Beatriz relata que não manteve relacionamentos duradouros com outras pessoas justamente em decorrência do preconceito e de sua timidez frente ao outro. De acordo com a paciente, sempre que ela revelava sua condição transexual a seus namorados/parceiros, eles prontamente terminavam o relacionamento. Por outro lado, Beatriz apresentava-se durante a psicoterapia como uma “mulher que tem um defeito”, não como transexual. O preconceito percebido pela paciente também pôde ser notado no que se refere aos trabalhos desempenhados por ela ao longo de sua vida. Durante as primeiras sessões, trabalhava em uma loja de materiais de telecomunicação e, como afirmado por ela, quase que diariamente era ridicularizada por clientes da loja ou, por uma outra vertente, era constantemente convidada para encontros sexuais casuais. Esses dissabores fizeram-na desistir desse emprego. Com a ajuda do pastor de sua igreja, Beatriz conseguiu uma colocação em um salão de beleza, do qual o pastor era dono. Era responsável pela limpeza do estabelecimento e, eventualmente, auxiliava cabeleireiros e manicures no trato dos clientes. É interessante notar, no decorrer das sessões, uma evolução na qualidade da relação da paciente com o terapeuta e entre a paciente e o mundo circundante. Se no início dos atendimentos Beatriz mostrava-se ansiosa, por vezes desviava o olhar e sempre se mostrava tímida e transpirava abundantemente, nas sessões posteriores conseguiu manter-se mais confortável dentro do setting terapêutico. Fisicamente também foi possível notar uma mudança na paciente: nos primeiros encontros Beatriz era morena, usava franja, vestia-se com roupas femininas um tanto quanto infantilizadas, mochila rosa e enfeitada com desenhos, sapatos 81 discretos e pouca maquiagem. No decorrer das sessões a paciente pintou o cabelo de loiro, passou a usar vestidos e roupas mais decotadas, bolsas próprias de mulheres adultas, maquiagem bem definida e lentes de contato verdes. O que ficou intensamente marcado no início do processo terapêutico foi justamente o fato de não aceitar seu pênis. A paciente afirmava que por vezes já pensara em se automutilar, chegando inclusive a se ferir durante uma tentativa desesperada de ablação do membro. O órgão masculino é por ela definido como “erro”. Em contrapartida, comunicava que jamais conseguiria realizar tal ato autodestrutivo, por não conseguir pensar no desgosto que causaria a seus pais caso tomasse essa atitude. Nesse sentido, o discurso de Beatriz vinha carregado de expectativas em relação à cirurgia de redesignação sexual, a qual estava prevista para ocorrer em meados de 2013. Como que em um passe de mágica, a paciente afirmava que, após a cirurgia, todos os seus problemas estariam resolvidos e ela, finalmente, poderia ser o que sempre foi, isto é, uma mulher. Ademais, foi possível notar, também, uma diferença marcante na sua forma de relacionar-se consigo mesma. Beatriz, que no início do processo mostrava-se preocupada com as impressões que causava às outras pessoas e sentia-se, como afirmado por ela própria, uma “louca” e uma “aberração”, conseguia, ao término do processo, olhar-se de forma mais carinhosa e importar/perturbar-se menos com a opinião e os olhares de estranhos, isto é, daqueles com os quais não mantinha relação alguma. Isso ficou evidenciado, por exemplo, pelo fato de afirmar que já conseguia externalizar suas opiniões no trabalho e que já não sentia mais vontade de chorar todas as vezes em que se via envolvida em algum conflito, como discussões familiares ou desentendimentos ocorridos no contexto de trabalho. Após um ano de acompanhamento psicoterapêutico, a paciente relata que se engajou em um relacionamento afetivo com um homem de sua idade e que optou pela interrupção da psicoterapia, dando como justificativa a falta de tempo, por conta do trabalho. Entretanto, em sua última sessão, ficou evidente a mudança de paradigma que se instaurou na vida de Beatriz. A paciente já não mais aguardava a cirurgia para que se realizasse enquanto mulher. Nesse sentido, afirmou que a cirurgia serviria somente como correção de um defeito que tinha, mas que, mais do que isso, apenas ela poderia fazer. 82 No que diz respeito às expectativas da pessoa transexual em relação à cirurgia de redesignação sexual, considera-se relevante a necessidade de ser tratado como uma pessoa do sexo oposto ao seu sexo biológico (Pinto & Bruns, 2003), o que pôde ser observado na relação de Beatriz com sua mãe, mas não com seu pai. Nesse sentido, o acompanhamento terapêutico mostra-se importante, na medida em que possibilita ao sujeito operar uma ressignificação das relações afetivas estabelecidas, propiciando uma visão ampliada dos vínculos e das pessoas. Além da vivência de seu novo papel anteriormente à cirurgia, é evidente que a realização do procedimento cirúrgico é ardentemente desejada, na medida em que propiciará uma adequação de seu corpo a seu gênero, eliminando assim o conflito que essa discordância origina (Pinto & Bruns, 2003). Entretanto, como assinalado por Arán, Zaidhaft e Murta (2008), é importante que se estimule o questionamento crítico do desejo dos pacientes pela cirurgia de transgenitalização, sendo este também um critério diagnóstico para a transexualidade. No caso de Beatriz, ficou evidente, em seu discurso, seu desejo incontestável pela cirurgia, pelo menos até a interrupção dos atendimentos. Além disso, é preciso considerar que já existe a previsão de alteração no registro civil de transexuais mediante diagnóstico, não sendo necessária a realização da cirurgia para que ocorra a mudança legal do nome de batismo original para o nome social escolhido pela paciente (Lionço, 2008), o que já havia sido conquistado por Beatriz. A cirurgia de redesignação sexual tem, para a pessoa transexual, um significado singular, pois representa uma forma de integração entre o indivíduo e a sociedade, e uma eliminação da dualidade sexual vivida pelo paciente (Pinto & Bruns, 2003). Levando-se em consideração os relatos de Beatriz, esse significado ficou evidenciado e ampliado, tendo em vista a sua visão de que “tudo iria mudar” após a realização da cirurgia. Nesse sentido, como afirmado por Pinto e Bruns (2003), o transexual homem-para-mulher, como é o caso de Beatriz, poderá assumir seu sexo feminino psicológico, vivendo de forma plena e íntegra, podendo conviver de maneira harmoniosa com seu corpo e assumindo uma atitude mais afetuosa e prazerosa consigo mesma. Contudo, cabe ressaltar que a intervenção cirúrgica, ao contrário do que parecia acontecer nas expectativas altamente idealizadas que foram explicitadas por Beatriz, não opera milagres. Ela carrega em si a possibilidade 83 de adequação do sexo, mas, ao mesmo tempo, não elimina a memória inconsciente de traumas vividos por cada indivíduo, que precisam ser resignificados no intuito de que haja uma harmonização entre o sexo biológico e o psíquico (Pinto & Bruns, 2003). De acordo com Toledo e Pinafi (2012), o objetivo da clínica psicológica voltada às necessidades do público LGBT não reside na tentativa de fazer com que o indivíduo, considerado como pertencente a uma minoria, viva feliz apesar de sua condição de marginalizado ou que se sinta “normal” diante de uma norma socialmente estabelecida. Para essas autoras, o importante na clínica é justamente fazer com que esses indivíduos assumam e apreciem positivamente sua diferença. Nesse sentido, fica evidente a evolução de Beatriz no que diz respeito à aceitação de sua condição. Ao afirmar que se sente “uma mulher com um defeito”, a paciente pode não estar necessariamente negando sua transexualidade, mas, ao contrário, afirmando sua condição de “mulher diferente” de outras mulheres, ou seja, de um sujeito transexual. Cabe ressaltar também que, ainda que a cirurgia de transgenitalização só seja autorizada após o estabelecimento do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero, evidenciando o caráter patologizante que é colocado sobre esses indivíduos, o mesmo movimento acabou por institucionalizar o debate sobre a transexualidade no âmbito da saúde pública no Brasil, permitindo aos transexuais o acesso ao tratamento e aos cuidados médicos e psicológicos, amenizando a sua condição de extrema vulnerabilidade (Arán, Zaidhaft & Murta, 2008). Contudo, de acordo com as referidas autoras, isso não significa que a solução encontrada para o reconhecimento de uma situação de sofrimento, isto é, a categorização em termos de um diagnóstico psiquiátrico, seja a forma mais adequada de socialização desses indivíduos. Não sendo o gênero uma essência, mas sim uma possibilidade de vir a ser, evidenciada por seu caráter sempre provisório de construção sócio-histórica, o destino dos indivíduos transexuais depende de atores políticos e clínicos implicados nas relações de ajuda, fazendo com que as possibilidades de subjetivação estejam de acordo com as contingências desses indivíduos. 84 Considerações finais Buscou-se, no decorrer do processo terapêutico, não a confirmação diagnóstica de um estado de transtorno de gênero, mas compreender uma trajetória singular de subjetivação, na tentativa de fomentar a abertura de possibilidades que permitissem que a transexualidade pudesse ser vivenciada e revelada em toda sua inteireza. Assim, como afirmado por Arán (2006), a transexualidade não faz com que seja fixada uma única posição subjetiva, mas, a partir do acompanhamento psicológico, permite que ocorra um deslocamento da manifestação social da transexualidade, permitindo que esta possa ser traduzida em uma modalidade de funcionamento específico e individual. Essa compreensão, se propagada pelos serviços de saúde, pode fazer com que ocorra uma fuga da tendência à psiquiatrização e, também, da violência exercida pela interpretação psicanalítica. No percurso de elaboração do presente estudo de caso ficou evidente a escassez de material acadêmico que se proponha a discutir a transexualidade a partir de uma perspectiva dos próprios indivíduos transexuais. Mais do que isso, ficou evidenciada a carência de estudos que tenham como referência a transexualidade. Nesse sentido, encontram-se trabalhos referentes ao preconceito e à estigmatização sofridos em decorrência da persistente patologização das pessoas desviantes da heteronormatividade compulsória, porém não se encontram estudos que apresentem a visão/versão daqueles que sofrem a ação desses processos. Questões referentes à saúde pública, no que diz respeito às DST/aids, ao uso de drogas e aos riscos sofridos pela tentativa desesperada de eliminação do órgão sexual masculino, são largamente discutidos; todavia, parece não existir a preocupação com a subjetividade desses indivíduos. Isso não significa que as pesquisas já produzidas e publicadas sejam de menor importância ou relevância prática, mas ao contrário, implica em dizer que é necessária uma visão ampliada desses sujeitos, legitimando seus anseios e aspirações, enquanto seres de desejo e portadores de direito e seres de desejo. É interessante que se produzam novas investigações, que permitam identificar as necessidades dos sujeitos trans e que expressem as particularidades inerentes às 85 relações estabelecidas por essas pessoas, distanciando-as do foco negativo da patologia e encarando-as como sujeitos do inconsciente e de cidadania, implicados em uma vida que vai além do discurso da diversidade sexual, não deixando de lado esse aspecto, evidentemente, mas ao mesmo tempo, não o colocando no cerne das discussões. Referências Almeida, G. (2012). Homens trans: novos matizes na aquarela das masculinidades? Revista de Estudos Feministas, 20(2), 513-523. Arán, M. (2006). A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Ágora, 9(1), 49-63. Arán, M. & Murta, D. (2009). Do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero às redescrições da experiência da transexualidade: uma reflexão sobre gênero, tecnologia e saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19(1), 15-41. Arán, M., Murta, D. & Lionço, T. (2009). Transexualidade e saúde pública no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 14(4), 1141-1149. Arán, M., Zaidhaft, S. & Murta, D. (2008). Transexualidade: corpo, subjetividade e saúde coletiva. Psicologia & Sociedade, 20(1), 70-79. Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Bento, B. (2011) Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Revista Estudos Feministas, 19(2), 549-559. Butler, J. & Rios, A. (2009). Desdiagnosticando o gênero. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19(1), 95-126. Carrara, S., Ramos S. & Caetano, M. (2003). Política, direitos, violência e homossexualidade: 8ª Parada do Orgulho GLBT – Rio. Rio de Janeiro: Pallas. Lionço, T. (2008). Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde & Sociedade, 17(2), 11-21. Picazio, C. (1998). Diferentes desejos: adolescentes homo, bi e heterossexuais. São Paulo: Edições GLS. 86 Pinto, J.C. & Bruns, M.A.T. (2003). Vivência transexual: o corpo desvela seu drama. Campinas: Átomo. Toledo, L. G & Pinafi, T. (2012). A clínica psicológica e o público LGBT. Psicologia Clínica, 24(1), 137-163. Sobre os autores Yurín Garcêz de Souza Santos: Graduando em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Bolsista de Iniciação Científica da FAPESP. E-mail: [email protected] Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPSUSP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected] Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP. 87 Parte II POR UMA CLÍNICA-ESCOLA AMPLIADA: EXPERIÊNCIA DE INSERÇÃO DA PSICOLOGIA NO ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR EM BULIMIA E ANOREXIA JUNTO AO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Érika Arantes de Oliveira-Cardoso Manoel Antônio dos Santos Introdução Nesta exposição apresentaremos a experiência de uma clínica extramuros, ou mais precisamente, delinearemos a expansão da clínica-escola para dentro do espaço hospitalar e do Sistema Único de Saúde (SUS), descrevendo a participação de alunos de graduação (estagiários) do curso de Psicologia e alunos de pósgraduação junto a um serviço de atenção multidisciplinar, especializado no tratamento dos transtornos do comportamento alimentar. A inserção da equipe de Psicologia no Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares (GRATA) do Ambulatório de Nutrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HC-FMRPUSP) surgiu em 2000 a partir de uma parceria estabelecida entre a Universidade, por intermédio do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq), do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), e o hospital geral de nível terciário e quaternário (FMRP-USP). Essa aproximação proporcionou à equipe multidisciplinar um olhar mais abrangente, considerando as dimensões psicossociais do processo de saúde-doença e tratamento dos transtornos alimentares (TAs). Por outro lado, para os estagiários e psicólogos vinculados ao LEPPS, representou uma rica possibilidade de intervenção em contexto diferente da clínica-escola tradicional. Anorexia Nervosa (AN) e Bulimia Nervosa (BN) constituem os tipos mais conhecidos de TAs (Doyle & Bryant-Waugh, 2000), que podem ser caracterizados 88 como quadros psicopatológicos marcados por grave perturbação do comportamento alimentar, que afeta, na maioria das vezes, adolescentes e adultos jovens do sexo feminino (Borges, Sichieri, Ribeiro, Marchini, & Santos, 2006). A BN é caracterizada por episódios de ingestão alimentar exagerada, que em geral são atos secretos e rápidos, que só cessam por mal-estar físico, interrupção externa (chegada súbita de outra pessoa) ou porque os alimentos esgotaram-se (Azevedo & Abuchaim, 1998). A AN caracteriza-se pela recusa deliberada em comer alimentos e em manter-se no peso mínimo desejável para sua idade e estatura. Tanto na AN como na BN o peso e o formato corporal exercem importante influência na determinação da autoestima dos pacientes (Hay, 2007). Atualmente, acredita-se na conjunção de diversos fatores, que contribuiriam para a predisposição, instalação e manutenção dos sintomas dos TAs. Dentre os fatores mais relevantes destacam-se: a dinâmica das relações familiares, o meio sociocultural e o modo de funcionamento da personalidade (Dupont & Corcos, 2008; Oliveira & Santos, 2012). Os próprios pacientes reconhecem a proeminência desses fatores na etiopatogenia do transtorno, como mostra um estudo qualitativo realizado com pacientes com AN, no qual foram aplicadas entrevistas abertas a partir da seguinte questão norteadora: “Quais você acha, hoje, que foram as razões que a levaram a ter AN?”. As participantes apontaram como respostas: fatores internos, familiares e socioculturais (Nilsson Abrahamsson, Torbiornsson, & Hägglöf, 2007). Nota-se um padrão de confusão nas famílias, marcado especialmente pelas dificuldades no plano dos relacionamentos interpessoais e pela presença de conflitos que os familiares tenderiam a ocultar (Ma, 2008). As relações familiares podem tanto contribuir para o desencadeamento e manutenção do TA (SalbachAndrae et al, 2008), como os familiares podem ser afetados emocionalmente pelo acometimento de um dos seus membros, aumentando sua suscetibilidade a sintomas de desgaste físico e emocional (Wagner et al., 2008). É reconhecida, nas últimas décadas, a importância que a sociedade ocidental atribui à aparência física, elegendo como padrão de beleza o corpo esbelto, jovem e 89 malhado, instaurando o que alguns autores denominam de “ditadura da magreza” (Borges et al, 2006; Kreling & Santos, 2005). Na contemporaneidade os meios de comunicação de massa perpetuam esse ideal de magreza e reforçam o estigma em relação ao ganho de peso, o que pode influenciar no desencadeamento e manutenção dos TAs (Lawrie, Sullivan, Davies & Hill, 2006). O funcionamento afetivo-emocional, via de regra, se encontra muito perturbado nesses quadros psicopatológicos, caracterizados por grave perturbação do comportamento alimentar. Por razões peculiares, pacientes que apresentam esse tipo de sofrimento psíquico associam à alimentação medos, ansiedades e culpas (Cabrera, 2006). Considerando esses pressupostos, este estudo teve como objetivo discorrer sobre os aspectos emocionais da Anorexia e Bulimia Nervosas, de modo a delinear possibilidades de intervenções terapêuticas e refletir sobre o papel do profissional de Psicologia nesse contexto. 1. Aspectos emocionais dos TAs O perfil de personalidade dos pacientes com AN apresenta, tipicamente, uma constelação de características como: baixa autoestima, ansiedade elevada, perfeccionismo extremo, pensamento dicotômico, incapacidade de encontrar formas de satisfação adequadas (Abreu & Cangelli, 2004). Pacientes com NA mostram acentuada fragilidade egóica, são propensos à utilização de mecanismos arcaicos de defesa, caracterizam-se por uma restrição do potencial adaptativo, controlam os próprios impulsos com excessivo rigor e tendem à passividade, introversão, obsessividade e dependência (Connan, Troop, Landau, Campbell, & Treasure, 2007; Santos & Peres, 2006). Pacientes com BN tendem a apresentar emoções e pensamentos desadaptados, autoestima flutuante e, por vezes, exibem atitudes caóticas em outros aspectos da vida, como nos estudos, na atividade profissional e nas relações amorosas (Abreu & Cangelli, 2004). As dificuldades no controle dos impulsos e 90 emoções desempenhariam um papel importante no desenvolvimento e manutenção dos sintomas (Markey & Vander, 2007). Apesar de apresentarem prejuízos no ajustamento interpessoal, com tendência a manterem relações afetivas instáveis, as bulímicas são sexualmente mais ativas do que as pacientes com AN (Grabhorn, Stenner, Stangier, & Kaufhold, 2001). Do ponto de vista da sintomatologia psíquica, os TAs assemelham-se no que concerne à marcada distorção da imagem corporal, que acarreta medo mórbido de engordar, preocupação excessiva com a alimentação e um permanente desejo não realista de emagrecimento (Silva & Santos, 2006). 2. Possibilidades de intervenções terapêuticas Diante da complexidade de que se revestem esses quadros, o tratamento exige a intervenção de uma equipe multiprofissional de saúde. No caso do GRATA, a equipe especializada é composta por médicos nutrólogos, nutricionistas, psiquiatras, psicólogos e estudantes-estagiários de psicologia, além de enfermeiros e terapeutas ocupacionais nos casos que demandam internação. Os profissionais, em sua maioria, exercem atividade voluntária, já que se inserem em uma instituição macro-hospitalar pública, de natureza acadêmica e científica, que presta atendimento universal. Desse modo, o serviço atende indivíduos de diferentes camadas sociais, devido à sua inserção no SUS. As modalidades de assistência oferecidas pelo GRATA, em nível ambulatorial, funcionam com frequência semanal. Compreendem: atendimentos clínicos individuais acompanhamento realizados psiquiátrico, por nutrólogos, atendimentos nutricionistas psicoterápicos e psicólogos, individuais para pacientes e alguns familiares, psicodiagnóstico, grupo de orientação médiconutricional e grupo de apoio psicológico aos familiares. Nos casos de internação ocorre também a participação de enfermeiros, médicos e terapeutas ocupacionais (Silva & Santos, 2006). No decorrer dos atendimentos, os resultados são socializados entre os membros da equipe durante as discussões que ocorrem nas reuniões semanais, 91 momento em que se avalia a evolução dos pacientes e decidem-se as condutas clínicas. 3. Importância do profissional de psicologia na equipe Mais especificamente, o psicólogo contribui por meio da obtenção e organização de dados acerca da singularidade do funcionamento psicodinâmico, dos fenômenos psicopatológicos subjacentes a esses quadros e de suas implicações na clínica. Esse conhecimento é primordial para que se possam traçar estratégias mais efetivas de ação (Oliveira & Santos, 2006). A intervenção do psicólogo inicia-se no caso novo, momento em que são realizadas entrevistas clínicas com os pacientes ingressantes e seus familiares. Os dados obtidos nessas entrevistas são posteriormente discutidos e integrados com os resultados das avaliações da psiquiatria, da nutrição e nutrologia. A discussão multidisciplinar possibilita que seja traçado um plano terapêutico individual, que deverá nortear o processo de intervenção a ser instituído. Em alguns casos, quando detectada a necessidade de avaliação psicodiagnóstica, acrescentam-se às entrevistas alguns instrumentos projetivos (técnicas gráficas, Psicodiagnóstico de Rorschach, Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister, Teste de Apercepção Temática), bem como questionários e escalas que permitem avaliar ansiedade, depressão, estresse e qualidade de vida. As modalidades de intervenção oferecidas podem ser individuais e/ou grupais, e são direcionadas para pacientes e familiares, sendo adotada uma estratégia psicoterapêutica de duração breve, que tem como foco os aspectos emocionais associados ao adoecimento e/ou despertados pelo tratamento. Um importante papel desempenhado pelos profissionais e estagiários de Psicologia é a contribuição nas discussões de casos realizadas pela equipe multiprofissional, auxiliando na avaliação da evolução de cada paciente e pensando juntos as possibilidades de condutas, quando necessário. No decorrer dos atendimentos, os resultados são socializados entre os membros da equipe no decorrer das discussões que ocorrem durante as reuniões 92 semanais. Nas trocas que se estabelecem pode-se perceber o quanto as distintas visões de cuidado em relação a um mesmo paciente e família são essenciais para a compreensão integral do caso. No transcorrer dos tratamentos podem-se perceber também as dificuldades, angústias, temores e mazelas advindas do contato direto com os pacientes e familiares (Silva & Santos, 2006), bem como com os colegas de equipe. O trabalho psicológico se estende mesmo pós-alta, sendo que alguns pacientes continuam em psicoterapia individual por mais um período. O objetivo é o de tentar evitar uma recaída, buscando fortalecê-los e prepará-los para essa nova etapa da vida, que apesar de muito esperada e acalentada, vem cercada por medos e inseguranças que merecem a atenção do psicólogo. Considerações finais Diante dos resultados obtidos em mais de uma década de trabalho junto ao serviço, evidencia-se o comprometimento das funções psíquicas dos pacientes com TA e a consequente necessidade de um acompanhamento psicológico integrado à assistência oferecida pela equipe multiprofissional. Esse apoio psicológico, segundo Huke e Slade (2006), deveria estender-se aos indivíduos do círculo relacional mais próximo ao paciente, em especial aos familiares, a fim de que seja encorajado um diálogo mais aberto a respeito das necessidades subjetivas dos pacientes com TA, visando a atenuar suas dificuldades relacionais e a aliviar a sobrecarga de cuidado. Referências Abreu, C. N., & Cangelli, R. (2004). Anorexia nervosa e bulimia nervosa: Abordagem cognitiva-construtivista de psicoterapia. Revista de Psiquiatria Clínica, 31(4), 177183. 93 Azevedo, A. M. C., & Abuchaim, A. L. G. (1998). Bulimia nervosa: Classificação diagnóstica e quadro clínico. In: Nunes, M. A. A., Appolinário, J. C., Abuchaim, A. L. G., & Coutinho, W. (Orgs.), Transtornos alimentares e obesidade. (pp. 31-19). Porto Alegre: Artmed. Borges, N. J. B. G., Sichierri, J. M. F., Ribeiro, R. P. P., Marchini, J. S., & Santos, J. E. (2006). Transtornos alimentares: quadro clínico. Medicina (Ribeirão Preto), 39(3), 340-348. Cabrera, C. C. (2006). Estratégias de intervenção interdisciplinar no cuidado com o paciente com transtorno alimentar: o tratamento farmacológico. Medicina (Ribeirão Preto), 39(3), 375-380. Connan, F., Troop, N., Landau, S., Campbell, I., & Treasure, J. (2007). Poor social comparison and the tendency to submissive behavior in anorexia nervosa. International Journal of Eating Disorders, 40(8), 733-739. 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Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP. E-mail: [email protected] 96 DIRETRIZES PSICOTERAPÊUTICAS PARA INTERVENÇÃO COM PACIENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES Manoel Antônio dos Santos Érika Arantes de Oliveira-Cardoso Carolina Leonidas Élide Dezoti Valdanha Lilian Regina de Souza Costa Introdução Reconhecidos como os transtornos alimentares (TAs) mais importantes, Anorexia Nervosa (AN) e Bulimia Nervosa (BN) são quadros que afetam, principalmente, adolescentes e adultos jovens do sexo feminino. Na AN observa-se intenso emagrecimento à custa de restrição alimentar, caracterizando uma busca desenfreada pela magreza. Além de recusa em admitir o peso considerado esperado para a idade e altura, a paciente apresenta marcada distorção da imagem corporal e ausência de ciclos menstruais (Associação Americana de Psiquiatria, 2003; Leonidas & Santos, 2012). O termo anorexia não é apropriado, pois etimologicamente significa “sem fome”, quando na verdade não há “falta de apetite”. Na BN os episódios de compulsão alimentar (binge eating) são seguidos de medidas compensatórias para o controle do peso, tais como vômitos autoinduzidos, uso de laxantes, diuréticos e inibidores de apetite, com prática de exercícios físicos compulsivos e dietas restritivas (Associação Americana de Psiquiatria, 2003; Rosa & Santos, 2011). Tudo isso ocorre em uma etapa do ciclo vital de especial vulnerabilidade psicossocial: a adolescência (Andrade & Santos, 2009). É quando os laços com a infância estão rompendo-se e novos horizontes são descortinados na adolescência, junto a uma dolorosa sensação de “ser diferente no mundo”. As vivências de exclusão e não pertencimento ao meio, comuns à experiência da adolescência, ganham um caráter dramático nos TAs. O desafio colocado para o adolescente é como se diferenciar sendo único, singular (Oliveira & Santos, 2006). AN e BN não são quadros estanques, que podem ser tratados isoladamente. Constituem problema grave de saúde, mas são muito mais. Há um consenso de que a relação com a comida é um indicador que pode revelar formas de interação da 97 pessoa consigo e com o mundo. Isso depende dos significados que cada um constrói ao longo de seu desenvolvimento. A complexidade dos fenômenos psíquicos envolvidos é imensa, abrindo a possibilidade de recorrer-se à comida para aliviar angústia. Essa “perversão do comportamento alimentar” denota o quanto o comportamento humano não é natural, mas construído no cerne das relações interpessoais. Colapso da capacidade representacional Nas pacientes com AN e BN há um notável colapso da capacidade representacional, que intercepta a possibilidade do ego de buscar representações psíquicas para os derivados de pulsão. Com esse curto-circuito das representações, prevalece a compulsão à repetição, que é típica do modo de funcionamento inconsciente. As características e manifestações da sexualidade são problemáticas nesses quadros clínicos. O apetite sexual pode exacerbar-se, no caso das bulímicas, ou ser quase que totalmente anulado, no caso das anoréxicas. Nos casos extremos a aparência é de uma desertificação da vida pulsional. A atividade pulsional parece estar extinta, como um vulcão que entra em extinção e permanece silencioso por muito tempo, até que uma erupção recorde a todos de que há bastante vida turbulenta por debaixo da aparente calmaria. A psicoterapia com pacientes com TAs com muita frequência é palco de dramas e tensões, em parte porque os sintomas bulímicos e anoréxicos entram em rota de colisão com os objetivos gerais do tratamento multidisciplinar, que é modificar o comportamento alimentar disfuncional. Nesse contexto, as pacientes podem recusar-se a “comer” o que lhe é oferecido pelo psicoterapeuta, mantendo tenazmente seu jejum, ou então podem “devorar” o que recebem, para logo em seguida vomitar violentamente o que introjetaram. Os ataques ao vínculo são constantes e radicais, o que pode expressar-se sob a forma de manter a dissociação, o distanciamento e a postura inflexível e autocentrada, como táticas para evadirem-se dos conteúdos psíquicos que geram 98 desconforto durante as sessões de terapia. A resistência à mudança é notável e traduz a tentativa de preservar suas relações interpessoais imaturas e doentias. O atendimento psicoterapêutico em instituições requer adaptações da técnica analítica clássica, pois se deve considerar a necessidade de maior elasticidade no setting terapêutico. Isso significa que o profissional deve ser suficientemente acolhedor e empático. O psicoterapeuta deve manter uma postura interpessoal ativa e participativa, para que possa buscar os aspectos mais imaturos e inacessíveis do self das pacientes, alcançando o momento primevo no qual se rompeu a linha de continuidade do existir. O terapeuta deve ser o escafandrista que mergulha até o limite das catástrofes mentais primitivas que se supõe que aconteceram em época precoce do desenvolvimento das pacientes. De modo análogo ao que ocorre na toxicomania, na escuta das pessoas adictas à comida é preciso sair em busca dos aspectos nãonascidos da personalidade, construindo uma clínica possível em meio a condições emocionais frequentemente precárias, no limite próximo ao autoextermínio. Diretrizes do tratamento O tratamento dos TAs muitas vezes é centro de dramas e tensões, que contagia os pais e, não raro, todo o sistema familiar (Souza & Santos, 2007, 2009, 2010). Um dos primeiros alvos da psicoterapia nos TAs – como de resto em todos os quadros clínicos, é a recuperação da autoestima, lembrando que as pacientes internalizaram imagem negativa de si mesmas e do papel de mulher. De fato, não querem sentir-se mulheres, por isso evitam (porque temem) o crescimento. É preciso ajudá-las a gostarem de si mesmas, elaborando seus sentimentos negativos voltados para o próprio self. Sentem-se culpadas, com vergonha, criticadas por seus fracassos, discriminadas pelos familiares, colegas de escola, de trabalho, pela sociedade. É preciso oferecer uma experiência na qual a paciente possa sentir-se aceita e protegida, para que possa romper o círculo vicioso. Sabe-se que elas têm dificuldade para manter uma relação afetiva estável, bem como para a reintegração social, frequentar lugares públicos, shoppings, restaurantes (Cassin & Von Ranson, 2005). 99 A desmistificação dos transtornos psiquiátricos requer que se desarmem os preconceitos dirigidos à enfermidade, fortemente estigmatizada pela sociedade. Também se almeja a melhoria da qualidade de vida (QV), uma vez que essas pacientes acabam tendo uma QV comprometida devido a uma série de complicações e percalços que enfrentam no curso de seu desenvolvimento. O psicoterapeuta deve auxiliá-las a aumentar o poder de decisão e autonomia (assim como das famílias), de modo que possam ver-se como pessoas competentes, mas que necessitam de orientação de outras pessoas. Não somos terapeutas-de-pessoas-com-problemas que requerem alguém (um especialista) que os resolva por elas. Buscamos desenvolver expectativas realistas e objetivos viáveis, com um pressuposto de competência. Ou seja, supomos que a paciente possui, latentes, as habilidades necessárias para alcançar as mudanças, ao invés de considerarmos que são pessoas “disfuncionais” e incapazes de determinarem o que é melhor para si. Assim, é preciso criar um discurso de esperança em vez de desmoralização (Sluzki, 1997, p. 66), para que a paciente perceba que é possível ter sua vida transformada e remodelada. Desse modo, a psicoterapia deve focalizar os recursos e não os déficits, valorizar as potencialidades e não os aspectos regredidos. Um dos aspectos cruciais no processo terapêutico é ajudar as pacientes a perceberem o papel da comida em suas vidas e a comprometerem-se consigo mesmas. É preciso que percebam que o afeto é canalizado, de forma distorcida e atenuada, no comportamento compulsivo e que é associando ideias, emoções e lembranças que se restitui a mobilidade perdida do desejável trânsito entre conteúdos conscientes e inconscientes. Ao falar, o paciente põe em movimento afetos, mobiliza emoções. O tratamento consiste em reconectar a ideia à emoção por meio da palavra “perdida” (Goulart & Santos, 2012). Associando ideias, o paciente fala e põe em movimento afetos, até que possa chegar à gênese de suas manifestações psicopatológicas, de modo a poder formular uma compreensão singular sobre a função que os sintomas (recusa alimentar, compulsão) cumprem em suas subjetividades. 100 Referências Andrade, T. F., & Santos, M. A. (2009). A experiência corporal de um adolescente com transtorno alimentar. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 12(3), 454-468. Associação Americana de Psiquiatria (2003). DSM-IV-TRTM – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: Texto revisado (C. O. Dornelles, Trad.) (4. ed. rev.). Porto Alegre: Artmed. Cassin, S. E., & Von Ranson, K. M. (2005). Personality and eating disorders: A decade in review. Clinical Psychology Review, 25(7), 895-916. Goulart, D. M., & Santos, M. A. (2012). Corpo e palavras: Grupo terapêutico para pessoas com transtornos alimentares. Psicologia em Estudo (Maringá), 17(4), 607-617. Leonidas, C., & Santos, M. A. (2012). Imagem corporal e hábitos alimentares na Anorexia Nervosa: Uma revisão integrativa da literatura. Psicologia: Reflexão e Crítica, 25(3), 550-558. Oliveira, E. A., & Santos, M. A. (2006). Perfil psicológico de pacientes com anorexia e bulimia nervosas: Ótica do psicodiagnóstico. Medicina (Ribeirão Preto), 39(3), 353-360. Rosa, B. P., & Santos, M. A. (2011). Comorbidade entre bulimia e transtorno de personalidade borderline: Implicações para o tratamento. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 14(2), 268-282. Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo. Souza, L. V., & Santos, M. A. (2007). Anorexia e bulimia: Conversando com as famílias. São Paulo: Vetor. Souza, L. V., & Santos, M. A. (2009). A construção social de um grupo multifamiliar no tratamento dos transtornos alimentares. Psicologia: Reflexão e Crítica, 22(3), 317-26. Souza, L. V., & Santos, M. A. (2010). A participação da família no tratamento dos transtornos alimentares. Psicologia em Estudo (Maringá), 15(2), 285-294. 101 Sobre os autores Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPSUSP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRPUSP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Email: [email protected] Érika Arantes de Oliveira-Cardoso: Psicóloga, Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro e supervisora do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRPUSP). E-mail: [email protected] Carolina Leonidas: Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRP-USP). Bolsista de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. E-mail: [email protected] Élide Dezoti Valdanha: Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRP-USP). Bolsista de Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP Email: [email protected] Lilian Regina de Souza Costa: Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRP-USP). Bolsista de Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. E-mail: [email protected] Apoio: CAPES, FAPESP, CNPq Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP. E-mail: [email protected] 102 POR UMA PSICOLOGIA SOCIALMENTE ÚTIL: DIÁLOGOS ENTRE PSICOLOGIAESCOLAR E PSICOLOGIA CLÍNICA Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira – CRP 06/27327-1 Mônica Cintrão França Ribeiro – CRP 06/20583-3 Nádia Giuliese – CRP 06/117870 Em nosso trabalho buscamos construir uma prática psicológica socialmente útil. Pensamos que a ciência deve servir à comunidade como um todo, não apenas aos indivíduos isolados. O que pretendemos nesse artigo é compartilhar uma experiência de atendimento psicológico realizado concomitantemente por duas áreas de estágio: institucional e clínica, revelando bons resultados ao se colocar a prática clínica a favor da comunidade escolar, a partir do caso de uma menina de seis anos, a quem chamaremos aqui de Ana1. A queixa escolar, em geral, parte da observação de professores sobre comportamentos “inconvenientes” de seus alunos. Clinicamente entendemos que os comportamentos observados mascaram conteúdos inconscientes, ou seja, revelam um sintoma que no atendimento clínico pode ser revelado, pois neste a criança mostra como e por que ela transforma suas vivências no sintoma gerador do comportamento que origina a queixa. Frequentemente trata-se de um pedido de ajuda. Entendemos que os chamados comportamentos “indisciplinados” são aqueles que incomodam os professores, pois contrariam o que a escola e a própria sociedade considera como disciplina. De acordo com essa compreensão passaremos a chamar tais comportamentos de “inconvenientes”, pois não pretendemos aqui entrar no mérito do que deva ser ou não considerada “indisciplina”, já que sabemos que tal conceito pode variar de uma escola para outra e até mesmo entre professores. No entanto, partimos do pressuposto de que comportamentos “inconvenientes” dos alunos podem ser atribuídos a fatores externos à escola (relações familiares, por exemplo) ou a fatores internos que envolvem a conduta do 1 Ana é um nome fictício escolhido para salvaguardar a identidade da criança. 103 professor, sua prática pedagógica e até mesmo práticas excludentes da própria instituição. Segundo Mello (2004), na prática pedagógica, pode surgir entre professor e aluno, sentimentos de atração ou de repulsão. Essas atitudes sentimentais têm o poder de influenciar a metodologia com risco de alterá-la, provocando no aluno rudes transformações afetivas mais ou menos desfavoráveis ao ensino. Desta forma, o autor afirma que caso não seja estabelecida uma relação afetiva entre professor e aluno, é ilusão acreditar que o ato de educar tenha sucesso completo. Ou seja, pode até haver algum tipo de fixação de conteúdo, mas não será uma aprendizagem significativa, nada que prepare esse indivíduo para uma vida futura, deixando lacunas no processo de ensino aprendizagem. Na escola na qual realizamos o atendimento psicológico à queixa escolar, a maioria dos profissionais atribuía a causa do comportamento “inconveniente” aos alunos e às suas famílias. Inicialmente, em nenhum momento a escola, representada por seu corpo docente e diretivo, demonstrou consciência de que seu comportamento poderia contribuir ou até mesmo causar parte dessas dificuldades. Sabemos que o papel do professor é indispensável na instituição, ele será o mediador entre a escola e os alunos para que o desenvolvimento seja eficaz; segundo Oliveira (2009), o professor é considerado o principal agente do processo educacional, coparticipante e mediador da intervenção junto às dificuldades escolares. Os inúmeros esforços no sentido de criar novas possibilidades de interação entre alunos e escola sustentam-se sobre a intenção de que os docentes estejam cada vez mais cientes das possibilidades e estratégias de trabalho que podem adotar em prol do desenvolvimento e da aprendizagem de seus alunos. Para tanto, a relação entre a afetividade e o trabalho docente configura-se como uma relação necessária. Para que o professor consiga desempenhar satisfatoriamente seu trabalho é preciso que seja estabelecida uma relação afetiva com seu aluno. A relação afetiva entre professor e aluno foi um dos fatores que permitiu a expressão do comportamento de Ana. Entendemos que se não existisse confiança no ambiente escolar ela não se manifestaria do modo como fez e nesse caso não teria recebido a atenção psicológica necessária para seu desenvolvimento. 104 A grande contribuição do psicólogo escolar reside nos bastidores da instituição, isto é, sua ação deve desenvolver-se prioritariamente em parceria com os professores (e não com os alunos), contribuindo para que estes estejam cada vez mais fortalecidos e instrumentalizados para uma atuação de qualidade junto aos alunos. Por isso, entendemos que é tão importante, em casos como o de Ana, a complementaridade entre os atendimentos na área da psicologia institucionalescolar e a área da psicologia clínica. O caso que vamos apresentar surgiu durante um projeto de intervenção psicológica na escola, que envolvia diferentes atividades com a comunidade escolar (professores, funcionários, alunos, pais), entre elas oficinas e plantões institucionais realizados na própria escola, com o objetivo de criar um espaço para reflexão sobre o cotidiano e construção conjunta de estratégias de enfrentamento. Além disso, trabalhar os aspectos afetivos e emocionais envolvidos no processo de aprendizagem dos alunos, fortalecendo-os internamente para que se percebessem capazes de aprender e ajudando-os a recuperarem sua autoestima para que, assim, pudessem apresentar melhores resultados em sala de aula. Da mesma forma, nosso objetivo foi promover a reflexão sobre a importância do professor no processo de aprendizagem dos alunos, estimular o trabalho dos professores e criar um espaço para discussão e compartilhamento das práticas psicopedagógicas, principalmente referentes ao manejo de comportamentos considerados como inadequados em sala de aula, principal demanda desta instituição. Em relação a essa demanda institucional, havia uma queixa relativa à dificuldade da comunidade escolar em lidar com comportamentos dos alunos que consideravam inadequados, ou “inconvenientes” – em outras palavras, existiam questões de relacionamento que para eles pareciam insolúveis. Conforme o trabalho foi sendo realizado e os vínculos estabelecidos, uma professora pediu orientação em como lidar com Ana, uma aluna de seis anos que apresentava comportamento compulsivo durante as aulas, esfregando-se continuamente na cadeira. De acordo com a docente, outras professoras, a coordenação e a direção da escola já estavam acompanhando o caso e ninguém sabia como proceder. A mãe de Ana tinha sido ouvida pela diretora e revelado que o comportamento da filha se repetia também em outros ambientes que ela frequentava. 105 Conversamos com as demais professoras, coordenadora, diretora, e finalmente com a mãe de Ana, para melhor compreensão do que estava acontecendo na escola e com a aluna. O que aquela criança estava querendo nos dizer por meio daquele comportamento específico? Como a escola estava implicada naquele comportamento individual? A queixa escolar não dizia respeito ao processo de ensino e aprendizagem ou relacionamento escolar da aluna: desde o inicio foi considerada pelos professores como uma aluna afetiva e com bom relacionamento com os colegas e professores. Mas o que perturbava a possibilidade de melhor desenvolvimento era o comportamento masturbatório recorrente no cotidiano da escola e, segundo a mãe da aluna, frequente também no ambiente familiar. Por isso, levantou-se a hipótese de uma investigação clínica-individual para maior compreensão sobre os fatores desencadeadores de tal comportamento. Dessa forma, a partir de uma queixa escolar, passamos a realizar um atendimento clínico caracterizado pela interação entre duas áreas de estágio: escolar e clínica. Embora nossa preocupação fosse uma ação em psicologia que envolvesse a compreensão da dinâmica das relações na escola e a construção coletiva de estratégias para intervir na comunidade escolar como um todo, o atendimento individual à aluna Ana surgiu como uma necessidade específica de maior aprofundamento sobre as suas relações familiares que poderiam estar desencadeando o comportamento de automanipulação na escola. A partir dessa investigação clínica na escola poderíamos orientar os professores, bem como os pais, em como intervir favoravelmente para o desenvolvimento psicológico dos alunos. Sendo assim, a demanda emergente era afetivo-relacional e precisava ser investigada, implicando todos os envolvidos: a criança, seus pais e a própria escola. Estava clara a existência de uma angústia da criança que demandava atenção individualizada; os pais, pois são responsáveis pelo desenvolvimento da menina; e a escola, pois era o cenário onde a queixa apresentava-se e era preciso orientar a comunidade escolar sobre os melhores procedimentos a serem tomados em relação à aluna e aos demais colegas de classe. 106 O comportamento de Ana fazia parte de um quadro geral de ansiedade gerado pelas tensões emocionais às quais ela era constantemente exposta no contexto familiar. Não existia em sua vida espaço para ser criança; a espontaneidade típica da infância era contida, não podia existir. Ana foi atendida na própria escola em que estuda pela dificuldade da mãe em levar a menina para ser atendida no Serviço-Escola da Universidade. Como a criança encontrava-se em processo de acentuado sofrimento psíquico, os supervisores da área da psicologia institucional-escolar e da área da psicologia clínica consideraram prudente que o atendimento fosse realizado, inicialmente, na escola. Desde o início dos atendimentos, Ana apresentou grande necessidade de controle e alguns comportamentos obsessivos relacionados a organização e limpeza. Pudemos observar que apresentava alto nível de ansiedade associado à ansiedade presente no ambiente familiar. Preocupava-se com os assuntos dos adultos e parecia estar sempre em estado de alerta. Entendemos que esse constante estado de alerta gerava tensão que precisava ser dissipada e isso parecia acontecer por meio da masturbação, que no caso de Ana ainda não apresentava uma conotação sexual consciente. Também existia uma superexcitação mental que Ana tentava regular por meio de uma descarga física. Ana mencionava preocupações sobre o relacionamento entre seu pai e sua mãe que eram separados. Acreditamos que essa preocupação decorria do fato da criança ouvir, sentir, enfim, viver o conflito entre os pais cotidianamente. Além disso, Ana teve uma história de vida repleta de situações geradoras de ansiedade, desde o momento em que foi gerada sem ser fruto de uma gravidez planejada; a separação dos pais durante a gestação; seu primeiro ano de vida na casa da avó materna onde dividiu a casa de um quarto com outros parentes adultos e crianças; o segundo e terceiro anos de vida em que passou a viver com sua mãe e seu pai que reataram o casamento; a nova separação entre os pais e o consequente retorno à casa da avó materna com pouquíssima privacidade; o encontro com a nova esposa do pai e a nova irmã por parte de pai; até o momento em que começamos nosso trabalho e que a família parecia exigir que Ana lidasse com possibilidades de futuro geradoras de ansiedade até mesmo em adultos, enquanto ela tinha apenas seis anos. 107 Durante os primeiros atendimentos observamos que Ana comportava-se como uma pequena adulta, apresentava-se constantemente preocupada, demonstrava pouca ou nenhuma espontaneidade, exprimia uma tensão constante, relacionava-se com as pessoas a partir de uma aparente desconfiança, entretanto com o passar dos atendimentos mostrou-se bastante sensível, capaz de gratidão, inteligente e apresentou muitas potencialidades. Depois do quinto atendimento, obtivemos um retorno por parte de sua principal professora sobre a cessão de seu comportamento compulsivo. O rápido retorno do trabalho realizado só foi possível, pois não houve individualização no atendimento, ao contrário, a escola foi implicada no tratamento, bem como os pais. Estes foram implicados como responsáveis pela construção do sintoma relacional, parte da estruturação e dinâmica psíquica individual e familiar. A presença da mãe e do pai de Ana em alguns dos atendimentos foi fundamental para que a responsabilidade fosse devolvida a eles, aliviando por outro lado as preocupações e a tensão de Ana. A escola, por sua vez, entendida por nós como um espaço de acolhimento, agiu como parceira no tratamento de Ana, pois entendeu seu papel na vida psíquica dessa criança, passando a enxergar sua responsabilidade pela inclusão do comportamento “inconveniente”, deixando o pensamento de que este deveria ser expelido, ou seja, orientamos a escola em como lidar com os comportamentos “inconvenientes” em especial o de Ana, e como acolher a angústia das crianças. O professor como parceiro do psicólogo e com sua expertise torna-se um grande aliado na construção de estratégias para o enfrentamento das dificuldades encontradas no cotidiano escolar. Nesse sentido, não se trata do psicólogo ‘ensinar’ ao professor os procedimentos a serem utilizados, mas a ação conjunta que possibilita a transformação do olhar e do fazer em Educação. Essa orientação aconteceu de maneira bastante específica em contato direto e individualizado com as duas professoras responsáveis pela turma em que a aluna estava; e de maneira geral e em grupo, nas reuniões que envolveram a maioria dos professores da escola. Durante um ano esta escola recebeu atendimento psicológico às queixas escolares e o referencial teórico que norteou as nossas ações foram fundamentadas 108 na psicologia sócio-histórica e psicologia crítica. Em relação aos atendimentos clínicos foram realizados onze atendimentos na escola e embasaram-se nas teorias de Freud, Klein e Winnicott que ajudaram na compreensão dos aspectos neuróticos apresentados pela paciente, como seu comportamento controlador, repetitivo e obsessivo; nas questões da sexualidade, dos instintos e da necessidade de integração, no processo de desenvolvimento da criança, no aprimoramento do processo psicoterapêutico, e como base para aplicação do jogo do rabisco. Ao final do processo, houve a compreensão da mãe da criança sobre a necessidade da continuidade do mesmo não mais no espaço escolar e sim em consultório, mesmo porque na escola o comportamento masturbatório não mais ocorreu. Sendo assim, ao final dos atendimentos na escola, Ana iniciou processo psicoterapêutico e a cada sessão tem potencializado suas chances de conquistar autonomia e bem estar, de modo a ter uma vida melhor, aprendendo a conviver com estímulos geradores de ansiedade e tensão da melhor maneira possível, proporcionando a si mesma a possibilidade de desfrutar das condições típicas da vida infantil. Como supervisores e formadores de futuros psicólogos, compreendemos a formação em Psicologia a partir de ações integradas entre as várias áreas de estágio, possibilitando com isso maior diálogo entre as psicologias e uma prática psicológica socialmente mais útil. Referências ANTUNES, C. Disciplina e (Des) Motivação. São Paulo: Editora Paulus, 2012. DAMKE, A. S. Indisciplina na Escola: O que Aprendemos Investigando a Percepção Social dos Professores. IX Congresso Nacional de Educação – EDUCERE III Encontro Sul Brasileiro de Psicopedagogia – PUC-PR, 2009. 109 FREUD, S. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909), volume X, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. ______. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), volume VII, Edição Standard Brasileira das obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. ______. Os instintos e suas vicissitudes (1915), volume XIV, Edição Standard Brasileira das obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. ______. O ego e o id (1923), colume XIX, Edição Standard Brasileira das obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. KLEIN, M. O Desenvolvimento de Uma Criança. In: Contribuição à Psicanálise. São Paulo: Mestre Jau, 1970. ______. A técnica da análise de crianças pequenas (1926). In: A psicanálise de crianças. Obras completas de Melanie Klein. Vol. 2. Rio de Janeiro: Imago. MARINS, L. A Motivação para a disciplina. Categoria DVD – 2011. MELLO, Guiomar Nano de. Educação e Sentimento. É preciso discutir essa relação. In: Revista Nova Escola, Outubro/2004. OLIVEIRA, C. B. E. Psicologia Escolar: Cenários Atuais. Estudos de Psicologia, Rio de Janeiro, 2009. PEDRIÇA, E. H. K., AYRES DA SILVA, J. Indisciplina em Sala de Aula: Ensino Fundamental. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2007. 110 SANTOS, A. A. Ludicidade como instrumento pedagógico. Disponível em: <http://www.cdof.com.br>. Acesso em: 22 de ago. de 2013. SOUZA, B. P. (org.) Orientação à Queixa Escolar, Casa do Psicólogo, 2010. TRAGTENBERG, M. Relações de poder na escola. Lua Nova, São Paulo, v.1, n.4, Mar. 1985. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010264451985000100021&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 26 de set. de 2013. VYGOSTKY, L. S. Imaginação e Criação na Infância: ensaio psicológico: livro para professores (Z. Prestes, Trad.). São Paulo: Ática. (Original publicado em 1968). WINNICOTT, D. W. Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro: Imago,1984. ______. Tudo Começa em Casa. São Paulo: Martins Fontes,1989. ______. Por que as Crianças Brincam (1957) In: A Criança e o seu Mundo. Rio de Janeiro: LTC, 1982. ______. Integração. In: Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990. ______. O jogo do rabisco. In: Winnicott, Claire et al. (Org.). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre, Artes Médicas Sul, 1994. ______. As raízes da Agressividade (1957). In: A criança e o seu Mundo, Rio de Janeiro: Zahar, 1977. ______. O brincar. Uma exposição teórica (1968). In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. 111 ______. O brincar. A atividade criativa e a busca do eu (self) (1971). In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. ZANDONATO, Zilda Lopes. Indisciplina Escolar e Relação Professor-Aluno, uma análise sob as perspectivas moral e institucional. Presidente Prudente, São Paulo, 2004. Disponível em: <www.4fct.unesp.br> Acesso em: 07 de out. de 2013. Sobre as autoras Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira: Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986) e mestrado em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998). Doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP/SP. Especialista em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae (1994). Atualmente é professora adjunta da Universidade Paulista, realizando principalmente trabalhos acadêmico-administrativos junto à Diretoria do Instituto de Ciências Humanas da UNIP. Tem experiência na área de Psicologia, Psicanálise e Educação, com ênfase em aspectos relativos a psicodiagnóstico, psicanálise infantil, psicanálise e cultura, representação social e saúde, assim como sobre formação de psicólogos. E-mail : [email protected] Mônica Cintrão França Ribeiro: Graduação em Psicologia pelo Instituto Unificado Paulista (1984). Pós-Graduação em Psicopedagogia pela Universidade Paulista (1992). Mestrado e Doutorado em Psicologia pelo Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (bolsa CAPES, 1997 e 2003). Professora Titular, Supervisora de Estágio e Líder de disciplinas nos cursos de Psicologia e Pedagogia para o ensino presencial e ensino à distância na Universidade Paulista. Pesquisadora e orientadora de pesquisa discente da Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UNIP. Docente em cursos de PósGraduação em Psicopedagogia, Acupuntura, Formação do Professor para o Ensino Superior (UNIP e INPG) e Alfabetização e Letramento (UNIFAI). Líder do Grupo de Pesquisa Psicologia e Saúde (CNPq/UNIP). Membro do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas e Gestão em Práticas Educativas (UNIP/CNPq). Membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, e do Grupo Interinstitucional Queixa Escolar GIQE. Possui experiência em pesquisa e intervenção na área da Psicologia Escolar e Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: processos e problemas de escolarização, formação do psicólogo, formação de professores, políticas públicas em educação. E-mail: [email protected] Nádia Giuliese: Graduada em letras, com habilitação em linguística e português pela USP. Atualmente estuda psicologia na Universidade Paulista. Escritora. Autora de livros infanto-juvenis. Tem experiência em gestão de negócios, clínica de carreira, orientação de carreira e educação. Email: [email protected] ou [email protected] 112 REFLEXÕES ACERCA DA RELEVÂNCIA SOCIAL-COMUNITÁRIA DAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS EM SAÚDE Leonardo Lopes da Silva Desde sua implementação, as Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS) tem se mostrado como locus produtivo para formação em serviço dos profissionais da área, possibilitando resgatar o olhar multidisciplinar sobre o processo saúde-doença na sua concepção mais ampla. A participação dos psicólogos nesta formação garante ao profissional o desenvolvimento de habilidades e competências tão caras à própria psicologia, quanto ao pleno alcance dos objetivos da Saúde: atuação em equipe; visão integral do indivíduo; desenvolvimento de ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde física, psicológica e psicossocial; além de estratégias de enfrentamento multidisciplinar do fenômeno saúde-doença. Para que estes potenciais sejam alcançados, entretanto, a qualificação dos programas de RSM, bem como a articulação entre instituições formadoras e comunidade precisam ser, constantemente, avaliadas e reavaliadas. As RSM têm trazido um caráter inovador no cenário da atuação em políticas públicas já consolidadas como a Estratégia de Saúde da Família e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Todavia, acredita-se que muitos outros espaços possam e devam ser ocupados de maneira maciça e para tanto, novas articulações entre comunidade, instituições formadoras e profissionais residentes devem ser pensadas e propostas. Conclui-se que as RSM têm potencial para além do que já vem ocorrendo, especialmente nas políticas públicas em saúde, mas devem articular-se e rearticular com novas demandas sociais e comunitárias, bem como reavaliar e ampliar suas estratégias de qualificação. Em Psicologia sabemos que a atuação do profissional psicólogo raramente é isolada. Salvaguardando-se a clínica tradicional, o psicólogo tem o grande desafio de articular-se com outros campos do saber sobre o humano e com outros profissionais das mais distintas áreas. Nas principais políticas públicas, por exemplo, Saúde, Educação e Assistência Social, o psicólogo é levado cotidianamente a articular seus conhecimentos específicos da ciência e prática psicológica com 113 conhecimentos e práticas específicas da Medicina, da Pedagogia, do Serviço Social, do Direito, da Sociologia, entre tantos outros. No setor privado, encontramos poucas diferenças neste aspecto, se pensarmos a Gestão de Pessoas (ou no termo mais conhecido como Recursos Humanos) como campo necessariamente multidisciplinar de atuação dentro das empresas, ou ainda se pensarmos no Esporte Profissional, as mesmas articulações se fazem necessárias. A partir disso, podemos verificar que as Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS) apresentam-se como estratégias de formação em serviço eficazes na tarefa de auxiliar o profissional psicólogo a compreender os fenômenos envolvidos no processo de prevenção e reabilitação de saúde, tanto nos seus aspectos físicos, quanto psicossociais. Este espaço privilegiado de formação, entretanto, carece de várias articulações necessárias para atender as demandas cada vez mais complexas da comunidade. A formação generalista preconizada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais em Psicologia (MEC, 2011) deixa-nos claro que o profissional psicólogo, desde a graduação, deve compreender e muitas vezes articular conhecimentos de diversas naturezas e práticas de diversos campos profissionais com o fazer psicológico. Mas sabemos, como formadores, supervisores de estágio e coordenadores de serviços-escola que esta tarefa apresenta-se como um esforço hercúleo, dadas as realidades regionais e especificidades de cada instituição formadora. Cabe dizer, neste ponto, que a RMS cumpre um papel que toda a formação em Psicologia deveria promover: desenvolvimento de competências para atuação em equipe multidisciplinar; visão integralizada do indivíduo; elaboração de estratégias de prevenção e promoção da saúde física e mental, entre outras. O que precisamos chamar a atenção é que estas competências deveriam ser “aprimoradas” durante a RMS, mas o que vemos acontecer, muitas vezes, é que apenas na residência é que o já formado profissional de Psicologia terá a oportunidade de desenvolver tais habilidades e competências. O tom provocador desta reflexão é necessário para repensarmos não só estratégias de qualificação dos programas de RMS, mas também a formação inicial dos psicólogos e como ela articula-se com este segundo momento de formação profissional. 114 Na outra ponta, temos as demandas para este profissional da RMS: as políticas públicas em saúde, especificamente a Estratégia Saúde da Família (ESF) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em suas mais diversas modalidades, necessitam de profissionais com este perfil. Outras articulações necessárias apresentam-se, renovam e ampliam-se a cada instante: saúde indígena (CASAI), saúde do trabalhador (CEREST), saúde do homem, do idoso etc. Sabemos, entretanto, que a rede privada acaba absorvendo boa parte dos contingentes profissionais egressos das RMS, supondo que os psicólogos estejam inclusos neste bojo. Com isso, não pretendemos levantar a bandeira contrária ao setor privado em detrimento do Sistema Único de Saúde (SUS), mas dedicar uma especial atenção às implicações de uma formação tão qualificada, direcionada a apenas um setor. E como não poderíamos deixar de citar, as instituições formadoras exercem um papel primordial não só na idealização dos programas de RMS, mas também na possível e necessária articulação entre estes e a comunidade. Cada realidade regional traz suas peculiaridades e isto é critério básico para a elaboração de um programa de RMS. Entretanto, novas demandas surgem, refinam-se, tornam-se prioridade em algum momento e por este motivo, uma readequação de propostas muitas vezes faz-se necessária. Vivemos num mundo dinâmico, onde inovações tecnológicas e sociais surgem a todo instante e com isso, novas demandas ampliam-se, intensificam ou priorizam-se. Não podemos abraçar o mundo com todas as suas demandas, mas o vislumbre de rearticulação, de requalificação do trabalho sempre se faz presente e necessário. Por isso, nossos residentes precisam também ser capacitados para a flexibilidade, para a rearticulação de estratégias, para a inovação frente aos novos desafios. Um outro ator neste cenário é também o Sistema Conselhos de Psicologia, que vem articulando-se com diversas esferas públicas a fim de qualificar a discussão sobre as RMS, o papel do psicólogo neste contexto e as novas demandas para a área. Cumpre dizer que a preocupação com a ampliação dos espaços de inserção do psicólogo, bem como dos egressos dos programas de RMS tem sido uma das temáticas trabalhadas e que tem a intenção maior de ampliação do serviço prestado, com qualidade e respeito às especificidades de cada população, como preconiza a Portaria 1.820/2009 do Ministério da Saúde, que dispõe sobre os direitos dos 115 usuários dos serviços de saúde, bem como nosso próprio Código de Ética Profissional (CFP, 2005). Estas e muitas outras reflexões fazem-se necessárias e urgentes num momento em que a saúde pública enfrenta tantos embates, onde os princípios da saúde coletiva são tão caros para a efetiva ampliação e qualificação dos serviços prestados e num momento em que a Psicologia apresenta-se dentro das políticas públicas com cada vez mais força. Palavras-chave: Residência multiprofissional em Saúde; Formação em Psicologia; Políticas públicas em Saúde; Saúde comunitária. Referências BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria 1820 de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários dos serviços de saúde. Diário Oficial da União: Brasília, 2009. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação. Resolução 05 de 15 de março de 2011. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, estabelecendo normas para o projeto pedagógico complementar para a Formação de Professores de Psicologia. Imprensa Oficial: Brasília, 2011. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional dos Psicólogos. Brasília, 2005. LIMA, M.; ARAÚJO, D. Politização e formação em serviço: significados e sentidos atribuídos pelos residentes em uma residência multiprofissional em saúde mental na Bahia. Psicologia: Teoria e Prática – 2011, 13(3), 67-80. NASCIMENTO, D. P. G. A residência multiprofissional em saúde da família como estratégia de formação da força de trabalho para o SUS. Dissertação (Mestrado). Escola de Enfermagem. Universidade de São Paulo, 2008, 142f. Sobre o autor Leonardo Lopes da Silva: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) – Campus Vitória da Conquista – Faculdade Guanambi. 116 A MULTIPROFISSIONALIDADE NA FORMAÇÃO E NA PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE Leonardo Lopes da Silva Sabemos que a Psicologia no Brasil, tanto quanto em outras partes do mundo, tem consolidado o seu fazer e suas práticas ao redor de problemas de origem e solução múltiplas. Isto equivale a dizer que na atualidade a Psicologia não se configura mais como ciência e profissão isolada, mas é um dos olhares a serem lançados sobre os diversos fenômenos existentes, seja na busca das causas como das resoluções. Dessa maneira, costumo transmitir sempre aos meus alunos de graduação em Psicologia, sobretudo aos estagiários, que o trabalho do psicólogo jamais se dá de maneira isolada, pois seja nas escolas, nos departamentos de gestão de pessoas, nos fóruns, nos hospitais ou outros ambientes clássicos ou emergentes de atuação, os serviços psicológicos prestados sempre estarão em diálogo com outros saberes e outras profissões. A indagação mais comum a esta afirmação é: mas e o trabalho do psicoterapeuta, o psicólogo clínico? Há sempre um espanto ao expor que mesmo o trabalho do psicólogo clínico, aparentemente isolado e sem vinculação com outro profissional, costumeiramente está perpassado sim por estratégias de diálogo, muitas vezes mais interna à profissão. É fato que uma grande parcela de psicólogos clínicos, mesmo depois de anos de formado, continua a fazer supervisão, ainda que esporádica, para discutir os casos atendidos. É muito comum também a formação de grupos de discussão de casos entre psicólogos clínicos. Sem contar quando as várias áreas de atuação dentro da Psicologia dialogam-se por meio de profissionais distintos para a solução de determinadas questões: o psicólogo escolar fazendo encaminhamento para o psicoterapeuta e vice-versa, ou o neuropsicólogo, o orientador profissional etc. E ainda numa digressão maior um pouco, mesmo quando o psicoterapeuta é também terapeutizado, muito do seu fazer é debatido com o outro colega que o está atendendo. 117 A conclusão que podemos chegar é que de forma alguma o trabalho do psicólogo hoje pode ser considerado isolado, descolado da intersecção entre outros saberes, outros profissionais de dentro ou de fora da Psicologia. Ouso afirmar que a atuação do psicólogo dá-se essencialmente em contextos multiprofissionais, sem exceções. A multiprofissionalidade na graduação em Psicologia Muitos avanços na formação em Psicologia ocorreram desde a regulamentação da profissão e dos cursos de graduação em 1962. O órgão máximo da normatização da profissão no país, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) foi criado, o Ministério da Educação (MEC) promoveu diversas reformas no ensino superior, da qual destacamos as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos de Psicologia (MEC/CNE-CES, 2004/2011), entre outras. A consolidação dos Serviços-Escola de Psicologia como lugar de formação privilegiado para os estágios curriculares, e a constante atualização em temos de sua regulamentação e normatização, foram sem dúvida um dos maiores avanços que podemos citar na área. Porém, cabe aqui uma indagação: qual o espaço para o desenvolvimento de habilidades e competências no tocante ao trabalho em equipe multiprofissional? A resposta parece óbvia se pensarmos que temos todo o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Sistema Judiciário, só para citar alguns, como campos de excelência para a realização de práticas de estágio. Infelizmente, a realidade mostra que na maioria das vezes, vários entraves fazem com que não seja possível a concretização de ações de formação nesses espaços, sejam estes entraves de ordem burocrática ou mesmo de acesso, uma vez que nem todas as regiões do país dispõem de órgãos e serviços dessa natureza. Nos grandes centros, vemos uma disputa de espaço pelas diversas instituições de ensino, e nas regiões mais afastadas, a ausência de espaços a serem ocupados. Assim sendo, retomamos a ideia de que os Serviços-Escolas de Psicologia deveriam ser os espaços onde estas práticas profissionais pudessem ser organizadas e aprendidas. Entretanto, estamos falando de um serviço voltado para a 118 questão da formação técnica em Psicologia, ainda compartimentada e especializada num único campo do saber, uma realidade que não é exclusiva da Psicologia. Como afirma Guareschi e colegas (2011) A formação de profissionais na área da saúde, na qual também se encontra a Psicologia, ainda se volta para a abordagem clássica, em que o ensino é tecnicista, preocupado com a sofisticação dos procedimentos e do conhecimento dos equipamentos auxiliares do diagnóstico, tratamento e cuidado, e organizado por áreas de especialidade (p. 179). Mas será que é preciso ser assim? Os relatos de alunos egressos deste modelo de formação em Psicologia a partir das DCNs apontam claramente que o mercado de trabalho e as demandas da prática profissional muito pouco se assemelham ao que tem sido feito nos Serviços-Escola, sobretudo no que tange à atuação em equipe multiprofissional. De fato, o que vemos ocorrer é uma ação formadora de determinado ponto de vista incoerente com o que é apregoado pela própria legislação na área de formação em Psicologia. A exemplo disso, em seu artigo 3º, inciso III, as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Psicologia (MEC/CNE-CES, 2011) preconizam que, entre outros aspectos, a formação em Psicologia deve ser pautada pelo reconhecimento da diversidade de perspectivas necessárias para compreensão do ser humano e incentivo à interlocução com campos de conhecimento que permitam a apreensão da complexidade e multideterminação do fenômeno psicológico (p. 19). Ao incluirmos disciplinas de outras Ciências Humanas como Filosofia, Sociologia e Antropologia, das Ciências Biológicas como Anatomia, Genética, Neurofisiologia ou mesmo das Ciências Exatas como Informática e Estatística, acreditamos que já estamos contemplando este quesito em nossos cursos de Psicologia. A meu ver, estamos cometendo um equívoco ao pensarmos assim, pois estas disciplinas, que em geral estão nos primeiros semestres dos cursos, são de 119 embasamento para outros tipos de habilidade pertinentes a atuação em Psicologia e por si só não garantem o incentivo à interlocução com outros campos do conhecimento ou com outros saberes profissionais que auxiliem não só a compreensão, mas o tratamento e mesmo a prevenção de problemáticas ligadas a diversos fenômenos psicológicos em todas as áreas, mas principalmente em Educação, Saúde, Assistência Social ou Justiça. Importante ressaltar, neste momento da reflexão proposta por este texto, de que não se está fazendo a defesa da inclusão de conteúdos ou novas disciplinas que abarquem conhecimentos de multiprofissionalidade. Entretanto, é preciso reconhecer que a realidade dos cursos de Psicologia tenta, por esta via, dar conta da problemática, trazendo com certeza resultados positivos para a formação, mas não necessariamente com relação à capacidade de atuação em contextos multiprofissionais e de forma multiprofissional. Destaca-se a inclusão de disciplinas e conteúdos ligados aos Direitos Humanos, às Políticas Públicas, à Reforma Psiquiátrica, entre outras tantas. Infelizmente, é prudente analisar que estamos ainda falando de conteúdos que apesar de levarem os alunos a reflexões importantes e pertinentes a outros campos profissionais e fazeres, ainda não chega sequer próximo do ideal de preparar o estudante de Psicologia para a multiprofissionalidade. A reflexão que se faz necessária é que a capacidade de atuação em equipe multiprofissional (e com o olhar da multiprofissionalidade) sobre um determinado fenômeno não se trata apenas de conteúdos ou disciplinas específicas, nem mesmo a abertura de um estágio específico para lidar com a questão, o que via de regra seria excessivamente complexo de concretizar-se. A discussão que precisamos fazer, enquanto formadores de novos profissionais de Psicologia, é qual a contribuição que determinada disciplina, determinado estágio ou determinado projeto de extensão é capaz de promover para a formação multiprofissional do aluno. A forma como lidamos com a questão, como a apresentamos aos alunos e a maneira como organizamos as atividades práticas (sejam estágios, atividades de extensão ou outras) nos parece ser o ponto de partida para alcançar resultados válidos em relação a esta demanda, mas este é apenas o começo da discussão sobre o assunto. 120 Depois de formado: o desafio da atuação multiprofissional Como já explanado anteriormente neste texto, após a graduação, os egressos de Psicologia deparam-se com um mundo no qual médicos, pedagogos, advogados, administradores, assistentes sociais são seus pares no planejamento, execução e avaliação de ações, não mais “colegas psicólogos” como nos Serviços-Escola. E, nos relatos desses alunos, não se trata simplesmente de uma incongruência ou distanciamento entre teoria e prática, mas algo mais complexo: uma distinção clara entre prática de formação e prática profissional. Para tentar sanar um pouco desta questão, vemos ocorrer um fenômeno interessante entre os egressos de Psicologia: a busca constante por espaços de formação, agora pós-graduada, onde estas habilidades e competências multiprofissionais possam ser desenvolvidas ou aprimoradas. Dados da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP) divulgados durante um evento em parceria com o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP/06) indicavam que 40% dos profissionais que ingressam numa das 3 mil vagas dos Programas de Aprimoramento Profissional 2 (PAP) no estado de São Paulo eram psicólogos (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, 2009). Ainda que estes dados não sejam tão recentes, a estimativa é que o percentual possa ter aumentado, em função do crescimento do número de cursos de Psicologia no estado, numa proporção maior do que outros cursos da área da saúde. Uma hipótese interessante que justifica a alta procura de psicólogos por esses programas é que durante este período de aprimoramento o egresso de Psicologia vivencia uma prática protegida, ainda que já seja um profissional legalmente apto para atuar. Ainda mais, a formatação de tal programa possibilita-o integrar, quase que compulsoriamente, os conhecimentos da Psicologia com as 2 O Aprimoramento Profissional é uma modalidade de formação em serviço destinada a profissionais da área da Saúde (exceto médicos) na qual o aprimorando permanece durante 12 a 24 meses em atuação em serviços de saúde integrados aos SUS, em geral de alta complexidade, trabalhando 40 horas semanais em equipe multiprofissional e sob a supervisão de um outro profissional da saúde qualificado (FUNDAP, 2007). Estes aprimorandos recebem uma bolsa financiada pelo Estado de São Paulo, única unidade da federação que possui este programa. 121 outras áreas de saber, uma vez que necessariamente em sua equipe estarão presentes profissionais das mais diversas áreas da saúde, também empenhados em constante processo de diálogo com a Psicologia e as outras áreas. A reflexão que tange esta realidade nos parece bem nítida: para atuar no campo da saúde coletiva, o profissional recém-formado percebe a necessidade de desenvolver habilidades e competências que estão para além do que foi propiciado na graduação em Psicologia, especificamente durante os estágios curriculares no Serviço-Escola. Dentre estas, a capacidade de atuação em equipe multiprofissional parece-nos a mais relevante e coerente. Pois de outra forma, outras modalidades de pós-graduação na área da saúde poderiam ser privilegiadas. Entretanto dados do MEC indicam que o maior contingente de cursos de especialização em Psicologia concentra-se na área clínica. Obviamente este dado por si só não esclarece que existam mais psicólogos preferindo uma especialização neste campo, mas se confrontarmos esta informação com os dados do CFP com relação à requisição de títulos de especialista na área clínica, veremos que esta hipótese ganha maior consistência, uma vez que a maioria esmagadora de títulos concedidos concentramse nesta área. Isto posto, pode-se conjecturar que pelo menos no estado de São Paulo, a tendência dos egressos que desejam atuar na saúde coletiva parece inclinar-se fortemente para os Programas de Aprimoramento Profissional, espaços onde a consolidação da capacidade de diálogo e interlocução com outros campos da saúde faz-se cotidiana. Multiprofissionalidade por excelência: as Residências Multiprofissionais em Saúde Num panorama mais nacional, vemos que um outro locus possível para o desenvolvimento das habilidades e competências necessárias para a atuação multiprofissional vem delineando-se fortemente na última década, a partir da consolidação das Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS). As RMS configuram-se como um programa de formação em serviço que se destina a preparar os profissionais das diversas áreas da saúde para atuarem em 122 equipes multidisciplinares, com enfoque prioritário na Estratégia de Saúde da Família (ESF), seguindo as diretrizes e princípios do SUS (Ministério da Saúde, 2006). Mesmo sem dados que detalhem especificamente quantos psicólogos engajam-se nos diversos programas de RMS por todo o país, sabe-se que a destinação de vagas em cada um desses programas sempre contempla a Psicologia, o que sugere que 20% a 30% das RMS possuem psicólogos atuando. Cada programa de RMS possui características próprias com relação à ênfase oferecida, a quantidade de profissionais em cada equipe de residentes, qual o locus de atuação (se atenção básica, se serviços de referência, se serviços de alta complexidade etc.) e quais as atividades traçadas junto aos tutores (de formação em várias áreas da saúde) e os preceptores (de formação específica do residente). Porém, as diretrizes básicas são semelhantes, sendo traçadas pelo Ministério da Saúde através de Portarias e Resoluções, e acompanhadas, avaliadas e debatidas pela Comissão Nacional de Residências Multiprofissionais, formada por representantes de diversas entidades e órgãos ligados às profissões de saúde. Nesses espaços de formação pós-graduada, os profissionais dedicam cerca de 60h semanais à vivência em Unidades Básicas de Saúde, Centros de Atenção Psicossocial, Estratégia de Saúde da Família (bem como Núcleos de Apoio à Saúde da Família), além de hospitais e ambulatórios. A atuação com a tutoria e a preceptoria garante uma ação supervisionada e de certo modo também protegida. Aqui vemos o profissional mais uma vez em busca de um aprimoramento das suas competências para o trabalho em equipe multiprofissional, de modo a qualificar-se para o ingresso e permanência em serviços de saúde. A motivação do Ministério da Saúde é clara na explicitação dos objetivos da RMS, qualificar os recursos humanos para a atuação no SUS. Mas qual é a motivação dos residentes psicólogos especificamente? Uma das hipóteses novamente é a procura por um espaço acolhedor, como o Serviço-Escola, tutelado, onde sua capacidade de atuação multiprofissional possa ser exercida, treinada, qualificada, aprendida. Por mais que se trate de uma conjectura ainda sem dados estatísticos relevantes que a comprovem, alguns dos relatos já descritos nas 123 publicações da área, como por exemplo Mendes e colegas (2011) assim como Lima e Araújo (2011), sugerem que esta hipótese não está nada longe da realidade. Entretanto, assim como no Aprimoramento Profissional, as RMS enfrentam as problemáticas de formações compartimentadas, além de visões ainda biologicistas dos fenômenos saúde-doença que acabam apenas por se somar às dificuldades ligadas à falta de preparo dos profissionais em atuarem multiprofissionalmente, como também apontam, entre outros, Lima e Araújo (2011). A crítica posta aqui é simples: o espaço para atuação em equipe multiprofissional encontra no relato dos formadores e residentes, dificuldades para se efetivar como multiprofissional. Hipótese a ser facilmente delineada: sem a proposta multiprofissional na graduação, a pós-graduação encontra dificuldades patentes de dar conta de superar isto em tão pouco tempo e sem os recursos presentes na formação inicial. Os desafios para a multiprofissionalidade em Psicologia: alguns apontamentos Como o exposto brevemente até aqui, seja na graduação, seja na pósgraduação, vemos a multiprofissionalidade ser buscada mas dificilmente alcançada, pelo menos plenamente. Os exemplos apontados fazem referência somente à área da Saúde. Mas o que dizer da atuação multiprofissional em Educação? Qual o espaço qualificado para a formação em serviço do psicólogo para atuar junto ao pedagogo, aos professores das mais diversas licenciaturas e áreas do conhecimento, nos mais diversos graus e modalidades de ensino? Esta mesma reflexão leva-nos a pensar como poderia dar-se uma formação em serviço para a atuação no SUAS? A diversidade profissional aqui se expande, tendo assistentes sociais, pedagogos, advogados e sociólogos como “pares” do profissional psicólogo. E na Justiça? E na área Organizacional? É de se supor que a mesma análise seja pertinente. Dessa forma, pensar que apenas na pós-graduação a multiprofissionalidade pode ser buscada, à critério do egresso de Psicologia, restringe e desqualifica a responsabilidade da graduação neste processo, visto que não há abrangência de 124 todas as áreas de locus específico para a formação em serviço, num contexto de equipe multiprofissional. Algumas reflexões possíveis podem delinear-se, não pretendendo aqui sugerir fórmulas mágicas ou mesmo padrões de formação que possam ser replicados em todas as realidades e contextos onde os cursos de Psicologia estão inseridos. Um primeiro aspecto a se pensar é que a multiprofissionalidade não se trata simplesmente de aprender-se a trabalhar com profissionais de outras áreas além da Psicologia. Para isso, a proposta de Peduzzi (1998) apresenta-se como extremamente relevante e coerente, ao postular que o trabalho multiprofissional configura-se como uma modalidade de atuação coletiva em que o diálogo e a interação são instrumentos fundamentais para a compreensão das realidades e resolução de problemáticas atinentes a estas realidades. Assim sendo, muito mais do que aprender a trabalhar com o médico, o advogado ou o administrador, o aluno de Psicologia precisa compreender como dialogar com outra área do conhecimento que não a sua, como contribuir com o olhar da ciência psicológica sobre determinado fenômeno e como ouvir e decodificar a contribuição de outra área do saber sobre sua prática e sobre sua própria compreensão da realidade em pauta. A pergunta que mais um supervisor de estágio pode fazer-se, ou que um docente coordenador de um projeto de extensão pode indagar-se é: como posso criar um ambiente no qual estas habilidades e competências possam ser desenvolvidas? Se minha instituição, ou mesmo minha região, não dispõe de profissionais que possam auxiliar na concretização de ações que facilitem o desenvolvimento da multiprofissionalidade? Criatividade, perseverança e até uma dose de sorte podem ser necessárias para se criarem espaços, situações e acesso a contextos onde a questão da multiprofissionalidade possa operar. Listaremos algumas possibilidades aqui, mas novamente reforçando que não há a intenção de criarem-se modelos e fórmulas de atuação. No caso de instituições com diversos cursos, a organização de supervisões “intercursos” pode ser uma estratégia interessante. Estando o sigilo ético 125 resguardado, a apresentação e discussão de um caso, partilhando-se as opiniões e contribuições de alunos de Enfermagem, Medicina, Pedagogia, Fisioterapia ou Farmácia, pode conseguir-se desde um primeiro momento, a reflexão de que o olhar do outro, “de fora”, automaticamente age sobre o que eu penso ter certeza sobre o assunto e paulatinamente seja revisto ou apenas questionado. Quando falamos em “caso”, ampliamos para quaisquer situações que problematizem uma realidade e exijam algum tipo de solução conjunta. Assim sendo a indisciplina numa sala de aula, a falta de motivação de funcionários numa empresa, ou os conflitos gerados pelos pais para conseguir a guarda do filho numa separação judicial, podem ser trabalhados como “casos”. Obviamente não apenas de alunos estagiários de outros cursos estas supervisões “multi” podem ser organizadas: outros professores e profissionais da área convidados também podem cumprir o mesmo papel. Importante ressaltar que quanto mais real a situação-problema colocada em pauta, em termos de ser um caso realmente sendo atendido por um estagiário, maior a dedicação dos outros estagiários/convidados na discussão. Obviamente esta é uma estratégia de caráter esporádico, que pode ser utilizada na busca da construção de um ambiente que auxilie o aluno estagiário no desenvolvimento de habilidades que possibilitem sua compreensão da multiprofissionalidade e ajudem na constituição de uma atitude multiprofissional. Na ausência ou inviabilidade total de reunir-se com estagiários de outros cursos, ou outros professores/profissionais de outras áreas, a leitura e discussão conjunta de relatos de caso elaborados por profissionais não-psicólogos pode ser uma estratégia auxiliar com os mesmos objetivos. O diálogo com o “papel” não é tão enriquecedor quanto com outro estagiário/profissional, mas pode auxiliar no desenvolvimento das mesmas competências. Assim sendo, prontuários adaptados para se resguardar o sigilo, relatórios de intervenção (clínica ou de qualquer natureza), receituários, planos de ensino, diagnósticos organizacionais, enfim, toda e qualquer produção realizada com fins interventivos por outros profissionais, sejam médicos, pedagogos, advogados, administradores, podem auxiliar os alunos estagiários a buscarem maiores conhecimentos sobre a área para entender a “lógica” utilizada por aquele profissional não-psicólogo. Uma segunda etapa necessária, neste caso, seria o 126 exercício de produzir uma “resposta” ao material analisado, como forma de tentar produzir um diálogo com a outra área do conhecimento. A estratégia didaticamente mais enriquecedora, porém mais complexa de ser organizada e implementada, seria a atuação conjunta de estagiários de diversas áreas, preferencialmente no ambiente controlado do Serviço-Escola. Alunos de Medicina, de Pedagogia, de Direito, de Serviço Social, por exemplo, poderiam fazer uma entrevista conjunta e depois analisar conjuntamente os dados coletados, apresentando e discutindo tudo posteriormente numa supervisão ampliada. O planejamento e a execução de um treinamento num ambiente organizacional, de uma palestra de educação em saúde, ou de acolhimento de uma demanda social, todas são situações multiprofissionais em que a atuação conjunta, seguida de debate e análise dos olhares múltiplos mostra-se como estratégias eficazes em busca da construção da atitude multiprofissional. À guisa de conclusão, precisamos ressaltar que todas estas estratégias são meras ilustrações, mas que devem levar ao questionamento: como o curso onde eu atuo como docente/supervisor de estágio tem lidado com a questão da multiprofissionalidade? Que estratégias seriam possíveis diante da realidade da minha instituição ou região? Qual o potencial da minha disciplina ou estágio para colaborar com a formação de profissionais de Psicologia preparados suficientemente para atuar em contextos multiprofissionais? Se este texto trouxe estas indagações à tona, mesmo antes de serem feitas, com certeza seu papel já foi cumprido. Caso não tenha, fica por fim a reflexão de que a Psicologia precisa superar a visão compartimentada do fenômeno humano, pois em qualquer área que nós psicólogos atuemos, devemos estar cientes de que é parte da compreensão e que as outras partes precisam ser conhecidas e entrar em diálogo, pois caso contrário, nenhuma resolução eficaz poderá ser alcançada. Por outro lado, se enquanto formadores de futuros profissionais não tivermos em mente esta e outras preocupações ligadas à prática profissional futura de nossos alunos/estagiários, nosso papel terá sido apenas de reprodutores e transmissores tecnicistas. Mesmo que seja este o caso, tenho a crença de que esta fase da Psicologia está em franco declínio e em breve deverá ser superada. Por isso continuo psicólogo e docente. 127 Referências FUNDAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO ADMINISTRATIVO (FUNDAP). Programa de Aprimoramento Profissional – Manual de orientações técnicas administrativas. Imprensa Oficial do Estado: São Paulo, 2007. CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO (CRP/06). Oficina Interna sobre Especialização, Aprimoramento, Residência em Psicologia e Residência Multiprofissional em Saúde. [Áudio]. São Paulo, 2009. LIMA, M.; ARAÚJO, D. Politização e formação em serviço: significados e sentidos atribuídos pelos residentes em uma Residência Multiprofissional em Saúde Mental na Bahia. Psicologia: Teoria e Prática, v. 13, n. 3, p. 67-80, 2011. MENDES, L.C. e col. Relato de experiência do primeiro ano de residência multiprofissional hospitalar em saúde, pela ótica da Psicologia. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar, v. 11, n. 1, p. 125-141, 2011. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO; CÂMERA DE ENSINO SUPERIOR. Resolução nº 08 de 07-05-2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Graduação em Psicologia. Diário Oficial da União, Brasília, 18 de maio de 2004, Seção 1, p. 16-17. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO; CÂMERA DE ENSINO SUPERIOR. Resolução nº 05 de 15-03-2011. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, estabelecendo normas para o projeto pedagógico complementar para a Formação de Professores de Psicologia. Diário Oficial da União, Brasília, 16 de março de 2011, Seção 1, p. 19. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria da Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde. Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Residência Multiprofissional em Saúde: experiências, avanços e desafios. Brasília, 2006. 128 PEDUZZI, M. Equipe multiprofissional de saúde: a interface entre trabalho e interação. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Departamento de Medicina Preventiva e Social. Universidade Estadual de Campinas. Campinas-SP, 1998. SPINK, M. J. Psicologia social e saúde: práticas, saberes e sentidos. Rio de Janeiro: Vozes, 2003. Sobre o autor Leonardo Lopes da Silva: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) – Campus Vitória da Conquista – Faculdade Guanambi. 129 ESTÁGIO EM PSICOLOGIA ESCOLAR: COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO3 Marilda Gonçalves Dias Facci – UEM4 Introdução O Conselho Federal de Psicologia lançou, em 2013, uma Carta de Serviços sobre Estágio e Serviços-Escola para atuar como referência e orientar a atividade de estágio nas instituições de Ensino Superior. Neste documento, é estabelecido que os estágios têm por finalidade “[...] desenvolver a aprendizagem profissional e sociocultural da(o) estudante sob a responsabilidade e coordenação da instituição de ensino” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013, p. 8). Fica evidente para nós que se trata de uma aprendizagem que envolve tanto os aspectos específicos da profissão como uma compreensão da realidade social em que a prática é desenvolvida. No caso deste texto, vamos centrar-nos a respeito do estágio na área de Psicologia Escolar e Educacional. Nosso objetivo é discorrer sobre o compromisso ético e político com a formação do profissional e seu envolvimento com a comunidade, no âmbito da Psicologia Escolar, tendo como referência os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural. Interessa-nos, ainda, relatar a forma como desenvolvemos o estágio na Universidade Estadual de Maringá, instituição na qual trabalhamos. Desde 1988, trabalhamos na área de Psicologia Escolar: nos primeiros dez em uma instituição de Ensino Superior, voltada para a formação do psicólogo que pretende trabalhar no âmbito escolar. Desde nosso ingresso na universidade, temos atuado no componente curricular Formação Profissional em Psicologia Escolar e observado as dificuldades que os acadêmicos têm em compreender como deve ser a intervenção neste campo da Psicologia. Constatamos também quão complexa é a tarefa de supervisão de estágio, visto vivermos em uma época em que 3 As discussões deste texto foram apresentadas no 21º Encontro de Serviços-Escolas do Estado de São Paulo e 4º Encontro Nacional de Supervisores de Estágio, realizado em Campinas em 2013. 4 Doutorado em Educação Escolar pela UNESP – Araraquara, Pós-Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo IPUSP, professora do Departamento de Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected] 130 há uma grande defesa da prática, da experiência, dando pouco valor ao conhecimento, conforme discussão já apresentada em 2004 (FACCI, 2004). Os acadêmicos, muitas vezes, acham que já tiveram bastante teoria, mas pouca prática, e eles estão ávidos pelo saber fazer, reproduzindo a velha dicotomia entre teoria e prática. Desta forma, esperamos que este capítulo possa contribuir para refletir a respeito e auxiliar na atuação da área. Em um primeiro momento, trataremos da formação do psicólogo escolar; em seguida, apresentaremos, brevemente, alguns pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural que podem auxiliar o trabalho do psicólogo no compromisso éticopolítico com a comunidade escolar. Finalizaremos o texto com o relato de alguns encaminhamentos que vimos dando na supervisão de estágio. Formação do Psicólogo Escolar Vários autores já discorreram sobre a história da Psicologia e da Psicologia Escolar, como, por exemplo, Mazini (1978), Patto (1987), Yazlle (1997), Antunes (2007), Guzzo, Mezzalira, Moreira, Tizzei e Neto (2010). No Brasil, o curso de Psicologia nasceu atrelado aos cursos de Medicina, vinculado, especialmente, à Neurologia, Psiquiatria e Medicina Social e era marcado por uma visão experimentalista e positivista (Yazlle, 1997). Além da medicina, esclarece Antunes (2007), as Escolas Normais auxiliaram a consolidação do vínculo entre Psicologia e Educação, com disciplinas que tinham como finalidade compreender o funcionamento da mente. Patto (1987) deixa claro que esta ciência esteve, costumeiramente, atrelada aos ideários liberais, centrada em explicações individuais para justificar o sucesso e o fracasso dos indivíduos na sociedade e na escola. Ela nasceu e continua a desenvolver-se atrelada às condições materiais, à forma como os homens relacionam-se, porque, de acordo com Marx & Engels (1996, p. 56), “[...] as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias”. A história da Psicologia é resultado, portanto, da forma como os homens foram-se organizando para sobreviver e para transformar a natureza, da forma como foram 131 explicando o desenvolvimento do psiquismo, o processo educacional e em condições históricas determinadas. No caso da Psicologia Escolar e Educacional, Guzzo, Mezzalira, Moreira, Tizzei e Neto (2010, p. 131) afirmam que a relação entre a Psicologia e a Educação é antiga e “[...] é no bojo das circunstâncias concretas que ela consolida-se em teoria e prática”. Em determinados momentos, predomina a defesa da teoria; em outros momentos, a defesa da prática e, muito raramente, é estabelecida a relação dialética entre elas. O curso de Psicologia foi criado em 1962, por meio da Lei 4.119 (BRASIL, 1962). A formação contemplava as seguintes disciplinas comuns: Estatística, Fisiologia, Psicopatologia Geral, Psicologia Experimental, Psicologia Geral, Psicologia da Personalidade. No artigo 4º desta Lei, é exposto que o psicólogo deve utilizar “[...] métodos e técnicas psicológicas com o objetivo de diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica e solução de problemas de ajustamento”. Caberia ao profissional, portanto, dentre outras atividades, fazer diagnóstico e orientação psicopedagógica, mas o que marcou e marca, em muitas situações, é o viés clínico, com avaliação psicológica com base na psicometria. De 1962 a 2004, muitas discussões foram sendo travadas em relação à formação do psicólogo e, em 2004, foram assinadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Psicologia (BRASIL, 2004), as quais defendem a impossibilidade de dissociação entre ensino, pesquisa e extensão. A partir deste documento, os cursos deveriam ser organizados em ênfases, dando possibilidade para o aluno escolher as disciplinas a serem cursadas e estágios a serem realizados. Neste documento, são elencadas as habilidades e competências que deveriam ser desenvolvidas no aluno em seu processo de formação. Dentre as ênfases, uma sugerida é a Psicologia e Processos Educativos, que compreende a competência [...] para diagnosticar necessidades, planejar condições e realizar procedimentos que envolvam o processo de educação e de ensinoaprendizagem através do desenvolvimento de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores de indivíduos e grupos em distintos contextos institucionais em que tais necessidades sejam detectadas (BRASIL, 2004, p. 4). 132 Esta ênfase apresenta uma necessidade de atuar no processo ensinoaprendizagem; porém, no âmbito geral do documento, fica explícita uma grande valorização da prática em detrimento de uma formação calcada em fundamentos teóricos consistentes. O documento em si, do nosso ponto de vista, pode ser considerado um avanço na área, entretanto carrega suas limitações e uma filiação aos ideários pós-modernos, que dão grande destaque ao saber fazer, à experiência, sem analisar o contexto histórico-cultural que permeia a apropriação do conhecimento. Como afirma Moraes (2003), estamos vivenciando um recuo da teoria na atualidade. É possível constatarmos hoje, conforme pesquisa de Cruces (2006), que a área da Psicologia Escolar figura como uma área pouco escolhida como possibilidade de atuação profissional, tanto entre psicólogos quanto por estagiários de Psicologia. A formação do psicólogo condu-lo a direcionar-se para as práticas de avaliação e de psicodiagnóstico, gerando as atividades mais pesquisadas e efetivadas na escola. Em pesquisa realizada pela autora com 765 sujeitos, alunos do quinto ano de graduação em Psicologia, concluintes do curso em 2001, em 32 universidades do Brasil, constatou-se que 56,5% tinham preferência pela área clínica, tanto em termos de estágios realizados como em perspectiva de atuação profissional. Segundo a autora, esta escolha deve-se aos seguintes fatores: à restrição curricular em disciplinas da área escolar; à falta de uma explicitação mais clara nas disciplinas da área escolar no que se refere à atuação do psicólogo no âmbito educacional; às condições de ensino de Psicologia que, de uma forma geral, não contribuem para que os alunos possam dar respostas claras e coerentes acerca das perguntas realizadas. Cruces (2009) e Fírbida (2011) constataram também que poucas universidades ofertam a ênfase na área de Educação. Cruces (2009), em consulta às páginas de 187 cursos de Psicologia disponíveis na página da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia – ABEP, chega aos seguintes dados: das 60 instituições que informaram as ênfases escolhidas, somente 22 oferecem-na na área 133 escolar ou educacional. É possível afirmarmos que esta área não se configura como um campo que tem atraído alunos e pesquisadores. Dando continuidade aos fatos que marcam a história da formação e atuação do psicólogo, em 2013, o Conselho Federal de Psicologia publicou o documento de Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica, que se tornou referência para a atuação da Psicologia na área escolar, tendo como base “[...] os princípios éticos e políticos norteadores do trabalho das(os) psicólogas(os), possibilitando a elaboração de parâmetros compartilhados e legitimados pela participação crítica e reflexiva da categoria no campo da educação” (Conselho Regional de Psicologia, 2013, p. 13). Este documento tem como objetivo subsidiar a atuação dos psicólogos na Educação Básica e marca um posicionamento crítico da Psicologia com o objetivo de superação de uma visão clínica que naturaliza valores e práticas sociais discriminatórias e culpabiliza alunos e seus familiares, e que tem permeado a prática do psicólogo escolar. Discutimos aqui, brevemente, determinados marcos históricos vinculados à formação e atuação do psicólogo na área educacional. No próximo item, apresentaremos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultual que trazem elementos para pensar o homem como “síntese das relações sociais” (Saviani, 2004). Psicologia Histórico-Cultural: Fundamentos para a Prática de Estágio Na nossa atividade de supervisão de estágio, iniciamos o ano letivo fortalecendo alguns aspectos teóricos que foram já estudados durante os anos anteriores do curso e alguns pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, fundamentada no marxismo, os quais servirão de base para a discussão das problemáticas que se apresentam na escola. Na busca da unidade entre teoria e prática, que defendemos na supervisão de estágio, durante a efetivação deste componente curricular, vamos entremeando constructos teóricos e aspectos práticos. 134 Partimos do pressuposto, teorizado por Leontiev (1978), de que a formação do ser humano, integrante de uma determinada cultura, ocorre por meio da aprendizagem, que permite a apropriação do resultado da experiência e conhecimento do conjunto dos homens. O homem humaniza-se por meio da apropriação dos conhecimentos, afirma o autor. Em um primeiro momento, a criança, por meio da mediação dos adultos, vai conhecendo a realidade, os objetos, os costumes; todavia, quando adentra no espaço escolar, os conhecimentos científicos passam a mediar o conhecimento do mundo. Para Vygotsky (2000), a escola deve trabalhar com os conhecimentos científicos, possibilitando ao aluno fazer generalizações e formular conceitos cada vez mais complexos. No entanto, a escola, no momento atual, pode ter várias finalidades, entre elas: 1) adaptar os indivíduos às relações existentes, garantindo àqueles pertencentes à classe dominante as vantagens e privilégios que lhe são peculiares e adaptando os indivíduos das classes subalternas à exploração que sofrem, servindo à conformação à ideologia dominante, que perpetua valores e conceitos fundamentais da sociedade; ou 2) pode constituir-se em arma na luta contra a opressão, por permitir a tomada de consciência acerca da realidade e dos determinantes sociais, instrumentalizando o indivíduo para uma ação transformadora em seu meio. Ante as possibilidades divergentes, Freitas (2002) afirma que: A escola continua sendo um espaço de luta que, entretanto, não pode ser ocupado ingenuamente com o espírito de “fazer justiça com as próprias mãos” e promover equidade, sem levar em conta as relações que se estabelecem entre a escola e a sociedade. Significa, ainda, que as modificações desejadas na escola devem estar ancoradas nos movimentos sociais que lutam pela emancipação do homem e não nas necessidades que o sistema capitalista tem de adequar a escola à lógica da reestruturação produtiva. Neste processo, cumpre papel esclarecedor a concepção de sociedade e de educação que está por trás das propostas educacionais (Freitas, 2002, p. 300). A escola, portanto, constituída pelas condições materiais, responde à formação de determinado tipo de homem. Isso tem que ficar evidente para os acadêmicos ao realizarem o estágio na escola. Eles têm que ter clareza que a intervenção exige um posicionamento ético e político. Além disso, numa visão marxista de educação, que busca a emancipação humana, o trabalho educativo tem 135 como meta tornar individualizados os conhecimentos que as várias ciências produziram, ou seja, está vinculado ao processo de humanização. Saviani (2003, p. 13) entende que o trabalho educativo “[...] é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto de homens”. A escola deve trabalhar, acrescenta o autor, com os conhecimentos clássicos, com aquilo que é fundamental nas várias áreas de conhecimento. Sob esta perspectiva do processo de humanização, Vygotsky (2000) afirma que a aprendizagem promove o desenvolvimento do psiquismo. As funções psicológicas superiores – tais como a memória lógica, a capacidade de abstração, a atenção concentrada, a criatividade, entre outras funções – são desenvolvidas por meio da mediação da cultura. Elas transformam-se devido às relações estabelecidas com outros homens e, de acordo com Vygotsky (1996), tal processo exige voluntariedade, tomada de consciência. O desenvolvimento do psiquismo, nesta linha de raciocínio, está atrelado às condições objetivas nas quais os alunos estão inseridos e que proporcionarão, ou não, a apropriação dos vários conhecimentos. Esse desenvolvimento não é decorrente de um amadurecimento biológico; ele é provocado pelo conhecimento proporcionado por aqueles que rodeiam a criança. A escola, neste sentido, tem que ter intencionalidade em sua ação de ensinar e o professor atua como mediador dos conhecimentos (Facci, 2004). Na prática pedagógica, o professor tem que atuar, teoriza Vygotsky (2000), no nível de desenvolvimento próximo do aluno, ou seja, naquilo que está em vias de desenvolver-se, naquele campo no qual o aluno precisa de auxílio para resolver as atividades. Também não adianta ensinar aquilo que está muito distante da capacidade de compreensão do aluno, visto que, como afirma Vygotsky (2000, p. 337), “ensinar uma criança o que ela não é capaz de aprender é tão estéril quanto ensiná-la a fazer o que ela já faz sozinha”. Estes pressupostos sobre a relação desenvolvimento e aprendizagem trazem um grande diferencial na prática do estagiário, levando-o a compreender o desenvolvimento da criança prospectivamente, podendo orientar o professor e empreenderações que possam provocar o desenvolvimento das funções psicológicas dos alunos. Entendemos que é necessário criar na criança as 136 premissas de desenvolvimento, que podem ser realizadas por meio dos conteúdos curriculares. Por intermédio do conhecimento científico, o aluno conhece a realidade da qual ele é parte. A escola, por si só, não transforma a realidade do aluno, mas pode transformar a forma como ele compreende o mundo que o cerca. A transformação da consciência pode colaborar para que, na coletividade, os homens possam transformar a realidade. Os seres humanos apropriam-se da cultura para se desenvolver e para que ocorra o desenvolvimento da sociedade como um todo. Assim, reconhece Leontiev (1978), sem a transmissão dos conhecimentos para as gerações seguintes é impossível promover a continuidade do processo histórico. A análise da relação ensino-aprendizagem na perspectiva apresentada incide na forma como o estagiário vai avaliar as queixas escolares no que se refere à apropriação da leitura, escrita e matemática. Este é um ponto importante, uma vez que uma solicitação frequentemente feita aos psicólogos é a avaliação psicológica. Tomando como referência a Escola de Vygotsky no processo de avaliação, o psicólogo precisa estar atento à forma como o aluno utiliza dos recursos mediadores para resolver as tarefas cognitivas. Vygotsky (1996) compreende que todo comportamento é mediado por instrumentos – direcionados para a realidade externa – e signos – direcionados para o comportamento interno do indivíduo. No processo de avaliação, é fundamental o psicólogo analisar o processo de constituição das queixas escolares, descrever como o aluno está aprendendo, não ficando à mercê de testes psicométricos, que avaliam geralmente somente o que se encontra em nível real – aquilo que já está efetivado. O papel mediador do psicólogo faz muita diferença na compreensão do nível intelectual dos alunos avaliados. Vygotsky e Luria (1996) deixam claro que o diagnóstico deve primar por compreender tanto aquilo que a criança já se apropriou como aquilo que ela consegue realizar com a ajuda ou por imitação. Esse diagnóstico, defendem os autores, só tem validade se possibilitar a proposição de atividades que promovam a superação dos problemas que ocorrem no processo de escolarização. Estes são alguns pontos expostos, brevemente, que podem auxiliar a prática do aluno durante o estágio na escola. Na supervisão, trabalhamos com 137 conteúdos que vão desde a formação do psiquismo humano, a relação ensinoaprendizagem, o fracasso escolar, a avaliação psicológica, a formação da personalidade e a função social da escola, bem como outros assuntos que permeiam o ensinar e o aprender. Meira (1997) analisa, sob uma visão crítica de base marxista, alguns elementos considerados como indicativos do pensamento crítico voltado para uma prática de Psicologia Escolar compromissada com propostas consistentes e pertinentes com a prática emancipadora. São eles: Como o psicólogo compreende o fracasso escolar? Quais as áreas de intervenção escolhidas? Qual o modelo de atuação no qual o trabalho assenta-se? Como são utilizados os processos de avaliação das queixas escolares? Quais os vínculos que o profissional estabelece com a comunidade escolar? Estas questões permeiam o processo de supervisão de estágio. A seguir, apresentamos algumas sugestões de temas e procedimentos que podem ser utilizados no estágio. O Estágio Curricular – A Prática em Desenvolvimento Munidos dessas informações, passemos, agora, a discorrer sobre a prática do estágio. Em um primeiro momento, como afirmamos anteriormente, dedicamo-nos ao estudo teórico, explicitando para os acadêmicos alguns pressupostos teóricos que podem auxiliar a prática a ser desenvolvida. Deixamos claro a ele que estamos retomando alguns conteúdos e que, com certeza, a formação já trouxe vários elementos que proporcionarão uma análise psicológica dos problemas enfrentados no cotidiano escolar. Nossos alunos, na Universidade Estadual de Maringá, realizam uma prática de estágio que garante pelo menos quatro h/a semanais de atuação na escola e quatro h/a semanais de supervisão, independentemente da ênfase escolhida. Eles ficam o ano letivo na escola e podem acompanhar os bastidores da instituição continuamente. Uma vez estabelecidos alguns pilares teóricos, vamos para a escola para levantar as expectativas da equipe pedagógica – diretor e pedagogos – em relação 138 ao estágio. São discutidos temas a serem contemplados nas séries em que os estagiários poderão atuar e intervenções que serão feitas. Na escola na qual supervisionamos estágio acerca de 15 anos, vários temas foram sugeridos e trabalhados com os alunos e professores, tais como: função social da escola, sentido e significado, a formação humana em uma sociedade capitalista, adolescência e sexualidade, o conhecimento científico e o desenvolvimento psicológico, o processo de humanização, orientação profissional, transição do aluno do 5º para o 6º ano, a função da classe especial, a motivação para a leitura, a importância da coletividade na escola, entre outros conteúdos pertinentes à relação entre Psicologia e Educação. Uma vez delimitadas as atividades que serão realizadas, os estagiários fazem a caracterização da escola. Analisam a Proposta Político-Pedagógica, descrevem a estrutura física da escola, a constituição do corpo docente e de funcionários, o número de turmas e outros pontos que permitem um mínimo de conhecimento da instituição. Sempre ponderamos, também, sobre o índice de reprovação de cada turma, com vistas a identificar em quais séries ocorrem maiores dificuldades de aprendizagem. Os acadêmicos são orientados a se apresentarem para os professores e alunos, explicando, em cada turma, o que farão e quais são as atribuições dos psicólogos na escola. Este momento é imprescindível, já que eles farão parte da rotina da escola durante todo o ano letivo e os envolvidos no processo ensinoaprendizagem necessitam compreender quais as contribuições que a Psicologia pode dar para a prática pedagógica. Elaboramos um projeto de intervenção, apresentamos à escola e, a partir da sua aprovação, começamos o desenvolvimento das atividades. Geralmente, quando vamos trabalhar com uma turma, fazemos uma entrevista individual com cada aluno, para coletar dados da sua rotina e do vínculo que tem com a aprendizagem. Tal instrumento de pesquisa dá-nos uma ideia das características gerais da turma. Também fazemos observação em sala de aula, atentando para a forma como as relações são estabelecidas no processo de apropriação do conhecimento. Vygotsky (1996) coloca que é muito importante propor-se a explicar os comportamentos, as ações empreendidas na escola, ao invés de somente 139 descrever o que ocorre. Nesse contato semanal com a escola, os estagiários vão-se deparando com os meandros que envolvem o processo pedagógico, a rotina da escola, podendo estabelecer vínculos que permearão o desenrolar do estágio. As atividades são desenvolvidas, geralmente, por meio de dinâmicas de grupo, alicerçadas em textos lidos e estudados e relacionados às temáticas que estão sendo expostas. O tempo todo, buscamos resgatar com o acadêmico o compromisso ético-político que deve ter na profissão. Ressaltamos que não basta a instrumentalização prática, é necessário analisar a totalidade das relações sociais – entendidas, aqui, como relações de classe – que permeiam a função da escola. Questionamos sempre até que ponto todos os alunos estão tendo oportunidade igualitária de acesso aos bens materiais e intelectuais produzidos pela humanidade. Na supervisão, estudamos o texto e estruturamos cada atividade a ser implementada. Após a execução da atividade proposta, analisamos o que ocorreu, fazemos algumas ponderações, correlacionamos o que foi apresentado com os pressupostos teóricos e vamos definindo como serão encaminhados os próximos encontros. Assim que concluímos alguma atividade prevista no projeto, marcamos uma reunião com a equipe pedagógica da escola para fazermos uma devolutiva e propormos sugestões para superar algumas dificuldades constatadas. Nesses momentos, geralmente, apresentamos as problemáticas juntamente com elementos teóricos da Psicologia para a sua análise, com o intuito de fundamentar e possibilitar a compreensão dos determinantes histórico-sociais que produzem determinados fatos. Consideramos que este é um espaço pedagógico, no sentido de transmissãoapropriação dos conhecimentos, tanto da equipe da Psicologia como da equipe da escola. Valorizamos as ações desenvolvidas em prol da apropriação do conhecimento, entendendo que professores, pedagogos e alunos têm potencialidades que podem ser desenvolvidas quando mediações adequadas são realizadas. Colocamos em prática, nesse momento, o pressuposto vygotskyano de que aprendizagem promove desenvolvimento, objetivando destacar que tem muita validade. Após cada reunião com a equipe pedagógica, observamos que supervisora, estagiários e pedagogos procuram trabalhar em conjunto para que a escola cumpra com sua função de ensinar, conforme propõe Saviani (2003). 140 Em muitas situações, fazemos uma devolutiva individual para os alunos da turma, fechando todo o processo de intervenção. Neste momento, sempre orientamos os alunos quanto a alguns encaminhamentos importantes que eles podem dar em direção à apropriação do conhecimento. A intervenção com os alunos na escola geralmente demanda da supervisão muito trabalho, porque, com frequência, os estagiários voltam preocupados com o nível de indisciplina que ocorre normalmente nas salas de aulas e temos que empreender esforços para fazer uma análise que se fundamente tanto nas singularidades de cada aluno como na universalidade das relações sociais que produzem determinado tipo de comportamento na escola. Não é um exercício fácil em uma sociedade que prima por defender o ideário liberal, que teima em colocar no indivíduo, e somente nele, a culpa das mazelas da sociedade. No trabalho com professores, no caso de reuniões de estudos, de palestras, de cursos, geralmente acompanhamos os acadêmicos para que estes sintam-se mais seguros com a presença da supervisora. Percebemos, em muitas situações, que a escola espera que os supervisores encaminhem a exposição, nem sempre valorizando a potencialidades que os estagiários têm. O importante é investir na autonomia dos acadêmicos, considerando que, nos anos posteriores, eles estarão sozinhos desenvolvendo a prática profissional. Na escola em que temos realizado o estágio, o trabalho, consecutivamente, vem sendo avaliado positivamente. A equipe de pedagogos da escola estabelece parceria com os estagiários e, conjuntamente, temos buscado alternativas para o enfrentamento das problemáticas que se apresentam na prática pedagógica. Considerações Finais Concluindo esta exposição, gostaríamos de ressaltar alguns pontos que consideramos fundamental para a prática de supervisão e a realização do estágio curricular na área de Psicologia Escolar. Não vamos adentrar muito na discussão teórica, porque consideramos que tentamos fazer isso anteriormente. 141 Um primeiro ponto que queremos destacar é a clareza que o estagiário tem que ter em relação à função social da escola. O objetivo da escola, seu significado social, tomando como referência as ideias de Saviani (2003) e a Psicologia Histórico-Cultural, ambas com base marxista, é ensinar. Portanto, toda intervenção realizada não pode perder isto de vista. O objeto de estudo da Psicologia Escolar é o processo ensino-aprendizagem, é a constituição da subjetividade dos envolvidos no processo educativo. O foco do trabalho é este, independentemente se estamos trabalhando com pais, professores, funcionários ou alunos. Neste processo, emoção e cognição caminham juntas, como propõe Vygotsky (2000). No processo de supervisão, tentamos provocar no acadêmico um sentimento de empatia com aqueles que estão em sofrimento psíquico, decorrente, na maioria das vezes, do não aprendizado. O futuro profissional tem que entender que, no período de escolarização, sobretudo nos primeiros anos do Ensino Fundamental, a atividade principal – tomando como referência os postulados de Leontiev (1978) e a compreensão da periodização de Vygotsky (1996) – é o estudo. A forma como o aluno relaciona-se com a realidade, nesta fase e mesmo na adolescência, é pelo estudo. Portanto, o processo de aprendizagem permeia a formação da personalidade do aluno e direciona as relações que ele trava com os outros homens. Isso não pode ser esquecido nem pelo supervisor nem pelo estagiário. Outro ponto necessário é compreender que existe uma relação dialética entre teoria e prática. Saviani (2005, p. 262) afirma que “quanto mais sólida for a teoria que orienta a prática, tanto mais consistente e eficaz é a atividade prática”. Dessa forma, o conhecimento teórico, seu estudo, deverá sempre estar permeando a atuação profissional, visto que o conhecimento científico produzido pela Psicologia, Educação e ciências afins será a ferramenta que estagiário ou psicólogo terá para analisar o que ocorre no espaço escolar, dentro das especificidades que orientam o seu agir. Na realização dos estágios também devem ser realizados esforços para superar a visão clínica, que historicamente guia a prática profissional, mesmo no âmbito escolar. Esta é uma luta constante em uma sociedade que quer biologizar e 142 medicalizar todos os indivíduos que passam pela escola: dislexia, transtornos de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), por exemplo, são alguns distúrbios que estão sendo diagnosticados e depositados nos alunos, deixando-se de considerar que o fracasso escolar é produzido socialmente, como havia anunciado Patto (1990). Analisar as condições materiais, o contexto social que produzem as relações escolares é tarefa posta para os psicólogos que pretendem ter um compromisso ético e político com a comunidade escolar. Finalizamos esta exposição com uma citação de Vygotsky que explicita, em poucas palavras, o trabalho que ainda temos que empreender, no âmbito educativo, para formar esse novo homem, emancipado: “Tão só uma elevação de toda a humanidade a um nível mais alto de vida social – a libertação de toda a humanidade – pode conduzir à formação de um novo tipo de homem.” (Vygostky, 1930, p. 12). Referências ANTUNES, M. A. M. A Psicologia no Brasil: leitura histórica sobre sua constituição. 5ª. ed. São Paulo: EDUC, 2007. BRASIL, Parecer 062, de 19 de fevereiro de 2004. Diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em Psicologia. 2004. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12991 > Acesso em: 07 de jun. de 2011. BRASIL. Lei 4.119, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre os cursos de formação em Psicologia e regulamenta a profissão de Psicólogo. Brasília, DF, Diário Oficial da União, de 05 de setembro de 1962, Seção 1, p. 9253. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na Educação Básica. Brasília, DF: CFP, 2013. CRUCES, A. V. V. Desafios e perspectivas para a Psicologia Escolar com a implantação das diretrizes curriculares. In: MARINHO-ARAÚJO, C. M. (Org.). Psicologia escolar: novos cenários e contextos de pesquisa, formação e prática. Campinas, SP: Alínea, 2009. p. 15-34. 143 CRUCES, A. V. V. Psicologia e educação: nossa história e nossa realidade. In: ALMEIDA, S. F. C. (Org.). Psicologia escolar: ética e competências na formação e atuação profissional. 2ª. ed. Campinas, SP: Alínea, 2006. p. 17-36. FACCI, M. G. D. Valorização ou esvaziamento do trabalho do professor? Um estudo crítico-comparativo da Teoria do Professor Reflexivo, do Construtivismo e da Psicologia vigotskiana. Campinas, SP: Autores Associados, 2004. FIRBIDA, F. B. G. (2012) A Formação do psicólogo no Estado do Paraná para atuar na escola.. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, 2012. FREITAS, L. C. A internalização da exclusão. Educação e Sociedade, v.23, n.80, p.299-325, Set. 2002. GUZZO, R.S.L.; MEZZALIRA, A. S. C.; MOREIRA, A. P. G.; TIZZEI, R. P.; SILVA, W. M. de F. N. Psicologia e educação no Brasil: Uma visão da história e possibilidades nessa relação. 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Possui Bolsa de Produtividade em Pesquisa pela Fundação Araucária – Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná. Foi coordenadora do GT de Psicologia da Educação da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação – ANPEd no período de 2010-2013, é Editora Assistente da Revista Psicologia Escolar e Educacional, membro do Grupo de Trabalho de Psicologia Educacional da ULAPSI e Presidente Anterior da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional-ABRAPEE. É membro do Comitê Assessor da área de Educação e Psicologia da Fundação Araucária. Participa do GT de Psicologia e Políticas Educacionais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia – ANPEPP. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia do Ensino e da Aprendizagem, atuando principalmente nos seguintes temas: psicologia histórico-cultural, educação, psicologia escolar. 145 ESTÁGIOS EM PSICOLOGIA E SERVIÇOS-ESCOLA Iraní Tomiatto de Oliveira As clínicas-escola de Psicologia começaram a se organizar, no Brasil, a partir da regulamentação da profissão, pois sua existência fazia parte das exigências legais para a instalação de um curso de Psicologia. Desde o início, tiveram um duplo objetivo: ser campo de estágios de formação profissional e prestar serviços psicológicos à população. Com o passar do tempo, um terceiro objetivo agregou-se aos dois primeiros: a realização de pesquisas. Durante os últimos 50 anos essas clínicas assumiram diferentes papéis: representaram, durante vários anos, uma das raras alternativas para a população que necessitava de serviços psicológicos gratuitos; foram alvo de muitas críticas por terem transplantado para um contexto institucional as práticas clínicas características do consultório privado, sem levar em conta a diferença dos contextos e da população atendida; funcionaram como incubadoras de novas propostas e modelos de intervenção, contribuindo significativamente para a expansão das possibilidades e dos campos de atuação da Psicologia, entre outros. Essa expansão foi-se refletindo nos cursos de formação profissional e consolidou-se com a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia de 2004; a última versão das diretrizes, publicada em 2011, altera apenas o Artigo 3º., referente ao Projeto Complementar para a formação de Professores de Psicologia, e permanece idêntica à de 2004 em todos os outros artigos, inclusive naqueles que se referem aos estágios da formação de psicólogo. A orientação de que os estágios obrigatórios deveriam dividir-se em básicos e específicos, distribuir-se ao longo do curso e assegurar o contato do formando com diferentes situações, contextos e instituições consolidou, também, a ampliação do conceito de clínica-escola. O Artigo 25 das DCN estabelece que O projeto de curso deve prever a instalação de um Serviço de Psicologia com as funções de responder às exigências para a formação do psicólogo, congruente com as competências que o curso 146 objetiva desenvolver no aluno e as demandas de serviço psicológico da comunidade na qual está inserido (Brasil, 2011). Assim, cada vez mais foi-se instalando a concepção de um serviço que não se restringia aos atendimentos clínicos, mas que deveria ser o articulador e organizador de todas as atividades de estágio e de todos os tipos de serviços psicológicos a eles relacionados. Por suas características e pela complexidade de sua organização e realização, o tema dos estágios e do serviço-escola tem sido sempre um dos mais discutidos em todos os encontros e eventos científicos que incluem discussões sobre a formação e mesmo sobre a prestação de serviços psicológicos. Há muitas questões que envolvem desde o estabelecimento de parcerias, a estrutura das supervisões, as condições do estagiário, as relações entre o supervisor de campo e o da instituição de ensino (orientador, nos termos da Lei de Estágio), as áreas de estágio, entre muitas outras. Uma vez que se está abordando a questão dos estágios, é preciso levar em conta a existência de uma Lei Federal que trata especificamente da regulamentação dessa atividade no país: a Lei 11.788/2008. A partir da definição, em seu Artigo 1º., do que é a atividade de estágio – o Art. 1 Estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos (Brasil, 2008). São estabelecidas uma série de condições para sua realização, que envolvem a celebração de um termo de compromisso entre as partes, limite de carga horária, compatibilidade das atividades desenvolvidas com a formação acadêmica que o estagiário está realizando, entre outras. Em 1997, a Psicologia foi reconhecida como uma das treze profissões de nível superior que compõem a área da Saúde, através da Resolução núm. 218 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. Este reconhecimento resulta em uma série de compromissos que, do ponto de vista legal, incluem a observância 147 à Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (2006) e às determinações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que estabelece a necessidade de licença para o funcionamento de serviços psicológicos. Há ainda a considerar as determinações do Conselho Federal de Psicologia, em especial o Código de Ética Profissional dos Psicólogos (2005) e a Resolução 01/2009, que dispõe sobre a obrigatoriedade do registro documental decorrente da prestação de serviços psicológicos. E a necessidade de que o serviço-escola seja cadastrado no Conselho Regional em cuja jurisdição está situado. É possível perceber, pelos documentos citados – que não esgotam o assunto –, que não é tarefa fácil conhecer tudo o que rege o funcionamento desse tipo de serviço. Por isso, o Conselho Federal e os Conselhos Regionais, desde a década de 1980, tem preocupado-se em oferecer orientações sobre o assunto. A ABEP, associação civil criada pelo Fórum das Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira – FENPB – para cuidar da formação do psicólogo brasileiro, também tem produzido documentos de orientação sobre o tema. Exemplo disso é o Boletim Especial da ABEP, publicado em agosto de 2009, no qual a psicóloga Eliana Vianna tece relevantes reflexões e comentários sobre a Lei do Estágio e sobre a Resolução CFP 001/2009, ainda no calor das discussões provocadas por essas publicações. Nessa direção, e buscando uma atualização das orientações oferecidas aos psicólogos em geral e aos coordenadores de curso e de estágios, professores, supervisores e orientadores, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo montou um grupo de trabalho que começou a desenvolver suas atividades ainda em 2007, ligado à Comissão de Orientação e Fiscalização, do qual participaram coordenadores de curso, responsáveis técnicos de serviços-escola, representantes da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP), conselheiros, gestores e assistentes técnicos. Foi realizado um amplo levantamento da legislação atinente ao tema, das resoluções, pareceres e orientações já publicadas. No decorrer dessas discussões foram surgindo novos documentos, como a Lei do Estágio e a Resolução CFP 001/2009, cujo conteúdo foi sendo incorporado aos debates do grupo. Após 148 cerca de dois anos de trabalho o grupo5 produziu as Recomendações aos ServiçosEscola de Psicologia do Estado de São Paulo: Compromisso Ético para a Formação de Psicólogos, publicado pelo CRP de São Paulo em março de 2010. Nesse documento são abordados os seguintes temas: concepção e objetivos dos serviçosescola; considerações sobre a Lei do Estágio; inspeção da Vigilância Sanitária; registro documental e prontuário. Embora se dirija aos psicólogos do Estado de São Paulo, ele serviu como referência para a elaboração de orientações nas outras regiões do país, e até para a elaboração de um documento nacional. Na esteira dessa publicação e como fruto de parceria entre o Conselho Federal, a ABEP e o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo foi organizado, em 2011, um grupo de trabalho6 com o objetivo de produzir um documento orientador sobre estágios e serviços-escola em âmbito nacional. Denominado Carta de Serviços Sobre Estágios e Serviços-Escola, a produção do grupo acaba de ser publicada, em setembro de 2013. Observa-se, na produção desses documentos, a evolução da Psicologia Brasileira, não só no sentido da ampliação das áreas de atuação, mas da crescente clareza sobre os processos de formação, sobre a oferta de serviços e sobre as condições adequadas para a realização de estágios. O tema, certamente, continua demandando discussões, reflexões e constante construção de parâmetros e referências. Há, por certo, temas constantemente presentes na vida diária dos que se dedicam à formação de novos profissionais e ainda muito pouco discutidos, como as condições técnicas e pessoais do estagiário para a realização do trabalho. Incluemse aqui as delicadas situações de alunos com sérias dificuldades emocionais, com necessidades especiais e com insuficiência técnica. Surgem situações em que os recursos acadêmicos e pedagógicos não são instrumentos suficientes para dar 5 Este grupo foi coordenado pela psicóloga Carmem Silvia Rotondano Taverna e composto por Ana Cristina Gomes Teixeira Arzabe, Eliana Vianna, Irani Tomiatto de Oliveira, Marília Ancona-Lopez, Magali Rodrigues Serrano, Marlene Oliveira Campos e Zuleika Fátima Vitoriano Olivan. 6 Este grupo foi coordenado por Aluízio Lopes de Brito e composto por Carmem Silvia Rotondano Taverna, Irani Tomiatto de Oliveira e Marilene Proença Rebello de Souza. 149 conta da situação, e outras em que é difícil conciliar as necessidades e direitos do estagiário e os dos usuários dos serviços. Este é, sem dúvida, um tema em aberto. O Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005) estabelece, em seu Artigo 17, que: “Caberá aos psicólogos docentes ou supervisores esclarecer, informar, orientar e exigir dos estudantes a observância dos princípios e normas contidas neste Código”. Na prática, é preciso refletir sobre os instrumentos com os quais o supervisor conta para garantir essa exigência. É importante levantar algumas dessas questões e refletir sobre elas, incentivando um amplo debate na busca de estratégias de enfrentamento das dificuldades, tendo a ética como principal parâmetro. As oportunidades criadas pela ABEP e pelo Sistema Conselhos para aglutinar profissionais comprometidos com a formação profissional e com o ensino da Psicologia, seja em âmbito regional ou nacional, têm demonstrado que é possível avançar nessas discussões e encontrar respostas, mas há ainda muito a ser discutido e muitos problemas a serem enfrentados. Referências BRASIL. Lei nº. 11.788 de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre o estágio de estudantes. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2008/lei/l11788.htm>. Acesso em: 20 de set. de 2011. ______. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES Nº 8, de 7 de maio de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Psicologia. Disponível em: 150 <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12991>. Acesso em: 20 de set. de 2011. ______. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES nº 5, de 15 de março de 2011. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12991>. Acesso em: 20 de set. de 2011. ______. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no. 218 de 06 de março de 1997. Disponível em: <http://www.datasus.gov.br/conselho/resol97/res21897.htm>. Acesso em: 20 de set. de 2011. _____. Ministério da Saúde. Carta dos direitos dos usuários da saúde / Ministério da Saúde – Brasília: Ministério da Saúde, 2006. 8 p. (Série E. Legislação de Saúde). Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/cartilha_integra_direitos_2006.pdf >. Acesso em: 25 de set. de 2011. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de ética profissional dos psicólogos, 2005. Disponível em: <http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/legislacao/codigo_etica/>. Acesso em: 20 de set. de 2011. ______. Resolução nº 01 / 2009. Dispõe sobre a obrigatoriedade do registro documental decorrente da prestação de serviços psicológicos. Disponível em: <http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/legislacao/resolucao/resolucao_2009_001.htm l>. Acesso em: 20 de set. de 2011. 151 CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO. Recomendações aos serviços-escola de Psicologia do Estado de São Paulo:compromisso ético para a formação de psicólogos, 2010. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/servicos_escola/fr_sumario.aspx>. Acesso em: 20 de set. de 2011. Sobre a autora Iraní Tomiatto de Oliveira: Psicóloga pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (1975), Mestre em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999) e Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (2006). Psicoterapeuta. Tem experiência como coordenadora de curso, professora e supervisora de estágio em graduação e pósgraduação, com ênfase em psicodiagnóstico e intervenção psicoterapêutica, principalmente nas seguintes modalidades: psicoterapia psicodinâmica, psicoterapia breve de crianças e adultos, psicodiagnóstico, relações familiares, formação profissional do psicólogo, serviços-escola de Psicologia. Atualmente é coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Anhembi-Morumbi e vice-presidente da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia. 152 OS SINTOMAS DE NOSSO TEMPO E A APOSTA DO E NO SERVIÇO-ESCOLA Prof.ª M.ª Maria Cristiane Nali Resumo Quais as demandas que se fazem presentes hoje num Serviço-Escola? Será que diferem muito das demandas de anos atrás? Seria necessário um levantamento histórico-bibliográfico para nos determos a isso, mas certamente podemos afirmar: A demanda em Serviços-Escola na atualidade apresenta sintomas reveladores de nosso tempo, do ponto de vista psíquico, mas também os aspectos sócioeconomico-político importantes. Alguns autores acompanharão essa reflexão, como Figueiredo (2009) que destaca sobre a “crise da modernidade” estar em “novos modos de subjetivação”. Como essa questão apresenta-se no Serviço-Escola? Como vimos preparando os futuros psicólogos neste aspecto? Afinal eles também fazem parte desse “nosso tempo”. Será a partir dessas questões disparadoras que desenvolverei ideias da nova concepção de Serviços-Escola, junto aos novos Projetos Pedagógicos de Cursos de Psicologia. Destacando que a proposta do Serviço-Escola que apresentarei não está mais restrita ao atendimento clínico (clássico), mas ligado aos projetos sociais e à chamada Clínica do Social. Algumas propostas (e apostas) serão apresentadas para direcionarem os trabalhos, a exemplo disso, um novo lugar do Serviço-Escola: fazer parte da Rede Básica de Saúde do Município e a diversidade de (im)possibilidades que daí advêm. Palavras chave: Serviços-Escola; demanda; sofrimento contemporâneo. Na atualidade deparamos-nos, de uma forma geral, com diferentes sintomas que destacarei aqui como sintomas de nosso tempo; dentre esses sintomas temos, no caso de crianças: os chamados distúrbios de aprendizagem (que envolvem o TDAH, encoprese, enurese, entre outros); no caso dos adolescentes destacaria em especial a anorexia, a bulimia e a depressão, mas também as drogas e a violência; no caso dos adultos, o pânico, a depressão grave, os transtornos decorrentes de conflitos familiares, conjugais etc. 153 Cada um desses sintomas7 mereceria uma atenção, uma dedicação para seu desdobramento, mas como não é nosso propósito aqui, apenas os cito, por encontrá-los com frequência no Serviço-Escola que no momento coordeno. Tomando como ponto de partida a seguinte pergunta: as demandas 8 atuais guardam semelhança com as demandas de anos atrás? Buscaremos destacar algumas reflexões que nos têm acompanhado. Evidentemente um estudo também aprofundado desse dado “histórico” forneceria-nos amplo debate, entretanto guardamos um aspecto (entendo que se mantém) e que merece atenção por hora, qual seja: o desamparo... os sintomas citados revelam um desamparo (alguns autores já desdobraram essa questão lembrando que “o estado de desamparo está ligado a uma experiência primeva (do bebê) em face de suas necessidades, uma importância que gera sofrimento, que no caso do bebê – só o objeto pode dar um fim. Freud (N’o projeto’, 1895) considera que o desamparo e a satisfação organizam os dois modos de funcionamento mental. A psicanálise contribui para compreendermos que o desamparo e a teoria da angústia estão intimamente ligados – isso interessa-nos em tempos atuais: “o desamparo associado à pulsão de morte, fonte de intensa perseguição, impõe a busca de proteção (...) o excesso de desamparo provoca transtornos” (Aubert-Godard, 2005)9. Aqui fica somente uma constatação do já dito e cuja noção podemos ampliar para vários aspectos atuais... ou seja, constatamos a partir de Freud que o desamparo apresenta-se por seu aspecto estrutural na sociedade. É diante disso que, num contexto de formação de futuros psicólogos, animamo-nos em desenvolver cada vez mais a capacidade de criação desse profissional, que merece o cuidado que nos apontou Coutinho Jorge (2013) 10: “para criar o novo é preciso atravessar o saber constituído”, ou seja, “é preciso conhecer profundamente a disciplina para criar a partir dela”. Fazer valer a reflexão de que o lugar que o psicólogo ocupa no imaginário social não deveria ser daquele que solucionará todos os problemas, permitiria certo “alívio” para que a criação realmente adviesse – ou seja – chamo a atenção aqui de que todos (pacientes, alunos, supervisores) participamos de alguma forma dessa demanda da URGÊNCIA por soluções. O Serviço-Escola recebe também a demanda do estagiário naquilo que este lugar (estágio) pode oferecer-lhe enquanto formação. A ansiedade com a qual o estagiário muitas vezes apresenta os fatos merece ser acolhida (ao lembrá-lo disso) 7 Entendendo sintoma aqui como aquele que traz em si um sofrimento. (Fernandes, A.H., 2005) Refiro-me aqui a demanda como Volnovich (Lições introdutórias) propõe: “[...] demanda é a articulação do desejo na palavra”. 9 AUBERT-GODARD, Anne. Verbete desamparo. In: MIJOLLA, Alain de. Dicionário Internacional da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2005. 10 Em palestra de inauguração do LAPSUS – UNICAMP – em 03/05/2013. 8 154 e mais ainda: para que serve a supervisão se não para acompanhar direções possíveis? O quanto isso coloca-nos num lugar de saber – mas um saber determinado – na medida em que: fazemos um diagnóstico e propomos um tratamento; analisamos o sintoma, do qual o sujeito “não abre mão”. Freud (1917) em seu texto “Os caminhos da formação dos sintomas”, refere que “o sintoma tem um tipo de satisfação que traz em si aspectos estranhos em seu próprio sintoma” (p.21) e mais adiante esclarece: “no sintoma há uma suposta satisfação do sofrimento, sendo irreconhecível para o sujeito, [mas] faz surgir a queixa. [...] de modo que o sujeito refugia-se na neurose, dirigindo uma grande parte de sua energia psíquica para a manutenção dos sintomas” (p.23). Mas será em Mannoni (1989) que encontraremos uma compreensão (a partir de Freud): “o sintoma [...] revela que o inconsciente fala, que o discurso sustentado separa o homem de si próprio. Esta divisão, que funda uma palavra ao mesmo tempo mentirosa e verdadeira [...]” (p.7)11. Poder “falar o sintoma” numa relação transferencial é a aposta; entretanto é preciso estar atento às novas formas de subjetivação. Refiro-me aqui a uma tentativa do sujeito de abortar um processo de simbolização, fazendo com que o mesmo “fixe-se” no sintoma. Ou seja, refiro-me ao modo como as pessoas estão lidando com a angústia: “o não pensar muito sobre isso [...]” ou “não quero mexer nisso agora” (mas tem sintomas, dor), portanto não buscam simbolizar, representar seu sofrimento de forma subjetiva. Tratar dessas questões como “novos modos de subjetivação”, é também considerar o que Figueiredo (2009) propõe: estamos vivendo uma era da “falência da subjetivação”, mas que não deixa de ter um aspecto de subjetivação, simbolização, o irrepresentável – ou seja, o Real.12 O psicólogo estar atento a esses novos modos de subjetivação é compromisso ético, mais do que estético. Tomemos como exemplo a violência: promovida muitas vezes pela imagem da “democratização das oportunidades”, sua banalização, e o que a mídia tem produzido com isso. Seguindo as trilhas de um texto não muito recente mas com uma leitura ainda atual dessa problemática, encontramos: “A mídia promove a infantilização das mentes; essa infantilização incentiva mecanismos de defesa mais primitivos que se traduzem num ‘infanticídio 11 MANONNI, Maud. “Um saber que não se sabe”. Campinas: Papirus, 1989. FIGUEIREDO, L.C.M. “Revisitando as Psicologias. Da Epistemologia à Ética das Práticas e Discursos Psicológicos.” Petrópolis: Vozes, 2009. 12 155 do espírito’ (Vasconcellos, 1998), que procura impedir a criatividade, a inventividade e a reflexão enquanto símbolos de subjetivação”. (Merquior, 2002)13 A preocupação que nos toca aqui é: como nós, professores e supervisores de estágio em psicologia, participamos disso. Como podemos refletir e contribuir com uma possível compreensão desses sintomas de nosso tempo e assim compreender não só as demandas que nos chegam aos Serviços-Escola, mas também as demandas dos alunos/estagiários – suas expectativas, ansiedades e sua participação neste processo. Estar atento a esses aspectos é minimamente prepararmo-nos (supervisores de estágio) para tais demandas presentes nos Serviços-Escola, afinal sabemos do incessante risco do “desejo anônimo” do Outro institucional. Além disso, é também lembrarmo-nos do caráter político de nossa práxis que envolve um “pensar a existência tanto individual como coletiva”. O Serviço-Escola da FAAT foi implantado há 3 anos, e é crescente o número de pessoas que demandam nosso serviço. Nosso PPC comporta uma proposta de uma Clínica voltada para o Social, o que promove ao aluno estagiário a possibilidade de não se restringir à chamada “Psicologia Clínica” tradicional/clássica e buscar desenvolver projetos psicossociais, psicoeducativos, junto a uma coletividade que demanda uma escuta e um acompanhamento. Esses projetos compõem a proposta das Diretrizes Curriculares, a Lei de Estágio 11.788/2008; as Recomendações aos Serviços-Escolas – CRP/SP, e o Código de Ética Profissional de Psicologia. Sabemos do empenho de importantes instituições na busca das melhorias dos cursos de psicologia: acompanhar isso e buscarmos contribuir com essas mudanças tem sido nossa preocupação. Tais projetos de estágio organizam a oferta das Ênfases Curriculares obrigatórias hoje nos PPCs e na qual estamos vislumbrando a chamada Clínica do Social. A preocupação com a formação de futuros psicólogos deve ser uma constante, uma vez que como nos lembra PATTO (2013)14 há o exercício do poder dado pelo diploma, de modo que o risco está lançado na medida em que sabemos que o psicólogo pode desempenhar o papel daquele que “administra as subjetividades”. Por algumas vezes deparo-me com alunos iniciando seus estágios e que me trazem a preocupação com certa ansiedade: o que farão? Estarão preparados para atender ao outro? Uma insegurança importante, que em minha escuta confere um lugar de cuidado com o outro: são alunos que estão atentos ao que irão fazer diante do sofrimento do próximo e que portanto estão “desgarrando-se” da chamada 13 MERQUIOR, M. “O cenário contemporâneo: violência e drogadição entrelaçando contextos de subjetivação” In: Revista de Psicanálise Percurso. São Paulo, n. 28, 1º. Semestre, 2002. 14 Em Mesa de debate e lançamento do livro: “Formação de psicólogos e relações de poder: sobre a miséria da psicologia”. 156 “coisificação do sujeito”; buscam a não dogmatização15 da prática psicológica – algo tão comum em nossa realidade profissional. Fazer parte da Rede Básica de Saúde do Município tem sido nosso mais recente desafio. Um projeto ainda em longo prazo, pois toda construção requer cuidado e as dificuldades e desafios também se mostram constantes. Nossa aposta: buscar “saber-fazer” com a falta. A partir dessas considerações proponho um debate aos aqui presentes. Referências AUBERT-GODARD, Anne. Verbete desamparo In: MIJOLLA, Alain de. Dicionário Internacional da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2005 FIGUEIREDO, L.C.M. Revisitando as Psicologias. Da Epistemologia à Ética das Práticas e Discursos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009 MANONNI, Maud. Um saber que não se sabe. Campinas: Papirus, 1989. MERQUIOR, M. O cenário contemporâneo: violência e drogadição entrelaçando contextos de subjetivação. In: Revista de Psicanálise Percurso. São Paulo, n. 28, 1º. Semestre, 2002. PATTO, M.H. Formação de psicólogos e relações de poder: sobre a miséria da psicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013. Sobre a autora Maria Cristiane Nali: Mestrado em Psicologia Clínica (Núcleo de Psicanálise) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). Pós Graduação Lato Sensu em Psicologia da Saúde – CAISM – UNICAMP (1996). Graduação em Psicologia pela Universidade São Francisco (jun/1995). Atualmente é professora universitária e supervisora de estágios na FAAT – Faculdades Atibaia, da qual é coordenadora do Serviço Escola da Clinica de Psicologia da FAAT. Professora convidada para Curso de Pos Graduaçao em Educaçao do UNISAL – Centro Universitário Salesiano de Campinas e do CEFAS – Campinas. Atende em consultório particular em Campinas. Tem experiência na área de Psicologia Hospitalar e Psicologia Clínica com ênfase em psicanálise de adultos, adolescentes e crianças. Temas de interesse: psicanálise em instituições, mal estar contemporâneo, saúde mental e psicanálise com crianças. 15 A dogmatização no exercício profissional do psicólogo é amplamente discutido por Figueiredo (2005). 157 IMPLANTAÇÂO DO SERVIÇO DE ORIENTAÇÂO AOS PAIS NO CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA: UM PROTOCOLO COMPORTAMENTAL Ana Gabriela Pinheiro S. Annicchino Jaíne Meireles Rocha Larissa de Aguirre Silva Introdução As preocupações sobre o modo de educação dos filhos e das consequências dessa educação a partir de diferentes modelos de pais, do ponto de vista científico, iniciou-se por volta da década de 1930, e teve destaque quando Baumrind (1966) marcou os estudos realizados sobre educação pais-filhos propondo e descrevendo tipos de controle parental, incluindo variáveis emocionais e comportamentais. Diversos outros autores engajaram-se na compreensão das relações parentais; no entanto como este estudo pauta-se na perspectiva analíticocomportamental faz-se necessário realizar uma breve e simplificada exposição da teoria, a fim de posteriormente evidenciar como ela atua frente às relações parentais. A análise do comportamento é uma abordagem psicológica que busca compreender o ser humano a partir de suas interações com seu ambiente, e pautase no conceito de seleção pelas consequências de Charles Darwin. Ou seja, é uma abordagem interacionista e selecionista. (MOREIRA; MEDEIROS, 2007) O objeto de estudo de um analista do comportamento são as contingências de reforçamento. Contingência é qualquer relação de dependência entre eventos ambientais, ou entre eventos comportamentais, ou ainda entre ambos. Ou seja, evidencia a probabilidade de um evento ser afetado por outro evento. (SOUZA, 2001). A unidade de análise envolve então uma situação antecedente, a resposta, e a consequência. Assim, todo comportamento operante é produto de um processo 158 que implica a interação entre o indivíduo e o ambiente, e a partir de tal interação ambos modificam-se (GUILHARDI, 2004). Portanto, de maneira simplificada podemos dizer que o psicólogo comportamental trabalha com o comportar-se dentro de contextos. (MATOS, 2001) As relações que os pais estabelecem com seus filhos são permeadas pelo cuidado, educação e promoção do desenvolvimento deles, resultando em um conjunto característico de comportamentos em que ambos modificam-se, e com o qual a criança desenvolve-se nos aspectos emocionais e comportamentais. É nesse contexto que definimos Relação Parental. (MACARINI et al., 2010) Uma Relação Parental positiva demonstra-se crucial ao desenvolvimento de comportamentos socialmente adequados; no entanto, com frequência, as famílias acabam estimulando comportamentos inadequados por meio de práticas educativas inconsistentes, onde existe pouca interação positiva, pouco monitoramento e supervisão insuficiente das atividades da criança. (BOLSONI-SILVA E MARTURANO, 2002) As estratégias utilizadas pelos pais com o objetivo de cumprirem o papel de agentes de socialização dos filhos são denominadas por alguns autores de práticas educativas parentais (ALVARENGA E PICCININI, 2001) Com o objetivo de ensinar os pais a manejarem as contingencias de práticas educativas e assim influenciar de maneira benéfica na qualidade da interação familiar e no desenvolvimento das crianças, Weber et al (2006) desenvolveram um programa através de pesquisas demonstrando que a boa interação familiar propicia um desenvolvimento mais saudável nas crianças. Diante das inúmeras dificuldades e dúvidas encontradas pelos pais e mães para educarem e manterem uma boa interação familiar, o programa foi elaborado e aplicado para orientar e treiná-los para uma relação parental mais efetiva. Este programa foi denominado: “Programa de Qualidade na Interação Familiar” (PQIF). A necessidade de uma intervenção objetivando a orientação de práticas educativas a pais surgiu da observação de supervisores e coordenadores do Centro de Psicologia Aplicada – CPA, da Universidade Paulista – UNIP, Campinas, em atendimentos realizados com crianças, nos quais inevitavelmente envolviam-se os 159 pais. Sendo assim, no ano de 2014 foi montado e aplicado esse programa de intervenção pioneiro no CPA. Dessa forma, este artigo objetiva descrever e analisar a forma como o programa foi implantado neste serviço. Método Participantes Participaram da intervenção 7 mães e 1 pai, com idades entre 33 e 41 anos, nível de instrução entre ensino fundamental e superior, que possuíam entre 2 e 5 filhos, com idades que variavam entre 2 e 14 anos. Instrumentos O principal instrumento para a estruturação da intervenção foi o Programa de Qualidade na Interação Familiar, desenvolvido por WEBER, LND; BRANDENBURG, OJ; SALVADOR, APV. (2006). No entanto a fim de atender a demanda da população e da instituição foram realizadas algumas adaptações como: duração menor dos encontros, que passaram de duas horas para uma hora e trinta minutos; o aumento no número de encontros de 8 para 9 e a substituição de uma das atividades propostas no sétimo encontro, mantendo contudo o mesmo objetivo. Procedimentos A primeira sessão teve como objetivo apresentar o grupo, levantar as principais dificuldades familiares e definir o contrato. Sendo assim todos apresentaram-se e relataram as principais queixas e motivos do interesse na participação do grupo. A segunda sessão teve como objetivo integrar os participantes e trabalhar com as noções sobre os princípios de aprendizagem e operacionalização dos comportamentos. Para a integração do grupo foi utilizada uma dinâmica denominada 160 de “teia”, que possibilitou a reflexão acerca da ligação entre todos os membros do grupo, enfatizando a relação de dependência e ajuda que estava sendo construída e a responsabilidade de todos por mantê-la. Posteriormente, foram discutidas as expectativas de cada participante em relação ao grupo. A primeira explicação teórica pautou-se nas noções básicas de definição de comportamento, descrição de comportamento, análise do contexto onde este ocorre e análise das consequências. Além de explicitar e analisar os três meios de aprendizagem de um comportamento, sendo eles: a experiência, a observação, e a instrução (regra). Para melhor compreensão após as definições teóricas, os conceitos eram exemplificados em situações que os participantes apresentavam. Neste encontro foi dada a primeira tarefa de casa, sendo esta a de anotarem três regras que normalmente os filhos desobedeciam. A terceira sessão teve como objetivo mostrar aos pais a necessidade de regras claras, consistentes e coerentes, e também, a necessidade de monitorar o comportamento da criança a fim de propiciar um desenvolvimento infantil saudável. As estratégias utilizadas para atingir tal objetivo foram a dinâmica chamada “Quaqua-bum”, onde por meio de uma atividade em que os números de 1 a 10 ganhariam outros nomes ficou exemplificado que mudar algo que já está condicionado ao aprendizado é tarefa difícil, mas que como na atividade, se houver persistência, paciência e treino é possível adequar-se ao novo modelo – enfatizando-se que iríamos propor um novo modelo de práticas educativas. Posteriormente outra dinâmica foi realizada, esta denominada “quem vai para a lua”. Nesta atividade havia uma regra que somente as terapeutas sabiam, e a cada tentativa de descoberta dos pais eles eram consequenciados de maneira não contingente. O objetivo foi proporcionar aos participantes a vivência de sentimento de insegurança e medo da punição por não conheceram qual era a regra vigente, assim puderam sentir como era desagradável estar em uma situação em que as regras não eram claras, como normalmente é comum acontecer em situações familiares. Esta atividade evidenciou o quanto a imprevisibilidade de regras e punições pode gerar sentimentos ruins. Realizou-se a explicação teórica sobre regras e limites, destacando a necessidade de clareza, coerência, consistência e monitoria das regras. A fim de analisar situações reais, foram utilizadas as regras que os participantes haviam escrito na 161 tarefa de casa. Posteriormente, foi entregue um pedaço de barbante a cada um e, sob o comando da instrução, os participantes tentaram, por cerca de 5 minutos, sem sucesso, segurar as duas pontas do barbante e, sem soltar as mãos, fazer um nó, exemplificando desta forma, que, quando uma regra é dada sem nenhuma instrução, a probabilidade de uma criança fazê-la da maneira certa é muito baixa; já quando os pais acompanham e instruem as crianças nas atividades, as chances são muito maiores. Para encerrar o encontro foi lido o texto “Divirta-se com seus filhos”, que abordava a importância de regras somente para o que era necessário. A tarefa de casa dada nesta sessão foi anotar seis comportamentos adequados de cada filho, e o auto registro, solicitando que anotassem situações em que conseguiram determinar regras claras, consistentes e coerentes. A quarta sessão, em acordo com o PQIF, teve como objetivo enfatizar a educação positiva, ou seja, fazer com que os pais percebessem que normalmente eles prestam mais atenção nos erros e defeitos de seus filhos do que em seus acertos e qualidades. O objetivo central foi ensiná-los a observar e valorizar os comportamentos adequados dos filhos, e ainda propor a reflexão de que disciplinar não significa focar os erros e punir, mas também incentivar e motivar para o comportamento adequado. A sessão iniciou-se através da discussão do autorregistro da semana, que se tratava de observar e anotar algumas ocasiões em que os pais tivessem conseguido determinar e estabelecer regras importantes de forma clara e coerente, cumprindo com a consequência combinada, refletindo sobre como foi fazê-lo e sobre as reações dos filhos. Em seguida, foi realizada a atividade “Foco no erro”: esta propiciou uma reflexão no sentido da necessidade de os pais mudarem o foco, e passarem a prestar mais atenção em seus filhos quando estes comportam-se satisfatoriamente. Tal reflexão foi complementada com a leitura do texto “O cachorro e o açougueiro”, evidenciando como muitas vezes, aos olhos dos pais, o desempenho da criança parece estar abaixo do esperado, mas quando observada “de longe”, a criança pode demonstrar muito acertos. Procedeu-se a explicação teórica sobre “Consequências para comportamentos adequados (reforço)” em que foram abordados pontos como: conceito de reforço, tipos de reforço (sociais, atividades e materiais), o que deve ser 162 reforçado, a subjetividade inerente ao que pode ou não ser reforçador, os efeitos do reforço no comportamento da criança, o equilíbrio e formas operacionalizadas de liberação de reforços. Discutiu-se a tarefa de casa, relacionada aos comportamentos adequados dos filhos mobilizando grande interesse por parte dos pais, atentando-se para a necessidade do reforço para instalar um novo comportamento. Realizou-se o treino da habilidade de “elogiar” com o objetivo de chamar a atenção para o quanto o reforço pode colaborar para o aumento da qualidade na interação familiar, de forma simples. Finalmente, explicou-se a tarefa de casa e o autorregistro para serem feitos durante a semana e a leitura do texto “Reflexões de uma mãe”, que deu um tom de encerramento e mobilizou emoções nos pais em relação a como frequentes apontamentos para erros e punições podem distanciar afetivamente os pais de seus filhos. A quinta sessão teve como objetivo informar e alertar os pais sobre os problemas que podem surgir com o uso de punições exageradas e inadequadas, além de apresentar formas alternativas e eficazes para consequenciar os comportamentos inadequados. Assim, realizou-se uma explicação teórica sobre punição, ressaltando os tipos de punições inadequadas e suas consequências (surras, palmadas e broncas exageradas), e depois enfatizando as alternativas e suas consequências (ignorar, time-out, castigo e diálogo). Utilizou-se da tarefa de casa para se discutirem algumas dúvidas e realizarem-se orientações. Posteriormente, as terapeutas encenaram um teatro quer reproduzia uma interação entre mãe e filha, depois solicitou-se que identificassem o que havia sido inadequado bem como sugerissem alternativas de como consequenciar tais comportamentos de maneira adequada. Foi realizada também a leitura do texto “Pense bem” de Aldina Machry. Ao encerramento do encontro a tarefa de casa foi dada: anotar formas utilizadas para demonstrar afeto e o autorregistro; anotar como eles deram consequências para seus filhos após se comportarem mal. A sexta sessão teve como objetivo sensibilizar os pais para que sejam empáticos aos filhos, mostrando a importância da demonstração de afeto, de participar e de envolver-se efetivamente na vida destes. Para isto, utilizamos a atividade: “Você conhece bem seu filho?”, uma dinâmica que contém perguntas que 163 devem ser respondidas pelos pais como se eles fossem os filhos. A explicação teórica foi feita salientando a importância do vínculo, os benefícios da demonstração do amor incondicional e explicitadas formas de operacionalizar o amor, de forma simples. Diferenciou-se a questão complexa entre a superproteção e o amor incondicional, explicando os prejuízos do primeiro e deixando claro que não são semelhantes. Posteriormente, foi realizado um treino de atividades, que consistiu em fazer com que cada integrante do grupo elaborasse uma lista com atividades concretas que eles deveriam fazer durante a semana para expressar amor pelos filhos. A lista foi elaborada no grupo, e ficou como tarefa de casa para, na próxima semana, trazerem o que conseguiram realizar e quais os sentimentos dos filhos frente a tais demonstrações. O autorregistro da semana consistiu-se em anotar ao menos três ocasiões em que foi possível transformar o amor em ação prática, além de refletir as facilidades, as dificuldades e a reação das crianças. Na sétima sessão o objetivo foi provocar uma reflexão profunda sobre a educação que os participantes receberam em sua infância, analisando as diferenças contextuais de quando eram crianças e as atuais, além de refletir sobre a transmissão intergeracional das práticas educativas parentais. Inicialmente, foi realizada uma discussão sobre o autorregistro do encontro anterior, sobre transformar amor e ações. Demos início à atividade chamada “Voltando no tempo” através de um relaxamento, com o objetivo de fazer com que os pais refletissem sobre a história familiar, ao se lembrarem da maneira como foram educados, os sentimentos produzidos por tal educação, e a pensar no modelo de educação de seus pais repetindo-se com seus filhos. Na explicação teórica sobre a análise intergeracional, destacou-se a análise do contexto histórico de cada geração, a compreensão do processo de modelação, e exercício de empatia com os filhos. A fim de discutir possíveis ressentimentos pelas lembranças da atividade “voltando no tempo” foi lido o texto denominado “Perdão”, traduzido pela psicóloga Lídia Weber. O encontro foi encerrado com a explicação da tarefa de casa: anotar três características dos filhos que eles percebiam em si mesmos. A oitava sessão teve como objetivo propiciar a auto-observação como pessoas, antes de serem pais, dando ênfase à qualidade de cada um – além de facilitar a percepção de modelo de comportamento para os filhos. Para isto, a fim de 164 prepará-los para uma fantasia, foi realizado um relaxamento seguido da fantasia da roseira, que teve o objetivo de auxiliá-los a se auto-observarem, deixando-os mais sensíveis às características pessoais e para a importância de dedicarem-se à autoobservação e ao autoconhecimento. Ao final da atividade, solicitou-se que verbalizassem como haviam-se imaginado como roseiras. Procedeu-se a explicação teórica sobre autoconhecimento e sobre modelo. Posteriormente foi lido o texto “A casa dos mil espelhos”, que propiciou uma reflexão sobre modelo. No encerramento do encontro, a tarefa de casa foi explicada e referia-se a se anotarem comportamentos que os pais gostariam de mudar neles próprios, além de anotarem, no autorregistro, quantas vezes haviam emitido tal comportamento e apresentaram alternativas para estes em cada situação. Na nona sessão o objetivo foi o encerramento do grupo, a obtenção do feedback dos pais sobre o aproveitamento do conteúdo e do grupo em geral, e a despedida. Resultados e discussão Os resultados foram divididos em categorias temáticas e analisados qualitativamente, de acordo com os objetivos gerais dos encontros. – Princípios de aprendizagem No começo da intervenção com os pais, todos tinham um olhar mais simplista em relação ao comportamento; ao longo dos encontros no grupo aprenderam sobre a influência do ambiente e passaram a olhar para o contexto em que o comportamento ocorria. Nos últimos encontros, já conseguiam discriminar antecedentes e consequentes e eles mesmos autoanalisavam-se em grupo. – Regras e limites De forma geral, a maior demanda dos pais relacionava-se ao tema Regras e Limites. Todos eles tinham dificuldades, pois colocavam regras inconsistentes e inespecíficas. A partir do encontro em que foi discutido o tema, a imposição de 165 regras tornou-se mais adequada e os pais relatavam as dificuldades iniciais da mudança e os resultados finais, demonstrando a diminuição significativa de queixas como dificuldade no momento do banho, de guardar os brinquedos, de escolher roupas ou brincadeiras, entre outros momentos que geravam conflito. – Consequências para comportamentos adequados Quando iniciaram no grupo, os pais tinham dificuldades em perceber os comportamentos adequados que os filhos emitiam; assim, também tinham dificuldade em consequenciá-los de forma adequada. Duas mães trouxeram resultados rapidamente em relação às dificuldades que tinham com suas filhas, pois em vez de apenas punir os comportamentos inadequados de “não ter boas notas” e “não vestir a roupa”, passaram a reforçar os comportamentos adequados de “estudar” o que consequentemente aumentou a média escolar, e “escolher entre duas opções de roupas” e consequentemente, vesti-las. – Consequências para comportamentos inadequados Com exceção de uma mãe, que não apresentou demanda nesse sentido, todos os outros apresentaram, mas significativamente, uma mãe e um pai que não consequenciavam os comportamentos inadequados e outra mãe que praticava punições mais agressivas, inclusive através de agressões corporais. Após o grupo, os pais entenderam que, diante da quebra de uma regra e de um comportamento inadequado, os pais devem aplicar uma consequência, mas essa deve ser amena, desaconselhando-se absolutamente a punição corporal. A mãe que, habitualmente, corrigia o filho com agressões corporais relatou já não proceder mais desta forma e um casal de pais que participava juntos do grupo, passou a consequenciar os comportamentos inadequados, de forma adequada e coerente com a idade dos filhos. – Relacionamento afetivo e envolvimento Os pais que se mantiveram no grupo não apresentaram dificuldades em relação a esse tema, e o único pai participante foi quem se mostrou mais afetivo. 166 – Voltando no tempo, Autoconhecimento e Modelo Esses temas trataram mais de condições dos pais para a mudança em relação as suas práticas educativas. No “Voltando no tempo” em que trabalhamos Modelo Intergeracional, Empatia, Autoconhecimento e Modelo, o pai foi quem mais se engajou e sua esposa, pelo contrário, se esquivou. Abordaram-se temas mais profundos, que envolviam questões pessoais e a história de cada um dos pais; portanto, esperamse de fato reações diferentes. Vale ressaltar que, neste momento, voltaram a aparecer a culpa e a preocupação das mães em relação à responsabilidade do “ser mãe”. Além desses temas, outros foram discutidos de forma mais geral, tal como a questão da pressão e do julgamento da família e da sociedade frente à maneira que os pais educam seus filhos, as interferências familiares que geralmente mais atrapalham que ajudam, além de tirarem a autoridade dos pais frente aos filhos – principalmente no caso das mães que atualmente estão solteiras; e o sentimento de culpa, muito presente nas mães que participaram do grupo. No último encontro, houve a revisão em relação aos temas anteriores e o fechamento. Neste momento, os pais puderam ter um feedback mais individualizado, através de uma síntese retrospectiva da sua participação no grupo e o apontamento em relação às mudanças que eles promoveram em sua família. Além disso, também tiveram a oportunidade de oferecer-nos um feedback, relatando que, como pais, sentem-se mais seguros e mais próximos dos filhos, tendo aprendido a lidar melhor com eles, referindo ter gostado muito do grupo, sendo muito significativa a participação e agradecendo às facilitadoras. Considerando os aspectos descritos e analisados foi possível encontrar pontos convergentes e divergentes das teorias sobre as relações parentais e as práticas educativas, além de evidenciar os resultados e benefícios do programa para treinamento de pais nessa instituição. A demanda por abordar o sentimento de culpa foi salientada por todas as mães participantes do grupo, contudo não era um tema proposto pelo programa de 167 qualidade na interação familiar. Já o tema relações afetivas, que era proposto pelo programa, não foi trazido pelos participantes. Outros aspectos observados foram o repertório melhor desenvolvido de afetividade ser o do pai, e que o casal participante engajou-se no programa de forma mais efetiva do que as demais mães, além de que uma das mães que já frequentava o serviço de psicologia juntamente com os filhos, há um tempo médio de 3 anos evidenciou que se sentiu mais segura na relação com os filhos após a participação no grupo de orientação, o que resultou na alta dela e dos filhos nas psicoterapias individuais. Conclusão Diante do desenvolvimento deste projeto-piloto, consideramos que seria interessante para os futuros grupos a realização de uma triagem com os pais, para limitar demandas mais coerentes com a proposta do grupo e com crianças com limite de idade mais específico, já que com pais de adolescentes outras e diferentes orientações também são necessárias. Assim, pensamos que também seria interessante o entrelaçamento com o serviço de psicodiagnóstico já existente no CPA, já que apesar do atendimento objetivar sanar a demanda infantil, os pais trazem também diversas questões, em sua maioria, relacionadas a práticas educativas. E ainda, no grupo, o assunto da culpa dos pais, principalmente das mães em relação à educação dos filhos, esteve sempre presente e embora tenha sido trabalhado de maneira geral, consideramos que seria necessário um encontro para realizar acolhimento e reflexão somente sobre esta questão. Importante também ser possível avaliar os resultados dos grupos de maneira qualitativa, através da aplicação de instrumentos padronizados, tal como a Escala de Qualidade na Interação Familiar (EQIF), desenvolvida pela mesma autora do programa. 168 Referências ALVARENGA, P; PICCININI, C. Práticas Educativas Maternas e Problemas de Comportamento em Pré-Escolares. Psicol. Reflex. Crít. Porto Alegre, v. 14, n. 3, 2001. 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Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Cognitivo-Comportamental e Terapia Cognitiva Processual, atuando principalmente nos seguintes temas: transtornos de ansiedade, depressão, transtornos alimentares e transtornos de personalidade. Formação em coaching pelo Instituto Brasileiro de Coaching certficado pela European Coaching Association e pela Global Coaching Community. E-mail: [email protected] Jaíne Meireles Rocha: Estudante de Graduação do curso de Psicologia – UNIP-Campinas. Larissa de Aguirre Silva: Estudantes de Graduação do curso Psicologia – UNIP-Campinas. 170 PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO: PRÁTICA CLÍNICA E PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM Marizilda Fleury Donatelli Ligia Corrêa Pinho Lopes Em nossa vida profissional trabalhamos há muitos anos como supervisoras de estágio de Psicodiagnóstico Interventivo em clínicas-escolas de universidade. Esta modalidade de atendimento psicológico foi criada no final da década de setenta pela professora Marília Ancona-Lopez e sua equipe. Na época foi uma proposta inovadora no Brasil, pois na visão geral o Psicodiagnóstico era uma coleta de informações, uma investigação minuciosa que tinha por objetivo dar um parecer clínico e encaminhar o cliente quando isto fosse necessário. A professora Marília Ancona-Lopez e sua equipe defenderam a ideia de que o Psicodiagnóstico podia ser um processo ativo que incorporasse não só a investigação como também a intervenção. Argumentaram quanto à necessidade de o cliente apropriar-se de seu diagnóstico, não como figura passiva, mas sim como agente que construiu junto com o psicólogo sua história, desvelando a trama de relações na qual está imerso. Esse atendimento consiste em um processo que intercala sessões com a criança e sessões com os pais ou responsáveis. No caso da criança, as sessões destinam-se a conhecê-la, conhecer seu mundo interno, suas fantasias, desejos e ansiedades. A principal característica da relação do psicólogo com a criança é o fato de que toda compreensão é compartilhada. Cabe ao psicólogo explicitar suas observações e percepções, relacionando o que se vai apresentando no decorrer dos atendimentos com as vivências relatadas. A criança participa das intervenções, orientando, completando ou ainda corrigindo a compreensão do psicólogo. Do ponto de vista dos pais, as sessões objetivam o compartilhamento de nossas percepções sobre a criança, bem como uma reflexão sobre as condutas que poderiam ser 171 adotadas por eles para auxiliar as crianças na resolução de suas dificuldades. Desta maneira, é possível ainda relacionar as dificuldades parentais com as da criança, o que consiste em um recurso a mais para a compreensão diagnóstica. Além disto, os pais possuem um conhecimento de seus filhos que, quando compartilhado com o psicólogo, pode gerar uma construção conjunta da compreensão da criança e de si mesmos. Assim sendo, os responsáveis são tomados também como clientes, uma vez que o foco do processo ultrapassa a individualidade da criança. Não se trata, entretanto, de um diagnóstico familiar, mas sim, de uma proposta que considera a criança como parte da família, privilegiando o contexto familiar e social. Inicialmente e também atualmente essa modalidade de atendimento foi e é realizada por nós numa abordagem fenomenológico-existencial. Na clínica-escola este procedimento consistia e consiste ainda em um atendimento grupal, caracterizado pelas presenças de pais, alunos estagiários e clientes em uma semana e na posterior crianças, alunos estagiários e supervisor. De acordo com Ancona-Lopez (1995, p.77): O cotidiano das clínicas-escola envolve atenção aos clientes e aos alunos. Profissionais e estagiários são chamados a desempenhar vários papéis simultaneamente: de alunos, professores, supervisores, pesquisadores e psicólogo clínico. Papéis que implicam em funções nem sempre harmônicas entre si e exigem muitas vezes procedimentos conflitantes, gerando incômodos. Assim, aos supervisores cabe, enquanto psicólogos, acompanhar os atendimentos realizados e zelar pela saúde psíquica do cliente e, enquanto professores, formar profissionais competentes, orientando a prática dos estagiários e fornecendo os conhecimentos necessários para a atuação clínica. Partimos do pressuposto de que no mundo tudo se dá por meio de relações, ou seja, nossa concepção é que o ser humano é sempre um ser que se constitui junto com outros seres. Essa concepção legitima um atendimento psicológico 172 pautado em sessões com a criança e outras com seus pais. Esse modo de entender a existência humana também permite a utilização de recursos como visita escolar e visita domiciliar. É preciso ressaltar que utilizamos este modelo com alunos estagiários do quarto ano do curso de Psicologia e que dividimos estes alunos em duplas e cada uma delas responsabiliza-se por um cliente, ou seja, criança e seus pais ou responsáveis. Trinta anos passaram-se desde esta época, o mundo modificou-se e com isto os clientes que buscam atendimento na clínica psicológica, especialmente na clínica-escola, também se modificaram. Antes nos deparávamos com questões relativas à dificuldade de aprendizagem, timidez, agressividade; hoje ainda nos deparamos com estes casos, mas não raro eles vêm acompanhados por fatores como insuficiência do sistema educacional, bullying, violência doméstica, abuso de ordem sexual, diagnósticos realizados informalmente por professoras, pediatras etc. No caso do sistema educacional, o fator preponderante é a aprovação automática que promove o aluno independentemente de seu desempenho escolar. Isto faz com que recebamos crianças que cursam a quinta série do ensino fundamental, por exemplo, e ainda não estão alfabetizadas. Acrescentando-se a isto o fato de haver muitos alunos por sala de aula, e professores muitas vezes despreparados para dar conta das diferenças individuais. A escola diagnostica a criança como “problema”, a encaminha para o atendimento psicológico e se exime deste modo, de qualquer responsabilidade em relação à sua aprendizagem. Os casos de bullying acompanham frequentemente a vida escolar das crianças que atendemos: perseguições, violência e abusos de todas as ordens fazem da escola um ambiente inóspito e pouco acolhedor que, muitas vezes, atrapalha o desempenho dos estudantes. Esse panorama é complementado pelo fato dessas crianças pertencerem a famílias desestruturadas ou sofrerem violência dentro de seus lares. 173 Os abusos de ordem moral e sexual também se tornaram hoje em dia uma realidade nas clínicas-escola. Assim, Ancona-Lopez, S. e Tchirichian (2013) comentam: Embora considerando as questões sociais e as demandas do mundo atual, não é nosso objetivo fazer uma análise sócio-histórica do nosso tempo, mas levantar questões e organizar alguns elementos que contribuam para uma reflexão prática sobre o psicodiagnóstico, levando em conta o contexto no qual ele se dá. São questões que passam pelas demandas de nossa época, pelas novas formas de linguagem e comunicação, pelas novas configurações familiares e por aspectos ligados á realidade brasileira, como nossas características socioeconômicas, a crise de valores políticos e morais, a situação da educação e a cruel realidade da violência com as quais nossas crianças convivem, seja no âmbito familiar seja no âmbito social. (p.226). Referimo-nos também aos diagnósticos feitos informalmente como é o caso de hiperatividade e ou déficit de atenção, que não estão apoiados em exames consistentes, mas que rotulam a criança como problema ou como doente e trazem prejuízo a seu desenvolvimento e seu desempenho escolar. É nesse contexto que se inserem nossas angústias e preocupações. Tudo isso nos remete a várias perguntas e questionamentos: será que esta modalidade de atendimento ainda atende às solicitações do mundo contemporâneo? Será que a alta desistência nas clínicas psicológicas é indicadora de que há uma defasagem entre o que é oferecido e a demanda do cliente? Algo deveria ser modificado no atendimento? Como incorporar e trabalhar durante o psicodiagnóstico os aspectos acima mencionados? Essas são algumas das muitas questões que o mundo moderno impõe-nos. Para respondê-las conversamos informalmente com vários supervisores de estágio e pautamo-nos em nossa própria experiência a respeito de temas que relacionamos abaixo: 174 – Alto índice de desistência por parte dos clientes – Realização de uma avaliação global ou parcial da criança – Eficácia ou não do atendimento em Psicodiagnóstico Interventivo – Recursos utilizados no Psicodiagnóstico – Dificuldades identificadas no aluno estagiário contemporâneo – Propostas inovadoras nesta modalidade de atendimento De modo geral, uma das maiores dificuldades encontradas no ensino desta modalidade de atendimento refere-se à formação do grupo de clientes. Os supervisores, e também nós que estamos escrevendo o presente artigo encontramos uma grande dificuldade neste aspecto. Nas clínicas-escola há um livro com o registro dos dados dos clientes que se inscreveram para atendimento psicológico. Os supervisores selecionam os casos e a recepcionista da clínica incumbe-se de chamar os clientes. Nas datas e horários combinados por meio de contato telefônico o supervisor e o grupo de alunos aguardam numa sala previamente arrumada a chegada dos clientes. Nesse ponto iniciam-se as dificuldades, ou seja, em nossa experiência quando chamamos os clientes, aproximadamente de 40% a 50% não comparecem ao primeiro atendimento, embora tenham confirmado presença por telefone. Assim a formação dos grupos fica comprometida. Na semana seguinte chamamos os clientes faltantes e novamente cerca de 30% dos que foram chamados para se juntarem ao grupo iniciado na semana anterior não comparecem e há um agravante em alguns casos: uma porcentagem pequena de mães que compareceram ao primeiro atendimento e fizeram a entrevista inicial não comparecem no segundo atendimento. 175 Novamente o supervisor vê-se obrigado a chamar os clientes que faltam para completar o grupo de pais. Isso é feito novamente até que o objetivo seja alcançado. Contudo, essa alta desistência prejudica o andamento do atendimento e muitas vezes a aprendizagem dos alunos estágiarios, já que estamos submetidos a um calendário escolar, ou seja, o semestre letivo tem uma data para começar e também para terminar. Assim fatores institucionais atravessam o atendimento psicológico inevitavelmente e obrigam o supervisor a criar ferramentas e estratégias que permitam num curto espaço de tempo dar conta de fazer um bom trabalho ao usuário de serviço-escola e ensinar o aluno estagiário. O leitor deve estar-se perguntando a que atribuímos essa grande desistência dos usuários. Muitos fatores poderiam ser relacionados e gostaríamos de iniciar por comentários a respeito do mundo contemporâneo. Atualmente vivemos num mundo muito rápido e veloz, as informações são coletadas e distribuídas rapidamente, as pessoas têm sempre pressa e muito pouco tempo disponível. Do mesmo modo, vivemos num mundo que classifica, rotula e medica de maneira igualmente rápida. E mais ainda, habitamos um mundo em que as relações, os vínculos são descartáveis. Contudo, o que oferecemos no Psicodiagnóstico Interventivo é um atendimento que dura pelo menos três meses, portanto não se trata de uma consulta a partir da qual o paciente sai com um diagnóstico e uma receita a ser seguida. O processo demanda por parte do cliente um investimento de tempo, energia, constituição de vínculo e reflexão. Cremos que nem todos atualmente estão dispostos a isso. Temos registro de que alguns pacientes comparecem ao atendimento acreditando que estão indo ao médico, ou seja, que sairão da clínica-escola logo na primeira entrevista com um diagnóstico pronto. Quando se dão conta são convidados a participar de modo ativo num processo que acena para a compreensão de necessidades, desejos tanto de seus filhos quanto deles mesmos. Acreditamos que alguns aceitam o convite, outros não. Segundo Pompéia (2011, p.124): 176 Esta é a época em que tudo pode ser produzido, em que tudo é factível, de maneira cada vez melhor e mais rápida e, por isso, tudo pode ser substituído por um modelo mais novo, não só no que diz respeito aos artefatos, mas em todas as áreas. As novidades produzidas surgem a toda hora e impõem-se rapidamente. Nossa época tornou-se a época na qual não há mais lugar para mistérios, para nenhuma dimensão encoberta para nada que recue diante do poder da razão e da vontade. Outro fator que pode influenciar a desistência dos pais e até o não comparecimento ao primeiro chamado é o fato de o pai ou a mãe ou ambos não terem demanda para o processo psicodiagnóstico, ou seja, não reconhecem o fato de que seu filho necessita de atendimento psicológico. Muitas vezes, a escola, médicos, parentes próximos identificam uma questão de ordem psicológica, seja ela de comportamento, de aprendizagem, cognitiva ou afetiva, mas os pais não. Estes não se apropriam da queixa indicada e desta forma, eles, pais, recusam-se a comparecer à clínica psicológica. Fatores econômicos também podem e devem ser considerados. Não raro temos o depoimento de mães que dizem não ter dinheiro para o ônibus ou similar. Vale ressaltar que nosso entendimento a respeito do ser humano é que ele constitua-se por esferas que se perpassam, ou seja, esfera intelectual, afetivoemocional, motora, relacional, biológica sem que cada uma delas atue isoladamente. Cremos que tal separação é meramente didática, pois estas dimensões afetam-se concomitantemente contribuindo, cada uma delas, para um determinado modo de ser-no-mundo. Esta, entretanto, é uma visão que combina com os pressupostos fenomenológicos, mas não com todos os pressupostos das diferentes abordagens. Sabemos que este processo atualmente é realizado em diferentes abordagens, o que determina diferenças na prática clínica. Em conversas e reuniões com supervisores de estágio que atuam na supervisão de psicodiagnóstico interventivo ficou claro que alguns focalizam muito 177 mais o olhar na dimensão afetiva, o que a nosso ver faz da avaliação psicológica uma avaliação parcial e não global da criança. Na busca de explicações para determinados comportamentos que se encaixem na teoria os supervisores acabam por excluir alguns aspectos. Nessa mesma direção podemos considerar a eficácia ou não do processo de Psicodiagnóstico Interventivo. Como foi dito anteriormente, os pressupostos fenomenológicos permitem que se entenda o ser humano como um ser que se constitui junto com outros seres. Isso faz todo o sentido com a realização de um grupo de pais cuja finalidade é discutir, refletir sobre o sentido do comportamento de seus filhos, buscando novos caminhos, novas formas de lidar com os fenômenos. Partimos da ideia de que qualquer atendimento psicológico implica na busca de sentido que os clientes atribuem às suas experiências. Para alcançarmos este objetivo fazemos uso do método fenomenológico que não se compõe de interpretações, mas sim de descrições de determinados comportamentos ou atitudes que desvelem o significado do material que o paciente, seja ele a criança ou seus pais, traz para o atendimento psicológico. Assim, partimos de uma posição de não saber a priori, não há nenhuma explicação prévia, há apenas aquela que se descortina no processo psicodiagnóstico. A respeito Yontef (1998, p.218) diz: A atitude fenomenológica é reconhecer e colocar entre parênteses (colocar de lado) ideias pré-concebidas sobre o que é relevante. Uma observação fenomenológica integra tanto o comportamento observado quanto relatos pessoais, experienciais. A exploração fenomenológica objetiva uma descrição cada vez mais clara e detalhada do que é: e desenfatiza o que seria, poderia ser, pode ser e foi. 178 Entendemos que os pais quando chegam ao grupo de pais com explicações estão pautados no senso comum, em explicações gerais, mas muitas vezes com pouco contato com aquilo que lhes é mais próprio. Buscamos então sair de significados gerais compartilhados no senso comum para significados particulares, que, de fato tem ressonância com o que é mais próprio e íntimo do cliente. Consideramos essa posição como aquilo que propicia a intervenção e a possibilidade de mudança de atitude por parte dos pais. Nesse contexto, observamos muitos pais que por modificarem seu olhar, o modo de tratar a criança durante o processo psicodiagnóstico, produzem também uma modificação no comportamento da criança e, muitas vezes, a remissão do sintoma apresentado inicialmente. Assim, temos elementos concretos para destacar a eficiência do modelo de psicodiagnóstico interventivo quando este é realizado da forma como foi concebido inicialmente. Apesar disso, verificamos que quando o supervisor não faz grupo de pais já que este esbarra em suas convicções teóricas, não valoriza as relações extrapsíquicas, mas somente as intrapsíquicas, o que vale dizer que se importa pouco com os pais reais e muito com os pais introjetados. O modelo não tem tanta eficiência, já que se assemelha mais ao modelo tradicional de psicodiagnóstico, o que implica quase que somente em um processo investigativo, que considera os pais como informantes dos dados que a criança não é capaz de fornecer. Nesta mesma direção encontram-se os recursos utilizados no psicodiagnóstico interventivo, ou seja, entendemos que as visitas domiciliar e escolar são fundamentais para a compreensão global da criança. Apoiamo-nos na ideia de que o ser humano é constituído pelos diferentes contextos nos quais se insere. Somos de alguma forma coconstituídos pelos outros; o mundo humano, então, é essencialmente o mundo da coexistência, assim interessa-nos conhecer os locais nos quais as crianças estão inseridas e as pessoas com as quais se relacionam. Muitas vezes os pais comparecem à clínica-escola com uma queixa e, inevitavelmente, formamos uma imagem daquela criança à luz do discurso dos pais. 179 Quando deparamo-nos com a criança, nem sempre o que vemos corresponde à imagem construída, ou seja, a criança comporta-se de maneira completamente diferente daquilo que imaginávamos. As perguntas que se seguem giram em torno de “porque se comporta de uma forma aqui e de forma diferente em presença de seus pais, em sua casa, ou na escola?” “Que fatores contribuem para esta alteração de comportamento?” Nessa perspectiva, recursos como as visitas domiciliar e escolar são extremamente esclarecedores, uma vez que estende o olhar para além das observações possíveis no espaço da clínica-escola. Estas visitas são pouco usuais e até mesmo pouco aceitas pelos profissionais, porque se afastam de uma determinada visão da prática clínica que considera que o atendimento psicológico só pode ser realizado dentro do setting terapêutico. Safra (1983) aponta que este tipo de procedimento que faz intervenções a partir de experiências do cotidiano é fundamental para a constituição da subjetividade. O autor argumenta: Tradicionalmente, na Psicologia e também na Psicanálise há uma ênfase no estudo da subjetividade, do psiquismo, da realidade interna, ou do mundo interno. O comum é conceber o homem independentemente do seu meio e das suas ações no mundo. É um tipo de olhar que isola o ser humano e que compreende as diversas manifestações psíquicas sempre a partir de uma problemática subjetiva: alguma questão ou conflito que estaria ocorrendo no mundo interno do paciente. (SAFRA, 1983, p.99). A visita domiciliar é um recurso que inicialmente foi usado para compreender as relações familiares, contudo no decorrer do tempo verificamos que não somente as relações são passíveis de observação, mas também e principalmente a casa em si, os objetos que a compõem, assim como a organização do espaço físico da casa são reveladores do modo de estar no mundo de seus habitantes, trazendo 180 informações que contribuem em enorme escala para a compreensão dos atendimentos realizados no psicodiagnóstico interventivo. Corrêa (2004, p.62) refere: Esses espaços cotidianos da vida são modelados e modificados de acordo com a imagem do mundo que cada um carrega dentro de si e que é, por sua vez, constituída por pessoas, lugares, valores, experiências, acontecimentos associados a sentimentos. Esse mundo interno é projetado sobre os espaços e sobre os objetos o que produz uma configuração que provoca associações, estabelecendo uma via de mão dupla entre o mundo interior – eu – e o espaço exterior – mundo. Ou seja, essa ligação entre o espaço – mundo concreto – e subjetividade – mundo abstrato – estabelece uma relação de similaridade entre eles. Do mesmo modo a visita escolar produz uma compreensão mais clara das relações que a criança estabelece no âmbito escolar. Referimo-nos às relações com o conhecimento, com as regras e limites, com os colegas, com as pessoas que representam figuras de autoridade etc. Quando se trata de queixa escolar, a visita permite ainda uma avaliação sobre a contribuição da escola no fracasso escolar da criança. Nem sempre a criança é responsável pela dificuldade escolar: exemplificando melhor, nem sempre há um problema com a criança que justifique a dificuldade de aprendizagem, muitas vezes a relação ensino-aprendizagem é que está adoecida, a metodologia da escola não é eficiente, a escola não tem recursos técnicos que facilitem a aprendizagem. De acordo com Ghiringhello e Borges (2013, p.129): A visita contribui também para aproximar o psicólogo clínico da escola e para desmistificar a sua atuação (que há alguns anos restringiase ao trabalho no consultório, fato que impedia uma visão mais global das queixas apresentadas) e, ao mesmo tempo, reduz os riscos de toda a 181 problemática infantil ser atribuída apenas a problemas intrapsíquicos, culpabilizando a criança por suas dificuldades. A utilização destes recursos é tão ou mais eficiente que a utilização de recursos tradicionais como, por exemplo, testes psicológicos. Nas conversas com supervisores de determinadas abordagens teóricas notamos resistência quanto à utilização de tais recursos, haja vista que estes não combinam ou brigam com a concepção de ser e mundo por eles adotadas. Abordagens que pressupõem uma neutralidade, uma imparcialidade total por parte do psicólogo, não compartilham da utilização dos citados recursos. A nosso ver, essa posição é restritiva e não ilumina determinados aspectos impossibilitando que o modelo seja realizado nos moldes que originalmente foi construído. Outra questão que é levantada pelos supervisores desta área de estágio e considerada como uma dificuldade é a inexperiência do aluno estagiário que chega ao CPA com nenhuma prática e conhecimentos esparsos. Referimo-nos ao fato de que o aluno no curso de psicologia tem aulas sobre entrevista psicológica em um semestre, sobre testes psicológicos em outro, sobre intervenções mais à frente etc. O aluno teve aulas sobre todos esses aspectos, mas quando se vê diante da prática clínica, não consegue juntá-los inicialmente. Isso faz com que o supervisor dedique muito tempo para desenvolver um pensamento clínico junto ao aluno, para alinhavar todo o conhecimento que foi ensinado separadamente. Outra dificuldade que se refere à formação de nossos alunos que muitas vezes manifestam baixa atitude de pesquisa e produção escrita, fato que dificulta a díade ensino-aprendizagem. Um atendimento psicológico realizado pelo aluno iniciante pede que ele estude, faça muitas leituras, pesquise para que possa desenvolver o raciocínio clínico e ao mesmo tempo oferecer ao usuário um serviço de qualidade. Embora o 182 supervisor de estágio esteja sempre presente no atendimento psicológico, há necessidade de que o aluno dedique-se para que possa aprender e atender. Ressaltamos que as tarefas do supervisor de psicodiagnóstico interventivo são inúmeras, ou seja, sua função é a de psicólogo, pois é ele quem atende junto com os alunos os clientes selecionados, além supervisionar os casos, corrigir relatórios, rever teoricamente os recursos que serão utilizados, orientar os alunos na aplicação de todos eles, nas intervenções que deverão ser realizadas e nas conclusões diagnósticas e consequentes encaminhamentos, quando necessários. Conforme foi dito anteriormente, o mundo moderno trouxe muitas mudanças tanto nos clientes atendidos quanto nos alunos estagiários que atendem. Não temos visto entretanto propostas de mudanças em relação ao estágio em psicodiagnóstico interventivo. O que notamos foi a inclusão de novos recursos para a realização do mesmo. A colagem, por exemplo, é uma técnica projetiva que foi desenvolvida dentro deste estágio e que tem por objetivo conhecer o mundo interno da criança a partir da colagem de figuras em uma cartolina. As figuras referem-se a diferentes dimensões e categorias da vida tanto humana, quanto animal, vegetal e de utensílios. As crianças escolhem as figuras que lhe interessam e relatam uma história ou a importância dessas escolhas para elas. Essa atividade, após concluída, pode ser compartilhada com os pais, buscando a construção conjunta de significados; além disso, pode também ser proposta para os pais na presença dos filhos. Ferreira, Lopes e Santiago (2013, p.126) declaram: Constatamos com a prática que as intervenções do psicólogo durante o psicodiagnóstico interventivo são facilitadas por meio da colagem. O aspecto lúdico dessa atividade parece também atuar como motivação para sua realização e para compreensão de aspectos subjetivos, expressos de forma simbólica. 183 Outro dispositivo que foi criado como auxiliar na compreensão dos casos atendidos em psicodiagnóstico interventivo foi a avaliação da religiosidade. Atualmente a maior parte da população identifica-se como religiosa, aderindo a uma religião específica. A psicologia contudo sempre colocou a religião como algo fora de seu domínio. No mundo atual faz-se necessária a inclusão da dimensão religiosa na compreensão das dinâmicas individual e familiar. As crenças, dogmas e preceitos religiosos das famílias influenciam a constituição da subjetividade das crianças e, por essa razão não podem ser ignorados no processo diagnóstico. Donatelli (2013, p.104) considera que: Conhecer o indivíduo e seu mundo interno implica também conhecer suas crenças, valores que, alinhados a outros modos de funcionamento, permitem uma compreensão global do cliente. A compreensão da religiosidade, conforme proponho neste trabalho, permite o recolhimento de fatos, vivências, e significados que organizam a biografia pessoal, orientam o raciocínio clínico do psicólogo e auxiliam a conhecer o modo de viver das pessoas que o procuram. Por fim, a construção do livro de história como devolutiva final infantil também foi um recurso desenvolvido durante os anos em que nos dedicamos ao ensino do processo de psicodiagnóstico infantil. Em nossa experiência deparamos-nos muitas vezes com a dificuldade em dar devolutiva verbal para as crianças. Notávamos que as crianças mostravam desconforto e constrangimento mediante tais devolutivas. Assim passamos a construir uma história metafórica, cujos personagens eram animais e cujo desenrolar estava baseado nos conflitos, desejos, ansiedades e história de vida da criança. Esse dispositivo mostrou-se muito útil e sua eficácia não se manifesta somente no momento da leitura do livro para a criança. O livro é dado ao cliente que pode ler e reler o texto, fato que permite a elaboração de conflitos a posteriori – explicando melhor, aquilo que não pôde ser elaborado durante o processo psicodiagnóstico pode ser feito depois. Assim, o livro de história não é somente um instrumento de finalização de um processo psicológico, mas também um instrumento de intervenção. 184 Refletir sobre nossa prática clínica e acadêmica não nos leva a um porto seguro, tampouco esgota nossos questionamentos, dúvidas e inquietações, mas nos movimenta em busca de outras direções e compreensões. Referências ANCONA-LOPEZ, M. Introduzindo o psicodiagnóstico grupal interventivo. In: Ancona-Lopez, M. Psicodiagnóstico processo de intervenção. São Paulo: Cortez, 1995. ANCONA-LOPEZ, S. e TCHIRICHIAN, R.M. Desafios no psicodiagnóstico infantil. In: Ancona-Lopez, S., Psicodiagnóstico interventivo: evolução de uma prática, São Paulo: Cortez, 2013. CORRÊA, L.C.C. Visita Domiciliar: Recurso para a compreensão do cliente no psicodiagnóstico interventivo – Tese de Doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2004. DONATELLI, M.F. A compreensão da religiosidade do cliente no psicodiagnóstico interventivo fenomenológico-existencial. 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São Paulo: Summus, 1998. 185 Sobre as autoras Marizilda Fleury Donatelli: possui graduação em Psicologia pela Universidade São Marcos (1977) mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996) e doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005). Atualmente é professora titular da Universidade Paulista. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Tratamento e Prevenção Psicológica. Atuando principalmente no tema Psicodiagnóstico Interventivo. E-mail: [email protected] Ligia Corrêa Pinho Lopes: Possui graduação em Psicologia pela Universidade São Marcos (1990), especialização em Psicopedagogia pela Universidade São Marcos (1992), especialização em Psicoterapia reve pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa Em Psicoterapia reve (1996), Mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1996) e Doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (200 ). Atualmente é professora titular da Universidade Paulista. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Tratamento e Prevenção Psicológica. Atuando principalmente nos seguintes temas: Visita Domiciliar, Fenomenologia, Psicodiagnóstico, Intervenção. E-mail: [email protected] 186 OS CUIDADOS DA SAÚDE MENTAL DO PSICÓLOGO: Relatos de Profissionais da Saúde Pública Andréa Lucas Alves Calvi Jaíne Meireles Rocha Marizete Gouveia Alves dos Santos Raul de Freitas Dias Maria da Piedade Romeiro de Araújo Melo (Orientadora) “Não há resgate de cidadania, não há acolhimento à diferença radical, que representa a loucura, se os profissionais que com ela trabalham não forem, eles também, respeitados em suas diferenças e reconhecidos como sujeitos do seu trabalho” (PALOMBINI, 2003). Resumo Este trabalho teve como objetivo pesquisar como se dá a atenção à saúde mental do psicólogo que atua na área de Saúde Mental pública. O interesse pela pesquisa deu-se pelo fato de, estando prestes a nos formar, começamos a olhar mais atentamente para a prática psicológica, e as condições que o profissional de psicologia encontra. Preocupamo-nos assim, com esse aspecto que nos parece de extrema importância que é o cuidado à saúde mental do psicólogo. Para realizar este estudo, utilizamo-nos do método qualitativo de pesquisa, pois este responde a questões muito particulares da singularidade do sujeito. Aprofundando-se no mundo dos significados das ações e relações humanas. Desta forma, realizamos duas entrevistas semiestruturadas com psicólogos atuantes no âmbito da saúde pública e que estavam devidamente cadastrados no Conselho Regional de Psicologia. Os dados obtidos foram discutidos por meio da Análise de Conteúdo que pareceu-nos ser o mais adequado, uma vez que se propõem a evidenciar opiniões, críticas, julgamentos, reações afetivas nos relatos e vivências dos sujeitos no momento da entrevista. Os resultados foram divididos em quatro temas de acordo com o relatado pelos profissionais, sendo eles: sobrecarga emocional relacionada ao trabalho em saúde mental; recursos utilizados pelos psicólogos para lidar com a sobrecarga emocional; cuidados à saúde oferecidos aos profissionais; percepções e expectativas em relação à necessidade de ações voltadas ao cuidado à saúde psicológica do profissional de saúde mental. Os resultados evidenciaram que o trabalho em Saúde Mental gera sofrimento psíquico, que pode ser reconhecido 187 quando os profissionais falam sobre sobrecarga emocional, cansaço mental e abalo emocional, e que é necessário um cuidado e atenção com a saúde mental do psicólogo. Palavras-chave: Políticas de Saúde; Políticas públicas; Saúde Mental; Saúde ocupacional; Psicologia. Abstract This monograph aims to search how happens the care to psychologist mental health who acts at the Mental Health in the area of statement assistance. The interest of researchers was just because when we were almost finishing college, and we started to look more carefully for psychological practice, and professional conditions in psychology in our city or exercise of their professional practice. We are concerned with this aspect, that seems to us very important, which is the psychologist’s mental health care. To accomplish such a feat, in the use of qualitative research method, because it responds to very particular issues. Expanding the world of meanings of actions and human relations, in which corresponds to a deeper space relations, therefore, semi-structured interviews were made with psychologists working in the field of public health and who were duly registered in the Regional Council of Psychology. The data obtained were analyzed using content analysis that seemed to be the most suitable, once that purports to show reviews, criticisms, judgements, affective reactions in reports and experiences of the subjects at the time of the interview. The results were divided into four themes according to the reported by professionals, being them: emotional overload related to work in mental health; resources used by psychologists to deal with the emotional overload; health care offered to professionals; perceptions and expectations regarding the need for actions aimed at the psychological health care of mental health professional. Thus, we obtained the job in Mental Health raises Yes, distress, which can be recognized when the pros talk about emotional overload, mental fatigue and emotional turmoil. Keywords: Health care policy, Public policies, Psychological health, Occupational health. 188 O Homem e o trabalho O homem não nasce homem; mas aprende a ser humano, vivendo em uma sociedade produtora de bens e serviços, permanecendo como tal a partir da produção da sua própria sobrevivência, ou seja, do seu trabalho (QUINTANEIRO, 2002). Dessa forma, podemos entender que a importância dos significados e dos sentidos que o homem atribui ao seu trabalho pode ser estudada por diferentes disciplinas e com múltiplas perspectivas teóricas. No entanto, a compreensão do que constitui trabalho é um ponto de partida fundamental (TOLFO; PICCININI, 2007) . Na perspectiva marxista o trabalho pode ser compreendido, de forma genérica, como uma capacidade de transformar a natureza para atender necessidades humanas (TOLFO E PICCININI, 2007, p.38). Segundo Codo (1997, p.26.) o trabalho indica que há uma relação de dupla transformação entre o homem e a natureza, geradora de significado. De modo que é por meio deste que o homem significa concretiza a natureza. Nesse sentido, o trabalho ocupa um papel central na vida das pessoas e é um fator relevante na formação da identidade e na inserção social das mesmas, sendo fundamental que haja uma realização satisfatória nas atividades realizadas no campo profissional para que diferentes áreas da vida humana também se desenvolvam (ABREU et al., 2002). Neste contexto, considerase que o bem-estar adquirido pelo equilíbrio entre as expectativas em relação à atividade profissional e à concretização das mesmas é um dos fatores que constituem a qualidade de vida do indivíduo (ABREU et al., 2002). Dessa forma, não devemos desconsiderar a interação entre o trabalho e o sentido dado a este pelo indivíduo, pois para que haja sentido fora do trabalho é necessária uma vida dotada de sentido dentro do trabalho (ANTUNES, 2000). O trabalho é rico de sentido individual e social, é um meio de produção da vida de cada um ao prover subsistência, criar sentidos existenciais ou contribuir na estruturação da identidade e da subjetividade (QUINTANEIRO, 2002). Por outro lado, a falta de realização pessoal no trabalho afeta diretamente as habilidades em suas relações interpessoais, interferindo ativamente no modo de realizar suas funções (ABREU et al., 2002). Abreu et al. (2002) afirmam que realização pessoal no trabalho depende, em grande escala, dos suportes afetivos e sociais que os indivíduos recebem durante seu percurso profissional. Não havendo então, realização pessoal no trabalho e/ou o suporte social e afetivo provenientes das relações de trabalho, poderá observar uma exaustão emocional na prática da profissão que tem como características a sensação de esgotamento e de falta de recursos emocionais do próprio indivíduo para realizar suas atividades dentro ou fora do trabalho (ABREU et al., 2002). Podemos pensar que os valores relacionados com o trabalho estabelecem-se por intermédio da educação na infância e na adolescência e cronificam na vida das pessoas, mas vão adquirindo valores diferentes com o passar do tempo. E estes são os que estão relacionados com as finalidades que as atividades representam para a pessoa, respondendo à indagação acerca dos motivos que a levam a trabalhar (QUINTANEIRO, 2002). Assim, o sentido do trabalho influencia as formas de atividade laboral, a flexibilidade e a produtividade dos trabalhadores, pois afeta as crenças sobre o que é legítimo e o que se pode tolerar do trabalho (MOW, 1987 apud, TOLFO; PICCININI, 2007, p.40). Dessa forma, o papel e a importância deste na vida do ser humano, por sua atribuição psicológica e social, variam na medida em que derivam do processo de atribuir significados e apresenta-se associado às condições históricas da sociedade, sendo, portanto um construto sempre inacabado (TOLFO; PICCININI 2007). Nesse sentido, faz-se necessário pensar na relação homemtrabalho de forma que envolvamos aspectos que digam respeito à formação de identidade, de valores e, consequentemente, pensar sobre a influência disso na saúde do indivíduo e em sua qualidade de vida. Há de se pensar então, em qualidade, segurança, e promoção de saúde de maneira ampla e integrada. A integração precisa ser mantida tanto no plano conceitual quanto no do planejamento e da prática cotidiana, abrindo perspectivas para a valorização do ser humano integral, pois valorização pressupõe aqui respeito à integridade e aos limites da condição humana, construção de laços de confiança e de reconhecimento – o que significa também promoção da saúde, que por sua vez inclui a segurança no trabalho (DEJOURS, 2005, p. 10). Abordagens teórico-metodológicas que relacionam saúde mental e trabalho A possibilidade de estabelecer-se, até certo ponto, um nexo entre saúde/adoecimento mental e trabalho já vem sendo estudada ao longo da história, e tem trazido muitas contribuições para a ciência psicológica. Há uma variedade de estudos muito grande, e de acordo com cada autor que se propôs a olhar para o tema, existem várias possibilidades para se classificarem essas abordagens. Podemos citar, por exemplo, a classificação feita por Dejours, um importante pesquisador da área, que incluía a hipótese patogênica inspirada no Modelo Toxicológico; uma abordagem de tipo epidemiológica, a Abordagem Agressológica; e a Abordagem Psicanalítica, além da Psicodinâmica do Trabalho, a proposta do autor (MERLO, 2002). Outro exemplo é a proposta de Seligmann-Silva (1995) que distingue: as teorias sobre estresse, a corrente voltada para o estudo da psicodinâmica do trabalho e o modelo formulado com base no conceito de desgaste mental. E ainda, Tittoni (1997) que propõe: primeiro um eixo que se refere ao diagnóstico de sintomas de origem psi e sua vinculação às situações de trabalho, com forte influência da epidemiologia, especialmente como referência metodológica; e um segundo, cuja ênfase não recai no diagnóstico de doenças ocupacionais, mas nas experiências e vivências dos trabalhadores sobre seus cotidianos laborais e suas situações de adoecimento, influenciados pelos conhecimentos produzidos pelas ciências sociais e pela psicanálise. Contudo, a classificação que será tomada neste trabalho, será a proposta por Jacques em seu artigo “Abordagens teórico-metodológicas em saúde/doença mental e trabalho” (2003) por considerarmos que esta abarca, diferencia e aproxima as diferentes abordagens, de acordo com as suas semelhanças e/ou divergências. De acordo com Jacques (2003) as abordagens que se destacam entre as pesquisas e teorias que abordam o tema da relação entre saúde mental e trabalho, podem ser dividas em quatro linhas mais significativas, por serem as mais difundidas em pesquisas no Brasil, sendo estas: as teorias sobre estresse; a psicodinâmica do trabalho; as abordagens com base epidemiológica; e os estudos em subjetividade e trabalho. As teorias sobre estresse Primeiramente, há a necessidade de definir-se o conceito de estresse, já que esse vem sendo muito utilizado, tanto em pesquisas quanto no senso comum e generalizado para uma gama variada de situações e sensações, desde um estado de irritabilidade, até um quadro de depressão grave (JACQUES, 2003; OLIVEIRA; e BARDAGI, 2010). De acordo com Oliveira e Bardagi (2010) embora haja inúmeras definições e perspectivas de entendimento sobre a conceituação do termo “estresse”, é comum tanto internacionalmente como no nosso país tomar a definição segundo a qual o estresse é uma reação do organismo com componentes psicológicos, físicos, mentais e hormonais, que ocorre quando surge a necessidade de uma adaptação grande a um evento ou situação importante. O estresse no trabalho está diretamente relacionado a respostas ameaçadoras, físicas e emocionais que ocorrem quando as demandas do cargo/função não se encontram ajustadas às potencialidades do trabalhador (SUEHIRO et al., 2008, p. 206). Vários estudos dão ênfase à questão das fontes ocupacionais do estresse, mas estas são diversas. Alguns autores afirmam que qualquer situação que gere um estado emocional forte, que leve a uma quebra da homeostase, exigindo alguma adaptação, seja ela positiva (como uma promoção) ou negativa (carga horária excessiva), pode ser considerada um estressor (OLIVEIRA; e BARDAGI, 2010). Ainda de acordo com Oliveira & Bardagi (2010) o estresse ocupacional além de gerar impacto no próprio trabalho, pode também impactar outras áreas da vida do sujeito, uma vez que há uma interrelação entre todas elas. Nesse mesmo sentido, há ainda a ideia de que algumas profissões são mais suscetíveis ao estresse do que outras como, por exemplo, a profissão de professor. Vale citar aqui, que atualmente o burnout é um dos construtos mais estudados no que se refere à relação estresse e trabalho. O burnout é a resposta emocional à situação de stress crônico, em função de relações intensas de trabalho com outras pessoas ou de profissionais que apresentem grandes expectativas com relação aos seus desenvolvimentos profissionais. Porém, em função de diferentes obstáculos, não alcançam o retorno esperado (LIMONGI-FRANÇA, 2002, p.60). Dessa forma, o burnout seria o resultado de um longo processo, de diversas tentativas de lidar com o estresse ocupacional, caracterizando-se por três aspectos: a exaustão emocional, a despersonalização e a redução da realização pessoal e profissional, sendo mais comum em profissionais cuidadores (OLIVEIRA; BARDAGI, 2010). Outros estudos trarão outras contribuições, a volta da conceituação de estresse, estresses ocupacionais, estressores e entre outras possibilidades, o burnout, mas o que Jacques (2003) chama atenção é, que como padrão, essas definições, relacionando estresse e trabalho, apontam para o referencial teórico cognitivo-comportamental. Tal referencial embasa o amplo campo das teorias sobre estresse psicológico e que sustentam os modelos de prevenção, diagnóstico e intervenção proposta. Neste tipo de abordagem, é possível identificar características da psicologia social cientifica. A ênfase recai em métodos e técnicas quantitativas e as intervenções são voltadas para o gerenciamento individual do estresse através de mudanças cognitivas e comportamentais e práticas de exercícios físicos e relaxamento, cabendo ao trabalho o atributo de fator desencadeante do processo, com maior ou menor grau de relevância (JACQUES, 2003). A psicodinâmica do trabalho Esta abordagem tem o autor francês Dejours como o principal expoente. Ganhou grande receptividade e tem sido um dos referenciais de apoio de inúmeros estudos e pesquisas brasileiras. Sua proposta é a de enfatizar normalidade antes da patologia (JACQUES, 2003). Para Dejours, o campo da psicodinâmica do trabalho é aquele do sofrimento e do conteúdo, da significação e das formas desse sofrimento. Ele situa sua investigação no contexto do infra-patológico ou do pré-patológico. Para o autor, o sofrimento é um espaço clínico intermediário, que marca a evolução de uma luta entre, por um lado, funcionamento psíquico e mecanismo de defesa e, de outro, pressões organizacionais desestabilizantes, com o objetivo de conjurar a descompensação e conservar, apesar de tudo, um equilíbrio possível, mesmo se ele ocorrer ao preço de um sofrimento, com a condição que se preserve o conformismo aparente do comportamento e satisfaçam-se os critérios sociais de normalidade (MERLO; MENDES, 2009, p. 142). A proposta dejouriana parte de um embasamento teórico psicanalítico. O método proposto será a escuta, a interpretação e a devolução, privilegiando o emprego da entrevista coletiva, com o intuito de transcender o que for do individual, e, portanto opondo-se ao uso de questionários ou estudos epidemiológicos (JACQUES, 2003). Nessa abordagem, “a organização do trabalho apresenta-se como uma porta de entrada do sofrimento e doença mental enquanto geradora de angústia e de estratégias defensivas (JACQUES, 2003, p. 105)”. Dessa forma, o trabalho pode ser considerado como um fator que interagindo com uma constituição psíquica inerente ao próprio sujeito, pode ser causa relevante de problemas psicopatológicos (JACQUES, 2003). De acordo com Jacques (2003) quando abordada como concepção de ciência e de pesquisa, a psicodinâmica do trabalho dá prioridade aos modelos teóricos concebidos pela via especulativa e que servirão para ordenar as evidências empíricas, preconizando o emprego de métodos qualitativos, de abrangência coletiva, pautada no modelo clínico de diagnóstico e intervenção. Abordagens com base no modelo epidemiológico e/ou diagnóstico Embora a epidemiologia venha de uma ampla trajetória na medicina, foi a partir dos estudos epidemiológicos que se apresentou a concepção multicausal, em substituição ao paradigma monocausal, movimento que possibilitou a aplicação dessa ciência no campo da saúde/doença mental (JACQUES, 2003). Há, nesse campo duas grandes escolas epidemiológicas, russo/anglo-saxã e a franco/latinoamericana, esta última apoiada no modelo da determinação social da doença e nos denominadores comuns da dialética (SAMPAIO; MESSIAS, 2002, p. 154). Estes autores conceituam a epidemiologia como ciência social, prática, aplicada, que estuda a distribuição, determinação e modos de expressão, para fins de planejamento, prevenção e produção de conhecimento, de qualquer elemento do processo saúde/doença em relação à população qualificada nos elementos sócioeconômico-culturais que a possam tornar estruturalmente heterogênea (SAMPAIO; MESSIAS, 2002, p.147). As contribuições do modelo de determinação social da doença proposto por esta abordagem permitiram comprovar o caráter social do processo de adoecimento mental, incluindo aí o trabalho (JACQUES, 2003). No Brasil, são reconhecidos os estudos de Codo e colaboradores, cujo objetivo é identificar quadros psicopatológicos relacionados a determinadas categorias profissionais, tais como: a síndrome do trabalho vazio em profissionais bancários, o burnout em educadores, paranoia entre digitadores e histeria em trabalhadores de creches (JACQUES, 2003; SILVA; MERLO, 2007). Essa abordagem tem como fundamentação teórica as concepções marxistas, e na psicologia, os pressupostos da psicologia social histórico-crítica, onde o trabalho apresenta-se como um fator constitutivo do psiquismo e do processo saúde/doença mental (JACQUES, 2003). Em termos metodológicos, propõe-se a utilização de instrumentos de medida das condições de trabalho e saúde mental dos trabalhadores um protocolo de observação do trabalho e análise de tarefas e entrevistas qualitativas de aprofundamento, com utilização de abordagens qualitativas e quantitativas (JACQUES, 2003). Estudos e pesquisas em subjetividade e trabalho A temática subjetividade e trabalho busca analisar o sujeito trabalhador definido a partir de suas experiências e vivências adquiridas no mundo do trabalho (NARDI; TITTONI; ERNARDES, 1997). “Esses estudos tomam o trabalho como um eixo norteador para além do seu caráter técnico e econômico, cujo significado perpassa a estrutura socioeconômica, a cultura, os valores e a subjetividade dos trabalhadores” (JACQUES, 2003, p. 110). Valorizam as vivências, o cotidiano, modos de ser em termos qualitativos da experiência do trabalhador, e não diagnósticos psicopatológicos. Os estudos e pesquisas em subjetividade e trabalho alicerçam-se em diferentes teorias no âmbito das ciências sociais. Da psicanálise utilizam-se daquilo que diz respeito aos aspectos intrapsíquicos e que concebem o sujeito como ativo frente às normas, influenciando-as, e sendo influenciado por elas, compactuando assim com a psicologia social histórico-crítica e assumindo pressupostos comuns como a não dicotomia entre indivíduo e coletivo, subjetivo e objetivo. (JACQUES, 2003, p. 111). Como metodologia, privilegiam abordagens qualitativas através de técnicas como observação, entrevistas individuais e coletivas, análises documentais, além do emprego do método etnográfico (JACQUES, 2003). Ou seja, no âmbito da subjetividade e trabalho incluem-se estudos e pesquisas variados, que enfatizam a dimensão da experiência e das vivências dos trabalhadores sobre o cotidiano de vida e de trabalho enquanto expressões do sujeito na intersecção de sua particularidade com o mundo sociocultural e histórico, em que se incluem as vivências de sofrimento e adoecimento sem objetivar, necessariamente, os diagnósticos clínicos (JACQUES, 2003). Conforme Nardi, Tittoni e Bernardes (1997, p. 2 5), as diferentes abordagens que “constroem o campo da subjetividade e trabalho, buscam as experiências dos sujeitos e as tramas que constroem o lugar do trabalhador, definindo modos de subjetivação relacionados ao trabalho”. Atuação do psicólogo na Saúde Mental pública Em seus 50 anos de existência no nosso país a psicologia vem ganhando cada vez mais espaço nos mais variados meios de atuação; para tanto, historicamente, teve que se engajar em uma luta de modo a rever-se tanto enquanto ciência, como quanto transformadora social, passando a vincular-se a diversas lutas que visavam os direitos humanos (BOCK, 2008; SOARES, 2010). Na década de 80 a psicologia mostrou-se uma participante ativa no processo de luta antimanicomial (SALES; DIMENSTEIN, 2009). Processo do qual se originaram de forma regulamentada os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que tem o intuito se colocar em substituição ao modelo tradicional de Hospital Psiquiátrico, proporcionando acolhimento e a desinstitucionalização dos pacientes que sofrem de transtornos mentais. Assim, Sales e Dimenstein (2009) levam-nos a entender que a atuação do psicólogo nos CAPS está historicamente relacionada ao movimento de luta antimanicomial, que reforçou o laço da psicologia para com a saúde mental, uma vez que requereu do psicólogo uma atuação mais ampla. A inserção dos profissionais de psicologia nos CAPS deu-se por meio da atuação destes nas mais diversas áreas, especialmente as interventivas, mais tradicionais do exercício da profissão, contudo desenvolvendo diversas e novas atividades tais como: acolhimento dos usuários, triagens e retriagens, coordenação de oficinas diversas, participação em oficinas coordenadas por outros técnicos, grupos operativos, grupos terapêuticos e atendimentos individuais (SALES; DIMENSTEIN, 2009). Portanto, psicólogos que atuam no CAPS tem contato diário com o fenômeno da doença mental e nesse sentido ainda faz parte do trabalho do psicólogo: Conhecer e dar visibilidade ao que se pode chamar de dimensão subjetiva ou psicológica da realidade, que é a dimensão dos sentimentos, emoções, ações, sentidos, significados, desejos e pensamentos que os sujeitos constroem no decorrer da vida e que permite pensar e sentir algo em relação às outras pessoas e situações vividas. Pode-se pensar essa dimensão como um espaço dos registros individuais ou coletivos, conscientes ou não, que o ser humano faz a partir de suas vivências (BOCK, 2008). A finalidade do trabalho do psicólogo seria então intervir, a partir dos conhecimentos da Psicologia, em aspectos da dimensão subjetiva da realidade para potencializar os sujeitos na direção de maior autonomia e autoria de suas histórias de vida (BOCK, 2008). Assim a atuação nos Centros requereu um amadurecimento da Psicologia, pois com a ampliação do campo da ciência psicológica passou a ser necessária uma ampliação do olhar da Psicologia para os fenômenos, e para a forma de atuação – tendo em vista que esta passou a atuar em grupos multidisciplinares –, através da troca de experiências com outras ciências, principalmente com a psiquiatria italiana, uma das precursoras da luta antimanicomial (SALES; DIMENSTEIN, 2009). O psicólogo e o trabalho Existe uma evidência crescente demonstrando que os profissionais da área da saúde mental, por fatores relacionados à natureza de sua profissão, apresentamse particularmente vulneráveis a fatores que podem favorecer o adoecimento, ameaçando a saúde psicológica e o bem-estar deste trabalhador (ABREU et al., 2002). Entre os fatores específicos, destacam-se: a) o manejo, por um longo período de tempo, com pessoas com transtornos mentais; b) a responsabilidade para com a vida do paciente; c) a inabilidade para estabelecer limites em suas interações profissionais e d) a atenção constante aos problemas e necessidades dos pacientes de uma forma não recíproca (ABREU et al., 2002, p. 25). O trabalho do psicólogo, mais especificamente, caracteriza-se por elevado investimento pessoal nas atividades profissionais, sendo marcado pelo contato muito próximo com outros indivíduos e pelo constante enfrentamento de situações de crise (BIEHL, 2009). Além da possível identificação e formação de laços afetivos entre os psicólogos e seus clientes (ABREU et al., 2002). Dessa forma, há de se considerar que o profissional em Psicologia necessita de cuidados, semelhantes ao que ele dedica a seus clientes, revolver os conflitos para colocá-los em movimento e desvelar as possibilidades de lidar com aquilo que lhe vem ao encontro. Cuidado este que deve ser pensado no campo da prática da saúde, como uma atitude terapêutica que busque ativamente um sentido existencial [...] sempre como resultado de uma autocompreensão e ação, transformadoras (AYRES, 2004, p.21). Ações de atenção aos trabalhadores Dentre tantas etapas recomendadas de trabalho aos profissionais da área de saúde mental na rede pública, nas fases municipal/regional, estadual e nacional, estabelecidas pela Conferência Nacional de Saúde Mental – IV citamos as diretrizes de interesse direto destes profissionais com o intuito de nortear as atividades de todos: 314. Criar políticas e buscar estratégias de atenção integral à saúde dos trabalhadores da rede de saúde mental, garantindo o cuidado dos mesmos. 315. Criar políticas de incentivo ao trabalhador: treinamento em serviço; gratificação especial para atividades no âmbito da saúde mental; supervisão; interface com outros serviços para assistência terapêutica voltada às necessidades físicas e psicológicas do trabalhador; criação de um programa de incentivo ao lazer, cultura e esporte; e aposentadoria especial (após 25 anos de trabalho) para os trabalhadores de saúde mental (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL – INTERSETORIAL – IV CNSMI, 2010). De acordo com Silva e Costa (2008) há um livro elaborado pelo Ministério da Saúde no ano de 2001, intitulado Doenças relacionadas ao trabalho – Manual de procedimentos para as equipes de Saúde, onde são elencadas as principais doenças que acometem os profissionais de saúde, foi elaborado partir de um projeto em parceria com o Ministério de Assistência Social. No entanto, antes disso, já nos anos 80 existiam os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CRST), que têm como objetivo o cuidado com a saúde dos profissionais (SILVA; COSTA, 2007). Dessa forma, podemos pensar que existem políticas públicas voltadas ao cuidado com os profissionais, mas elas podem estar sendo ineficientes. O cuidado em Psicologia Durante o processo de graduação, muito se ouve falar sobre o cuidado e a importância que este termo tem para o campo da Psicologia. Quando falamos em cuidado, lembramo-nos da fala dos nossos pais, que quando nos viam fazendo algo que eles julgavam perigoso, pediam para que tomássemos cuidado, pois aquilo representava algum tipo de risco na visão deles. Dessa forma, podemos entender que eles pediam-nos para ficarmos atento às coisas que aconteciam à nossa volta, e a partir dessa atenção pudéssemos discernir o que era bom e o que não era, para que assim não sofrêssemos nenhum tipo de prejuízo. Esse tipo de cuidado assemelha-se aos conceitos de cautela, vigilância, prevenção e zelo. No entanto Silva e Costa (2008) dizem que o cuidado em Psicologia vai além desses conceitos, pois este representa, na realidade, uma atitude de preocupação, ocupação, responsabilização e envolvimento afetivo com o ser cuidado (BOFF, 1999; REMEN, 1993; WALDOW, 1998 apud SILVA; COSTA, 2008, p.87). Dessa forma, o cuidado que nossos pais pediam para que tivéssemos, na verdade, segundo a ótica psicológica, eram eles quem estavam tendo. Assim sendo, o psicólogo além de entender o conceito de cuidado, necessita saber como colocá-lo em prática e isso é fundamental para a prática psicológica (SILVA; COSTA, 2008). Segundo Boff (1999, p. 31) “[...] cuidar implica ter intimidade com elas, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhe sossego e repouso [...]. Mais que o logos (razão), é o pathos (sentimento), que ocupa aqui a centralidade”. Com isso, quando falamos em cuidado, falamos em sentimento, intimidade, respeito, repouso. E quando oferecemos o cuidado ao outro, estamos-nos atendo aos seus sentimentos e a tudo aquilo que ele possui de mais íntimo e singular, com o objetivo de que ele possa sentir-se respeitado e em alguns casos até mesmo descansado. Assim sendo, quando falamos do cuidado a quem cuida estamos nos referindo a uma atenção que possibilite ao cuidador sentir-se respeitado, repousado e principalmente acolhido. Objetivo Geral Pesquisar como se dá a atenção à saúde mental do psicólogo que atua na área de saúde mental pública. Objetivos específicos Identificar os recursos que estes profissionais utilizam para cuidar da própria saúde mental. Se a carga psicológica relacionada ao trabalho que desenvolvem afeta sua vida dentro e fora do ambiente profissional. Investigar se há políticas públicas destinadas ao cuidado da saúde mental desses profissionais. Identificar possíveis déficits no cuidado com o profissional. Identificar os desafios enfrentados por estes profissionais no âmbito de sua atuação. Método Optou-se pela realização de uma pesquisa qualitativa, uma vez que de acordo com Minayo e Deslandes (2002), a pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, no que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos humanos. Sujeitos Dois psicólogos, de ambos os sexos, com idade entre 30 e 60 anos, devidamente registrados no Conselho Regional de Psicologia, atuantes na rede pública de atenção à Saúde Mental. Os sujeitos foram escolhidos por meio da instituição em que atuam, tendo em vista que foram abordados em seus ambientes de trabalho. Incialmente a pesquisa visava entrevistar pelo menos quatro profissionais, mas no dia da entrevista com os outros dois, houve desistência por parte deles e os outros contatados tinham uma agenda incompatível com o cronograma da pesquisa, o que inviabilizou suas entrevistas. Instituição As entrevistas foram realizadas nos locais de trabalho dos próprios profissionais, assim sendo, dentro de um CAPS. Instrumentos Foram utilizados roteiros de entrevistas semiestruturadas (ANEXOS, 9.4), elaborados pelos pesquisadores, compostos por seis questões que abordam os temas pertinentes à pesquisa. Procedimentos Os pesquisadores entraram em contato com os sujeitos da pesquisa, munidos de carta de apresentação para esclarecimento dos objetivos destas; em acordo com estes, foram agendados datas e horários para realização das entrevistas, que foram gravadas com a autorização dos sujeitos. Mediante a assinatura dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, as entrevistas aconteceram de acordo com o roteiro pré-estabelecido, sem ser no entanto limitadas por este. Não havia tempo predefinido; contudo, a duração de cada entrevista foi de aproximadamente trinta minutos. Análise dos dados Depois de realizadas as entrevistas, estas foram transcritas e posteriormente analisadas de acordo com o método de análise qualitativa, de Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977) que pareceu-nos ser o mais adequado, uma vez que se propõe a evidenciar opiniões, críticas, julgamentos, reações afetivas nos relatos e vivências dos sujeitos no momento da entrevista. Resultados Embora como pesquisadores tivéssemos o intuito de fazer quatro entrevistas, com quatro profissionais diferentes, devido ao prazo exigido devido a trâmites burocráticos para a realização de pesquisas em instituições de saúde, só nos foi possível o contato com dois profissionais que se disponibilizaram a participar da pesquisa – assim, tivemos uma diminuição em termos de quantidade nos nossos resultados, o que sem dúvida limita-nos em termos de generalização; contudo, devido ao caráter qualitativo da pesquisa, consideramos que os dados foram suficientes. Ambos os participantes responderam a todas as perguntas de forma satisfatória quanto ao objetivo da questão, embora a complexidade da forma como se expressaram tenha sido diferente. Conforme acordado no primeiro contato com os entrevistados, após transcrição integral das entrevistas, as mesmas foram levadas para os profissionais para que esses pudessem conferir os dados, garantindo maior confiabilidade destes. Ambos os profissionais apontaram os dados que julgava poder identificá-los, tal como o nome de um local em que um deles já trabalhou e o nome da cidade em que se localiza o CAPS de atuação destes. Além disso, os profissionais solicitaram a correção de vícios de linguagem, e organização mais clara de suas colocações, de forma que as respostas às perguntas ficassem escritas mais clara e objetivamente. Foi tomado o cuidado de os profissionais não acrescentarem informações, assim como não excluírem dados relevantes para a pesquisa, sendo as colocações dos entrevistados respeitadas na medida em que não comprometiam os dados da pesquisa, mantendo-se fiéis no sentido das colocações originais dos mesmos. De acordo com Belei et al. (2008) o pesquisador após o recebimento das informações deve colocar-se à disposição dos participantes para esclarecimento de dúvidas ou recebimento de sugestões. Além disso, Duarte (2004) afirma que entrevistas podem e devem ser editadas. Exceto quando se pretende fazer análise de discurso, frases excessivamente coloquiais, interjeições, repetições, falas incompletas, vícios de linguagem, cacoetes, erros gramaticais etc. devem ser corrigidos na transcrição editada. Dessa forma, o material utilizado para a análise não foi portanto a transcrição da entrevista em si, mas nesse caso, poder-se-ia dizer, construção escrita dos dados obtidos nas entrevistas. Assim, terminada essa fase de construção escrita dos dados obtidos nas entrevistas, foram identificadas quatro categorias de sentido. No que diz respeito aos objetivos da pesquisa, foram essas: sobrecarga emocional relacionada ao trabalho em saúde mental; recursos utilizados pelos psicólogos para lidar com a sobrecarga emocional; cuidados à saúde oferecidos aos profissionais; e percepções e expectativas em relação à necessidade de ações voltadas ao cuidado à saúde psicológica do profissional de saúde mental, como segue: A sobrecarga emocional relacionada ao trabalho em saúde mental Embora, a princípio, um dos entrevistados tenha negado que o trabalho com os pacientes acometidos por transtornos mentais afetasse sua saúde psicológica, o mesmo discorreu em seguida algumas questões que relacionam uma sobrecarga emocional relacionada ao trabalho dos profissionais em saúde mental como desencadeante de adoecimento dos profissionais ou no mínimo da necessidade de apoio psicológico: Eu não chego a perceber algum tipo de prejuízo assim [...] acho que essa sobrecarga emocional fica mais para o ‘eu’ técnico [...] O que existe é um desgaste mental muito grande, antes, eu basicamente trabalhava com neuróticos, e o CAPS trabalha basicamente com paciente psicótico, então é o tempo inteiro esse tipo de conversa, sem pé nem cabeça. Isso cansa mentalmente (Psicólogo 1). Os dois psicólogos entrevistados relataram frustração de modo implícito ou explícito em resposta a questões diferentes, porém com o mesmo conteúdo deixando claro que é motivo de frustração para ambos o fato das respostas aos tratamentos psicoterápicos com psicóticos serem muito lentas, situação que um deles descreve como abalo emocional. [...] o CAPS é um trabalho complicado porque o caminhar do paciente é muito lento, e quando caminha é muito pouco. É um trabalho de você investir num dia a dia, sem ver o retorno (Psicólogo 1). O quadro clínico crônico de alguns pacientes os limitam de modo que eles não respondem à psicoterapia, permanecendo em um estado que demanda apenas a manutenção das alucinações e agressividade. E isso gera um pouco de frustração, nos abala emocionalmente. Então temos que aprender a lidar com as pequenas melhoras dos pacientes. Mas creio que este seja um dos motivos do adoecimento dos profissionais (Psicólogo 2). Nesse contexto, um dos profissionais ainda discorreu sobre o desejo de poder fazer mais pelo paciente, e ainda sobre a insatisfação com as condições de trabalho que frustram essa possibilidade, o que gera muita angústia, estresse e também contribui para o adoecimento dos profissionais: As pressões do dia-a-dia relacionadas às condições de trabalho também adoecem [...] isso gera muita angústia, pois gostaríamos de fazer um trabalho mais extra-CAPS, no entanto se saíssemos quem cuidaria dos pacientes intensivos da unidade?! Gostaríamos de poder fazer mais, de dar o melhor para os nossos pacientes, mas não temos estrutura para isso (Psicólogo 2). [...] o que acontece é que são muitos pacientes e você não consegue disponibilizar o serviço necessário, e isso é muito estressante, ter um número grande de pacientes sob nossas responsabilidades, sendo que alguns pacientes em algumas vezes que precisam estar com algum tipo de monitoramento, algum acompanhamento mais de perto. Tem que se disponibilizar bastante atividade, pro CAPS vir a fazer o papel, isso me estressa bastante, pensar que a gente tem poucos profissionais comprometidos e que não estão conseguindo devido a essas dificuldades (Psicólogo 2). É estressante também, quando o paciente, apesar de todo o esforço da equipe para fazer um trabalho que dispense a internação, precisa ser internado, esse processo de internação me deixa muito estressada e muito angustiada. Pois há o sentimento de culpa por parte dos profissionais e a agressividade por parte dos pacientes (Psicólogo 2). Recursos utilizados pelos psicólogos para lidar com a sobrecarga emocional Diante da falta de oferta de serviços específicos e de qualidade voltados para o cuidado à saúde mental dos psicólogos entrevistados, foram relatados alguns recursos que foram desenvolvendo para lidar com a supracitada sobrecarga emocional relacionada ao trabalho desenvolvido no CAPS. Ambos relataram já ter procurado alguma forma de processo psicoterápico particular: Eu faço análise em uma clínica particular (Psicólogo 2). Eu logo depois que me formei, e praticando já, por um ano e meio, mais ou menos, fiz terapia em grupo (Psicólogo 1). No caso do Psicólogo 1 no entanto, revela-se que, após certo tempo, houve uma dificuldade em se manter no processo, acrescentando que atualmente não participa mais de nenhum tipo de processo psicoterápico particular, valendo-se de recursos internos para lidar com essas questões: Mas, você vai aprendendo até em termos de uma sobrevivência da sua saúde mental, cria uma barreira técnica: Dois ou três minutos depois do atendimento você deleta aquela problemática de determinado paciente (Psicólogo 1). Considerando-se o contexto, ele cita em outro momento que alguns colegas de trabalho fazem uso de substâncias psicoativas, que ele considera estar relacionado à estratégia para lidar com sobrecarga emocional do trabalho com pacientes com transtornos psicológicos: Se for considerar os abusivos de drogas, álcool... [falando dos profissionais de saúde mental pública que necessitariam de cuidado psicológico] (Psicólogo 1). Ou seja, são identificadas aqui três posturas diante da sentida necessidade de cuidado psicológico relacionada ao trabalho em saúde mental: a busca pela psicoterapia em consultório particular, o uso de recursos internos para afastar-se das problemáticas dos pacientes, e o possível relacionamento com o uso de substâncias psicoativas. Cuidados à saúde oferecidos aos profissionais Ambos os entrevistados evidenciaram a necessidade de cuidado em relação à própria saúde mental, contudo, quando questionados, afirmaram desconhecer políticas públicas específicas relacionadas: Que eu saiba não. Nenhuma (Psicólogo 1). Olha, aqui eu desconheço, não vou afirmar que não exista, porque realmente eu não conheço (Psicólogo 2). No entanto, foram relatadas outras estratégias não específicas para os profissionais, mas das quais eles poderiam fazer uso: Embora, na rede haja psicólogos disponíveis nas UBS e nos CAPS, eu optei por fazer análise particular (Psicólogo 2). Além disso, há um programa específico para profissionais, contudo, pouco conhecido e mais voltado para questões médicas; trata-se de um cuidado específico para os profissionais, mas que não oferece serviço psicológico para estes profissionais: Tem saúde/medicina ocupacional, mas eu não tenho muita informação sobre isso (Psicólogo 1). [...] Mas é serviço médico, o que eu não precisei. [referindo-se ao serviço saúde/medicina ocupacional] (Psicólogo 1). Percepções e expectativas em relação à necessidade de ações voltadas ao cuidado da saúde psicológica do profissional de saúde mental Em um dado momento da entrevista o profissional tinha que responder sobre o que precisaria ser criado e que ajudaria o seu trabalho; nesse momento, os profissionais assumiram posturas diferentes: Não sei se isso pode chegar a acontecer pelo volume de funcionários que a Prefeitura tem, precisaria de uma equipe muito grande (Psicólogo 1). Nós precisaríamos de uma capacitação, de uma supervisão, tanto institucional, quanto clínica, que não tem, além de melhores condições de trabalho (Psicólogo 2). Ou seja, um dos sujeitos, embora pareça reconhecer a necessidade de algo ser feito, implicitamente sugerindo que houvesse uma equipe especializada para prestar assistência aos profissionais, não acredita que isso possa vir a acontecer, enquanto o outro tem claras as questões que acredita que devam ser mudadas, trazendo três questões específicas, explicitadas durante a entrevista como necessidade: A) Capacitação: [...] Isso gera muita angústia, pois não temos nenhum tipo de capacitação profissional disponibilizada pela prefeitura, tendo sempre que recorrer a outras vias (Psicóloga 2). B) Supervisão, tanto institucional, quanto clínica: A supervisão é reconhecida pelo Psicólogo 1 como uma forma de cuidado ao psicólogo em sua prática, contudo, não chega a sugerir como necessidade ou proposta como faz o Psicólogo 2. Em uma das instituições que trabalhei, a gente teve uma supervisão, mas era muito mais um perfil institucional. Aqui também tem uma discussão na equipe de ter uma supervisão institucional também, do trabalho do CAPS, mas não para o técnico em si (Psicólogo 1). Eu acredito que isso contribuiria bastante para a melhoria, tanto para as relações entre os profissionais, como para auxiliar nas discussões dos casos mais graves e complexos que podem aparecer, embora a equipe já se reúna para discussão, às vezes, só a equipe se reunir, dependendo do caso, não é suficiente. [referindo-se à supervisão] (Psicólogo 2). C) Melhores condições de trabalho: [...] estamos longe de termos as condições adequadas para exercer nossa função. Temos falta de materiais, poucos recursos de RH, um grande número de pacientes, um espaço físico inadequado e desestruturado (Psicólogo 2). Como eu atuo em CAPS, eu acho que o desafio que a gente tem hoje, pensando na reforma psiquiátrica, e em todo esse processo de desinstitucionalização, é fazer e tornar os CAPS mais efetivos, não que eles não sejam, eles já são, mas de realmente ampliar isso. Ficou esse espaço em aberto, pois é difícil encontrar algum CAPS com estrutura e toda a organização necessária. [...] criar os CAPS foi muito bom, foi legal, mas há a necessidade de toda essa estrutura de rede, que eu não sei se em algum lugar tem (Psicólogo 2). O ponto em comum que apareceu neste momento da entrevista dos psicólogos foi relacionado à distância de as necessidades e propostas colocadas tornarem-se concretas: “[...] então eu acredito que a Prefeitura nunca vai oferecer isso (Psicólogo 1). Pensando em possibilidades, isso está um pouco longe de se concretizar, a gente não tem essa rede de saúde articulada” (Psicólogo 2). Ainda assim, nota-se que o segundo coloca as mudanças no campo da possibilidade, enquanto o primeiro considera a mudança pouco utópica. Discussão Os relatos obtidos apontam que o trabalho em Saúde Mental gera sim, sofrimento psíquico, que pode ser reconhecido quando os profissionais falam sobre sobrecarga emocional, cansaço mental e abalo emocional. Isso porque o trabalho do psicólogo implica em identificar-se com a pessoa que sofre e sofrer junto com ela. Ou seja, conviver com sofrimento gera sofrimento (SILVA, 2007). A imprevisibilidade e a lida rotineira com situações-limite, como suicídio ou automutilação, por exemplo, caracterizam a atividade no CAPS como um “trabalho desestabilizador” (ATHAYDE; HENNINGTON, 2012, p. 992). Além disso, o próprio cotidiano de trabalho em um serviço que atende pessoas com graves transtornos mentais naturalmente já suscita sofrimento nos profissionais (ATHAYDE; HENNINGTON, 2012). É notável o sentimento de frustração e impotência diante da possibilidade de respostas significativamente observáveis em relação ao seu trabalho com os pacientes psicóticos. Embora os dois entrevistados sejam de gênero, idade e tempo profissional diferentes, ambos relataram desconforto em notar pouca ou nenhuma melhora dos pacientes no dia a dia, tendo que aprender a lidar com as pequenas melhoras demonstradas. De acordo com Pereira (2007), a prática psicológica na instituição de saúde é influenciada pelo modelo médico na prática cotidiana de atuação. Por isso, muitas vezes os profissionais tentam salvar os pacientes da loucura; tal objetivo, no entanto, não é atingido, o que tende a desencadear sentimento de frustração. Moore e Cooper (1996) propõem que talvez haja um vácuo entre as expectativas idealizadas e seus resultados na prática dos profissionais de saúde mental. Os profissionais dessa área idealizam que sua prática servirá para curar as pessoas quando, na realidade, poucas mudanças são experienciadas por pacientes crônicos. Desse modo, confirma-se um panorama contrastante em relação à saúde dos trabalhadores de saúde mental. Embora haja relatos de sofrimento, tristeza e dificuldade de suportar as crises dos usuários que os procuram; ainda permanece a expectativa do ideal de prontidão, alegria e disponibilidade, qualificação e competência para a escuta e assistência – que se esperam desses trabalhadores (ATHAYDE; HENNINGTON, 2012). Outra fonte de sofrimento trazida pelos entrevistados foi a falta de condições adequadas de trabalho. Ou seja, se trabalhar com o sofrimento do outro já é um fator que tende a gerar sofrimento, ter que fazê-lo dentro dos parâmetros propostos pelo SUS e Reforma Psiquiátrica e sem condições adequadas de trabalho, torna esse sofrimento ainda mais evidente. De acordo com Athayde e Hennington (2012) estudos têm evidenciado que os trabalhadores de Saúde Mental no Brasil deparam-se com as precárias condições de trabalho nas unidades públicas de saúde, o que tem contribuído para dificultar a consolidação das mudanças propostas pelo novo modelo. Vale considerar que o fator relatado como causador de maior sofrimento entre as equipes tem sido a impossibilidade de realização de um bom trabalho devido à falta de condições para isso. Para lidar com essas situações e com o sofrimento por ela suscitado, considerando sua própria economia psicossomática e inclusive a sua saúde mental, no seu cotidiano de trabalho, os profissionais trouxeram estratégias diversas, algumas mais saudáveis, como a busca por atendimento particular e outras menos saudáveis como estratégias defensivas aparentemente mais cristalizadas. Embora ambos tenham procurado um processo terapêutico particular, apenas um deles manteve-se no processo, enquanto o outro não o fez. Isso pode ser entendido tanto em termos de questões individuais dos entrevistados, quanto em termos mais amplos, considerando-se assim a questão da condição socioeconômica como um ponto importante para se manter em um processo psicoterápico. Vale ressaltar que o mesmo profissional que descontinuou o processo terapêutico colocou a questão salarial como um desafio. Outra questão muito marcante, e aí mais presente no profissional que descontinuou o próprio processo psicoterápico, foi um mecanismo de defesa de “deletar” (sic) as problemáticas dos pacientes após os atendimentos e afastar-se de pacientes que, em crise, têm um discurso mais confuso. Isso, de acordo com o mesmo, para poupar-se. E ainda a estratégia que o próprio entrevistado aponta como “esquizo” (sic), que é a de tentar cindir a própria personalidade separando o profissional e técnico do pessoal e subjetivo. De acordo com Athayde e Hennington (2012) afastar-se da abordagem de determinado problema é a defesa individual mais comum. O trabalho no contexto da saúde é caracterizado pelo predomínio do cuidado às pessoas. O cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde é permeado por dores, perdas e angústias, o que pode gerar, na execução de suas atividades profissionais, sofrimentos (SILVA, 2007). Juntamente com o sofrimento psíquico podem estar as estratégias defensivas que são utilizadas no cotidiano do trabalho. As estratégias defensivas são formas de enfrentar-se o sofrimento. Podem ser inconscientes e visam evitar o aspecto doloroso sendo difícil o confronto e a convivência com este sentir, para a manutenção do equilíbrio psíquico, que requer a proteção do ego contra os conflitos que se encontram na base do sofrimento (MENDES; MORRONE, 2002). Contudo, essas defesas desenvolvidas contra o sofrimento podem ser contraditórias. Se por um lado elas são necessárias para manter o equilíbrio psíquico; por outro, podem levar a um imobilismo e alienação. Além disso, é importante ressaltar que as defesas amenizam o sofrimento, mas não o eliminam e também não são permanentes (SILVA, 2007). Outra questão que cabe considerar é a do abuso de substâncias psicoativas, que embora o entrevistado não mencione fazer disso uma estratégia sua para lidar com as situações do trabalho com saúde/doença mental, tem colegas de trabalho que o fazem. De forma geral, podemos pensar que o abuso de substâncias psicoativas pode também ser entendido como mecanismos de defesa que permitem o distanciamento ou o esquecimento das questões que trazem sofrimento, que podem também estar relacionadas às questões do ambiente laboral. Não há, contudo, um fator único que explique o sofrimento psíquico dos profissionais de saúde, mas sim uma série de fatores objetivos e subjetivos que, combinados, expressam as insatisfações, as dificuldades e os sofrimentos que se fazem presentes no cotidiano de trabalho (SILVA, 2007). Diante do conhecimento do sofrimento e muitas vezes adoecimento dos profissionais de saúde mental relacionados à sua prática, buscou-se saber dos profissionais as políticas ou serviços públicos que eram oferecidos como forma de contenção, manejo, tratamento e prevenção deste sofrimento/adoecimento laboral. Foi possível obter através das respostas dos profissionais que ainda não estão claras as propostas que visam uma atenção específica ao profissional em psicologia. Ambos convergem na concepção de que não há uma atenção específica para com a saúde mental do psicólogo. Embora essa proposta exista, através da implantação dos Centros de Referências em Saúde do Trabalhador (CRST), esses serviços apresentam dificuldades na sua atuação, tais como a falta de tradição, familiaridade e conhecimento dos profissionais do sistema com a temática da saúde-doença; e pouca participação dos trabalhadores (SILVA, 2007), como se pôde perceber com os entrevistados. Além disso, os entrevistados citaram outras possibilidades de conseguir atendimento via setor público, pois assim como os pacientes, poderiam buscar atendimento na rede SUS, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e até mesmo nos próprios CAPS, que são os dispositivos de Saúde Mental que podem oferecer acompanhamento psicológico. Além disso, o cuidado médico à saúde do profissional, mas que pouco colabora em termos de saúde mental. Contudo, há de ser considerado que estes serviços não específicos ao profissional (via CAPS e UBS) são exercidos por colegas de profissão, que participam de reuniões e discutem casos e condutas juntos. Além disso, o profissional poderia vir a ser atendido pelo mesmo terapeuta que os seus pacientes. Tais situações podem gerar resistência e prejudicar o tipo de ajuda oferecida; nesse sentido, além de ser raramente procurada, poderia ser também pouco eficaz. Além de comprometerem eticamente o trabalho psicológico, uma vez que de acordo com o Artigo 2º do Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005, p. 7), é vedado ao psicólogo “estabelecer com a pessoa do atendido relacionamento que possa interferir negativamente nos objetivos do atendimento”. Como poderia vir a acontecer nestes casos. No que se referia às perspectivas e expectativas dos profissionais em relação à necessidade de ações voltadas ao cuidado à saúde psicológica do profissional de saúde mental, os profissionais convergiram em relação à necessidade do cuidado, contudo, enquanto um tem a expectativa de que o serviço possa acontecer, o outro menciona que dada a estrutura vigente, seria inviável. O trabalhador dos serviços de saúde mental propostos pela Reforma Psiquiátrica constitui-se na tensão entre habitar um lugar rico para criação e invenção e assim posicionar-se de forma crítica e ver-se como possível agente de mudanças; e concomitantemente na desvalorização de seu papel de servidor público, com a falta de investimentos e de ações intersetoriais, que impõem limites para a prática e sobrecarregam o trabalhador (NARDI E REMMINGER, 2007). Diante dessas dificuldades do trabalho, alguns profissionais empreendem um movimento de retomada de saberes e práticas anteriores não consoantes com as práticas psicossociais de atenção, como um mecanismo defensivo (SANTOS & CARDOSO, 2010). Essa divergência pode ser identificada nos dois profissionais, que tendem a um ou outro extremo. Outro ponto bastante interessante é a importância que eles dão para as questões que dizem respeito à atenção especializada ao profissional. Nesse sentido, a proposta destes relaciona-se a uma supervisão realizada por um profissional qualificado e externo ao serviço, que pudesse auxiliá-los de forma mais ampla e não apenas na discussão de casos. O requerido pelos entrevistados remete-nos ao chamado Apoio Matricial que consiste em ações interdisciplinares e intersetoriais que requerem participação dos profissionais matriciadores nos processos de territorialização, planejamento; acompanhamento e avaliação das atividades de uma determinada instituição (BOING; CREPALDI, 2010). Segundo Figueiredo e Onocko Campos (2009) no âmbito da saúde mental o Apoio Matricial tem como função pedagógica a capacitação in loco, isto é, que as equipes aprendam através da prática a intervir no campo da subjetividade. Outro ponto apontado como necessário é a capacitação dos profissionais, que deveria ser oferecida e financiada pelo poder público. Conforme Onocko Campos et al (2007), há a necessidade de capacitações de qualidade, com critérios transparentes de ingresso, quando financiadas pelo poder público, de flexibilidade da gestão para a participação dos trabalhadores nos processos de formação permanente e de apoio para que os profissionais também possam tornar-se formadores, transmitindo sua experiência. Por fim, voltou-se a falar da questão da condição de trabalho, desta vez, de forma mais ampla, que como geradora de sofrimento, é uma realidade que deve ser modificada. A atividade de trabalho em Saúde Mental desafia a capacidade de renormatização dos trabalhadores para tolerarem um meio com tantas adversidades, devido ao seu objeto, à organização do trabalho e às suas condições precárias. Ainda em termos de precariedades das condições de trabalho, existe a chamada “falta de rede” (ATHAYDE; HENNINGTON, 2012, p. 992) que, neste caso, consiste basicamente numa falta de articulação dos níveis de atenção em Saúde Mental pública de forma a oferecer um planejamento terapêutico mais adequado ao usuário e apoio entre os serviços (ATHAYDE; HENNINGTON, 2012). Essas propostas de atenção, de capacitação, supervisão e condições de trabalho adequadas já foram discutidas na III Conferência Nacional de saúde Mental no ano de 2002, por serem considerados recursos coerentes aos princípios da Reforma Psiquiátrica. Nessa situação a capacitação e qualificação continuada, através de criação de fóruns e dispositivos permanentes de construção teórica, científica, prática terapêutica e de intercâmbio entre serviços; garantia de condições de trabalho e planos de cargos; e garantia de supervisão clínica e institucional. Assim como em 7 de julho de 2005 foi publicada pelo Ministério da Saúde a Portaria nº 1174/GM que destinou incentivo financeiro emergencial para a implantação de supervisão clínico-institucional regular; ações de acompanhamento integrado com a rede de atenção básica em seu território de referência (SILVA, 2007). Assim, confirma-se que, embora haja conhecimento e reconhecimento das necessidades e propostas coerentes com a realidade, ainda existe uma lacuna em relação à realidade prática das ações. Pudemos identificar, portanto, que o trabalho com Saúde Mental na rede pública de atuação gera um sofrimento significativo, uma sobrecarga emocional, que pode comprometer a Saúde Mental do profissional e nesse sentido, a qualidade do trabalho oferecido por ele. Diante do reconhecimento de tal sofrimento e possível adoecimento do profissional, propostas de cuidado e políticas públicas existem, contudo, há ainda uma lacuna em relação às ações na realidade prática. Na ausência de propostas de cuidado eficientes, os profissionais buscam outros recursos para lidar com esse sofrimento. Pelo viés mais saudável, procuram atendimento psicológico particular, contudo, esse atendimento tem um custo e a questão salarial ainda é desafio. Dessa forma, nem todos os profissionais podem se manter no atendimento. Por outro lado, na falta de atenção especializada à Saúde Mental do profissional, tanto pública quanto particular, este começa a fazer uso de estratégias defensivas, que embora façam parte dos recursos dos quais o ser humano lança mão, ainda que inconscientemente, elas apenas amenizam o sofrimento, e ainda assim, não são duradouras. A falta de supervisão e as condições precárias de trabalho foram consideradas os maiores desafios enfrentados pelos psicólogos que trabalham na Saúde Mental pública, mostrando-se como fontes potenciais de estressores, angústia e frustração, ou seja, de sofrimento e limitação para os profissionais. Dessa forma, podemos concluir que a atenção e o cuidado à Saúde Mental do psicólogo que trabalha na rede de Saúde Mental pública no nosso país, embora necessária, ou dá-se através de esforços particulares, nem sempre possíveis, ou não se dá de forma satisfatória e eficaz. Considerações finais Embora os nossos objetivos tenham sido alcançados, entendemos que, devido ao número limitado de sujeitos, a subjetividade destes pode ter sido um fator relevante a ser considerado; ainda assim, nosso trabalho apontou para questões muito semelhantes às que esses estudos já existentes trazem-nos. Aqui, debruçamo-nos a olhar o fenômeno da necessidade do cuidado à Saúde Mental dos profissionais de forma mais específica. Reconhecemos contudo que trata-se de um fenômeno complexo e ainda é necessário que outros estudos sejam realizados em várias direções, até mesmo pelo número de estudos sobre o tema ser ainda pequeno. Consideramos temas possíveis e necessários para as próximas pesquisas novas propostas de ações que na prática podem de fato ser concretizadas. Podemos pensar nesse momento em ações como: um incentivo financeiro para os profissionais investirem no próprio cuidado de forma particular, que tem-se mostrado como o recurso mais satisfatório neste momento; ou mesmo a contratação de profissionais de Saúde Mental que se dediquem exclusivamente para a atenção aos profissionais, mas, principalmente, à procura pela implantação de fato, das propostas já existentes que em longo prazo parecem mais adequadas. Em todos esses casos, no entanto, reconhecemos que outras pesquisas deverão ser realizadas considerando o contexto complexo que envolve o tema. Referências ABREU, K L de; STOLL, I; RAMOS, L.S.; BAUMGARDT, R.A.; KRISTENSEN, C.H. Estresse ocupacional e Síndrome de Burnout no exercício profissional da psicologia. Brasília. Psicologia: Ciência e Profissão, vol. 22,2. p. 22-29, 2002. ANTUNES, R. 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Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo: Possui graduação (bacharelado, licenciatura e formação) em Psicologia pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1994), Mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1997) e Doutorado Ciências Médicas – subárea Saúde Mental – pela Universidade Estadual de Campinas (2004). Atua com psicoterapia psicanalítica de crianças, adolescentes, adultos. Tem experiência no ensino superior na graduação e pós-graduação. Atualmente é coordenadora de curso, professora titular e supervisora de estágio na Universidade Paulista – UNIP / Campinas. CV: http://lattes.cnpq.br/4573356259939080 Contato e-mail: [email protected] 220 Parte III PSICOLOGIA E ESPIRITUALIDADE Marília Ancona-Lopez, PUC-SP, UNIP Resumo A partir de considerações sobre a exclusão de temas relacionados às religiões e à espiritualidade nos cursos de formação de psicólogo, a autora relata um workshop desenvolvido experimentalmente com o objetivo de abrir um espaço para reflexões sobre o tema tendo como referência casos clínicos elaborados para discussão. As reflexões permitiram discutir os limites de atuação do psicólogo, as possibilidades de inclusão do tema em atendimentos psicológicos e os cuidados necessários para essa inclusão. Palavras-chave: Psicologia Clínica; Psicologia da Religião; Formação do Psicólogo. Introdução Espiritualidade e religião são temas pouco tratados nos cursos de Psicologia. No entanto, estão presentes no nosso cotidiano e não poucas vezes experiências ligadas a eles são colocadas pelos pacientes nos atendimentos psicológicos. A exclusão do assunto na formação dos psicólogos traz efeitos. Alunos de Psicologia que prezam a dimensão espiritual queixam-se com frequência da falta de atenção, ou até mesmo do preconceito com que os temas são tratados no decorrer dos cursos. Colocam que suas perguntas a respeito raramente são respondidas e que suas experiências espirituais e religiosas não encontram espaço para discussão, o que dificulta refletir e estabelecer relações entre diferentes perspectivas de mundo e de ser humano. Nas palavras de Coliath (2007): [...] as questões ligadas à religião nunca foram abordadas e ao questionar os professores da clínica escola a respeito do assunto, fui orientada a não aprofundar estas questões com o cliente. Era contraditório porque a própria clínica escola nos orientava a tecer um 221 olhar que abrangesse o cliente como um todo, e entendo que a parte espiritual faz parte deste todo. (p.34-35) Pereira (2009) fala que em seu curso de formação a religiosidade e a espiritualidade eram temas sobre os quais pouco se falava. Os professores quando abordavam estes assuntos “[...] não o faziam com clareza, nem com tranquilidade e objetividade. Evitavam questionamentos e revelavam preconceitos em relação ao tema religião” (p.20-21). Acrescenta “[...] uma atitude tornou-se comum nas lides acadêmicas, bem como nos consultórios de psicologia, quando assuntos ligados à espiritualidade e à religiosidade apareciam: eles deveriam ser ignorados.” (p.11) Cesar (2007) relata que “[...] durante uma aula, um professor nos deu a orientação explícita de que, quando o tema religião fosse abordado por um paciente durante uma sessão psicoterápica, era conveniente não aprofundar o assunto, ou seja, deveríamos até deixá-lo falar, mas evitar trabalhar esse conteúdo para não entrarmos em polêmica.” (p.11) Esteves (2009) confirma que em entrevista com supervisores de cursos de Psicologia buscando compreender o modo como lidavam com os temas da religiosidade verificou que se comportavam de acordo com suas visões pessoais. Constata que “o meio acadêmico rejeita assuntos relacionados à religião e à religiosidade” e fala da “[...] existência de preconceito em relação às religiões ou pessoas religiosas de maneira geral, bem como a discriminação do tema por ser considerado contrário ao discurso científico” (p.1 8). Por outro lado, observou em sua convivência acadêmica que o aluno de Psicologia “[...] espera e precisa ser ouvido em todos os seus questionamentos, e procura, muitas vezes, encontrar acolhimento no professor”, ”como alguém com quem ele pode contar, com quem ele pode falar dos seus valores, das suas crenças, das suas dúvidas existenciais”. (p. 21) O fato é que a aproximação do terapeuta à espiritualidade e à religião tem um impacto na sua atuação junto ao cliente e, assim, é importante criar condições que favoreçam o acolhimento e a abertura para essa discussão na formação profissional. Embora não seja possível traçar um caminho ideal, a inserção do tema no curso colaboraria para a formação plena do psicólogo, para seu autoconhecimento e autodesenvolvimento. Pargament (2007) lamenta o não preparo dos psicólogos para lidar com as questões religiosas e espirituais dos pacientes e cita as dificuldades que observa mais frequentemente. Embora muitas delas aconteçam quando se trata de outros temas, eles são usuais quando o psicólogo tem de lidar com a espiritualidade e com a religião do paciente. Pargament (2007, p. 334) cita seis atitudes frequentes que considera inadequadas: 222 1. Viés Espiritual: tendência para utilizar pontos de vista estereotipados sobre espiritualidade e religião. 2. Miopia Espiritual: dificuldade para enxergar a dimensão espiritual dos problemas e das soluções; tendência a ver a espiritualidade a partir de uma perspectiva global e indiferenciada. 3. Timidez Espiritual: medo de lidar com a espiritualidade na terapia, por acreditar que a espiritualidade não deve fazer parte do atendimento psicológico. 4. Supervalorização Espiritual: tendência a ver a espiritualidade como a raiz de todos os problemas ou como a fonte de todas as soluções. 5. Prepotência Espiritual: superestimação do próprio nível de competência para atuar em relação ao tema, com base apenas na propria espiritualidade. 6. Intolerância à Ambiguidade: o desejo de soluções simples e definitivas para problemas complexos. Entre outras sugestões, o autor considera que o autoconhecimento espiritual é um componente essencial para integrar a espiritualidade na psicoterapia. Ele costuma incentivar os seus estudantes a se conhecerem melhor espiritualmente e a se aproximarem do tema de várias formas, estudando, fazendo um genetograma espiritual-religioso, escrevendo uma autobiografia espiritual, abrindo-se para as várias formas de espiritualidade, expressando problemas espirituais, relacionando a espiritualidade e a religião ao trabalho psicológico. Para Pargament (2007), tudo isso pode ser feito “em pequenos passos”. De acordo com esta orientação, desenhamos um workshop sobre Psicologia e Espiritualidade a ser desenvolvido experimentalmente com alunos de cursos de graduação em Psicologia. Objetivo e procedimentos O objetivo do workshop Psicologia e Espiritualidade foi o de oferecer um espaço a alunos de cursos de graduação em Psicologia para que pudessem refletir sobre as suas posturas frente a questões relacionadas à religião e à espiritualidade em psicoterapia. Para o desenvolvimento do workshop adaptamos cinco casos clínicos citados por Miller (2003). Miller procurou desenvolver teórica e tecnicamente 223 formas de incorporar a espiritualidade ao aconselhamento e à psicoterapia. Propôs exercícios para essa integração, a serem usados dentro ou fora da sala de aula. Miller encoraja o leitor a usar os exercícios criativamente, como atividades experienciais individuais, em duplas ou em grupos. Sugere discutir os casos exemplos com outras pessoas, usar o material para conhecer melhor a si mesmo e seus pontos de vista sobre a espiritualidade e para avançar na integração da espiritualidade na prática psicológica. Ao longo de seu livro, Incorporating Spirituality in Counseling and Psychotherapy (Miller, 2003) apresenta 20 casos, acompanhados de perguntas que visam orientar a discussão. Desses, selecionamos quatro casos, escolhidos por proporcionarem um largo espectro de questões relacionadas à atuação do psicólogo. Os quatro casos, assim como as questões posteriores, foram reescritos, adaptando-os à nossa realidade. Acrescentamos a esses casos mais um, que selecionamos entre aqueles que discutimos em grupo de estudos sobre Psicologia e Religião, apresentando-o no mesmo molde dos demais. O workshop foi oferecido para os participantes do 21° Encontro de Serviços-Escola de Psicologia do Estado de São Paulo (UNIP, 2013). Inicialmente oferecemos 20 vagas, acreditando que esse número permitiria avançar na discussão durante o tempo previsto para o evento. No entanto, no início da atividade, havia uma fila de interessados solicitando que fosse permitida a sua participação. Tivemos assim, no workshop, 30 participantes, número limitado pela possibilidade de trabalhar em círculo no espaço reservado para a atividade. O público foi composto por jovens dos últimos anos de cursos de Psicologia, provenientes de diferentes estados do país e por seis professores de cursos de Psicologia. No workshop fizemos uma breve introdução explicando o conceito utilizado para o termo espiritualidade, falamos da importância dos psicólogos discutirem o assunto e apresentamos as razões e as dificuldades para fazê-lo, segundo Pargament (2002). Em seguida, dividimos os participantes em grupos de seis pessoas e entregamos a cada grupo um dos casos, para discussão. Após 20 minutos, abrimos os grupos para que apresentassem seus casos. Depois de cada apresentação perguntávamos aos participantes como teriam agido e, em seguida, o grupo responsável pelo caso relatava o que tinha sido discutido e qual a conclusão a que os membros do grupo tinham chegado. 224 O workshop No inicio do workshop definimos espiritualidade como uma dimensão intrínseca à vida humana que abarca a busca de significado para a existência e a busca da transcendência. Lembramos que todo ser humano se pergunta sobre a vida, a dor e a morte e citamos Aletti (2007, p. 15), para quem “todos temos uma imagem de Deus. Também quem não crê, ou nega a existência, tem uma imagem de Deus, que nega”. Em seguida, nos referimos a Pargament (2002) para quem: 1. O cliente não deixa sua espiritualidade fora da sala de atendimento; problemas espirituais podem provocar problemas psicológicos e vice-versa, a espiritualidade pode ser uma fonte tanto para a solução quanto para a manutenção de problemas. 2. O psicólogo não deixa sua espiritualidade fora da sala de atendimento; o grau de integração espiritual e profissional varia de psicólogo a psicólogo; a integração da espiritualidade no atendimento requer conhecimento, abertura, tolerância, autoconhecimento, autenticidade. 3. O processo psicoterápico tem uma dimensão espiritual e tanto a espiritualidade do paciente quanto a do terapeuta são afetadas ao longo do atendimento; as diferentes modalidades de psicoterapia enriquecem-se quando é dada atenção à dimensão espiritual, a espiritualidade oferece perspectivas importantes às questões trabalhadas em psicoterapia; mudanças psicológicas e espirituais acontecem simultaneamente. Após citar as dificuldades que Pargament encontrou nos psicólogos, quando se deparam na clínica com questões de religião e espiritualidade, dividimos os participantes em grupos e distribuímos para cada grupo, um dos casos escolhidos, solicitando que respondessem as perguntas feitas para cada caso. Pedimos que discutissem os casos procurando deixar de lado posições pré-concebidas e possíveis adesões a denominações religiosas ou grupos de espiritualidade. 225 Caso 1 – Eliana Imagine-se no consultório. Você é o terapeuta. Eliana marcou uma consulta por telefone e você prepara-se para recebê-la pela primeira vez. Eliana tem 55 anos. Ela entra na sala, fala sobre a sua vida e acrescenta que é cristã desde pequena. Diz que sua religião é muito importante para ela. Acrescenta que, antes de continuar a falar, quer saber se você também é cristão. Pede que você diga qual é a sua religião e como ela impacta sua vida e seu trabalho como terapeuta. Diz que só quer trabalhar com alguém que compartilhe as mesmas crenças e valores que ela, ancorados em sua espiritualidade. Discuta: 1. Alguma das colocações de Eliana perturba-o emocionalmente ou mentalmente? Como você recupera-se? 2. Que comentários iniciais você faria sobre seu trabalho e sua orientação profissional? Você faria alguma referência à sua posição espiritual? Por quê? Quais seriam os prós e os contras? Caso 2 – Pastor Jonathan O pastor Jonathan entra em contato com você para encaminhar um casal de sua igreja. Conta que ouviu falar muito bem de você e de seu trabalho como psicólogo. Conta que orienta espiritualmente esse casal, que frequenta a sua igreja há um ano aproximadamente. Pensa que um atendimento psicológico especializado é necessário, além do seu trabalho pastoral. Ele quer que você atenda o casal enquanto, paralelamente, ele continua a orientação espiritual. Considera que vocês poderão reunir-se de tempos em tempos para conversar sobre a dupla e poder, assim, ajudá-los melhor. Discuta: 1. Esse atendimento paralelo o preocupa? 2. Que informações você precisa para poder decidir aceitar ou não atender o casal? 3. Quais seriam os limites e contratos necessários com o cliente para desenvolver um trabalho conjunto? 4. Quais seriam os limites e contratos necessários com o pastor para desenvolver um trabalho conjunto? 226 Caso 3 – Paula Paula é uma cliente que segue a religião católica como você. Ela já conversou abertamente sobre as suas crenças e as suas práticas espirituais nos atendimentos. Você concorda com as ideias dela sobre o catolicismo e considera que as orações que ela faz e os rituais que ela atende estão a favor de sua saúde mental. No momento, ela está atravessando uma forte crise em sua vida pessoal e está muito apegada ao problema que vive, não conseguindo distanciar-se dele para refletir. Você gostaria de conversar sobre essa crise do ponto de vista da religião dela, pois pensa que isso poderia ajudá-la a ver o que se passa de forma mais ampla. Em sessões anteriores, Paula rezou na sessão e, agora, você gostaria muito de rezar com ela e de referir-se a alguns relatos da Bíblia como metáfora, mas teme fazê-lo por conta das posições oficiais do Conselho Federal de Psicologia. O Conselho tem uma posição muito clara no que diz respeito à separação entre igreja, Estado, práticas psicológicas e práticas religiosas, o que o deixa confuso sobre como agir na sessão. Discuta: 1. Como você começa a sair da confusão que sente? 2. Você entra em contato com o Conselho para saber como agir? Sim, não, por quê? 3. Quais são outras barreiras que impedem que você reze com a cliente ou refira-se à Bíblia? Quais são os argumentos favoráveis? 4. Como você vê a integração de práticas religiosas na clínica psicológica? Caso 4 – Daniela Daniela entra em seu consultório trazendo o seu mapa astral. Ela começa a sessão dizendo que ela lê seu horóscopo todos os dias e há mais de cinco anos não toma nenhuma decisão séria em sua vida sem antes consultar a sua astróloga. Conta que, desde pequena, sua mãe lia os astros para ela, mas, crescendo, passou a consultar outras astrólogas, até encontrar aquela que lê muito bem a sua carta. Ela e a mãe comentam as leituras da astróloga, que faz também a carta astral da mãe, e comportam-se a partir dessas indicações. O pai considera que astrologia é bobagem e ignora essas conversas. Quando você faz perguntas sobre a vida de Daniela, ela responde sempre se referindo aos astros que se encontram nesta ou naquela posição. Você fica interessado nas explicações de Daniela, pois considera que os astros 227 têm, sim, influência na vida das pessoas. Você considera, também, que parte do comportamento de Daniela é característica do seu signo. Discuta: 1. Você considera o comportamento de Daniela patológico? Por quê? 2. Como você planejaria o desenvolvimento do atendimento de Daniela? 3. Como sua relação com a astrologia influencia o seu comportamento, nesse caso? Caso 5 – Luciana Luciana é advogada e casada há oito anos. Seu marido, no segundo ano do casamento, teve uma doença grave, o que impediu o casal de manter relações sexuais. Ela dedicou-se ao trabalho e passou a manter economicamente o marido e o filho, sobrecarregando-se. Frequentava um Centro Espírita e encontrava apoio e conforto ao participar das sessões e relacionar-se com o grupo. Um jovem começou a trabalhar no mesmo escritório e Luciana apaixonou-se por ele, sendo correspondida. Tornou-se amante do colega e passou a viver conflitos de ordem moral que a levaram a buscar atendimento psicológico. Contou que sua vida afetiva era tumultuada, relatando comportamentos intermitentes de rompimentos e aproximações com o jovem, que comentava publicamente com os colegas. Luciana dizia que um espírito de luz levava-a a intuir quando devia ou não sair com o seu amigo. Luciana pediu licença para acender velas nas mesas do escritório e aborreceu-se quando negaram seu pedido. Passou então a levar flores brancas e a presentear os colegas para que as pusessem sobre as mesas. Na sua, colocou várias imagens sacras e fotos de personagens importantes de sua religião. Um dia, Luciana trouxe para a sessão de terapia uma medalha de exorcismo e disse que foi orientada pelo espírito de luz a pedir que você usasse-a durante o seu atendimento. Diz que se sentirá muito mais segura e tranquila se você usar a medalha. Solicita que você a coloque. Discuta: 1. Como você comportaria-se em relação ao pedido de Luciana? Por quê? 2. Como você lidaria com o comportamento religioso de Luciana? 228 Discussão Os alunos e os profissionais presentes mostraram-se bastante interessados no workshop e a participação foi intensa. A par das discussões sugeridas, alguns alunos procuraram-nos durante a discussão, iniciando uma conversa paralela na qual falavam de suas posições religiosas e do que pensam sobre espiritualidade. Esse comportamento corroborou com a colocação dos autores sobre a importância de abrir-se um espaço acadêmico para que os futuros psicólogos possam refletir sobre suas posições pessoais comparando-as com as propostas das diferentes teorias psicológicas. A preocupação com a manutenção de uma atitude ética frente ao paciente, independentemente da conduta sugerida para fazer frente aos casos apresentados foi unânime e mostrou que a postura ética está sendo positivamente apresentada e desenvolvida nos cursos de Psicologia. A abertura para a inclusão da espiritualidade no atendimento variou de grupo para grupo. Dois grupos mostraram-se reticentes quanto à possibilidade de tratar do assunto no atendimento preferindo adotar uma posição de redução do assunto a aspectos psicológicos. Na discussão aberta mostraram o receio de que a inclusão do tema levasse a discussões referentes às religiões e movimentos espirituais “em si” e afastasse o trabalho do âmbito propriamente psicológico. Outros grupos mostraram-se vivamente interessados em encontrar formas adequadas e coerentes de inserir o assunto nos atendimentos. Justificaram sua postura falando da forte presença das religiões e movimentos espirituais na cultura de nosso país tanto do ponto de vista institucional quanto nos contextos sociais e familiares. O assunto levou a reflexões sobre as especificidades positivas e negativas do atendimento a pacientes que frequentam a mesma denominação religiosa do terapeuta e sobre os limites da neutralidade do profissional. O andamento das reflexões propiciadas pelos casos facilitou compreender que na perspectiva da clínica psicológica as vivências religiosas e espirituais precisam ser compreendidas do ponto de vista da configuração pessoal, valor e importância com que se apresentam individualmente, de forma livre dos estereótipos ligados às religiões em geral ou a alguma denominação específica e independentemente da posição do profissional. Conhecendo a história do paciente é possível saber se o seu modo de viver a religião e a espiritualidade desempenha uma função patologizante ou colabora para a sua saúde mental. Na busca de encontrar a melhor forma de tratar os casos apresentados, os participantes discutiram o limite da atuação do psicólogo e as diferenças entre um atendimento espiritual e um atendimento psicológico. Essa discussão mostrou-se rica e ensejou discutir o objetivo do atendimento psicológico frente 229 à inclusão da espiritualidade e da religião: o de não discutir as religiões ou os movimentos espirituais, mas compreender a pessoa no seu relacionamento com as diferentes formas de espiritualidade e de religião que lhe foram apresentadas em seu trajeto de vida. O workshop levou os alunos a entenderem que é possível encontrar espaços acolhedores e apropriados para articular crenças, ideologias, práticas e conhecimentos teóricos de modo a constituir um modo próprio e adequado de agir profissionalmente. Abriu questões, possibilitou ampliar pontos de vista sobre o assunto, mostrou a complexidade do tema e a diversidade com que se apresenta a possibilidade de estudo e de diálogo, e a contribuição de trabalhos e pesquisas desenvolvidos na área para o bom atendimento clínico. 230 Referências ALETTI, M. Arte, Cultura e Religião: rabiscos winnicottianos. In: Irene Gaeta Arcuri e Marilia Ancona Lopez (org) Temas em Psicologia da Religião. São Paulo: Vetor, 2007 (p 13-58) ANCONA-LOPEZ, M. Psicologia e Espiritualidade. Workshop. 21° Encontro de Serviços-Escola de Psicologia do Estado de São Paulo, 18 a 21 de setembro de 2013, Universidade Paulista – UNIP, Campinas, SP. CESAR, C.F. Histórias de vida, opções teóricas em Psicologia: Abordagem Fenomenológica. Dissertação de Mestrado. Orientadora: Marilia Ancona Lopez, PEPG Psicologia Clínica, PUC-SP, 2007 COLIATH, A.A.M. Escolha do terapeuta associada à denominação religiosa. Dissertação de Mestrado. Orientadora: Marilia Ancona-Lopez. 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Sobre a autora Marilia Ancona-Lopez: possui graduação em Psicologia – Bacharelado, Licenciatura e Formação pela Universidade de São Paulo (1964), mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1981) e doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1987). Atualmente é assistente doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase na Psicologia Fenomenológica, aplicada ao Diagnóstico Psicológico e à área da Psicologia da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: práticas clínicas, psicologia e religião, psicodiagnóstico e psicologia fenomenológica e educação superior. Vice-reitora de Graduação da Universidade Paulista – UNIP. E-mail: [email protected] 231 CIÊNCIA E RELIGIÃO: O ESTUDANTE DE PSICOLOGIA DIANTE DO FENÔMENO RELIGIOSO Eliane de Albuquerque Drullis José Vicente Angelo da Rocha Rosa Maria Rodrigues de Oliveira Maria da Piedade R. de Araújo Melo (Orientadora) Resumo O presente trabalho de conclusão de curso teve por objetivo compreender a relação entre a religiosidade e formação acadêmica em estudantes ingressantes e concluintes do curso de graduação em Psicologia na cidade de Campinas. A pesquisa valeu-se do método qualitativo e foram realizadas seis entrevistas semiestruturadas, sendo três para alunos ingressantes e três concluintes, compostas por dez questões disparadoras, as quais foram transcritas e passaram por análise de conteúdo. Identificamos seis categorias temáticas: a religiosidade no histórico de vivências dos participantes; a influência da religiosidade na escolha pela psicologia; a interface entre a psicologia e a religião; a interferência do curso de psicologia na religiosidade dos estudantes; a religiosidade e a vida acadêmica; a religiosidade e a prática profissional. Verificou-se que os estudantes apresentam uma tendência a separar Psicologia, religiosidade e religiões. De maneira geral, reconheceram que é necessário estudar o tema durante a formação acadêmica no curso de graduação. Quanto à prática profissional, observou-se a importância do respeito e o direito à liberdade religiosa de todo e qualquer cidadão, bem como a necessidade de mais estudo e produção de conhecimento sobre a contribuição da religião na constituição da subjetividade humana. Palavras-chave: Psicologia da Religião; Religiosidade; Formação acadêmica e prática profissional. 232 Abstract This essay aims to understand the relationship between religiosity and academic background in beginners and former students of Psychology in the city of Campinas. The research was qualitative and they were held six semistructured interviews, being three for beginners and three for former students, composed by 10 general questions, which were transcribed and submitted to content analysis. It was found that the students, in general, showed a tendency to separate Psychology, religiosity and religions, recognizing the non-existence and the need of academic background in the graduation course. As to the professional practice, the importance of respect and the right of religious freedom of every citizen were observed, as well as the need of knowledge about religions as part of subjectivity. Keywords: Psychology of Religion; religiosity; academic background and professional practice. Introdução A necessidade de estudos sobre este tema surge em função do grande interesse da população universitária e do público em geral. Segundo Paiva (2009) estudantes de Psicologia e de outras áreas têm procurado a disciplina Psicologia da Religião na busca de solução de problemas pessoais, bem como de outros resultantes do encontro dessas duas áreas do conhecimento humano: ciência e religião. Tem merecido a atenção dos pesquisadores temas como a posição do psicólogo clínico frente à religião dos pacientes (Ancona-Lopez, 2004, 2005) possibilitando a este, dentro do caráter laico da Psicologia, uma abertura à 233 opção religiosa dos pacientes e reconhecimento da necessidade de um posicionamento deste profissional em relação a esta matéria (PAIVA, 2009). Dentre os estudiosos que se propõem a investigar o fenômeno religioso, há aqueles que defendem que o movimento de busca de sentido é, em si mesmo, religioso e próprio da condição humana, enquanto que para outros, a religiosidade é entendida como expressão social e cultural. Diante deste amplo campo de saberes, que fazem contornos com a Filosofia, a Psicologia e a Arte é necessário esclarecer e especificar as bases conceituais sobre as quais se apoiou a presente pesquisa. Ao refletirmos sobre a questão da diversidade conceitual, temos que a experiência do sagrado acompanha o homem em toda a sua trajetória, tendo como lugar de manifestação o próprio homem desde a caverna neolítica até a pós-modernidade; ainda que sua finalidade seja transcendente, trata-se de uma experiência própria do ser do homem em seu horizonte histórico (RIBEIRO, 2009). Assim, tem-se alguma ideia do sagrado a partir de uma diversidade semântica. Mardones (1996, p. 13) comenta que “a história da reflexão sobre o sagrado mistura-se inevitavelmente com os esforços a favor do seu esclarecimento.” Mardones (1996) apresenta-nos três grandes correntes empenhadas no esclarecimento do sagrado e em que consiste a experiência religiosa: a sociológica, a fenomenológica e a hermenêutica. A primeira é do sociólogo francês Durkheim, que encontra a origem do sagrado na sociedade, como uma categoria fundamental da consciência coletiva que foi originada na sociedade e não em uma realidade independente, transcendente e sobrenatural, sendo o fenômeno religioso reduzido às suas dimensões sociais e culturais (MARDONES, 1996). A segunda corrente provém de uma psicologia fenomenológica da religião, exemplificada em Otto onde o sagrado é um poder que se situa para além do âmbito humano, no sentido de que ele não é produzido pelo indivíduo, mas experimentado pelo homem, seja pela via do fascínio ou do temor. (MARDONES, 1996). A corrente hermenêutica procura integrar e articular as análises de várias ciências que estudam o fenômeno religioso. Para Eliade, o sagrado é 234 uma realidade absoluta transcendente ao mundo, mas manifestada nele, e neste sentido o homem é religioso e o meio de contato entre ele e o sagrado dá-se por meio do símbolo, mediador entre o eterno e o temporal. “Os símbolos revelam velando e velam revelando.” Pensamento simbólico que se distingue do científico, quando o simbólico implica e o científico explica. (MARDONES, 1996, p. 23). Assim, verificamos que o sagrado é central para a experiência religiosa em todas as correntes, manifestando-se por hierofanias no mundo profano sendo o símbolo a sua linguagem. A presente pesquisa não teve como objetivo propor uma resolução a essa diversidade semântica, nem mesmo construir conceitos novos, mas reconhece-se que ela dá-se em meio e a partir dessa diversidade, e uma vez que toda pesquisa científica prescinde de amparo teórico torna-se necessária a escolha de conceitos sobre o tema escolhido, ainda que esta escolha pareça a priori arbitrária. O conceito religião não escapa da diversidade semântica do campo religioso, possuindo grande amplitude, podendo ser entendido como um conjunto de crenças, dogmas, filosofias, costumes, práticas e organizações sociais. Em termos gerais a religião é uma forma de relação entre o homem e o Sagrado que se desdobra de vários modos: dogmas, crenças, valores, práticas e posturas em relação do homem com o Sagrado e com outros homens. Dentro da Filosofia da Religião, Abbagnano oferece-nos uma definição para religião como sendo a "crença numa garantia sobrenatural oferecida ao homem para sua salvação; e as técnicas orientadas para obter e conservar esta garantia" (ABBAGNANO, 1982, p. 813). Para Feuerbach (apud CHAUÍ, 1980, p. 5 ), “a religião é a forma suprema da alienação humana, na medida em que ela é a projeção da essência humana num Ser superior, estranho e separado dos homens”. Ao conceito de religião, acrescentam-se as ideias de crenças e práticas direcionadas para além do humano, garantia sobrenatural, forma suprema de alienação; saída ou escape para o desespero existencial, gestão do sagrado, sagrado selvagem e dominado; sistemas de compensadores e suposições 235 sobrenaturais (ERICKSON, 1991; ABBAGNANO, 1982; FEUERBACH apud CHAUÍ, 1980; CHAMPLIN & BENTES, 1997; MENDONÇA, 2004; STARK, 2008). Lalande (1999) apresenta a religião sob dois aspectos: instituição social que, como tal, cumpre ritos regulares pautados pela crença em um valor absoluto e como um sistema individual de crenças e sentimentos. Verificamos neste autor uma interação entre os aspectos sociais e individuais, objetivos e subjetivos da religião. Os aspectos individual e subjetivo da religião são hoje compreendidos como religiosidade ou espiritualidade. Outros dois aspectos importantes a serem considerados dizem respeito à pluralidade religiosa, que expressa a ideia de que existem muitas religiões, enquanto que o pluralismo religioso não abarca apenas a ideia desta diversidade, mas também atribui valor e norma para o diálogo entre elas (STOTT, 1997). O pluralismo religioso parece enunciar como faz o ditado popular, que todos os caminhos levam a Roma, ou seja, todos os caminhos levam a Deus. Isto para alguns autores oferece risco que poderia tornar as religiões expressões inadequadas da verdade e da fé, banalizaria a fé religiosa, nivelaria mediocremente todas as religiões, desrespeitaria suas diferenças, e por fim invalidaria todas as religiões, incluindo o Cristianismo (FELLER, 2005; STOTT, 1997; PIKAZA, 2008). O cenário do campo religioso atual encontra-se caracterizado por uma desregulação institucional (RIBEIRO, 2009). Antes disso, o Estado brasileiro viveu sob o domínio de uma religião oficial, o Catolicismo, o que gerou perseguições arbitrárias a diversas formas de expressão e adesão religiosa oriundas de raízes africanas, indígenas e europeias. A partir da República o país tornou-se oficialmente laico e com a Constituição de 1988, isto foi legitimado pela população brasielira (VERONA, 2013). Faz parte do compromisso social da Psicologia regular-se pelos princípios constitucionalmente assegurados aos cidadãos brasileiros que garantem a pluralidade das denominações religiosas e o direito à liberdade de crença, bem como o direito de declararem-se não adeptos a qualquer religião, 236 ressaltando-se a laicidade da Psicologia na busca do diálogo entre religião, religiosidade, espiritualidade e outros saberes. Ao focarmos no campo da Psicologia da Religião, encontramos uma diversidade semântica e ideológica envolvendo os termos espiritualidade, religiosidade e religião. O termo espiritualidade tem origem no latim eclesiástico, derivando do adjetivo espiritual, “espiritualidade é a vida sob a moção do Espírito Santo”. Em um segundo momento, já no Iluminismo, passou “a designar o racional e a vida guiada pela razão”, ou seja, a vida guiada pelo espírito humano. (PAIVA, 2011, p. 15). A Psicologia Humanista concedeu um terceiro sentido que denota “autorrealização” e o “desenvolvimento do potencial humano,” (RICAN, 2003 apud PAIVA, 2011, p. 16) passando a ser compreendida como desvinculada da religião, podendo-se falar em espiritualidade ateia, entendida por criatividade, experiência pessoal, participação em grupos e celebrações espontâneas (SOLOMON, 2003/2002 apud PAIVA, 2011). A religião, por sua vez, é entendida pela instituição, dogmas, ritos e a comunidade, enquanto que a religiosidade define-se por ações do indivíduo frente à religião, como atitudes de obediência, participação, aceitação e comportamento moral. Amatuzzi propôs um quadro de conceitos básicos sobre o fenômeno religioso denominado “Esboço de teoria do desenvolvimento humano” (AMATUZZI, 2001), delineando temas como: senso religioso ou religiosidade, forma, campo religioso, vivência religiosa, experiência religiosa, fé humana, estado da fé, fé religiosa, adesão religiosa, sistema religioso ou religião e desenvolvimento religioso. Um dos eixos teóricos subjacentes a sua obra é que o religioso é algo próprio do humano, aparecendo naturalmente em seu desenvolvimento; podendo ser um facilitador ou bloqueador deste (AMATUZZI, 2001). Ao nosso grupo de pesquisa impôs-se a árdua tarefa de eleger o conceito e seu representante semântico a ser adotado nesta pesquisa em meio à diversidade e maleabilidade semântica do campo religioso, sob riscos e objeções, uma vez que toda pesquisa científica prescinde de amparo teórico. 237 Assim, decidiu-se adotar o conceito de religiosidade e outros conceitos básicos propostos por Amatuzzi (2001), haja vista que se pretende realizar uma descrição fenomenológica da experiência religiosa, bem como, que esse mapa conceitual oferece um olhar desenvolvimental relevante para a compreensão dos dados, fornecendo um escopo teórico suficiente para garantir a realização do presente estudo. O fenômeno religioso ao longo da história Segundo Pessotti (1994 apud SILVA; ZANELLO, 2010), tanto a história da loucura como a história da humanidade recebeu diferentes definições e causas variando segundo o seu contexto. Assim o autor faz uma analogia entre os conceitos de religião e loucura. Na Grécia antiga, por exemplo, o homem era visto como passivo e vítima das atitudes do deus Zeus, o qual determinava a quem dar ou tirar a razão. Em seguida, o homem é visto como corresponsável, assim suas atitudes irritaram os deuses e, portanto foi castigado. Na Idade Média, aparece a teoria Demonista, onde tanto as almas como os corpos dos loucos são visto como possuidores pelo Demônio. A partir de então, a Igreja começa a defender a prática ortodoxa do exorcismo. Enfoques religiosos x enfoques psicológicos Segundo Cerqueira (2007 apud SILVA; ZANELLO, 2010), a religião opera como base social sendo um dos caminhos terapêuticos percorrido pelo usuário de serviços da saúde mental. Dalgalarrondo (2006 apud SILVA; ZANELLO, 2010), endossa dizendo que as pessoas submergidas em alguma atividade religiosa evidenciam um estado psicológico mais adaptado e com menor reincidência. Conforme Carvalho (2008 apud SILVA; ZANELLO, 2010), a experiência religiosa do ser humano resignifica o sentido da vida provendo alívio em suas dores e alimentando a sua fé, desta forma colocando-o em comunhão com 238 Deus. Para esse autor essa aproximação é de suma importância para o processo de reintegração do indivíduo à sociedade. Para Boff (2002 apud MOTTA; ROCHA JUNIOR, 2011), a cultura ocidental originou o afastamento do corpo e da alma, por um lado a tradição materialista, concreta, corpo, razão e por outro lado a tradição espiritualista, focada no espírito e no subjetivo. Para esse autor a religião é sólida, algo que pode ser exteriorizado e possível de ser vivenciado com o Sagrado. Jung (1978 apud MOTTA; ROCHA JUNIOR, 2011) vê a função da religião como fato social, histórico e um procedimento humano e a psicologia, ao tomar ciência disso, não pode desprezar a sua importância. Frankl (2009 apud MOTTA; ROCHA JUNIOR, 2011) destaca a importância da psicoterapia e sua autonomia na ciência, cujo objetivo é a busca da cura da alma, enquanto a religião baseia-se na teologia e busca a salvação da alma. Este autor concebe o homem como um ser espiritual existencial. Tomando por base a percepção da Gestalt o sentido da vida seria a figura e o fundo seria a realidade. Não há como receitar um significado da vida para um paciente, mas há como incentivá-lo a ampliar construtivamente um sentido em cada situação da vida. Motta e Rocha Junior (2011) enfatizam que a ciência trabalha com verdades categóricas, absolutas e que as religiões podem ser percebidas através de dogmas, força espiritual almejando promover a fé, religiosidade e espiritualidade ao ser humano. Conclui dizendo que a vitalidade do homem pode ser compreendida como um aspecto biológico, os desejos como aspectos psíquicos, a comunicação interpessoal como aspecto social e a fé como aspecto espiritual. A alma assim como a espiritualidade deixa de ser um tabu para a ciência dada a sua imaterialidade; a importância delas para o ser humano é que proporcionam ao homem ser o protagonista de sua história, deixando o papel de vítima e ampliando o sentido de sua vida. 239 Freud e o fenômeno religioso Freud e seu percurso de construção da Psicanálise, elaborada a partir de sua prática clínica, além de propor a teoria da constituição do sujeito do inconsciente, terceira ferida narcísica, também se dedicou, em sua obra sociológica, a estudar a relação do sujeito com os objetos do mundo externo, ou seja, como ele relacionava-se no campo social, incluindo as práticas religiosas. Alguns pensadores da segunda metade do século XIX, dentre eles Freud, acreditavam que com o avanço das ciências, da filosofia e da tecnologia, a religiosidade iria retrair e a humanidade seria cada vez menos religiosa. O século XX não presenciou esta retração da religiosidade, muito pelo contrário, e hoje nós temos um mundo tão ou mais religioso do que no século XIX, na época em que eles viveram. Em Freud, encontramos dois discursos utilizados na interpretação do fenômeno religioso: o iluminista e o analítico. O discurso iluminista apresenta como paradigma epistemológico para a construção do saber científico, a ideologia cientificista, segundo o modelo das Ciências da Natureza [Naturwissenschaften]. Este aparece no livro “O Futuro de uma Ilusão” (1927/1976a) e na última das “Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise”, intitulada “Sobre a Questão da Weltanschauung” (1933/1976b). “Seu objetivo principal foi criticar a Weltanschauung religiosa16 como ‘a mais séria inimiga da Ciência’” (FREUD, 1933/1976b apud MACIEL; ROCHA, 2008, p. 731). O discurso analítico foi influenciado por sua visão de homem e pela sua compreensão psicanalítica do fenômeno religioso, buscando interpretar as motivações psíquicas da experiência religiosa e compreender a psicogênese do fenômeno religioso. Freud vai alternando em sua obra estes diferentes discursos, ora se apresentando de forma dogmática (discurso cientificista), ora cheio de lacunas e interrogações. Esta ambivalência marca sua posição diante do fenômeno religioso: enquanto pensador iluminista Freud posicionou-se de maneira 16 Weltanschauung – ideologia, visão de mundo, cosmovisão, mundividência. 240 descrente frente aos valores religiosos, mas o interesse pelo estudo da religião sempre esteve presente em sua obra (MACIEL; ROCHA, 2008). Os dois discursos de Freud, o cientificista e o analítico, mostram duas maneiras distintas de como ele aborda o estudo do fenômeno religioso. Enquanto que o cientista demonstra que a religião é inimiga da ciência, seu lado analítico rende-se ao mistério da fé, compreendendo a religião como uma busca de sentido. Este pensamento dialético traduz a posição deste ícone diante do conhecimento, sempre pronto a questionar e a reformular suas teorias. Em “O Futuro de uma ilusão”, publicado aos 70 anos, ciente de sua doença, Freud declara-se totalmente contrário à religião e, usando o artifício literário de um suposto crítico com quem ele dialoga, interroga-se a si próprio ao longo da obra. Para Freud, todas as produções humanas, incluindo a suposta verdade das ideias religiosas devem passar pelo crivo do saber científico, onde impera a razão e, consequentemente, por não serem comprovados cientificamente, os ideais religiosos são desacreditados. (MACIEL; ROCHA, 2008). Para o teólogo Paul Johson “no íntimo de todo homem há um crente. Nem todos creem nas mesmas coisas, mas todos acreditam em algo.” (196 , p. 186 apud MACIEL; ROCHA, 2008, p. 737). Freud transfere sua crença para o Deus Logos, admitindo a possibilidade de a ciência vir a ser uma ilusão, o que não traria maiores danos a seus adeptos; o que não ocorreria com a religião, fato este que seria insuportável para os fiéis. Na XXXV Conferência “A questão de uma Weltanschauung,” Freud assume novamente o discurso cientificista definindo o termo que em alemão significa “visão de mundo” como uma construção intelectual capaz de solucionar todos os problemas de nossa existência, não deixando nenhuma pergunta sem resposta. Acrescenta que, como ciência especializada, a Psicanálise não pode construir por si só uma Weltanschauung e que aceita a Weltanschauung científica. Como a ciência não pode explicar os enigmas do universo, consolar o homem diante do sofrimento ou controlar suas relações, benefícios prometidos pela religião, Freud conclui que a humanidade amadureceria ao desfazer-se das ilusões religiosas. A Weltanschauung 241 religiosa, para Freud, seria consequentemente substituída pela visão científica. (MACIEL; ROCHA, 2008). Quanto ao discurso analítico de Freud, temos que dentre os fenômenos humanos investigados por Freud, a religião recebeu lugar de destaque e, ao abordá-la à luz da teoria psicanalítica, Freud o faz de maneira diferente daquela do discurso cientificista, não ultrapassando os limites do psiquismo humano, ou seja, compreendendo a experiência religiosa como uma experiência psicológica. (MACIEL; ROCHA, 2008). A metapsicologia freudiana vê o homem como um ser constituído pelas estruturas do psiquismo e do corpo, desconsiderando a dimensão transcendente do espírito, ou seja, suas contribuições estão restritas ao nível da realidade psíquica. Dessa forma, seu discurso analítico é usado para mostrar como a Psicanálise pode contribuir para interpretar o sentido inconsciente dos rituais religiosos, esclarecer a natureza das crenças, bem como a origem do fenômeno religioso. (MACIEL; ROCHA, 2008). Quanto às origens do sentimento religioso, Maciel e Rocha (2008) citam que em “Totem e Tabu” (1913/1976e) Freud busca elucidar a psicogênese do fenômeno religioso das religiões primitivas e da monoteísta judaica e cristã, relacionando o complexo de Édipo à origem da religião e da moralidade e ao sentimento de culpa. Segundo uma concepção evolucionista, Freud demonstra que as manifestações dos povos primitivos “permanecem no cerne do acontecer humano, em constante transformação.” (MACIEL; ROCHA, 2008, p. 743). Método Os participantes da pesquisa foram 6 alunos, sendo 3 ingressantes e 3 concluintes do curso de graduação em Psicologia de universidades da cidade de Campinas, tendo como critério para composição da amostra a não vinculação a uma universidade específica, mas ao fato de serem alunos ingressantes e concluintes do curso de Psicologia, que concordaram espontaneamente em conceder a entrevista. 242 Como critério de exclusão da amostra estabeleceu-se que os participantes não poderiam pertencer à mesma universidade dos pesquisadores uma vez que, conforme Regimento Interno, não é permitido que alunos do curso sejam participantes de pesquisas de seus próprios colegas. Não se considerou como critério eletivo para os participantes da pesquisa a admissão prévia de que eles declarassem-se pertencentes a alguma religião. Todos os cuidados éticos foram tomados e o risco da presente pesquisa foi considerado mínimo, assegurando aos sujeitos garantia de sigilo, anonimato e interrupção de sua participação sem qualquer penalização ou prejuízo, conforme TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Mediante adesão livre e espontânea dos participantes, as entrevistas foram agendadas e realizadas individualmente tendo sido gravadas e transcritas. Aos participantes da pesquisa foi possibilitada a leitura do roteiro da entrevista, ficando ao seu critério fazê-lo antes da gravação da mesma. Dentre os participantes da pesquisa, apenas um optou por ler o reteiro antes de iniciarmos a entrevista. Após a coleta dos dados, as entrevistas foram transcritas segundo alguns critérios e parâmetros estabelecidos pela equipe de pesquisadores. Convencionou-se que as transcrições fossem feitas respeitando-se, dentro do possível, as características do registro oral, privilegiando-se a ortografia padrão por não se tratar de uma transcrição fonética. Para tal, foi elaborada uma tabela para padronização de nuances da oralidade tais como: entonação, silabação, falas simultâneas, pausas, interrupções, alongamento de vogais ou consoantes e comentários do transcritor. Os trechos das entrevistas citados no presente relatório receberam tratamento diferenciado das transcrições, de forma a adequá-los, quando necessário, à ortografia padrão, sem prejuízo semântico. Aos participantes da pesquisa foram atribuídas siglas alfanuméricas de acordo com a ordem de realização das entrevistas, com a escolha da letra “I” para Ingressante e “C” para Concluinte, resultando desta forma nas denominações I.1, I.2, I.3, C.1, C.2 e C.3. Elegeu-se o método fenomenológico como forma de responder a este desafio metodológico possibilitando uma análise sobre a relação entre 243 Psicologia e Religião em dois momentos do curso de formação do profissional psicólogo, sendo o trabalho de análise e interpretação dos dados, realizado por meio da leitura e releitura dos relatos, detendo-se em cada trecho de modo a abrir-se para aquela vivência, esvaziando-se diante do conhecimento, buscando estar em sintonia para envolver-se pela tarefa, deixando-se atingir por ela. Buscar possíveis relações, explorar os termos em suas peculiaridades, agrupá-los e organizá-los para que se tornasse possível captar intuitivamente as possíveis maneiras para compreensão do fenômeno. Desse modo, os fenômenos devem ser estudados da forma como estes manifestam-se à consciência, segundo uma descrição intuitiva, ou seja, é pelo caminho da intuição que se pode atingir a essência das coisas e, portanto, alcançar uma objetividade com rigor científico (ANCONA-LOPEZ, 2002). Ao iniciarmos o tratamento dos dados, cotejamos as perguntas da entrevista e os objetivos específicos e, a partir dessa equação, elegemos seis temas para abarcar o conteúdo que foi precipitado, a partir das transcrições. Identificamos na amostra os posicionamentos individuais de cada participante e, dentro do possível apontamos semelhanças e dissemelhanças, evitando enquandrar ou encaixotar os fatos e fenômenos em receptáculos diminutos. Resultados e discussão Diante das falas dos participantes da pesquisa, buscamos compreender o fenômeno religioso tal qual ele foi desvelado nas entrevistas. A amostra foi composta por cinco mulheres e um homem, com faixa etária variando de 18 a 22 anos. Três alunos ingressantes estavam cursando o segundo semestre; três concluintes o décimo semestre, e nenhum possuía outra graduação. Três participantes declararam-se católicos, um evangélico, um cristão e um sem religião. A partir do conteúdo precipitado pelas entrevistas, optamos por subdividir esta análise em seis grandes temas, a saber: a religiosidade no histórico de vivências dos participantes; a influência da religiosidade na escolha pela psicologia; a interface entre a psicologia e a religião; a interferência do 244 curso de psicologia na religiosidade dos estudantes; a religiosidade e a vida acadêmica; a religiosidade e a prática profissional. A religiosidade no histórico de vivências dos participantes Levantando dados sobre a religiosidade a partir dos estudantes de psicologia, podemos perceber a influência da famíllia na escolha religiosa dos entrevistados, que se deu mesmo quando uma das famílias apresentou com uma religiosidade nominal, ou seja, o declarar-se pertencente a uma religião, mas não praticá-la. Sanchez & Nappo (2012, p.54) na pesquisa que empreenderam com adolescentes afirmam que “a religiosidade parece ocupar importante papel na estruturação da família”. Apesar da influência da família parecer-se como a gravidade do sol que mantém todos os planetas girando em sua órbita, vimos que alguns dos entrevistados laçaram-se, como cometas, para órbitas mais elípticas tomando cursos diferentes dos de suas famílias. A respeito da frequência com que os entrevistados participam dos “rituais” de sua religião, notamos que a manutenção da frequência naqueles que participam dos rituais entre uma vez por semana até uma vez por mês, e a diminuição da frequência naqueles que iam mais de uma vez por semana. Como também destacamos aqueles que no decorrer do curso deixaram de frequentar e voltaram a frequentar os rituais. Destacamos aqueles que declararam aumentar a frequência durante situações de crises, sejam elas pessoais ou familiares. O histórico de vivências dos entrevistados também nos permitiu considerar sobre os motivos para mudar, permanecer, deixar ou retornar à religião. No discurso dos ingressantes, podemos ver desvelado como motivações para frequentar os rituais: o sentir-se bem, a presença do Sagrado como fonte inspiradora e a sensação dessa Presença. Nas falas dos concluintes C.1 e C.3 notamos dinâmicas divergentes, deste modo, enquanto C.1 durante o curso de Psicologia tomou uma rota de 245 afastamento da religião, C.3 realizou um movimento de reaproximação. O movimento de afastamento de C.1 justifica-se em sua fala pela busca de explicação de algo não refletido anteriormente, enquanto C.3 narra uma busca por sentido. Ambos estão em busca de uma explicação. A concluinte C.2 afirmou ter escolhido manter-se na religião adotada por sua familia, o catolicismo; contudo, informou que o curso de psicologia possibilitou a participação em “cultos” de outras religiões, de tal maneira a identificar-se com essa outra religião: “sou meio macumbeirinha”, embora, nesse movimento dentro da pluralidade de seu campo religioso, ela não reconheça que tenha mudado de religião. A amostra relevou pontos de admiração em relação à religião e a religiosidade: as coisas boas, a receptividade da comunidade religiosa, a união, o poder de persuasão, a fé, o dar sentido. Assim, a admiração narrada pela amostra abarcou aspectos da religião ligados à instituição, à comunidade e subjetividade das pessoas. A espiritualidade pode proporcionar ao homem ser o protagonista de sua história, deixando o papel de vítima e ampliando o sentido de sua vida (PAIVA, 2011), onde cada um a seu modo desvela a sua maneira de apropriar-se da fé, enquanto aquilo que dá sentido à vida, a sua forma de adesão religiosa e o seu lidar com o sistema religioso a que pertence. (AMATUZZI, 2001). As críticas à religião permaneceram voltadas para os aspectos políticosociais e financeiros da instituição religiosa, da convivência entre seus membros, da obediência aos dogmas, regras e normas de conduta moral; bem como do fundamentalismo e intolerância religiosa. Identificamos, em relação às críticas o que se expressa no pensamento de Paiva (2011), que vem a entender a religião como uma instituição autoritária que se utiliza dos dogmas, ritos litúrgicos, ética dos mandamentos, cujos fiéis devem apropriar-se da conduta, tanto da culpa, como da moral, rendendo obediência, aceitação e participação coletiva. (PAIVA, 2011). Outros elementos que consideramos no discurso dos entrevistados foram a pluralidade religiosa (existência de muitas religiões) e o pluralismo religioso (iguala e novela as religiões), nos quais se notou que todos os entrevistados têm em seu campo religioso uma experiência de pluralidade. 246 Todavia, em dois entrevistados percebeu-se em seus discursos, o efeito banalizador do pluralismo religioso: quando I.2 não considera o catolicismo como vertente do cristianismo: “fui na umbanda [...] na católica eu ia quando era pequena com minha avó [...] mas o que ainda [...] tem um negócio, é a cristã mesmo, que me puxa”; bem como, quando C.2 elenca o espiritismo como parte do cristianismo: “Eu acredito nisso, eu sinto que eu quero ser do cristianismo, até eu morrer... independente se eu vou ser católica... se eu vou ser espírita...”. A influência da religiosidade na escolha pela psicologia Na amostra, vimos que a maioria dos entrevistados declarou não perceber a influência da religiosidade na escolha curso de psicologia. Apenas a entrevistada C.1, disse que houve peso da religião na escolha do curso, sendo a religião percebida como instituição ou comunidade, composta por indivíduos unidos por objetivos e crenças comuns (LALANDE, 1999). Os entrevistados elecaram outros motivos que os influenciaram ou de alguma forma contribuíram para a escolha do curso de Psicoligia, como: a) a presença de membros da família formados em Psicologia; b) a ajuda de Deus: a participante I.2 parece atribuir a Deus a possibilidade de cursar Psicologia, mas, não reconhece a influência da religião sobre isso, nesse sentido, em seu discurso separa o Sagrado, da Religião, ou seja, separa Deus, da Igreja; separa religiosidade, da religião (PAIVA, 2011); c) o desejo de ajudar as pessoas; d) a presença de familiares sofrendo com problemas de saúde mental; d) a influência das amizades; e) a psicologia como possível alternativa à religião. C.3: “Olha aí, a Psicologia como religião né.” A fala de C.3 nos remete ao pensamento de Carniel (2013) quando aborda a associação entre saúde mental e espiritualidade e comenta que com o enfraquecimento do cristianismo no Ocidente, a Psicologia, enquanto ciência, surgiu para cuidar do que era do domínio da religião. Na amostra encontramos também, que a influência da religiosidade pode permear todo o curso. A entrevistada C.2 informou que embora a religião não 247 tenha interferido na escolha do curso, reconheceu seu peso na escolha da abordagem: “[...] quando eu tive que decidir entre humanista e psicanálise que eu adoro, eu fui para humanista justamente por causa disso, por causa que Freud não aceita Deus... ele condena Deus, e que Deus não existe”. Todavia, seu discurso parece não ter considerado a ambivalência de Freud diante do fenômeno religioso, ou seja, enquanto pensador iluminista, negou a existência de Deus, porém, sua obra foi marcada por suas reflexões sobre as origens do sentimento religioso (MACIEL; ROCHA, 2008). A interface entre a psicologia e a religião A interface entre psicologia e religião apresentou-se como campo um controverso entre os participantes da pesquisa. Uma vez que ambos os campos requerem habilidade para lidar com o ser humano, foi consenso a afinidade entre eles. Todavia, os particpantes negaram a influência da religião na psicologia e vice versa, pois, segundo eles, a psicologia se vê às voltas com todos os tipos de crenças e até mesmo a ausência destas, sendo portanto, neste sentido, considerados campos distintos de conhecimentos. Nas palavras de I.1: “a relação é mesmo com o ser humano, essa é a relação que elas têm uma com a outra. As duas ajudam, as duas mostram opções certas para seguir, eu acho que... é a relação que eu vejo.” Segundo I.3, a Psicologia não interfere na religiosidade das pessoas e o “bom entrosamento entre as duas” acontecerá “se você não levar nem para um lado nem para outro”; acrescenta: “Quando eu estiver trabalhando, é a psicologia, quando eu estiver na minha religião, é a minha religião”. Para I.3, não há relação direta entre a psicologia e a religião e sim uma relação indireta quando esses saberes se encontram no indivíduo, cabendo a ele diferenciá-los e separá-los, para vivenciá-los cada qual em seu momento, sendo o “eu religiosa e eu psicóloga”. Encontramos no discurso de I.3 uma cisão entre um eu religioso e um eu psicólogo, que para ela é benéfica porque evita influências ou prejuízos entre estes campos de conhecimento. Compreendemos que esta cisão ilustre o 248 pensamento positivista, enquanto neutralidade do pesquisador que se vê distante do seu objeto de estudo, no caso o homem. O que o homem sabe, sabe a partir dele mesmo, de sua visão ou de experiência do mundo, e nisso se inclui a ciência e a religião. C1 considerou que Psicologia e Religião são distintas uma da outra e não caminham juntas, pois a Psicologia trata do indivíduo, da subjetividade, de algo que é único, enquanto que a religião diz respeito a um movimento ao qual “o indivíduo se adere.” Nesse sentido, não existe para C.1 subjetividade dentro da religião, pois um pecado é igual para todos. A Psicologia, no entanto, não concebe as coisas dessa maneira e, segundo C.1, “o que você fez e o que eu fiz não vai ser a mesma coisa”. Assim, psicologia e religião não são coisas que ela entende que podem caminhar juntas, pois as considera totalmente separadas. Compreendemos que para C.1 a religião é percebida por ela apenas enquanto instituição, cujas regras e dogmas, são igualitárias, ou seja, são aplicadas a todos indistintamente, desconsiderando a subjetividade, objeto da Psicologia. Segundo a entrevistada C.2, por um lado, a psicologia e religião não convergem em nada, pois, a psicologia está bem afastada da religião, pois nas suas discussões de estudos de casos existe um questionamento, um julgamento, como exemplificou: “nós julgamos as pessoas; ela é assim... faz isso... tem determinado comportamento... por causa da sua religião.” Entretanto, por outro lado, acredita que esse tema precisaria ser mais explorado, carecendo ser estudado no curso de Psicologia. Para C.3, a Psicologia se preocupa em entender o ser humano e por isso precisa entender a religião também, mas acredita que não se deve misturar “porque ciência é ciência, religião é religião né, apesar de no começo elas estarem imbricadas”. C.3 cita Freud como judeu agnóstico que apresenta uma visão crítica da religião e Jung, como sendo mais aberto ao estudo de coisas não científicas, como a alquimia, astrologia, mitologia e religião. Para C.3, “a partir do momento que a gente, começa a entender a religião, a gente começa a entender um pouco sobre seres humanos”. Observamos em C.3 a importância atribuída para a necessidade de conhecer sobre os seres humanos, quer olhando para o comportamento de 249 uma torcida de futebol, quer buscando entendimento sobre sua religião. A importância do estudo da religião e suas implicações, conforme Paiva (2011), é o que originou sua proposição de dois campos específicos para isso, uma Psicologia da Religião e uma Psicologia da Espiritualidade, sendo a primeira voltada para a instituição e seus aspectos coletivos e a outra para o indivíduo e sua subjetividade. C.3 considera importante a liberdade religiosa e também que não se deve misturar ciência com a religião. Durante um atendimento, por exemplo, ele acredita que ele precisa ter um olhar científico e também humano “por isso que não dá pra excluir religião totalmente, porque faz parte do ser humano”. Quanto à interfarce entre psicologia e religião e a possível relação entre elas, observamos, a partir dos discursos dos entrevistados, tanto ingressantes como concluintes, uma semelhança entre os seguintes termos: “não convergem”, “são distintas”, “não se devem misturar”, “não interfere”, “saber diferenciar”, “saber separar”; “não há influência” e “campos diferentes”; o que nos leva a pensar em princípio, que a relação entre psicologia e religião é excludente, na medida em que são campos distintos de saber. Ainda, olhando outras expressoões a respeito da religião, encontramos: “não dá pra excluir religião totalmente”; “faz parte do ser humano”; “o indivíduo se adere”, “eu religiosa e eu psicóloga”, “as pessoas que se formam em psicologia também têm uma religião”, “[A Psicologia] vem para entender [...] o porquê você acredita naquela religião.” Essas expressões nos fazem refletir que a Psicologia na busca da compreensão, ainda que provisória da existência humana, por conta de seu caráter de impermanência, precisa se voltar para experiência tal qual o sujeito a vivência, mesmo que seja uma experiência espiritual ligada ou não a uma religião. A interferência do curso de psicologia na religiosidade dos estudantes Quanto à interferência do curso de psicologia na religiosidade dos estudantes observou-se que os ingressantes afirmaram não ter havido qualquer interferência até este momento do curso, diferentemente do discurso 250 dos concluintes, que desvelou certo grau de interferência do curso em sua religiosidade. Para C.1, a partir do segundo ano, com a inclusão da disciplina História da Psicologia, ela passou a se questionar e aos poucos foi se desvinvulando da igreja, deixando de participar dos rituais. C.2 disse que, ao longo do curso, a partir do estudo da psicanálise e das teorias humanistas, passou a questionar sua religião a existência de Deus e que, com o passar do tempo, disse que foi “descobrindo que Deus estava dentro de mim”. C.3 relatou que o curso nao interferiu em seus valores e sua moral porque há “um tratamento científico das questões dos seres humanos” e que seu contato com um professor do curso fez com que ele entrasse em contato com a religião. A inteferência do curso de psicologia foi notada quer seja pelo contato com a disciplina “História da Psicologia”, pela leitura de Freud e das teorias humanistas, ou pelo contato com um professor, o que aparentemente desencadeou movimentos de aproximação e distanciamento da religião, como observados em C.1 e C.3. Retomando um dos objetivos da presente pesquisa que foi o de investigar a existência da interferência do curso de Psicologia na religiosidade dos estudantes, baseados na amostra, podemos dizer que houve interferência do curso, seja reaproximando ou afastando a pessoa da religião, o que foi observado no discurso dos concluintes. A religiosidade e a vida acadêmica A relação entre o tema estudado e vida acadêmica é complexa e contraditória. Notamos muitas referências para o fato de professores e alunos intitularem-se ateus, o que parece ser considerado por eles algo relevante. Segundo C.2, 251 no segundo ano, o professor falou assim... ‘hahahaha... vocês estão dizendo graças a Deus?... fia aqui você tem que ser atéia... não pode... aqui a gente não pode... a gente é psicólogo... não pode ficar acreditando na religião’, [...] eu falei... nossa... mas, como assim? ... um professor ateu aqui dentro? Os debates ocorridos no Sistema Conselhos de Psicologia, resultaram em um documento que não apenas reconhece o compromisso social da Psicologia por pautar suas ações segundo o princípio da laicidade do Estado, mas também demonstra-se contrário a qualquer forma de discriminação e imposição de dogmas. Ademais, reconhece a importância da religião, da religiosidade e da espiritualidade na constituição de subjetividades, sendo isto um Estado de Direito (VERONA, 2013). Observamos em algumas falas dos participantes que alguns desses princípios não estão sendo colocados em prática, dentro das salas de aula, lugar de formação de novos profissionais, ou seja, notam-se formas de discriminação e também o não reconhecimento da importância da religião na constituição de subjetividades: “graças a Deus, aqui não é permitido [dizer]”; “vocês estão dizendo graças a Deus... aqui você tem que ser atéia... não pode... aqui a gente não pode... a gente é psicólogo... não pode ficar acreditando na religião”. Enquanto que o ateísmo pareceu permear abertamente o discurso de alunos e professores, ao declarar sua fé, segundo relato de C.2, uma professora o fez porque estava em local reservado, de maneira sigilosa, o que parece ferir também o princípio da laicidade, cerceando o direito de liberdade dos indivíduos Percebemos nas expressões a seguir, o quanto este tema é considerado polêmico, tanto pelos alunos quanto pelos professores: “discussões extremamente exacerbadas”, “trazer um fervor religioso para uma questão que é científica”, “eu acho que é até meio ruim você misturar as coisas, quando você mistura, pode causar mal entendidos”. 252 Segundo C.1, em uma situação de aula, ao ser questionada pelos alunos, sobre sua fé religiosa e sua abordagem, a professora desvinculou a prossional da religiosa, dizendo: eu sou a professora, ela falou o nome dela né, ou sou a fulana profissional e sou a fulana eu, então eu acredito que a religião, o que vai me fazer bem, é esse segmento eu quero que os meus filhos sigam, porque isso que eu acho que é o certo. A religiosidade e a prática profissional Quanto à religiosidade e a prática profissional, observamos que todos os participantes ressaltaram a importância do não julgamento, do respeito, da não discrimininação e da necessidade de conhecimeto sobre as religiões, com o intuito de melhor compreender a relação do cliente/paciente com a religião. No que se refere ao campo de trabalho, dois alunos concluintes consideraram que não seria possível trabalhar em uma instituição religiosa. C.3 acrescentou a necessidade de um olhar científico para fenômenos como a homoafetividade, os transgêneros e as diversidades sexuais, pois essa é a maneira como ele olha para estes fenômenos, não os considerando pecado, mas sim “uma faceta da sexualidade do ser humano, [...] perfeitamente cabível e aceitável”. C.1 mencionou o forte papel social que possui a palavra de um psicólogo, comparando-o ao padre, para a religião: “como se a palavra do psicólogo fosse algo bem né, como se fosse, pra religião, um padre”. Jung (1978 apud MOTTA; ROCHA JUNIOR, 2011) reconhece a função da religião como fato social, histórico e um procedimento humano e a psicologia não pode negligenciar este conjunto de forças. Segundo Ancona-Lopez (2004, 2005 apud PAIVA 2009) temas como a posição do psicólogo clínico frente à religião dos pacientes tem ressaltado a 253 necessidade de um posicionamento deste profissional em relação a esta matéria. Destacamos alguns exemplos de como a religião pode interferir diretamente no tratamento proposto aos pacientes, conforme relataram os concluintes, baseados em suas experiências como estagiários e como este tema aparece em situações de atendimento: C.1 mencionou que as pessoas “têm a religião como algo primordial na vida”, e portanto, se faz necessário trabalhar no “sentido de buscar outras possibilidades sem interferir no que a pessoa pensa”; C.2 disse ser “bem complicado”, como psicólogo hospitalar, atender “pessoas religiosas”, principalmente as Testemunhas de Jeová, devido a não aceitação de transfusão de sangue. O concluinte C.3 destacou a necessidade e a importância do conhecimento das religiões, em especial do cristianismo, por ser uma marca na civilização ocidental, e cuja ausência deste conhecimento, implicaria em perder “uma faceta desse ser humano”. Quantos aos alunos ingressantes, foram ressaltados a importância do respeito, da isenção de julgamento, e principalmente a necessidade de conhecimento sobre as religiões, fatores considerados fundamentais para a atuação profissional. Hipotetizamos algumas situações em que os alunos ingressantes I.1 e I.2 teriam que responder a uma demanda de seus pacientes, cujo tema versasse sobre religiões. Para I.1, ir a um centro espírita ou a uma igreja diferente da sua, a pedido de um paciente, seria algo que ela faria: “Acho que não teria problema nenhum ir. Seria mais uma experiência para mim”. Para I.2, usar um terço ou um patuá durante o atendimento, mediante solicitação do paciente/cliente, também foi algo que poderia ser atendido: “Ajudando ele a gente faz de tudo, porque eu acho que isso é o mais importante, porque é por isso que eu escolhi a psicologia, para ajudar outra pessoa”. Para a ingressante I.3 foi questionado se ela trabalharia em um ambiente institucional mantido por uma religião que não a sua. A participante I.3 respondeu que se ela fosse respeitada no tocante a sua escolha religiosa e se não lhe fossem impostas regras, como por exemplo “falar bem” da religião da instituição, não haveria problema. 254 Novamente ressaltamos que o respeito e o direito à liberdade religiosa de todo cidadão é garantido pelo Estado e tanto as ciências como as práticas profissionais devem orientar suas ações com base no princípio pétreo da laicidade do Estado, ou seja, estes princípios constitucionalmente assegurados garantem aos cidadãos brasileiros o direito de declararem-se adeptos ou não de qualquer religião. Pautar suas ações pela garantia destes direitos constitucionais não faz parte apenas de uma escolha pessoal ou para estar em obediência com o que preconiza o Conselho Federal de Psicologia, mas também estar cumprindo aquilo que prevê a Constituição Federal. Considerações finais Encontramos nos relatos dos estudantes uma tendência a separar os dois temas, ciência e religião, bem como a necessidade de se apropriar deste conhecimento, o que demanda reformas na grade curricular dos cursos de graduação em Psicologia. Nosso intuito, ao delinearmos a pesquisa, foi o de compreender este fenômeno ao longo do curso, razão pela qual, a amostra foi formada por igual número de ingressantes e concluintes. Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, o material analisado trouxe um recorte, baseado na amostra. Ressaltamos que o caráter de provisoriedade que é intrínseco à existência humana, também se faz presente nesta pesquisa. Ao considerarmos os fenômenos da religiosidade e da espiritualidade, observamos nos participantes dinâmicas divergentes no sentido de se afastar ou se reaproximar da religião. Notamos nas falas dos participantes que apenas a ciência não consegue dar conta das angústias dos seres humanos e estes vão em busca de novos sentidos para suas vidas, o que encontram na religião. Observamos movimentos diversos no campo religioso da amostra. Os ingressantes mantiveram-se na religião de origem familiar. Nos concluintes percebemos três movimentos distintos: a reaproximação da religião, o distanciamento e o pluralismo religioso. Nesses movimentos, a religião foi vista enquanto instituição, gestora da relação com o sagrado, sendo mantida a “fé” 255 nesse Sagrado pela espiritualidade, em que um participante toma a atitude de reaproximar-se da religião, revestindo sua espiritualidade da religiosiadade. Em outro concluinte, a dinamica é de afastamento, despindo sua espiritualidade da religiosidade vivida conjuntamente com sua família. Outro concluinte, ao dizer que escolheu manter-se na religião da família disse circular por outras religiões, o que indica a pluralidade de seu campo religioso e uma perspectiva pluralista em relação à religião. Outro ponto que gostaríamos de ressaltar diz respeito ao princípio da laicidade do Estado sob o qual as ações dos psicólogos deveriam ser pautadas. Levar em conta as dimensões da subjetividade humana significa ter um cuidado ético, o que não necessariamente significa abordar questões dogmáticas ou relativas às crenças. Observamos a importância atribuída para a necessidade de conhecer sobre os seres humanos e o humano, buscando entendimento sobre sua religião, importância ressaltada por alguns teóricos que chegam a propor a criação de dois campos específicos para isso, uma Psicologia da Religião e uma Psicologia da Espiritualidade, sendo a primeira voltada para a instituição e seus aspectos coletivos e a outra para o indivíduo e sua subjetividade. A respeito da admiração e crítica às religiões, observamos que os aspectos que geram admiração na religião se referem à vida comunitária e a aspectos da subjetividade da religiosidade e espiritualidade. Por sua vez, as críticas encontradas nos discurso dos participantes à religião focaram nos aspectos instituicionais da religião. Notamos a partir do material colhido e analisado a pluralidade no campo religioso dos participantes, bem como, a presença do discurso pluralista que aliena, iguala e banaliza a religiões. Quanto à interfarce entre psicologia e religião observamos nos discursos dos ingressantes e dos concluintes que estes são considerados campos distintos de saber, o que aponta para uma relação excludente. Quanto à religiosidade e a prática profissional, observamos que em todos os participantes, tanto ingressantes como concluintes, foi destacada a importância do não julgamento, do respeito, da não discrimininação e da 256 necessidade de conhecimeto sobre as religiões, com o intuito de melhor compreender a relação do cliente/paciente com a religião. Com relação ao campo de trabalho, vimos que, para alguns concluintes, não seria possível trabalhar em uma instituição religiosa em função da necessidade de um olhar científico para fenômenos como a homoafetividade, os transgêneros e as diversidades sexuais. Consideramos que são necessárias novas pesquisas, no intuito de aprofundar os estudos sobre este tema de grande relevância. Por tratar de questões ligadas à existência, consideramos que este estudo contribuiu para refletirmos sobre formação acadêmica dos estudantes de psicologia e sua relação com a religiosidade e sobre nós mesmos. Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 2ª. ed. 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Atua, também, com psicoterapia psicanalítica de crianças, adolescentes e adultos. Tem experiência no ensino superior na graduação e pósgraduação. Atualmente é coordenadora de curso, professora titular e supervisora de estágio na Universidade Paulista – UNIP/ Campinas. CV: http://lattes.cnpq.br/4573356259939080 Contato: E-mail: [email protected] 259 Parte IV O MODO DE SER PARANÓIDE NO PRIMITIVO E NO PSICÓTICO: UMA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA Wolgrand Alves Vilela Resumo Trata-se aqui de uma aproximação entre a mentalidade do primitivo e a do psicótico esquizofrênico através de algumas de suas vivências típicas. Os relatos feitos pelos europeus em seus primeiros contatos com os povos nativos da Austrália e da África registrados na obra de Levy-Brühl A Mentalidade Primitiva foi utilizada e sua análise por Roberto C. de Oliveira. A abordagem psicopatológica teve por base obras de Jaspers e K. Schneider entre outros, tendo por referência nossa experiência clínica. Concluiu-se que o humor delirante no esquizofrênico e a vivência da participação no primitivo corresponderiam a um sentimento de totalidade, que no primitivo é coletivo e tem função social, e no psicótico é vivência solitária e cindida da realidade pela radical transformação no modo de funcionar do eu, uma redescoberta daquela arcaica vivência. Palavras-chave: Mentalidade do primitivo; Esquizofrenia; Paranóide; Fenomenologia. 260 O modo de funcionamento da mentalidade primitiva O mundo é vivido de modo distinto no primitivo e no civilizado. Levyrühl o expõe em sua obra “A Mentalidade Primitiva” 14 , baseado nas descrições dos europeus em seus primeiros contatos com os povos nativos da Austrália e África, importante pelo seu registro original, anterior a qualquer influência. Algumas diferenças separam a mentalidade primitiva da nossa: sua aversão pelas operações discursivas do pensamento, sem significar incapacidade constitucional de discernimento, mas uma consequência do conjunto de seus hábitos de espírito que lhe orientam. Sua reflexão desenvolve-se nas ocupações necessárias à subsistência. O que não está ligado a isso não ocupa seu pensamento. Estas operações mentais não se separam dos objetos materiais que as motivam, cessando quando seus fins são alcançados. Não são praticadas por si mesmas. Em sua vida ocupa-se com um número tão reduzido de objetos, que seu pensamento produz ideias pouco numerosas e limitadas, resultando num conhecimento pouco extenso e ingênuo das leis da natureza, mas sua experiência mística, radicalmente distinta da científica, destaca um sentimento de totalidade somente possível na base de sua carga de elementos afetivos. Seu domínio não se limita à natureza, sentindo-se eles em contato imediato e constante com um mundo invisível, não menos real do que o outro14. Essa perspectiva cósmica da mentalidade primitiva é ordenadora de um mundo mais sentido ou vivido do que conhecido, cuja função não é desenvolver a parte cognitiva do pensamento, mas compatibilizar o homem com seu ambiente natural e humano, com vista à sua sobrevivência. “São ativos e demonstram esperteza em lidar com os temas de observação e compreensão do seu modo de viver. Sua boa memória é sempre acionada dispensando-os da reflexão. Detém-se ante a primeira impressão das coisas e não raciocina se pode evitá-lo. O que não capta imediatamente no percebido é feitiçaria ou ação mágica, sendo inútil refletir” 14 . A exclusão do pensamento abstrato e do raciocínio é um hábito na mentalidade do primitivo do seu modo 261 de funcionar. No primitivo as representações são coletivas, sendo seu mundo envolto em importante componente místico, onde elementos emocionais e motores estão nelas integrados. Uma síntese emocional antecede e organiza o mundo antes da percepção distinguir as propriedades do objeto, sendo o raciocínio afetivo mais frequente no curso da vida individual ou social. Mesmo em nossa mentalidade há uma função abstrativa e generalizadora inerente à ação e anterior a toda reflexão, mais sentida e vivida que pensada. Há, portanto um discernimento natural, primitivo e utilitário das semelhanças, orientado por aquela função, donde deriva o conceito de realidade própria vinculada à ação6. Outra questão é a da participação, para Levy-Brühl não pensada, mas vivida entre os seres e os objetos ligados em uma representação coletiva, onde objetos e seres animados e inanimados estão carregados de propriedades místicas14. Conceituando esse termo, trata-se de um dos elos maiores que unem o homem ao grupo e ao cosmos: a comunidade dos vivos que habita o universo e lhe dá sentido, sentimento que une dois seres distintos na aparência e fenomenologicamente autônomos. Mas a participação não pertence exclusivamente à mentalidade primitiva, tem também um lugar na nossa: a mentalidade primitiva é aspecto importante no contexto da mentalidade humana em geral16. As representações coletivas são concretas, gerais sem serem abstratas, servindo ao primitivo como pensamento instrumental indispensável ao seu diaa-dia. A representação habitual na mentalidade lógica implica uma dualidade numa unidade, onde o objeto cognoscível é apreendido separado do sujeito cognoscente. Na mentalidade dos primitivos o objeto é mais que representado: ela o possui e é possuída por ele numa participação física e mística, não só pensando-o, mas vivendo-o16. Com o sentimento de participação mais atenuado a representação tornase mais sensível à contradição. O elemento cognitivo vai desempenhando um papel cada vez maior quando desembaraçado dos elementos emocionais e motores envolvidos, já que na mentalidade primitiva, o que para nós é 262 contraditório, tal não lhes parece e deixa-os indiferentes. Elas são atropeladas. Tal ocorre devido a sua orientação mística, que não dá importância às contradições, físicas ou lógicas, e suas tendências pouco afeitas ao conceitual. A generalidade do conceito não é só no nível das ideias, já que na representação coletiva, que é emocional, a generalidade não é conhecida, mas sentida. A realidade mística é menos representada que sentida. Para LevyBrühl o conceito, mesmo nas sociedades mais diferenciadas é uma espécie de precipitado lógico de representações coletivas que lhe precederam, e que traz consigo um resíduo de elementos místicos16. Para o primitivo o natural e o sobrenatural são distintos, mas não separáveis. Nas sociedades onde o pensamento conceitual se desenvolveu e se impôs, os elementos intelectuais tiveram um lugar cada vez mais importante nas representações do mundo sobrenatural, mas sua categoria afetiva subsiste, não é eliminada. Corresponde a seres ao mesmo tempo materiais e espirituais, cuja influência mística tem importante papel e sobrevive na sociedade moderna. O pensamento primitivo não é exclusivo deste, mas também da mentalidade moderna, devendo-se evitar falar do caráter pré-lógico desse modo de pensar, pois a estrutura lógica do espírito é a mesma em todas as sociedades humanas conhecidas: todas elas têm uma língua, costumes e instituições. E de onde provém a expressiva indiferença às contradições mais evidentes? Para Levy-Brühl isso ocorre porque as participações coexistem num mesmo momento na consciência, sejam com os ancestrais, totens, terra, rochedos, vivos e mortos de seu clã, etc. Cada uma delas é sentida qualitativamente, não combatem entre si, nem se organizam; se justapõem. Destaca-se um elemento de generalidade, categoria do sobrenatural. Cada participação é particular, o elemento geral é de ordem afetiva, sem explicação. Na questão da causalidade para o primitivo o que conta é a causa mística, que Levy-Brühl chama causalidade mística. Os mistérios e enigmas da natureza não os intimidam, nem mesmo os convidam a um esforço intelectual. Logo reconhecem, por trás dos seres e fatos, forças e poderes invisíveis. 263 O que seria para o primitivo o indivíduo tomado em si mesmo? A questão da individualidade ou identidade pessoal e de seus limites não se detém na periferia de sua pessoa, estendendo-se além do corpo em elementos dele dissociados, mas que o simbolizam, como suas secreções e excreções, cabelos, unhas, vestimentas etc., tudo que possa representar sua individualidade16. A mentalidade primitiva possui uma linguagem em comum com a europeia, dispondo de símbolos que representam o conjunto de seres e objetos, e embora seu pensamento não se afaste das representações concretas, o uso de signos de linguagem coloca-os num outro plano. Nela os conceitos confundem-se com as palavras, não são simples roupagem do conceito. Entre nós a relação entre as palavras e os conceitos é arbitrária, no primitivo elas participam daquilo que representam. Pronunciar uma palavra não só desperta a ideia no entendimento, mas torna-a presente no sentido pleno do termo. A participação entre o símbolo e o ser que ele simboliza produz seu efeito, mesmo à distância. Seu sentido revela-se na afetividade graças aos elementos místicos ou sobrenaturais que a coisa comporta16. O modo de funcionamento da mentalidade primitiva: importância no entendimento do funcionamento da mentalidade do psicótico esquizofrênico Alguns aspectos no modo de funcionar da mentalidade primitiva são importantes na compreensão do modo de ser da mentalidade do psicótico esquizofrênico. Por exemplo, quando se fala da aversão às operações discursivas do pensamento no primitivo, observamos que esse psicótico faz um uso limitado dessas operações em certas vivências. Ele gravita e converge geralmente numa autorreferência que lhe restringe a liberdade de utilizá-la. E quando se observa uma elaboração delirante rica em seu conteúdo, sua fonte são aspectos extrapsicóticos na personalidade, destacando-se as temáticas da vida que lhe são significativas. 264 Assim como no primitivo, nesse psicótico suas operações mentais em certas vivências típicas não se separam dos objetos materiais que as motivam, detendo-se ante a primeira impressão que tem das coisas. Um exemplo é a percepção delirante, fenômeno descrito por Kurt Schneider 12;13: um toco de cigarro num canto da sala, um papel amassado no chão etc., que para o censo comum é detalhe banal que passa despercebido, no psicótico captam de um modo impositivo sua atenção e pensamento, originando aí significações geralmente no sentido da autorreferência, cujo conteúdo pode ser, por exemplo, de feitiçaria ou ação mágica. Contudo, um grande abismo separa e distingue a vivência do primitivo da do psicótico. Enquanto que no primitivo o seu modo de pensar e agir é caracterizado por esse concretismo, que recorta um detalhe do seu mundo sensoperceptivo e está inserido numa perspectiva evolutiva voltada para sua comunidade na questão crucial da subsistência, no psicótico o caminho é regressivo e solitário, não partilhado com os outros. O modo de ser paranóide está presente na mentalidade do primitivo como uma complexa e importante função mental cumprindo papel defensivo para a comunidade, onde o ego é o eixo de tudo que transcorre ao seu redor. No civilizado a atitude paranóide persiste como defesa contra as agressões aí tão comuns. No psicótico ela é redescoberta, mas vivida em seu mundo solitário. Outro aspecto na mentalidade primitiva que é redescoberto na vivência do psicótico é o da causalidade, que naquele é mística e coletivamente vivenciada, enquanto que neste é solitariamente vivenciada, como algo fora dele, estranho e que lhe é imposto. No primitivo sua individualidade não se detém na fronteira do seu corpo, incorporando nela elementos seus (cabelo, unhas etc.) já localizados fora do seu corpo. No psicótico esquizofrênico ocorre um fenômeno denominado transitivismo, onde ele não consegue discernir entre seus processos psíquicos internos e a percepção externa, experimentando externamente elementos da sua intimidade pessoal. No primitivo isso faz parte do seu modo de ser e é partilhado na comunidade, no psicótico é vivência solitária, estranha e imposta. 265 Essas vivências são como figuras num primeiro plano, cujo fundo é um sentimento de totalidade de um mundo mais sentido que conhecido. O eu como centro de convergência do mundo. Nietzsche fala de um escândalo ptolemaico ao observar que a cosmologia grega e a bíblica são geocêntricas porque antropocêntricas 3. A terra é concebida como o centro do mundo e o ser humano o eixo de todas as suas sínteses, toma a si como o centro do mundo, refere a si todos os seus objetos. Seu egoísmo é ávido de uma justificação mais sublime e encontra-a em um Deus, louvado por ter criado o universo em função dos homens e estes à sua imagem. Mas desde Copérnico que o ser humano foi-se afastando desse centro, a Terra não sendo mais o centro do mundo, apesar dessa cosmovisão geocêntrica continuar como forma do entendimento humano. Nietzsche faz uma crítica a esse aspecto do nosso eu necessitar ser o centro do mundo, que seria o centro do universo, tudo isso legitimado por um Deus que nos criou à sua semelhança. É de se supor que o primitivo vivenciava essa convergência do mundo ao seu ego numa forma afetivossensorial, colada ao mundo sensoperceptivo, experiência compartilhada na comunidade, ao passo que o psicótico a vivencia em completa solidão, alienado de si próprio, desacreditado e isolado da comunidade que vê nesse seu modo de vivenciar um sinal de insanidade mental. Pensamento mágico e pensamento lógico O pensamento mágico1 estabelece configurações significativas na base da aparência das coisas, relações de similitude e distância. Se dois objetos parecem-se serão tidos como dotados das mesmas propriedades, levando-os a acumular propriedades por vezes antagônicas e daí à crença de que cada 266 objeto ou força produz seu similar, a ação à distância. Indiferente às causas mediatas, atribui tudo às potências místicas e ocultas. De início de forma passiva e depois ofensiva nascem daí dois tipos de magia, defensiva e desiderativa. O pensamento lógico dirige a mentalidade e a conduta do civilizado e é regido pelos princípios da identidade, da causalidade e da relação da parte ao todo1: um todo só pode ser parte de um todo maior. Partes e todos ocupam no espaço natural, planos e níveis de hierarquia na ordenação e estruturação do mundo objetivo. A estrutura egóica é a mesma no primitivo e no civilizado, aberta ao mundo e nele apreendendo significações. No primitivo os conceitos são principalmente do tipo sensível fundado nos dados diretos da experiência afetiva sensorial e no civilizado especialmente do tipo categorial, suprassensorial. No primeiro caso a ideia está amalgamada afetivamente ao objeto da percepção e restrita ao utilitário. No segundo, a ideia está livre de sensorialidade e tende ao polo subjetivo suprassensorial. A fronteira entre eles é por vezes tênue1;4;16. O mágico e o lógico são anteriores a qualquer dicotomia, um é o que é com o outro. O pensamento lógico tem suas raízes no pensamento mágico. Os escritores e romancistas são criativos nesse jogo do mágico e do lógico. Captam significações insuspeitadas para o senso comum, tanto nos objetos do ambiente como em seus personagens, dos quais uma espécie de animismo é revelada no drama vivido por eles. Num dos contos de Guy de Maupassant 5, “A Mulher de Paulo”, há uma cena em que ele procura-a desesperado: “Sobre os gramados dos lagos a lua derramava uma claridade mole, como poeira de algodão, penetrava nas folhagens, fazia escorrer sua luz sobre a casca prateada dos choupos, inundava com sua chuva brilhante as copas frementes das grandes árvores”. Nesse texto a luz da lua é mole e derrama-se como poeira de algodão, penetra nas folhagens e inunda como chuva copas fremente o mágico estando em todos nós como fundamento de nossa criatividade no mundo da razão. 267 A estrutura egóica como lugar de relação: seu funcionamento formal habitual e no modo de ser psicótico esquizofrênico Para Jaspers e K. Schneider9;12 o eu tem a seguinte estrutura. 1o) Oposição em relação ao exterior, a delimitação do que está dentro e fora do sujeito. É permeável por ser o ego um lugar de relação, uma estrutura aberta admitindo entradas e saídas. Comporta-se como um sistema que funciona longe do equilíbrio. O que possibilita manter seu padrão de ordem é sua capacidade de dissipar para fora o que é traduzido como desordem, driblando desse modo à tendência para o incremento da desordem ou entropia e contrariando o segundo princípio da termodinâmica, da tendência ao incremento da desordem8. 2o) Intencionalidade, o dirigir-se ao mundo dandolhe sentido. 3o) Identidade ao longo do tempo, o sujeito identificar-se como o personagem de sua história. Traduz o grau de estabilidade da estrutura egóica. 4o) Unidade no momento, condição implícita na estrutura do eu para que cada vivência: perceber, pensar, sentir e agir seja vivido em sua pureza e individualidade, sem contaminar-se um com o outro. Essa unidade é constituída de tal modo que cada vivência redefine a outra em suas interatuações, de modo que em cada uma delas estão implícitas as outras. A mudança de um fenômeno para outro é a mudança de um mesmo, que se muda disto naquilo, mas que ao perdurar fundamentalmente como sendo aquilo que ele é, constitui a própria condição de possibilidade da mudança sem contradição. Quando o percebido manifesta-se em pensamento, não é aquele que se torna este, o que seria uma contradição, mas um todo abrangente (a unidade no momento) que como condição subjacente a esses fenômenos típicos, perde um predicado e ganha outro, pois a estrutura dessa unidade no momento é a pura amalgamação recíproca dos próprios predicados entre si, que não se reúnem senão uns aos outros. E é essa condição de identidade ao longo do tempo do fenômeno, bem como de sua unidade no momento, o que possibilita-nos sua observação. 5o) Atividades do eu, aquelas que se manifestam quanto ao perceber, pensar, sentir e agir, vividas na intenção: sou eu que percebo, penso, sinto e ajo. 6o) Consciência do existir, dá-se como uma 268 crença espontânea, não só eu existo, mas todos os objetos e pessoas do meu mundo. Nesse modelo o sujeito não é abstraído do cosmos que o envolve, compõem um mundo. Há uma interação entre observador e aquilo que é observado de tal modo que, uno e múltiplo, o mesmo e o outro sejam opostos que possibilitem uma postura interpretativa que se eleve a outra ordem de significação, onde as contradições sejam superadas. Essa unidade múltipla ou multiplicidade una é aquilo que se entende por estrutura15;16: uma multiplicidade unificada por uma ordem, cujo sentido é corresponder intencionalmente à situação existencial. Na estrutura egóica as alterações da unidade no momento estão na base dos fenômenos delirante e alucinatório. Por exemplo, a alucinação auditiva que acompanha as ações do paciente, nem é fenômeno sensoperceptivo, por lhe faltar o objeto (apesar de ser vivenciado com sensorialidade) nem fenômeno pensante, por lhe faltar o elemento subjetivo não sensorial e o caráter de ser meu. O mesmo se aplica ao delírio, por exemplo, a percepção delirante. O que é percebido não é reconhecido pelo sujeito como originário dele próprio, mas uma significação que lhe é imposta. Essas vivências resultam da quebra daquela unidade no momento e da intencionalidade estar deslocada para fora do eu: já não são meus os pensamentos, sentimentos e ações. No primitivo a intencionalidade pode ser vivenciada fora das fronteiras do ego numa experiência coletiva, onde o visível (no mundo) e o invisível (místico) constituem uma unidade coletivamente personificada na figura do feiticeiro, personagem investido de poderes ilimitados, cujas ações determinam coletivamente o comportamento dos membros da comunidade. No psicótico a intencionalidade está deslocada para fora do ego como expressão de uma radical alteração em sua organização estrutural. Implica uma reordenação para um nível de organização mais arcaico, com perda temporária ou duradoura dessa instância integradora (intencionalidade), que vivida fora dele impõe-se num alto grau de autonomia, passando a controlar aquela outra parte da 269 estrutura egóica, funcionando como uma espécie de organizador em seu gravitar ptolemaico em torno do que restou do ego original. O centro decisório é agora vivenciado pelo psicótico como proveniente de fora, o que imprime a essa vivência um caráter de estranheza. O ego consegue dissipar a desordem para seu exterior, mantendo com isso o seu padrão de ordem estrutural8. No psicótico ele não consegue realizar essa função de forma satisfatória, reorganizando-se noutro patamar de complexidade, que implica uma nova ordem menos complexa, onde a intencionalidade de grande importância integradora funciona cindida do resto da estrutura. Esse deslocamento condiciona a perda temporária ou duradoura de outra função: a da unidade (das funções) no momento. A estrutura egóica perde funcionalmente uma parte de si, que de fora passa a reger suas atividades7;8. A estrutura egóica na mentalidade primitiva, no civilizado e no psicótico: eu copernicano versus eu ptolemaico Klaus Conrad11 descreve dois tipos de estrutura egóica: copernicana e ptolemaica. Os nomes de Copérnico, sistema heliocêntrico e de Ptolomeu, sistema geocêntrico já nos dão o sentido que se quer emprestar a essas estruturas egóicas. A diferença essencial entre elas é que, no eu ptolemaico o sujeito é o centro do universo, tudo o mais girando e convergindo em torno dele. É prisioneiro desse modo de ser no mundo e impossibilitado de vivenciálo de outro modo. Já o eu copernicano possui a liberdade de corrigir essa ótica de ver o mundo. Do ponto de vista da Gestalt a diferença básica entre essas duas estruturas seria o jogo dialético entre figura, que é a que se destaca num primeiro plano no mundo percebido e o fundo, que é o que permanece neutro num segundo plano, mas que na medida em que avança em direção ao primeiro, vai perdendo a neutralidade e interferindo no significado da figura. O que numa circunstância é figura pode noutra ser fundo e vice-versa. Quando a intencionalidade é vivenciada como já não pertencendo ao sujeito isso já significa uma reordenação da estrutura do eu com destaque da 270 intencionalidade como figura fora dele, contrariando os fundamentos da fenomenologia de Husserl, do sujeito ser o doador do significado às coisas e pessoas no mundo2. Vamos considerar a questão do deslocamento da intencionalidade para fora do eu do sujeito psicótico pelo caminho inverso da sua constituição: a internalização da intencionalidade ao eu no sentido evolutivo, onde a estrutura egóica alcança um patamar mais diferenciado e mais complexo, sendo necessário para isso um quantum de energia, que se traduz aí como um novo modo de inter atuação do sujeito no mundo com os outros. Quando essa trajetória inverte-se, com a dissipação do controle da intencionalidade para fora do eu psicótico, isso já significa a perda funcional desse elo integrador dentro da estrutura egóica, sendo aquele quantum de energia decodificado na forma dos sintomas. Tanto para a mentalidade do primitivo como para a do civilizado a estrutura de eu é do tipo copernicano, pois não se trata neles de naturezas distintas. Enquanto no primitivo destacam-se os aspectos afetivo e mágico, no civilizado é o racional. Vamos considerar a questão da intencionalidade vivenciada como externa ao mundo íntimo e subjetivo do sujeito. Um caso extraído da obra de Levy-Brühl14 vai ajudar-nos nessa questão. Um indígena foi arrancado de sua canoa por um crocodilo e desapareceu, não foi mais visto. A notícia da desgraça foi levada a sua aldeia. Canoas de guerra foram enviadas ao lugar. Um dos homens que se encontrava com o indígena na canoa no momento da sua morte e outro que habitava a orla do rio naquele lugar foram detidos, acusados de feitiçaria e condenados à morte. Não há causalidade: a ideia de um acidente nem sequer se apresenta à mentalidade do primitivo, enquanto a ideia do malefício está sempre presente. O indígena que morreu foi entregue, os que o acompanhavam e que foram perdoados pela besta feroz, ou os que na vizinhança viviam, são sem dúvida os culpados. Existe uma função importante do ponto de vista social nessa postura paranóide, onde a intencionalidade é vivenciada externa ao eu. É possível que corresponda a uma arcaica função mental complexa, mas sem deixar completamente de permanecer como patrimônio da natureza afetivo mística do ser humano. Ainda é atual em sua possibilidade de manifestação, 271 especialmente em situações sociais de conflito, onde exista séria ameaça à integridade das pessoas em sua comunidade, ou, por exemplo, nos sujeitos predispostos a vivenciar o mundo pelo olhar da perspectiva psicótica. Os fenômenos da participação e da causalidade mística que no primitivo significam uma compreensão afetiva mística do seu universo são vividos sensorialmente como uma totalidade abrangente que lhe é superior hierarquicamente e definidor do sentido universal das coisas e pessoas. É no psicótico esquizofrênico que esse mundo invisível é redescoberto em sua sensorialidade nas pessoas e objetos concretamente percebidos. Uma vivência central nesse seu mundo transformado e que exemplifica a questão, é o que denominamos de humor delirante, uma vivência cindida e solitária, não partilhada na comunidade. O humor delirante como vivência típica no psicótico esquizofrênico não é um estado de ânimo puro, mas uma vivência heterogênea que carece de unidade vivencial. Isso significa que ele já é a expressão de radicais alterações estruturais do eu: a perda da unidade de suas vivências como consequência do deslocamento da intencionalidade para fora do seu espaço interno. O humor delirante e a representação afetiva – mística e coletiva no primitivo O humor delirante no psicótico e a representação afetiva mística e coletiva na mentalidade primitiva (participação) correspondem a duas categorias ou ordens da estrutura egóica, hierarquicamente distintas. Enquanto no primeiro caso o fenômeno ocorre numa única pessoa, no segundo só pode ser vivido com a participação dos outros sujeitos inseridos naquela comunidade e sua unidade estrutural é fruto dessa participação coletiva, onde o mundo é apreendido na forma de uma linguagem mística. O conhecimento do mundo é sensorial e afetivo, cuja finalidade é suplantar a angústia do desconhecido. Nessa forma de conceber o mundo desponta sempre a figura do feiticeiro, cujo papel é o de por ordem no universo do primitivo. É essa afetividade que impregna todas as coisas e pessoas no seu universo que é redescoberta na 272 vivência psicótica do humor delirante, mas aqui destituída daquela função integradora e social na comunidade, perdida no processo de cisão ou quebra da unidade funcional das vivências com o simultâneo deslocamento da intencionalidade para fora do eu. A conclusão no sentido fenomenológico é reconhecer que a essência da afetividade vivenciada no humor delirante, não deve ser confundida com o que entendemos por função da vida afetiva (tristeza, alegria, raiva etc.), que já expressa por si uma unidade funcional adequada na nossa mentalidade. O afetivo no humor delirante já é a expressão de uma radical transformação da estrutura egóica, implicando numa quebra de sua unidade funcional e que manifesta um realce num primeiro plano de figura daquela arcaica afetividade mística e mágica no fenômeno da participação no coletivo da comunidade primitiva. O psicótico esquizofrênico vivencia essa amálgama entre o mundo invisível e o visível da nossa vida sensoperceptiva, como vivencia o primitivo, mas pelo caminho da regressão. Só ele tem essa possibilidade de vivenciar aquela experiência arcaica e que faz parte da evolução histórica da mentalidade humana. Isso evidencia que ao lado de todo racionalismo, o mágico e o místico estão presentes em suas raízes, como fonte de criatividade. Os escritores resgatam essa linguagem animista em seus contos e romances e é na linguagem da doença que nossos pacientes ensinam-nos sobre essa dimensão da natureza humana. Referências 1. BOSS, M. & CONDRAU, G. Análise Existencial – Daseinsanalyse: Como a Daseinsanalyse entrou na Psiquiatria. Análise Existencial – Daseinsanalyse – Revista Brasileira da Associação de Daseinsanalyse. Nos 1, 2 e 4, p. 23-35 1997. 2. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. Razão e afetividade. O Pensamento de Lucien Levy–Brühl. [S.l.]: Editora UnB, 2002. 3. CONRAD, Klaus. La Esquizofrenia Incipiente. Madrid México: Editorial Alhambra, 1963. 273 4. DARTIGUES, André. La Fenomenología. [S.l.]: Editorial Herder Barcelona, 1981. 5. DELGADO, H. & IBÉRICO, M. Psicologia. Barcelona: Editorial Cientifico Medica, 1969. 6. FERNÁNDEZ, Francisco Alonso. Fundamentos de la Psiquiatria Actual. Tomo I. Madrid: Editora Paz Montalvo, 1976. 7. JASPERS, Karl. Psicopatologia General. Buenos Aires: Editorial Beta 1970. 8. JASPERS, Karl. Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo: Editora Cultrix, 1971. 9. LEVY–BRÜHL, Lucien. La Mentalidad Primitiva. Buenos Aires: Editorial Lautaro, 1945. 10. MATURAMA, H. R. & VARELA GARCIA, F. De Máquinas e Seres Vivos. Autopoiése. A Organização do Vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 11. MAUPASSANT, Guy. Obras de Guy de Maupassant. Contos e Novelas Vols. 1 e 2. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1983. 12. NOBRE DE MELLO, A. L. Psiquiatria. Vol. I. São Paulo: Atheneu Editora, 1970. 13. PRIGOGINE, Ilya. As Leis do Caos. São Paulo: Editora Edusp, 2002. 14. SCHNEIDER, Kurt. Klinische Psychopathologie. Stuttgart: Georg Thieme Verlag, 1973. 15. SCHNEIDER, Kurt. Patopsicologia Clinica. [S.l.]: Editorial Paz Montalvo, 1975. 16. TÜRCKE, Christoph. O Louco – Nietzsche e a Mania da Razão. Petrópolis: Ed. Vozes, 1993. Sobre o autor Wolgrand Alves Vilela: possui graduação em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco (1969), especialização em Psiquiatria pela Heidelberg College (1976) e doutorado em Medicina (Saúde Mental) pela Universidade Estadual de Campinas (1989). Atualmente é Professor Doutor da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Psiquiatria. 274 ESQUIZOFRENIA NA VOZ DE QUEM A VIVENCIA Adriana Cabello Lucas Gobato Lilian L. Ceregatti Gisele M. Sampaio Maria da Piedade R. de Araujo Melo (orientadora) Resumo Este trabalho teve como propósito ouvir o portador de esquizofrenia, dentro de um contexto que cada vez mais abre premissas para um contato mais humanizado com as psicopatologias graves, permeado por influências da reforma psiquiátrica e de políticas de assistências de saúde mais comprometidas com os usuários. Tivemos o interesse em conhecer sua própria concepção a respeito de seu transtorno. Utilizando o método qualitativo de pesquisa, entrevistamos quatro pessoas diagnosticadas com esquizofrenia. Seus discursos mudaram nossa forma de pensar, trouxeram-nos uma compreensão acerca desta patologia e suas manifestações físicas, psíquicas e sociais. O indivíduo portador de esquizofrenia teve sua história de vida alterada quando o transtorno psiquiátrico foi diagnosticado. Pensamos que o sujeito que convive com a esquizofrenia carrega muito sofrimento e precisa construir-se e descontruir-se permanentemente na busca de seu bem estar e qualidade de vida. Palavras-chave: Esquizofrenia; Subjetividade; Psicologia; Conhecimento. 275 Introdução A esquizofrenia é considerada uma das psicopatologias mais antigas. Afamada pelo senso comum como “loucura”, é compreendida como uma doença grave e por consequência a mais severa no que diz respeito às mudanças de vida do sujeito. A loucura sempre existiu, o que se modificou foi a moral da sociedade e a maneira de relacionar-se com ela. Para melhor compreendermos a esquizofrenia é de extrema relevância abarcarmos em uma breve viagem ao passado, com o intuito de relembrar como a humanidade conviveu com a loucura ao longo das eras. Na obra “História da Loucura” de Foucault, originariamente publicada em 1964 o autor desenvolveu uma grande reflexão de como o conceito de “loucura” foi sendo alterado de acordo com o contexto dos séculos passados; primeiramente, antes do período da Renascença a figura do louco era vangloriada devido à herança de concepções gregas de que esses indivíduos eram seres místicos, pois o delírio era de caráter irreal e acreditava-se que através dessa irrealidade estava o acesso ao conteúdo divino. Essa vertente de pensamento encontrou força durante o período clássico, pois a capacidade de pensar o irreal cativava e era símbolo de sabedoria inimaginável (FOUCAULT, 1997). No período Renascentista com a construção do pensamento crítico, que era um dos pilares do humanismo ascendente, tal crença do louco como ser místico foi perdendo seu valor e a população de loucos foi-se tornando um grupo indesejável. Pois o pensamento crítico, um dos focos desse momento, não conseguia compreender a loucura; logo a sociedade não conseguiu encaixá-la no mundo, marginalizando-a. A rejeição iniciou uma série de atos para que os loucos fossem descartados, embarcações inteiras eram preenchidas com esses indivíduos e lançadas ao mar, e assim eles foram fadados à peregrinação; era um mecanismo higienizador, mantendo as ruas livres da loucura. Até que algo interessante ocorreu: durante muito tempo, até o fim da idade média a lepra era algo que assolava a população europeia. Considerada como um castigo divino, esta doença fazia com que os indivíduos fossem mantidos em uma distância sacramentada, existiam diversos hospitais pela Europa designados para essa finalidade. Com o fim das Cruzadas, o 276 contato com os focos de contágio foi quebrado e tais hospitais foram gradativamente se tornando obsoletos. Mesmo assim, de acordo com Silveira e Braga (2005), alguns séculos passaram-se até que uma necessidade de um saber específico sobre a loucura fosse de fato estabelecida e a loucura tomasse o lugar de atenção que antes era destinado à lepra. Em meados do século XVIII, a loucura passou a integrar os saberes médicos e a internação passou a ser um cuidado necessário, porém isso não retirou o valor ideológico da internação que tinha como objetivo retirar o louco das ruas e estabelecer uma distância com o resto da sociedade; Resende (1990) afirma que a Saúde Pública e a Psiquiatria tinham tarefas de sanear a cidade, removendo os focos de infecção, esvaziando cortiços, livrando-se dos sem trabalho e dos maltrapilhos. Esse cenário também foi reproduzido no Brasil, até que em 08 de dezembro de 1852 inaugurou-se o Hospício de Pedro II – foi a primeira tentativa de um tratamento mais humanitário em solo brasileiro para essa população. Segundo Lima 2009, o discurso era que o intuito da internação não era simplesmente uma exclusão da sociedade, mas a possibilidade de uma reinserção após um tratamento e reabilitação. Porém, o que na teoria parecia um bom método na prática não foi bem sucedido, o contexto brasileiro não estava preparado para lidar com essas ideias, ainda existiam divergências políticas e de interesses entre hospitais e profissionais. As Santas Casas não tinham um interesse em modificar a forma como a loucura era tratada e esses ambientes tinham um foco religioso, ainda, gerido pelo catolicismo. Foi somente com a Proclamação da República que o louco começou a ser responsabilidade do estado e gradativamente com as mudanças morais e de direitos humanos um novo direcionamento começou a ser aplicado. Novos modelos surgiram com a reforma sanitária e mais tardiamente a nomeada Reforma Psiquiátrica. Neste cenário surgiu o projeto de Lei n°. 08/91 que tratou de uma proposta de formalização de todas as demais agregadas e passou por inúmeros obstáculos; porém, em razão de um processo contínuo e longo de conscientização com intervenções da mídia e outros fatores, em 2001 foi aprovada a Lei n.º 10.216, que incorporou mais mudanças (BRASIL, 2001). A 277 Lei n°. 10.216 tem por finalidade a proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental: “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. Nesse contexto de reforma ocorreram eventos importantes, como o II Congresso Nacional do MTSM (Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental) na cidade de Bauru em 1987, quando se adotou o lema “Por uma sociedade sem manicômios” e, também, a I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio de Janeiro) – (Ministério da Saúde, Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas, nov., 2005). Ocorreu, também, uma intervenção pela Secretaria Municipal de Saúde na Casa Anchieta, localizada na cidade de Santos, onde houve denúncias de abusos à integridade dos pacientes. O caso teve repercussão em todo o país, mostrando que era possível a construção de uma nova rede de cuidados que substituiria os hospitais psiquiátricos. No mesmo período, foram implantados no município de Santos os chamados Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), que funcionavam 24 horas por dia e tinham como responsabilidade o cuidado da saúde mental de uma região, com foco nos casos graves, por meio de vários tipos de ação que permitissem que o usuário pudesse retomar a autonomia (Portaria nº. 336, BRASIL, 2002). O primeiro CAPS foi criado na cidade de São Paulo em 1987, com a função de substituir os antigos modelos manicomiais. O CAPS oferece ao paciente acompanhamento clínico, dando ao mesmo oportunidade de poder ser reinserido na sociedade por meio do trabalho, lazer e fortalecimento de laços familiares (BRASIL, 2002). No ano de 2002, depois da III Conferência Nacional de Saúde Mental, a Portaria nº. 336 foi publicada, segundo a qual, no Artigo 1º, item 2, “Os CAPS deverão constituir-se em serviço ambulatorial de atenção diária que funcione segundo a lógica do território”. Três diferentes tipos foram criados: CAPS I, CAPS II e CAPS III (BRASIL, 2002). O CAPS I oferece atendimento a municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes. Esses serviços são oferecidos por uma equipe de 278 no mínimo três profissionais de nível superior, como psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, pedagogo ou qualquer outro profissional necessário ao projeto terapêutico. Além desses, mais quatro profissionais de nível médio, técnico e ou auxiliar de enfermagem, técnico administrativo, técnico educacional e artesão. Atendem adultos com transtornos mentais de severidade maior e transtornos consequentes do uso de álcool e outras drogas. Funcionam nos cinco dias úteis da semana, e têm disposição para o acompanhamento em média de 240 pessoas por mês (BRASIL, 2002). Os CAPS II são de médio porte e cobrem os municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes. Os pacientes são em maioria adultos com transtornos mentais severos e persistentes. Conta com equipe de doze profissionais no mínimo, com nível médio e nível superior e pode atender em média até 360 pessoas por mês. Também funcionam nos cinco dias úteis da semana (BRASIL, 2002). Em relação ao CAPS III, são os de maior porte da rede CAPS e dão cobertura aos municípios com mais de 200.000 habitantes. Atende durante 24 horas todos os dias da semana e nos feriados; neles realizam-se acolhimentos noturnos, nos feriados e finais de semana com no máximo cinco leitos para eventuais repousos e/ou observações. Internações breves, que duram algumas horas e no máximo sete dias corridos ou dez dias intercalados em um período de 30 dias. A equipe deve ser constituída de no mínimo dezesseis profissionais para esse trabalho, entre eles a formação de nível médio a superior, além de uma equipe para trabalho noturno e de final de semana. O CAPS III tem condições para o atendimento de 40 pacientes por turno, tendo como limite máximo 60 pacientes ao dia (BRASIL, 2002). Após discorrer sobre o campo de pesquisa, CAPS II, foca-se este estudo especificamente na esquizofrenia, um dos principais transtornos mentais graves, estando presente em 1% da população mundial. A esquizofrenia é considerada uma doença psiquiátrica de base endógena, caracterizada pela perda de contato do sujeito com a realidade, cujos principais sintomas são divididos em dois tipos: produtivo e negativo. Produtivos são os delírios e alucinações caracterizados por responder melhor ao tratamento; no 279 outro extremo, estão os negativos, que são a diminuição da volição e o rebaixamento afetivo, muito mais resistentes aos tratamentos (PALMEIRA; GERALDES; BEZERRA, 2009). Os prejuízos trazidos pela esquizofrenia podem ser experimentados pelos portadores com grande sofrimento e angústia. O diagnóstico das doenças mentais pode ser comum aos portadores, as formas de manifestações podem ser compartilhadas, mas os conteúdos dos sintomas são únicos. Cada portador experiencia e significa de maneira singular o que é conviver com o sofrimento. Para melhor compreensão do trabalho, cabe analisar a definição de esquizofrenia a partir da descrição da CID 10 e posteriormente do DSM IV, Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (Organização Mundial da Saúde - CID 10, 1993, pg. 85): Os transtornos esquizofrênicos são caracterizados em geral por distorções fundamentais e características do pensamento e da percepção, e por afetos inadequados ou embotados. A consciência clara e a capacidade intelectual estão usualmente mantidas, embora certos déficits cognitivos possam surgir no curso do tempo. A perturbação envolve as funções mais básicas que dão à pessoa normal um senso de individualidade, unicidade e de direção de si mesma. Os pensamentos, sentimentos e atos mais íntimos são sentidos como conhecidos ou partilhados por outros e podem desenvolver-se delirios explicativos, a ponto de que forças naturais ou sobrenaturais trabalham de forma a influenciar os pensamentos e as ações do indivíduo atingido, de formas que são muitas vezes bizarras. (Organização Mundial da Súde, CID 10, 1993, p. 85). De acordo com a 4ª edição revisada do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais [DSM-IV-TR] (APA, 1994), para se diagnosticar um paciente com esquizofrenia, três critérios devem ser atendidos. Sintomas característicos: dois ou mais dos seguintes, cada qual presente por grande parte do tempo durante um período de um mês (ou menos, se os sintomas desapareceram com o tratamento): 1. Delírios. 2. Alucinações. 3. Discurso desorganizado, que é uma manifestação de transtorno do pensamento formal. 280 4. Comportamento grosseiramente desorganizado (por exemplo, vestir-se de forma inadequada, chorando com frequência) ou comportamento catatônico. 5. Sintomas negativos - afetivo achatamento (falta ou diminuição da resposta emocional), alogia (falta ou diminuição da voz), ou avolição (falta ou diminuição da motivação). Se os delírios são considerados bizarros ou as alucinações consistem de ouvir uma voz que participam em um comentário execução das ações do paciente ou de ouvir duas ou mais vozes conversando entre si, apenas o sintoma que é exigido acima. O critério de desorganização da fala só é respeitado se é grave o suficiente para prejudicar substancialmente a comunicação (JORGE, 2003, p. 15). A esquizofrenia foi descrita como doença pela primeira vez pelo psiquiatra alemão Emil Kraeplin (2009), no final do século XIX, à qual denominou de “demência precoce” (PALMEIRA; GERALDES; EZERRA, 2009). Essa locução foi utilizada pelo fato da doença acometer pessoas muito jovens ou no início da fase adulta, além do fato de, como observado por Kraeplin, que esses sujeitos adoentados comportavam-se de forma semelhante à demência por terem um comportamento regredido à infância e muito desorganizado. No século XIX, os sujeitos acometidos pela demência precoce eram tratados nos hospitais psiquiátricos de modelo asilar, mantidos por anos neste sistema, de onde alguns nunca chegaram a sair (ROUDINESCO; PLON, 1998). O termo esquizofrenia foi criado no século XX pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1911, apud, Palmeira; Geraldes; & Bezerra, 2009), por achar que a expressão “demência precoce” confundia-se com a demência dos idosos causada pelo Alzheimer. Segundo o Dicionário de Psicanálise, Bleuler criou a palavra esquizofrenia para integrar o pensamento freudiano no saber psiquiátrico. Bleuler acreditava que somente a teoria do psiquismo elaborada por Freud permitia compreender os sintomas dessa loucura (ROUDINESCO; PLON, 1998). Esquizofrenia em grego significa “mente cindida”, pois uma das características mais marcante da doença para Bleuler é a impressão de uma personalidade fragmentada. Antigamente se sabia muito pouco sobre a esquizofrenia, conhecida como “loucura”; porém nas últimas décadas houve um grande avanço no 281 estudo e tratamento desta doença, colaborando significativamente para compreender e entender melhor as necessidades de quem convive com este transtorno mental tão grave. Segundo Palmeira, Geraldes e Bezerra (2009, p. 11): Derrubar preconceitos e aprofundar os conhecimentos sobre a esquizofrenia são imprescindíveis para quem deseja ajudar aqueles que sofrem da doença. A informação é nossa principal ferramenta neste caminho. A sociedade precisa ser informada sobre as doenças mentais e perder progressivamente o preconceito em relação a elas. Um esquizofrênico não deve ter suas aptidões julgadas exclusivamente sob a ótica de sua doença, como se ele não pudesse desenvolver habilidades que o afirmassem e destacassem socialmente. A história reserva exemplos de grandes homens que desenvolveram a esquizofrenia, como o matemático vencedor do Prêmio Nobel John Nash, o bailarino russo Vaslav Nijinski e até o Rei da Inglaterra no século XV, Henrique VI. Após a Reforma Psiquiátrica e com os avanços nos estudos das doenças mentais, muitas mudanças positivas aconteceram em relação aos tratamentos; porém, acredita-se que o foco deva voltar-se ao próprio sujeito, acolhendo-o e ouvindo-o em sua totalidade. A escuta centrada em cada paciente proporciona um entendimento maior do sofrimento que está estritamente ligado à história de vida do doente. De acordo com Silva (2009) subjetividade é entendida como aquilo que diz respeito ao indivíduo, ao psiquismo ou à sua formação, ou seja, algo que é interno, numa relação dialética com a objetividade, que se refere ao que é externo. É compreendida como processo e resultado, algo que é amplo e que constitui a singularidade de cada pessoa. Subjetivo é tudo aquilo que é próprio do sujeito ou a ele relativo. É o que pertence ao domínio de sua consciência. É algo que está baseado na sua interpretação individual, mas pode não ser válido para todos. A subjetividade é o mundo interno de todo e qualquer ser humano. Utilizamos o conceito de subjetividade do dicionário Aurélio (1975), subjetividade é aquilo que existe no sujeito, individual, pessoal, particular, ou passado unicamente no espírito de uma pessoa. Uma questão subjetiva é aquela que muda de pessoa para pessoa, dependendo de suas crenças, suas convicções, conhecimentos e histórico de vida. Por isso, é entendida como um espaço único de cada indivíduo, pois cada sujeito instala-se no mundo através 282 de um recorte diferente, a partir de sua construção de crenças e valores compartilhados pelo meio social em que esse sujeito vive. (ROVER, ORG. 2010). Segundo Besset, (1997) fala-se em subjetividade na psicologia, na sociologia, e em diversos campos ligados ao ser humano. De acordo com a autora, a noção de subjetividade surgiu como produto de certa evolução do pensamento ocidental. As construções desse termo foram erguidas em conjunto com profundas transformações sociais, provocadas por mudanças nas relações de produção. Em relação à subjetividade dos portadores de esquizofrenia, são relativamente poucos os autores que procuram, nas transformações sociais contemporâneas, as raízes de transformações subjetivas. Segundo Lobosque (2001), a necessidade de considerar a subjetividade dos portadores de doenças mentais graves decorre de que sua radical exclusão sempre subsidiou os modelos manicomiais de atendimento, o que serviu de mecanismo primordial para a exclusão social da loucura. De acordo com Pereira (2013), a centralidade do indivíduo em sua dimensão intersubjetiva, em detrimento da supremacia da doença, enquanto conjunto de sintomas embasa o contexto de reformulação e qualificação da atenção e tratamento a pessoas com transtornos mentais, desencadeado pela Reforma Psiquiátrica. Na interface com a Saúde Coletiva, os novos arranjos implementados na assistência em Saúde Mental no Brasil, pressupõem que: [...] a saúde das populações, das relações sociais e a produção de políticas públicas não devem deixar de considerar que as coletividades são compostas por sujeitos particulares, com necessidades e desejos singulares e em constantes relações de poder (Ballarin et al., 2011, p. 604). De acordo com a autora, a ampliação da compreensão acerca das práticas clínicas e sociais desenvolvidas, assim como o entendimento das diferentes variáveis envolvidas no processo saúde-doença são caminhos necessários para viabilizar a construção de intervenções que de fato consigam abarcar a complexidade do adoecimento mental. E é nesse sentido, da coprodução de projetos de saúde e de vida, que entendemos e valorizamos o 283 diálogo com as formas particulares pelas quais os indivíduos constroem narrativas sobre a dimensão experiencial do processo de adoecer. Segundo Serpa Junior, et al. (2007), a dimensão sintomatológica dos quadros psicopatológicos, exclui a dimensão subjetiva da experiência do adoecimento e seus aspectos relacionais. De acordo com os autores, o estudo da Psicopatologia na atualidade tem sido frequentemente apresentado em sua dimensão descritiva e esse modo de operar da Psicopatologia traz embutida uma concepção de saúde e doença e, antes disso, uma ideia acerca do que deve estar subjacente à partilha entre o normal e o patológico. Método Para efetuar este estudo, que trata de um tema que elucida singularidade e subjetividade, realizou-se uma pesquisa de campo exploratória de caráter qualitativo. Consideramos que o contato prévio, desprovido de hipóteses, com o sujeito pesquisado permitiria delinear os aspectos relevantes da pesquisa, conforme as significações atribuídas pelos próprios pesquisados fossem reveladas. Este tipo de metodologia utiliza significações e sentidos atribuídos pelos pesquisados para não apenas descrever o que foi observado, mas suscitar reflexões e diferentes percepções do fenômeno estudado (MINAYO, 2007). Para o desenvolvimento deste estudo foi escolhida a pesquisa de campo descritiva com abordagem qualitativa que responde a questões muito particulares. Preocupamos-nos com um nível de realidade que não pode ser quantificado, pois trata-se de um universo de significados, aspirações, crenças e valores. Entendemos que isso corresponde a um espaço mais profundo das interrelações de fenômenos que não podem ser reduzidos a operacionalização de variáveis (MINAYO, 2008). As entrevistas foram realizadas no CAPS II da cidade de Itatiba- SP, que tem como proposta atender a pacientes neuróticos e psicóticos graves, adultos, de forma mais humanizada, considerando suas particularidades e necessidades específicas. 284 O CAPS II de Itatiba conta com 10 profissionais, quatro psicólogos, dois médicos, um clinico, um psiquiatra, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem, um técnico de enfermagem e uma assistente social. Sujeitos e critérios Foram entrevistados dentro do CAPS II de Itatiba quatro pacientes portadores de esquizofrenia. Por se tratar de uma pesquisa sobre a singularidade do sujeito, a quantidade da amostra não é de relevância significativa no presente trabalho, pois pode-se alcançar a subjetividade a partir de um único sujeito. A faixa etária eleita dos sujeitos da pesquisa foi entre 18 (dezoito) e 75 (setenta e cinco) anos selecionados aleatoriamente nos aspectos: sexo, crença, etnia e classe social. Deveriam estar diagnosticados há pelo menos cinco anos, pois nesse período o paciente já tomou conhecimento dos sintomas da doença e dos tratamentos que se fazem necessários. Foi imprescindível que os sujeitos da amostra estevissem compensados, ou seja, não estivessem em crise no momento da entrevista. Procedimento para coleta e análise de dados Após aprovação do Comitê de Ética da UNIP, foi contatado o CAPS II com uma Carta de Consentimento Institucional para agendamento das entrevistas, que tiveram duração média de 50 minutos a uma hora. Posteriormente, foi explicado o objetivo da pesquisa aos participantes, coletando as assinaturas para o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e preenchido um Questionário para Caracterização da Amostra. Em seguida, iniciaram-se as entrevistas, a partir da pergunta disparadora “O que é conviver com a esquizofrenia”? O método utilizado para tabulação do resultado foi uma análise temática. Segundo Minayo (2007), a análise temática tem como objetivo descobrir os núcleos de sentidos que aparecem no discurso do sujeito e cuja presença ou frequência de aparição podem significar alguma coisa para o nosso objetivo 285 analítico. Esta análise consiste em três etapas: 1) pré-análise; 2) exploração do material; 3) tratamento dos resultados. Análise e discussão dos dados Apesar de a esquizofrenia ser um termo essencialmente psicopatológico que trás consigo referências de uma doença descrita em manuais médicos, CID-10 (1993) e DSM-IV (1994), optou-se aqui por conhecer este transtorno mental a partir da fala e percepção dos sujeitos acometidos pela mesma. Desta forma o trabalho desenvolvido fundamentou-se em conceitos subjetivos e não em métodos médico-científicos. Portanto não se pretende abolir os conceitos sintomatológicos da doença, mas sim tratá-lo de forma simples, segundo a compreensão do próprio sujeito. Buscou-se compreender o processo do adoecer, que afetado pela subjetividade individual, nem sempre é compartilhado. Na sequência serão abordados os temas que consideramos mais relevantes em decorrência do que emergiu da coleta e análise dos dados: a percepção religiosa do indivíduo acometido pela esquizofrenia; a experiência de obtenção do diagnóstico de esquizofrenia; a percepção dos sujeitos portadores de esquizofrenia a respeito do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS); a percepção dos portadores de esquizofrenia sobre as relações interpessoais; relatos de experiências com o hospital psiquiátrico; relação do esquizofrênico com o trabalho; relato sobre os sintomas da doença. A percepção religiosa do indivíduo acometido pela esquizofrenia Vamos tratar da religião aqui como um fenômeno eminentemente humano, não tendo por objetivo colocar em questão a existência ou não de uma divindade ou de questões sagradas, levando à risca o objetivo do presente trabalho de não enquadrar e ou julgar os sujeitos da pesquisa. Portanto, 286 buscou-se conhecer a percepção das experiências religiosas das pessoas com o diagnóstico de transtorno do espectro esquizofrênico. A religião é uma importante instância de significações e ordenação da vida de seus reveses e sofrimento. Ela parece ser fundamental naqueles momentos de maior impacto para os indivíduos, como perda de pessoas próximas, doenças graves, incapacitação e morte. Como é elemento constitutivo da subjetividade e doador de significado ao sofrimento, defendo que ela deva ser considerada um objeto privilegiado na interlocução com a saúde e os transtornos mentais. (DALGALARRONDO, 2008) Sou Católico. Como eu posso falar! A compreensão da... como se diz... da vida... a importância do outro. Então, isso foi fortalecendo a minha vida, a crença, a crença em Deus. Então, isso tudo foi modificando, foi... fui ficando mais feliz, eu fiquei mais feliz. (Verão, 61anos, U). Observamos que na narrativa da percepção de Verão sobre a religião, após a sua doença, ele compreendeu-a como sendo fortalecida a sua crença em Deus, vislumbrando melhor a importância do outro e sentindo-se mais feliz. Verão relatou ser católico, porém em seu discurso falou sobre o fortalecimento de sua crença em Deus não necessariamente vinculada à religião católica. Tenho três crenças, evangélico, carismático e umbandista... já participei das três já [...] Ah! Pra falar a verdade hoje em dia eles comercializam a palavra de Deus pra ganha dinheiro e eu não gosto disso, só pedem dinheiro. Se você der dinheiro pra igreja você tem tudo, se não dá nada, você não tem nada, pra igreja (Outono, 42 anos, A). Na narrativa da percepção de Outono sobre a religião, ele relatou ter três crenças religiosas, demonstrando ter participado delas no passado. Porém em seu discurso presente constatou-se sua autenticidade sobre as igrejas compreendendo-as como um comércio da palavra de Deus, elucidando seu não contentamento com tal fato. Eu sou evangélico. Só que é o seguinte, eu sou evangélico, mas como a minha doença, por exemplo, a gente acredita que Deus fala com a gente quando tem essa doença. Então, se eu sou evangélico, eu não posso entrar muito na religião, porque eu posso entrar em crise (Primavera, 54 anos, J.). No discurso de Primavera ele demonstrou certa consciência de sua doença, explicando sobre os riscos da crença de sua religião em seu processo 287 de adoecer, ou seja, surtar. Surpreendentemente Primavera relatou o controle que precisa ter para participar dos cultos evangélicos. Em relação à esquizofrenia e à religião uma revisão de literatura aponta que alguns pacientes são ajudados por sua comunidade de fé, apoiados por atividades espirituais, confortados e fortalecidos por suas crenças. Entretanto, há a preocupação de que essas intervenções religiosas possam interferir na recuperação de pessoas com transtornos mentais graves de forma negativa, podendo complicá-la especialmente se estão presentes alucinações e ou delírios (BRAGHETTA, et al. 2011). Olha, a minha religião, eu fui criada na igreja católica. Agora, adulta, e bem adulta, como eu estou agora, com 71 anos, a minha religião é direto com Deus, eu não vou em nenhuma das igrejas, sabe? É direto com Deus. Converso com Deus, peço ajuda, sou atendida... inclusive, não sei se seria o caso de pôr católica (Inverno, 71 anos, N). No discurso de Inverno ela relatou que foi criada na igreja católica, mas elucidou que hoje sua relação é direta com Deus sem intermediação de instituições religiosas. Segundo Mattos (2009), o ser humano sempre procurou entender-se e entender o mundo a seu redor recorrendo, para isso, a diversos Deuses. Isto porque, como sugere a máxima “conhece-te a ti mesmo”, o homem não pode conhecer-se sem referir-se a uma alteridade, ao outro, ao além. Para a psicanálise, o “sujeito do suposto saber” indica esta forma de crença no outro que é plenamente consistente, os quais supõem possuir todo o saber que falta ao sujeito, saber este capaz de nos dar o porquê e o “como” de nosso sofrimento, tornando legível nosso destino. Na conclusão desta análise temática, pudemos observar o modo de construção singular dos sujeitos a respeito de suas percepções sobre a religião. As narrativas sobre as percepções religiosas configuraram-se como conteúdo singular, subjetivo e amplo. Compreendemos que o entendimento à cerca da religião construída pelos próprios sujeitos, foram em sua maioria completos e ricos, demonstrando o quanto a historia de cada um deles é própria e única, história esta de vida, pela qual eles captaram suas experiências e conhecimentos sobre religião. 288 A experiência de obtenção do diagnóstico de esquizofrenia Primeiramente, para discorrer a respeito da experiência de ser diagnosticado com esquizofrenia, devemos compreender o que significa adoecer, linguajar comumente utilizado ao retratar o ato de ser diagnosticado com o transtorno. Leal et al. (2014, apud Kleinman e col., 1978,1988) descreve como Disease alterações biológicas, fisiopatológicas e psicofisiopatológicas, que condizem com o funcionamento normal ou anormal dos órgãos e sistemas corporais, portanto é um fenômeno observável através da perspectiva de uma terceira pessoa. No caso da esquizofrenia, existem alterações nesse espectro de funcionamento que possibilitam o diagnóstico de um médico psiquiatra, que atua como o observador citado acima. Apesar de várias teorias sobre a esquizofrenia e os parâmetros de classificação nosológica como o CID 10 e DSM, observamos nas entrevistas que os portadores da doença passaram por um longo processo antes de ter o diagnóstico. De acordo com o discurso dos entrevistados, observamos dificuldades dos sujeitos relatarem sobre o início da doença. De acordo com Mari & Leitão (2000), casos novos de esquizofrenia raramente ocorrem antes da puberdade e acima dos 50 anos. Quando o começo é insidioso, há uma dificuldade de estabelecer-se com precisão o início da doença. Porém, essa visão médica a respeito do adoecer é um recorte do que pode ser determinado empiricamente, observável e compreensível aos olhos. Para compreendermos a experiência do sujeito na obtenção desse diagnóstico, devemos considerar como ele constrói o sentido dessa doença a partir do momento que é lançado em convivência com ela. Sendo assim, consideramos que o processo de adoecimento tem início com a autopercepção de mudanças nas sensações corporais e continua com a rotulação de “doente”, pelo próprio sujeito, familiares e pessoas próximas. Os significados, símbolos, histórias de vida, as atitudes em busca de tratamentos, cura, bem estar e reestabelecimento do que foi alterado pela existência da doença são aspectos integrantes da experiência de adoecer (LEAL et al., 2014). No trecho a seguir, 289 compreendemos Primavera tentando relacionar-se com as desordens sentidas por ele mesmo e buscando uma maneira de compreender o que ocorreu com ele no momento: Eu fiquei sabendo que... eu comecei a ler as características da esquizofrenia, e me encontrando nelas, tinha alguns pensamentos que eram próprios da esquizofrenia, fiquei sabendo, não lembro mais exatamente quais eram, precisaria ler de novo (Primavera, 54 anos, J). Logo em seguida, Primavera descreveu como sua história de vida foi modificada pelo diagnóstico e relatou como o adoecer modificou sua vivência. Antes um desenhista com compromissos profissionais e durante o descobrimento da doença viu-se sem ânimo e confuso a respeito da origem de seu sofrimento. Dentro da perspectiva subjetiva de Primavera, o adoecer diz respeito a alterações sociais significativas a ela. Logo o adoecer tem um sentido social e político para o indivíduo, alterando seu modo de viver social (LEAL, 2014 apud YOUNG, 1981). Desde que eu me aposentei... então começou a doença em 1987, eu trabalhava como desenhista né [...] Procurei médicos, clínico geral para saber o que eu tinha, eu não tinha ânimo para fazer nada. Aí, depois eu fiquei sabendo do hospital psiquiátrico, lá em Jaçanã, o Vera Cruz. Aí, eu fui para lá, e pedi para me internar lá, porque, eu queria saber o que eu tinha. Inicialmente eles me falaram que era depressão né, mas eu descobri a 5, 6 anos que era esquizofrenia (Primavera, 54 anos, J). Inverno tem um discurso semelhante ao de Primavera quando relata a respeito de sua vida pregressa ao diagnóstico e o momento do primeiro contato com a doença: Olha, eu trabalhava num consultório médico com um angiologista em 72. E, eu estava meio agitada, estava meio nervosa...e a partir daí, eu comecei a ficar com problema [...] Daí, esse médico que me levou para trabalhar com ele, ele veio em casa e eu estava estranha, muito estranha. Eu lembro que eu levantei, sentei em uma cama, e eu falava com ele assim, por sinais, sem a fala, por sinais. Daí, ele falou: “Olha... falou para a minha colega, tem que internar”, o estado que ela está não tem como tratar em casa [...] Daí, então, marcamos uma consulta e fomos no Doutor X. No caso, ele não falou qual era a minha doença, só depois, que deu um tempo, que daí ele falou pra minha irmã e ele falou que eu ia ser medicada pro resto da vida, falou que era possível que eu tivesse alguns surtos nesse tempo. E, de fato, só que agora, graças a Deus, eu conserve (Inverno, 71 anos, N). 290 Para Outono, a esquizofrenia foi diagnosticada muito cedo em sua vida; com apenas 15 anos ele descreveu que já tinha o laudo do médico. Após esse período retratou uma vivência que aparenta ser permeada de institucionalizações: É, quando eu estava em crise eu descobri a esquizofrenia com 15 anos, ai quase deu leucemia em mim e eu fiquei muitas vezes internado, desde dos quinze anos já. Eu fiquei na clínica São Luiz de Juiz de Fora, a primeira vez, depois Hospital Ismael de Amparo, Jaú, Varzea, Bauru, Indaiá, Indaiatuba e no Hospital Psiquiátrico Palmeiras. Com quinze anos o médico deu o laudo de esquizofrenia (Outono, 42 anos, A). Verão relatou de forma confusa que obteve o diagnóstico após procurar um auxilio, pois a vivência com os sintomas de alucinações estava sendo “difícil”, como ele mesmo descreveu: Foi recente que eu percebi. Porque eu sempre... uma fluência de vida, assim, então, as pessoas nunca tinham diagnosticado que eu era esquizofrênico. Eu tinha visões. Foi aí que começou a ficar difícil, aí eu procurei auxílio, entendeu? (Verão, 61 anos, U). Compreendemos que a experiência de obter o diagnóstico de esquizofrenia é única e singular para o indivíduo que, em um determinado ponto da vida teve que realizar um enfrentamento da doença e construir um sentido para ela. Assim como exemplifica linguajar comumente utilizado ao retratar o ato de ser diagnosticado com o transtorno. LEAL et al (2014, apud, Kleinman e colaboradores, 1978,1988), em sua obra relativa ao processo de adoecimento e a construção de uma relação do indivíduo com a própria doença. Os indivíduos entrevistados relataram que receber o diagnóstico de esquizofrenia envolvia internações e surgimento de sintomas, porém podemos considerar que existiam particularidades de sua vida privada que foram alteradas devido ao recebimento do diagnóstico; como no caso de Primavera e Inverno que romperam sua relação com o trabalho e também Outono que recebendo o diagnóstico tão precocemente, teve sua adolescência interrompida. A percepção dos sujeitos portadores de esquizofrenia a respeito do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) 291 Os processos de desinstitucionalização para pessoas com históricos de internação começaram a ser efetuados a partir dos anos 90 e tomaram maiores proporções no ano de 2002 com uma série de normatizações do Ministério da Saúde (BRASIL, 2005). As diretrizes do CAPS (Centro de atenção Psicossocial) descrevem que é dever do serviço acolher e dar atenção para pessoas acometidas por transtornos mentais graves e persistentes, de modo que se busquem preservar os laços sociais do indivíduo em seu território atual (Portaria/GM nº. 336 – De 19 de fevereiro de 2002). O discurso que elege o CAPS como uma modalidade de atendimento mental de qualidade foi proeminente em toda a amostragem da referente pesquisa, os entrevistados mostraram um forte vínculo e simpatia pelo serviço pelo simples fato dele ter abolido as internações manicomiais em longo prazo: Eu fiquei muito internado. Daí, a volta coincidiu com a abertura do CAPS... desse CAPS II. E... Graças a Deus, eu estava com um alívio, eu estava pedindo não aos manicômios. Isso me aliviou demais. Graças a Deus! Foi uma fase boa... uma fase boa... nossa, o CAPS II foi a melhor coisa para mim nessa minha vida inteira. Porque, nossa! Muito bonito o trabalho deles aqui. Cuida sim, separar não (Verão, 61 anos, U). Na seguinte fala o entrevistado descreve que suas internações só são necessárias em momentos de crise, onde ele favorece a internação até que ele recupere-se: Foi bom sim eu comecei me tratar no SUS alí embaixo, depois em 2006, 2007 eu vim pra este CAPS. Este CAPS inaugurou em 2006. Mudou sim, muito, aí foi menos internação né, quando eu tinha uma crise muito forte eu me internava, só uns três meses até me recuperar e saía (Outono, 42 anos, A). Além da redução de internações o CAPS também possibilita atividades de reintegração do indivíduo na sociedade, através de atividades de produções artesanais. O trabalho tem como objetivo fortalecer laços comunitários entre os usuários: Estou muito bem... O CAPS, nossa, é uma benção para nós. O CAPS é uma benção. Os pacientes aqui são poucos que precisam ainda internar. Mas, a maioria, está trabalhando, aqui na sala de fuxico, 292 quem trabalha também na sala… como chama... sala de artesanato. Eu fico só no fuxico, eu faço bastante coisa, é um... graças a Deus... (Inverno, 71 anos, N). Compreendemos através da fala dos entrevistados que as mudanças proporcionadas pela atenção do CAPS são positivas para que eles possam ter uma menor incidência de internações. Realidade que anteriormente carregava um fator de exclusão e segregação do indivíduo portador de esquizofrenia. Apenas um dos entrevistados abordou as atividades oferecidas pelo serviço em prol da ressocialização dos usuários, relatando que se sente agradecida por ter uma pluralidade de opções de atividades disponíveis. A percepção dos portadores de esquizofrenia sobre as relações interpessoais Amarante (2008) narra que ao longo da história presenciamos o isolamento dos doentes mentais pela sociedade. O presente trabalho não tem por objetivo interpretar a percepção da narrativa dos sujeitos sobre como eles relacionam-se com o outro. Moro sozinho hoje. Eu não estou me sentindo difícil. Me viro bem”. Tenho bastante amigos, tem muita gente, mas eu não... a doença não deixou eu ficar muito amigo dos outros. Eu gosto de todos eles, tudo, assim, eles, elas... mas eu não tenho muito contato com eles, de vez em quando eu encontro. É difícil explicar, parece que está raspando alguma coisa assim. [...] a reação com os outros... com os outros, às vezes, tem uma reação raspando... de incomodar (Verão, 61 anos, U). Percebemos que Verão relatou morar sozinho elucidando que não sente dificuldades quanto a isso. Porém ressaltou a dificuldade em relacionar-se com as pessoas, mencionando uma sensação de “raspagem”. Segundo Santos (2006), as alucinações podem ser também cenestésicas – relativas à sensibilidade –, modalidade do sintoma que agrava ainda mais a dificuldade de contato ou relacionamento com o outro. Eu sou viúvo, vai fazer dia 15, agora, 19 anos. Então, o que aconteceu? Já tinha crise antigamente, né, mas só que não era tão grave. [...] Tô sozinho inclusive amanhã eu vou encontrar uma pessoa 293 que conheci pela internet. O primeiro encontro, e o coração bate forte, só que ela não gosta que fuma, eu comprei adesivo para parar de fumar, amanhã vou usar, comecei a usar hoje, já estou há 24 horas sem fumar […] Eu tenho um filho agente se dá bem, por exemplo, teve uma época que eu bebia né aí meu filho, ele sabia da doença né. Às vezes, agente abusa um pouquinho né, hoje, não, mas antigamente ele dizia “você tá doente pai”, mas a gente não levava muito a sério a doença, nem ele nem eu. Quando ele falava que eu estava doente, eu me achava péssimo, me achava impotente com a doença, hoje não. Hoje eu levo um papo normal com ele, a gente conversa, dou dura, dou conselho e ele dificilmente toca no assunto da doença, porque ele percebeu que eu estou bem. Tenho um netinho já (Primavera, 54 anos, J). Primavera relatou ser viúvo, mas demonstrou desejo e contentamento ao confidenciar ter um encontro com uma mulher. Elucidou também ter um filho e um neto, explicando as dificuldades encontradas nesta relação no início de sua doença, porém compreende-a hoje como sendo boa. Observamos a partir desta narrativa o desamparo familiar, mas, em contrapartida, houve uma resignificacao da relação de primavera com o filho e neto, buscando uma nova companheira. As mulheres só usam agente depois vão embora, e não apresentam os “fio” pra gente, somem no mundo. Eu queria dar uma pensão nem isso elas quiseram, sumiram. Eu tive um caso com uma psicóloga em Várzea e tive uma filha com ela. Mas eu tô cansado de ficar sozinho já viu, eu tive vários relacionamentos com mulheres, mas não deu certo, ia e voltava, agora só amizade só com essas mulheres (Outono, 42 anos, A). Outono expressou sua indignação com as mulheres compreendendo que elas usavam-no e abandonavam-no. Relatou suas dificuldades em manter relacionamentos heterossexuais, queixando-se de estar sozinho. Confidenciou a existência de uma filha com a qual não tem contato. Tenho tias e primos, mas ninguém liga pra mim, mais fácil os estranhos ajudar eu do que os próprios parente. Não tenho ninguém aqui por mim, sou sozinho, só eu e Deus (Outono, 42 anos, A). Outono relatou, também, as suas dificuldades na relação com seus familiares, verbalizando ser mais fácil receber ajuda de “estranhos”, ficando novamente em evidência no seu discurso a solidão. Para Sousa-Filho et al (2010), “pensar sobre a participação da família no tratamento de pacientes psiquiátricos representa um passo importante”. Deve-se considerar que os 294 familiares possuem um papel relevante no processo do tratamento psiquiátrico. Mas o que ainda se percebe é que muitos familiares apresentam poucas informações sobre a doença gerando expectativas negativas em relação à possibilidade de melhora de seu familiar, levando os familiares a não acreditar na mudança de uma realidade que se mantém insatisfatória durante um longo período de tempo contribuindo para uma marginalização do paciente (NÓBREGA, 2006). Não é brincadeira não, eu falo ninguém acredita, eu falo pro psiquiatra, mas ele não acredita por eu ser assim... com esses pensamentos. Eles acham que é... [silêncio] alucinação… isso é discriminação. Na vila eles me chamam de louco, quando eu passo as crianças riem e também me chamam de louco. Eu ficava muito triste, eles diziam ‘olha o louco aí, lá vem o louco!’ (Outono, 42 anos, A). A minha família não aceitava que eu estivesse com problema. [...] Fingida, você é fingida, sempre foi fingida [...] E depois que meus pais faleceram eu estava muito mal, sabe? Quando eu estava convivendo com eles. Nossa, eu estava muito mal e, sinto remorso hoje de como eu cuidava deles (Inverno, 71 anos, N). Outono e Inverno relataram as dificuldades enfrentadas pela sociedade e família para aceitação dos sintomas da doença, sendo considerados loucos e fingidos. Marcon (2010) destaca que rotular o indivíduo esquizofrênico de louco é a maneira encontrada pela sociedade para entender o que está acontecendo, porém tal fato só aumenta o processo de estigmatização e seu isolamento social, sem compreender o sofrimento que este indivíduo está vivenciando. Na amostra da presente pesquisa os discursos dos participantes revelam as dificuldades de vínculo afetivo com o outro, seja com amigos, parentes, filhos ou companheiros. Observou-se que a maioria dos participantes não usufruem do suporte familiar. Face ao exposto, embora dentre os vários sintomas negativos da esquizofrenia esteja a diminuição da integração social e a dificuldade em gerenciar diferentes tipos de relações, pôde-se observar que os sujeitos desta pesquisa, apesar de sentirem-se solitários resgataram sua autonomia, na medida em que foram capazes de tolerar o sentimento de solidão. Mostrando serem capazes de cuidarem de si no âmbito financeiro e cotidiano. 295 No entanto, o estudo revelou dificuldades de investimento e manutenção de vínculos afetivos pelos sujeitos pesquisados, sejam estes nas relações de amor, amizade, ou entre os familiares e descendentes. Relatos de experiências com o hospital psiquiátrico Observaram-se nas entrevistas, relatos referentes à internação em hospital psiquiátrico e apareceram tantos aspectos positivos quanto negativos nos relatos em relação a esse tema. Segundo Dalgalarrondo (2003), a internação psiquiátrica, embora onerosa, continua sendo um recurso terapêutico indispensável para pacientes graves. De acordo com o autor há um processo em curso, no Brasil, de reestruturação da atenção à saúde mental e os hospitais psiquiátricos progressivamente têm deixado de constituir a base do sistema assistencial, cedendo terreno a uma rede de serviços extrahospitalares de crescente complexidade. […] Eu comecei a pensar em tudo que eu passei. Conversei muito com os profissionais daqui, o G. tem muita experiência trabalhou no Pinel, e isso foi me ajudando. Tem muitas histórias, eu vivi o submundo da mente humana. É muito perigoso. Eu cheguei a almoçar... um acontecimento muito chato, eu estava almoçando no Pinel, uma comida esquisita, me deu uma ânsia, tinha uma moça conversando comigo, e eu vomitei, ficou chato até, mas não tinha como controlar. Comida mal feita, de qualquer jeito, pessoas mal vestidas, cheirando, cheirando ruim, sujas. Eles abusavam das pessoas... acredita? tinha os prédios dos homens e das mulheres separados, quando as mulheres eram bonitas, os enfermeiros abusavam delas, tudo isso aconteceu (Primavera, 54 anos, J). No trecho a seguir, Outono contou-nos que a experiência de internação não foi desagradável a ele quando ela não envolvia maus tratos e abusos físicos. Depositando que grande parte do bem estar na internação tem responsabilidade do serviço de enfermagem oferecido, pois muitas vezes esses profissionais agrediam os internados e também a ele: Eu tenho um monte de internação, perdi as contas já, faz as contas: dos quinze anos aos quarenta e dois? […] Dependendo do hospital, quando agente não é muito mal tratado não tem problema, dá pra aguenta a internação, o problema é se pega uns enfermeiros que gostam de maltratar a gente. Eu tinha um azar de pegar uns 296 enfermeiro ruim que só queria sempre me amarra, eu tenho uma raiva deles que me maltratavam, aí eu fugia. Lá no Palmeiras eu só ficava amarrado. […] levei vários choques na cabeça. […] fiz tratamento com eletrochoque, eles colocavam duas batatinhas de cada lado da cabeça e davam choque, estremecia e amolecia meu corpo inteiro. Não dói, não dói, você só sente uma descarga elétrica (Outono, 42 anos, A). Inverno relatou em seu discurso diversas experiências de internações, descreveu esse período apenas como “horrível” e que em uma determinada visita da irmã, disse a ela que seu lugar era no hospital, institucionalizada e que não voltaria mais: É... deixa eu ver. Aí, eu fui internada três vezes...Três vezes, porque eu tive surtos. Em Sorocaba, eu fui internada, deixa eu ver... hospital de medicina especializada e o Vera Cruz e fiz exames lá, no Vera Cruz, um aqui em Várzea Paulista. [...] Precisei ser internada na medicina... a... eu esqueci o nome... Hospital de Medicina especializada. Fiquei lá, acho que uns cinco meses, fiquei internada. E eu não melhorava. Era desde, falando coisas que não tinha cabimento. Independente de onde eu estivesse, ruim, era uma coisa muito ruim na minha cabeça, muito ruim. Nossa, foi horrível! Daí, deixei me internar no mental, fiquei no mental... até quando a minha irmã foi fazer uma visita para mim, eu falei para ela: “Olha, Inês, fala para a mamãe que o meu lugar é aqui. Eu não vou voltar mais para casa, porque meu lugar é aqui. (Inverno, 71 anos, N). Os indivíduos que relataram suas experiências vividas em hospitais psiquiátricos levaram-nos a compreender que foram de difícil adaptação, com diversos momentos de sofrimento envolvendo negligência e violência. Porém, Outono que teve seu diagnóstico de esquizofrenia com apenas 15 anos de idade e viveu diversas internações ao longo de sua vida, revelou que não considera a experiência de internação ruim quando ela não englobava violência. É possível que assim como Inverno e Outono muitos dos sujeitos que vivenciaram longos períodos de internação e distância de casa começaram a compreender o ambiente de internação como seu local de pertencimento, mesmo contendo sofrimento. Relação do esquizofrênico com o trabalho A segregação e exclusão social foram secularmente o caminho mais percorrido por quem padecia de transtorno mental no modelo de tratamento de cunho asilar, trazendo danos na vida de quem se encontrava com tais 297 enfermidades. Na atualidade, as antigas concepções começam a ser ressignificadas pelo movimento da reforma psiquiátrica, que revê o antigo paradigma da segregação e apresenta novas proposições ancoradas na habilitação psicossocial dos sujeitos adoecidos mentalmente. Durante a história sempre houve um conceito de que a aptidão e a inaptidão para o trabalho representavam um critério importante na decisão de julgar um sujeito como “normal’’ e “anormal’’ ( EZERRA, et al. 2004). Eu não estou trabalhando com nada mais, eu aposentei. Eu era bancário, trabalhei eu acho que uns oito, nove anos. Eu gostava. Eu não trabalhei aqui em Itatiba, só em São Paulo eu trabalhei. Aqui eu não trabalhei com nada (Verão, 61anos, U). Verão relatou-nos que gostava de trabalhar, porém hoje encontrava-se aposentado e sem emprego, mas não fez menções positivas e nem negativas a tal fato. Eu trabalhava num consultório médico com um angiologista, em 72. Estou aposentada. Eu trabalhava na enfermagem, eu trabalhei na Regional, eu trabalhei nos postinhos, o último lugar que eu trabalhei foi no SUS, no Papanicolau. Então eu comecei a apresentar problema (Inverno, 71 anos, N). Inverno relatou que trabalhou por bastante tempo na área da saúde sentindo-se impossibilitada de continuar no seu ofício após a doença. Esta dificuldade relacionada ao trabalhar fica atrelada, frequentemente, ao curso evolutivo deteriorante da patologia, gerando baixa significativa do funcionamento pessoal. Além disso, às dificuldades de gerir-se se somam as concepções sociais que isolam ainda mais as pessoas com transtorno mental do mundo do trabalho, pois enfrentam preconceitos construídos historicamente de que são pessoas incapazes (SOUZA, 2006). Eu fiz um curso de Autocad aqui... eu tinha feito em São Paulo... em 2006, aí fiz de novo agora em 2013, em Itatiba peguei o diploma. Ai eu conheci um professor de Autocad daqui, que mora aqui perto, aí ele tava dando aula desde abril e ele tem me ajudado, eu já peguei serviço, vou trabalhar agora às duas horas. Vou mandar fazer uns cartões (Primavera, 54 anos, J). Por exemplo, deixa eu explica pra vocês eu sou aposentado por invalidez, então me aposentaram em 96. Eu saí da Caixa, em 87 em 88 eu entrei. Quando sai fiquei 3, 4 meses parado. Em seguida o 298 médico me disse que eu não estava bom para trabalhar, saí e fui trabalhar como desenhista, mas a depressão veio novamente, em 96 me aposentaram. Eu estava com 37 anos. Novo, novo, já penso que perda de tempo? Tanta coisa que eu podia ter feito. Eu tenho um sonho de voltar a trabalhar. Eu tenho vontade, vocês não vão acreditar, eu estou fazendo Autocad, eu queria abrir um escritório, mas como sou aposentado por invalidez, não posso abrir firma, mas eu quero. Eu preciso ir atrás de tirar minha aposentadoria para voltar a trabalhar de novo […] sou conselheiro da saúde também, aqui no município, voluntário, mas o prefeito aqui é meio devagar […] eu estou feliz, muito feliz, porque aos 54 anos eu voltei a estudar, e com 54 eu voltei a trabalhar (Primavera, 54 anos, J). Na vida de Primavera a falta do trabalho pareceu ser mais significante, pois lamentou o fato de ter sido aposentado pelo médico ainda tão jovem. Revelou que gostaria de ter produzido muito mais, manifestando o desejo de voltar a trabalhar. Confidenciando-nos que começou a fazer um curso de Autocad, tendo como meta abrir um escritório e voltar a desenhar, profissão que exercia anteriormente. Enquanto não consegue realizar seu sonho de ter seu próprio negócio, faz trabalhos voluntários em sua cidade. Contudo, mesmo com as limitações colocadas pela doença, ele considera-se feliz em ter conseguido voltar a estudar e a trabalhar como desenhista, orientado pelo professor. Primavera revelou claramente o desejo de voltar a trabalhar implicado ao sentimento de validade, felicidade e pertença social como cidadão de direitos, o qual, ainda que como uma pessoa diferente dos padrões culturais, almeja estar “incluído” como sujeito de direitos nesta sociedade. Souza (2006) assevera que a Psiquiatria e o trabalho dos pacientes estiveram sempre, paradoxalmente, próximos e distantes. Ainda hoje, as pessoas com transtornos mentais graves pouco conseguem colocar-se no mercado de trabalho. Enfatiza que o trabalho é fonte de desenvolvimento de potencialidades humanas. E é onde cada pessoa acometida pela esquizofrenia poderá dar um destino diferente e singular daquele concedido socialmente, o de incapaz. Trabalhar deve ser um direito de todas as pessoas, na medida em que isto tem uma função central na vida de todos, isto é, dos que sofrem ou não de transtornos mentais graves. A falta do trabalho é potencial fonte de sofrimento para os humanos, economicamente, pois mas "continua também sendo uma psicologicamente, referência não só culturalmente e 299 simbolicamente dominante, como provam as reações dos que não o têm” (SOUZA, 2006, apud, CASTEL, 2001). Eu era metalúrgico, auxiliar de máquina, eu furo as peças, fazia 2.000 furos por dia, batia o recorde, todo dia 3.000, 3.500 furos, das sete da manhã até às quatro da tarde furando peças, tinha uma hora de almoço. Aí eu tive uma crise na firma, eles internaram eu, parei de trabalhar, fui afastado e volto em 2016, faço uma reavaliação para poder voltar (Outono, 42 anos, A). Ah não sei se gostaria de voltar a trabalhar, eu tenho muita dor na coluna quando levei treze tiros nas costas, aí ficou meio difícil, dói muito aqui (e aponta para região da coluna onde dói), faço uns bicos trabalhando no mercadão em uma lanchonete de vez em quando (Outono, 42 anos, A). Outono contou da percepção satisfatória que tinha com seu trabalho, porém também fora afastado, após a sua doença. Relatou ter dúvidas quanto a voltar ou não a trabalhar. É notória a dificuldade de reinserção no mercado de trabalho manifestada em cada discurso do sujeito com esquizofrenia, ora participantes da presente pesquisa. Para alguns participantes arriscamos supor que viverem em exclusão traz sofrimento psíquico, sobretudo para quem após o adoecimento mental tenta construir possibilidades de trabalho em uma sociedade fechada e leiga ao compreender os diferentes. Observamos que todos os participantes percebiam benefícios previdenciários por invalidez trabalhista. Contudo, a mesma renda que os rotula inválidos ou ‘incapazes’ garante-lhes certa autonomia financeira e infere capacidade de autogestão, pois são sozinhos para administrar suas economias. Relatos sobre os sintomas da esquizofrenia A palavra sintoma, no dicionário, por definição significa: a manifestação de algo que poderia dar indícios de um diagnóstico. São estas manifestações ou modificações em formas de sintomas, sinais, indicações ou suspeitas que apontam para as disfunções orgânicas ou funcionais. 300 A esquizofrenia é uma síndrome psicótica que tem por características principais os sintomas de: alucinações e delírios, pensamento desorganizado e comportamentos bizarros (DALGALARRONDO, 2008). O esquizofrênico sofre uma desorganização mental profunda e seu comportamento é completamente alterado, segundo Dalgalarrondo (2008, apud Schimid, 1991), aponta a cisão com a realidade como a dimensão central da psicose. O delírio e a alucinação são os principais sintomas desta doença e um relato comum entre os pacientes entrevistados, porém estes sintomas são vivenciados de forma diferente e particular por cada indivíduo. Quando pensamos na esquizofrenia, apesar de ser uma síndrome psicótica, temos que levar em consideração que ela é vivenciada pelos pacientes de forma singular e subjetiva. Dalgalarrondo (2008), aponta que para se entenderem os sintomas, precisamos entender os signos, ou seja, os sinais que se caracterizariam pelo “estímulo emitido pelos objetos do mundo”. O sinal sempre vem com suas significações, por exemplo: um delírio poderia ser um sinal de esquizofrenia, porém a forma como aparece e como o sujeito vivencia ou significa, são os sintomas exclusivos dele. Na psicopatologia os sinais são objetivos e observáveis no paciente, contudo, os sintomas são as vivências subjetivas relatadas pelos pacientes. Como ele vivencia e significa suas experiências. A reação minha com a vida, com as pessoas, entendeu? Aí, foi mudando. Mudou a minha compreensão também. Compreendia como inimizade [...] Eu não via o limite das pessoas, o limite das pessoas. […] Quando senti chamar... uma maturidade […] eu estou falando o doce frutos... das descobertas [...] Mas é um sofrimento muito bom, não é aquele sofrimento que só leva pra baixo é um sofrimento para luz mesmo, pra mudança [...] É uma pedreira todo dia, mas faz parte. É gostoso. A gente tem que prestar atenção no lado bom, porque o lado bom é o que dá as respostas ao tratamento, a convivência e tudo (Verão, 61anos, U). O participante Verão descreveu os seus sintomas como um sofrimento bom, pois não o “levariam para baixo”, seria uma “mudança para a luz”, relata que sua experiência com a doença foi de alguma forma transformadora. O sujeito entende-a como frutos de uma nova descoberta, que apesar de existir um sofrimento, ele seria “bom”. Ao invés de compreender as pessoas que se 301 aproximam como inimigas, ele transformou-as em “sofrimentos bons e mudanças positivas”, “como uma pedreira todo dia” do seu sofrimento. Eu conto para as pessoas e ninguém acredita eu saí as três vezes do túmulo sozinho. Eles acham que eu tô delirando. Eu sempre saí na bordoada quebrando os tijolos com as mãos e os pés. Já pensou, se eles tivessem me enterrado na terra dentro do caixão? Seria mais difícil. Aí eu tava ferrado (Outono, 42 anos). Eu levei um tiro na cabeça lá em Bauru da polícia civil. Uns quatro civil me levaram para uma quebrada atiraram na minha cabeça, depois vazaram. Passei 6 dias enterrado em Bauru, me enterraram dentro do cemitério. Olha, tenho marcas na minha mão de quebrar os tijolos. Eu tenho três casos de morte na minha vida. Me enterraram três vezes, vivo! A primeira vez, em Bauru com 30 anos, em 2002, 200 eu fui assaltado levei 1 tiros, e outra vez levei uma “punhelada” na cabeça mais 30 dias, deu 67 dias de morte. Saí três vezes da sepultura (Outono, 42 anos, A.). O entrevistado Outono mostrou-nos um exemplo de pensamentos delirantes que mesmo com argumentos contraditórios, conteúdos bizarros ou absurdos (PALMEIRA; GERALDES; BEZERRA, 2009), ele irrita-se quando as pessoas duvidam do que conta. Sua percepção da realidade não é a mesma compartilhada pela maioria dos neuróticos, porém estruturou e articulou sua narrativa dentro de uma lógica própria, fazendo, assim parte da sua maneira de existir. Eu tinha... tenho umas visões, não é visões, visões já tive já, não resolveu nada, agora que tem todo um jeito de ler as pessoas... antes de encontrar com elas, depois de ler também como elas tão relacionando, se está com problema ou se não, e ajudar. Parece que eu tenho um encontro com as pessoas antes. E, normalmente, quando tava marcado com vocês também senti que tinha coisa nova chegando, mas ele me informou semana passada que viria, aí eu fiquei preocupado. Eu não posso subir muito... (Verão, 61anos, U). Outro sintoma da esquizofrenia é a alucinação. Dalgalarrondo (2008), afirma que a alucinação seria uma alteração na sensopercepção. A percepção seria a consciência pelo indivíduo do estímulo sensorial dos objetos e fatos exteriores, complexos ou não (DALGALARRONDO, 2008, APUD, PIÉRON, 1996). Portanto, Verão vivenciou sua doença como um jeito novo de perceber as pessoas. Como se esse jeito novo de ver as pessoas proporcionasse ao paciente a sensação de ser útil ao próximo. 302 Ah sei lá perseguição, ouvia vozes vagamente ficava perturbado. A esquizofrenia tem um quadro horrível pra caramba você fica muito perturbado pra caramba, dá problema, qualquer coisa te incomoda, quando eu tô em crise quero ficar socado num canto sozinho sem ninguém por perto. Eu tive uma crise no começo deste ano fiquei internado em Amparo, mas eles me amarravam, me maltratavam, uns três homens grandes me judiavam eu vivia amarrado aí eu fugi (Outono, 42 anos, A). O paciente referiu-se a alucinação auditiva como parte do processo dos seus sintomas, ele descreveu um tipo de alucinação que é denominada de audioverbal. Nestas ocasiões, quando se sente “perturbado” e incomodado ele prefere ficar isolado, afastando-se do convívio social. O paciente relatou a percepção dos sintomas ou das manifestações da doença, através destas sensações corporais que correspodem a experiências de estranheza e malestar localizadas no corpo, vivências presentes em transtornos psicóticos. Relatou, também, o desconforto de ser maltratado e judiado quando procurou respaldo profissional para cuidar da doença. O uso deste tipo de contenção ao paciente, “o ato de amarrar” é extremamente desconfortável e incômodo, levando este sujeito a optar por fugir da instituição. Então minha vida é bem parecida com aquele filme “Uma Mente rilhante”, só que eu não via vultos né, eu fazia cálculos matemáticos quando estava em crise. Aí, me deu uma estafa e eu não conseguia mais avaliar os projetos e não sabia mais o que estava desenhando eu não conseguia encontrar os desenhos. Fiquei parado sem saber o que eu tinha. […] Mas, a partir de 87 foi difícil pra mim, ficou mais complicado. Eu pegava o ônibus para ir de São Paulo a Diadema, pra mim descer do ônibus as pessoas me empurravam pra eu não me perder do ponto, aí eu descia e não conseguia fazer nada, sentia uma confusão mental, alguns pensamentos absurdos (Primavera, 54 anos J). Os sintomas apareceram na vida da Primavera, provocando uma exaustão mental significante. Seus pensamentos ficaram confusos e impediamno de realizar atividades comuns no seu cotidiano, como trabalhar em seus projetos como desenhista ou pegar o ônibus de São Paulo a Diadema. O paciente paralisou sua vida por um período, não conseguindo fazer mais nada, perdeu a capacidade de realizar ações organizadoras (DALGALARRONDO, 2008), envolvido por sintomas da esquizofrenia que são relatados com certa frequência por alguns pacientes: as confusões mentais e pensamentos 303 absurdos. Primavera vivenciou as dificuldades de compreender ou organizar seus próprios pensamentos. Eu começava a chorar muito, não, chorava muito. E... dizia coisas desconexas, sabe? E, o que mais acontecia? Trabalhar, eu já não estava conseguindo, sabe? Não estava conseguindo. Daí, fui para a cama. Não tomava banho, não comia, não dormia [...] Medo, sabe? Uma coisa muito ruim... daí, fui internada rápido. Me sentia muito mal, e a minha cabeça era uma trapalhada... nossa... eu não coordenava... horrível, horrível [...] eu chorava, eu chorava, eu não parava de chorar. E, cama. Não tomava banho, para comer não tinha condições, não tinha fome, não tinha nada, não queria comer, não queria falar com ninguém, em um quarto escuro. Nossa! Tava ruim mesmo (Inverno, 71 anos, N). Na paciente Inverno, os sintomas apareceram através de um discurso desconexo, revelando um grande sofrimento físico e psíquico. Não conseguia realizar tarefas diárias como trabalhar, cuidar de sua própria higiene ou sobrevivência básica como comer ou dormir. Expressava um medo do desconhecido e o sentimento de que algo ruim estava acontecendo com ela, diante disso se isolava das passoas e chorava compulsivamente. Reclamou que sua cabeça parecia confusa e apresentava sinais de depressão, que muitas vezes mascaram o diagnóstico de esquizofrenia, provocando ainda mais sofrimento, medo e insegurança no paciente (DALGALARRONDO, 2008). Eu... tenho a doença, eu tentei me matar, tinha medo de ficar assim o resto da vida, né, aí o que acontecia? Eu não sabia o que eu tinha. Agora hoje, eu sei o que eu tenho então consigo controlar. O meu mal também é que eu bebia, eu gostava de tomar cerveja, uísque, sair, aí eu entrava em crise, psicológicas, conseguia reorganizar tudo, depois voltar ao normal no dia seguinte e.... conseguir seguir a vida normal. Só que não era plena como é hoje. Hoje eu estou tranquilo. Hoje eu não bebo (Primavera, 54 anos, J). Neste paciente notamos a importância do diagnóstico correto da doença, pois não conseguia entender o que de fato acontecia com ele, dando indicíos de que hoje só o fato de saber já o ajudaria a “controlar” os sintomas. Alguns pacientes relatam que conseguem perceber quando estão entrando em crise e buscam ajuda, contudo não evitam a crise, mas podem minimizá-la. O objetivo da pesquisa não foi enquadrar o sujeito nos sintomas que caracterizam a esquizofrenia, mas colocar sua percepção sobre eles. Sabemos 304 que os sintomas fazem parte do diagnóstico da doença. Porém a forma como o portador de esquizofrenia vivencia, compreende ou experimenta estes sinais, são particulares, levando em consideração sua história pregressa e como ele constituiu-se como sujeito, sendo ele único com sua singularidade e subjetividade. Considerações Finais Implicados em limitações, mas inclinados e movidos por um desejo intrínseco, foi o que nos motivou a realização deste trabalho no qual tentamos conhecer a esquizofrenia a partir da narrativa da vivência de cada participante, entendendo este como o detentor de sua singular verdade. De acordo com os sujeitos entrevistados percebemos que de fato a esquizofrenia modificou suas vidas de forma marcante e intensa, contudo, cada um experienciou essas mudanças de forma única, subjetiva. Aprendemos muito durante a análise temática, quando notamos a presença de alguns temas que se tornaram relevantes e decisivos para nortear os rumos deste trabalho. As narrativas sobre as percepções religiosas configuraram-se como conteúdo singular, subjetivo e amplo. Compreendemos que o entendimento acerca da religião, construído pelos próprios sujeitos, foram em sua maioria completos e ricos, demonstrando o quanto a história de cada um deles é própria e única. Compreendemos que as experiências com os hospitais psiquiátricos foram comuns a quase todos os sujeitos e de um modo bastante significativo. Percebemos que os pacientes, quando receberam os diagnósticos, passaram por grandes transformações, como por exemplo, foram privados de trabalhar; seus pensamentos ficaram confusos, as alucinações, delírios e outros sintomas impediram-nos de realizar atividades comuns em seu cotidiano. Além disso, os relacionamentos familiares foram afetados significativamente: todos os participantes revelaram que atualmente moram sozinhos com alguma autonomia, mas reclamaram do afastamento familiar, sendo que somente um participante disse que o afastamento partiu dele e não de sua família. 305 Notamos através da fala dos entrevistados que as mudanças proporcionadas pelo CAPS são positivas, inclusive, diminuindo a incidência de internações. Realidade que anteriormente carregava um fator de exclusão e segregação do indivíduo portador de esquizofrenia, ao contrário de hoje que através das atividades oferecidas, o CAPS trabalha em prol da ressocialização dos seus usuários. Não podemos compreender o sujeito portador de esquizofrenia em sua singularidade sem levar em consideração sua vida pregressa, ou seja, como se constituiu no mundo. Os sinais da doença são descritos no CID 10 DSM IV e que reunidos compõem o diagnóstico, mas percebemos que cada sujeito vivencia a mesma doença de forma diferente e isso se torna possível porque nossa existência é única, assim como nossa subjetividade. Neste presente trabalho conseguimos produzir bons encontros com os participantes e nesta relação quebramos “pré-conceitos”, construindo novos conceitos a cerca da subjetividade do adoecer psiquíco. Constatamos que o diagnóstico e o tratamento destes sujeitos estavam de acoedo com os nossos estudos de psicopatologia, porém não podemos desconsiderar que classificações nosológicas aprisionam o sujeito em rótulos numéricos de manuais psiquiátricos, soterrando sua subjetividade. Enfim, no discurso dos sujeitos fomos muitas vezes surpreendidos por suas percepções, trazendo-nos mais perguntas do que respostas. A mensagem que fica é que não nos cabe indagar “que doença tem esse sujeito”, sem antes se preocupar em entender “que sujeito tem essa doença”. Referências AMARANTE, P.D.C; CRUZ, L.B. (Org). Saúde mental, formação e crítica. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2008. BESSET, V. L. (1997). Quem sou eu? A questão do sujeito na clínica psicanalítica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 49(4), 64-71. Disponível em: <http://ebp.org.br/wpcontent/uploads/2012/08/Vera_Besset_Quem_sou_eu1.pd f.> Acesso em: out. de 2014. 306 BRAGHETTA, CC, et al. Aspectos éticos e legais da assistência religiosa em hospitais psiquiátricos. Rev. Psiq. Clín. 2011; v.38 n.5. p.189-93. Disponível em: <http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol38/n5/189.htm>. Acesso em: out. 2014. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. 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Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo: Possui graduação (bacharelado, licenciatura e formação) em Psicologia pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1994), mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1997) e doutorado Ciências Médicas – subárea Saúde Mental – pela Universidade Estadual de Campinas (2004). Atua com psicoterapia psicanalítica de crianças, adolescentes e adultos. Tem experiência no ensino superior na graduação e pós graduação. Atualmente é coordenadora de curso, professora titular e supervisora de estágio na Universidade Paulista – UNIP / Campinas. CV: http://lattes.cnpq.br/4573356259939080 E-mail: [email protected] 310 GRUPO PSICOTERAPÊUTICO PARA PACIENTES DIAGNOSTICADOS COM TRANSTORNO ALIMENTAR: O PAPEL DO PSICÓLOGO Élide Dezoti Valdanha Manoel Antônio dos Santos Introdução Os transtornos alimentares (TAs) são considerados psicopatologias de etiologia multifatorial, ou seja, há uma combinação de diferentes fatores desencadeadores e mantenedores dos sintomas. Os principais fatores descritos pela literatura são: o meio sociocultural, a dinâmica familiar e aspectos da personalidade do indivíduo (Oliveira & Santos, 2006). De maneira geral, os pacientes relatam que o início dos sintomas aconteceu após exposição a algum fator estressante ou traumático, como comentários sobre seu peso, término de relacionamento amoroso ou perda de um ente querido. Pessoas com anorexia nervosa (AN) e bulimia nervosa (BN) passam a viver concomitantemente, preocupação em função apresentam excessiva, receio do medo traços de patológico de de personalidade, mudanças, engordar tais e, como hipersensibilidade e perfeccionismo (Borges, Sicchieri, Ribeiro, Marchini, & Santos, 2006). Para o tratamento dos TAs é necessário acompanhamento multidisciplinar, que possa abarcar diferentes áreas de conhecimento. São necessários cuidados com a saúde física, emocional e também com os familiares dessas pessoas. Assim, o tratamento deve contar com profissionais de diferentes especialidades: psiquiatria, psicologia, nutrição, enfermagem, terapia ocupacional e nutrologia, que possam oferecer um cuidado global à pessoa acometida (Santos, 2006). A psicoterapia de grupo vem sendo considerada uma alternativa interessante para o tratamento dos TAs, contrariando a visão sustentada até há pouco tempo, que contraindicava grupo para pacientes que desenvolviam esses sintomas. Acreditava-se que o grupo seria uma oportunidade para que 311 os pacientes trocassem dicas patológicas em relação ao comportamento alimentar como, por exemplo, conselhos sobre restrição alimentar ou dicas para potencializar os comportamentos purgativos. Atualmente percebe-se que esses grupos, quando bem conduzidos, podem auxiliar na troca de experiências, com o intuito de promover a saúde psíquica e nutricional dos participantes. Pacientes com TAs tendem a rejeitar tratamento no início dos sintomas, sustentando um discurso de que não estão doentes, apenas seguem um estilo de vida diferenciado do comum. Após vencerem essa resistência e iniciarem o tratamento, há uma tendência de rejeição dos cuidados psicológicos, já que não percebem a forte vertente emocional do problema (Santos, 2006). No contexto nacional é notável a escassez de estudos que investiguem as potencialidades e limites da aplicação da estratégia grupal no contexto do tratamento dos TAs. Considerando esses aspectos, este estudo tem por objetivo analisar a experiência de um grupo psicoterapêutico oferecido para pacientes diagnosticados com TA, como parte do tratamento em um serviço especializado multidisciplinar inserido em hospital-escola. Descrição do grupo investigado Trata-se de um grupo psicoterapêutico para pacientes com diagnóstico de TA, vinculados ao Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares (GRATA) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP-USP). Esse grupo é oferecido pela equipe de Psicologia do serviço, formada atualmente por cinco psicólogos e três estagiários em situação de ensino-aprendizagem. O grupo, que acontece semanalmente, é aberto e pode ser composto por pessoas de ambos os sexos – com prevalência de mulheres – e de idades e camadas socioeconômicas diversificadas. É coordenado por uma psicóloga e co-coordenado por estagiário de Psicologia. Outro estagiário de Psicologia participa das sessões, na condição de observador silente. 312 A participação no grupo é obrigatória em dia de retorno ambulatorial e livre nos demais dias. Em relação à frequência às sessões, a média é de cinco participantes em cada encontro, que tem duração de 1h30. Não há um tema fixo agendado, ou seja, são os participantes que escolhem os temas e assuntos a serem dialogados. As sessões grupais aqui analisadas foram transcritas de memória pela coordenadora, logo após o término dos encontros grupais. Serão apresentados alguns trechos para melhor visualização dos dados. Para preservar o anonimato, os participantes serão referidos como P1, P2, P3, e assim sucessivamente. A coordenadora do grupo será identificada pela letra C. Resultados e discussão É possível observar que, quando os grupos são formados por pacientes em início de tratamento, os principais temas abordados no grupo são relacionados aos sintomas associados ao TA. No caso de pacientes com AN: restrição alimentar, isolamento social e empobrecimento afetivo; no caso de pacientes com BN: perda de controle sobre os impulsos, compulsão alimentar periódica e manobras compensatórias visando à eliminação dos excessos cometidos durante os episódios de binge eating. Quando o grupo é composto por pacientes que estão há mais tempo em tratamento, outras possibilidades podem ser exploradas nos encontros, como os conflitos internos, dificuldades de relacionamento e problemas em diversas esferas da vida pessoal. Em uma sessão de grupo composto por três participantes, duas em seu primeiro dia de participação e a terceira no extremo oposto, em condição de receber alta naquele dia, essa última foi convidada pela coordenadora para compartilhar com as novas colegas como funciona o “grupo da Psicologia”. P1: “A gente conversa sobre o que a gente quiser. Pode ser sobre o que a gente tá sentindo, se tem alguma coisa incomodando, sobre a nossa família… Enfim, qualquer coisa…” (P1, 44 anos, AN). 313 É possível perceber, na fala de P1, que comparece já há muitos anos no grupo (cerca de 15 anos), uma legitimação em relação à proposta das coordenadoras, que é dar liberdade para que as participantes tragam o tema que desejarem para exame no grupo. Em resposta à fala dessa participante, uma das outras integrantes do grupo, adolescente e iniciante no tratamento, mostra-se surpresa por ser um grupo em que elas podem selecionar e direcionar livremente o que será conversado. Os novos participantes agem das mais variadas maneiras no primeiro encontro de que participam. Alguns se apresentam falantes, até mesmo prolixos, e expõem suas angústias em relação à doença e ao tratamento. Outros mostram-se reservados, silentes, observadores e desconfiados em relação ao que está acontecendo naquele momento de encontro. A formação de novos vínculos é, via de regra, ansiogênica, mobilizando defesas. Mas também se nota que, para alguns, o encontro grupal é uma oportunidade de reflexão sobre o próprio viver. Independentemente da postura assumida, todos evidenciam sua surpresa com a pluralidade de ideias e sentimentos que circulam em cada encontro do grupo. Cabe à coordenadora tranquilizar esses novos participantes, com o objetivo de auxiliar sua inserção no processo grupal, estimulando sua atenção, reflexão e diálogo. Quando o grupo acolhe novos membros, recém-chegados ao serviço, a turbulência gerada desestabiliza momentaneamente o funcionamento grupal. Nesse sentido, cada encontro é extremamente dinâmico e mutável, de acordo com a combinação de elementos psíquicos que prevalecem no encontro dos indivíduos (Zimerman & Osório, 1997). Os relatos são permeados de dúvidas, colocadas em pauta na medida em que se sentem menos ameaçados. Surgem diversos questionamentos direcionados aos coordenadores, relacionados aos aspectos formais do tratamento, como as faltas, horários, locais, consultas individuais, agendamento de retornos. Temas já abordados anteriormente, mas que ainda suscitam angústias e confusões. P2: O que eu mais fico pensando é sobre porque isso aconteceu comigo. Assim, eu não acho que meu problema é só com a comida, 314 não. Eu acho que eu tenho um monte de problema e queria saber por que chegou nesse ponto (P2, 16 anos, AN) C: Mais alguém do grupo já pensou sobre isso? P1: Eu concordo com você. Eu acho que a comida é só um jeito da gente mostrar que tem muitos outros problemas. Eu acho que a gente tem dificuldade em relacionamento, problema em aceitar alguma frustração, quando alguma coisa não é do nosso jeito… A gente tem um monte de problema… Quando a gente sofre algum trauma também não consegue lidar (P1, 44 anos, AN). Em um grupo com três participantes com sintomas bulímicos (vômitos, principalmente), os comportamentos compensatórios foram o eixo principal de conversa: “um lado que temos, mas que é obscuro e indesejável quando vivemos socialmente”. P3: É a primeira vez que eu consigo falar disso aqui, de comer, comer, comer e vomitar. É difícil falar disso, principalmente quando tem alguém que não vomita também, alguma anoréxica. Parece que você sente que o fracasso é maior ainda (P3, 22 anos, AN-BN). P4: É mesmo, é difícil falar disso. Tô feliz que a gente está conseguindo. Dá vergonha (P4, 20 anos, BN). C: O que envergonha? P5: Vomitar é sujo, nojento, doentio. Ninguém gosta de vomitar. P4: É desprezível. P5: Você não come porque você quer, você come sofrendo, chorando, se dilacerando. E depois vem o vômito para tentar diminuir isso. C: Penso em uma sensação corporal para tentar diminuir uma tristeza, uma emoção, uma dor interna. P6: No momento parece que é a única coisa que dá pra fazer. Qualquer coisa que tire a tristeza. O coordenador deve promover um clima permissivo, que favoreça a autorrevelação dos membros do grupo, permitindo uma releitura acerca de 315 suas vivências por meio da compreensão dos recursos de enfrentamento. Acredita-se que o ambiente protegido do setting terapêutico pode facilitar a adesão ao tratamento. Além disso, o coordenador deve assumir um papel ativo dentro do grupo, reforçando positivamente aspectos de enfrentamento, valorizando a comunicação franca e aberta, respeitando o tempo e ritmo das necessidades de cada integrante e fortalecendo possibilidades de aliança terapêutica (Santos, 2006). Para Gayotto (2003), o coordenador “é aquele que coordena uma ação que não lhe pertence, mas dela é guardião”. Assim, o psicólogo ocupa um importante papel nesta modalidade de atendimento, pois auxilia na ressignificação das experiências contadas/vivenciadas pelos participantes. Para pessoas diagnosticadas com TA, a perda de peso é sentida como uma conquista, como sinal de triunfo sobre os impulsos, sinalizando autocontrole. No sentido oposto, ganhar peso seria um fracasso da autodisciplina, o que se torna inaceitável para pacientes tão controladoras e perfeccionistas (Gaspar, 2005). Ao final do encontro grupal mencionado, como proposta da coordenadora, cada participante foi estimulada a pensar e enunciar uma palavra que representasse, na sua percepção, aquele momento do encontro grupal. Assim, surgiram as palavras: impotência, inclusão e fortalecimento. Foi possível perceber que algumas participantes sentiam-se realmente integrantes ao grupo, ativas dentro dele e bem recebidas pelas outras e pela equipe de coordenação, porém os sentimentos de angústia e impotência frente ao TA também puderam ser vividos e conversados. As participantes parecem buscar alguém que possa ajudá-las nessa travessia pontilhada de sofrimento, mas sem se perder em suas dores emocionais, que parecem transbordar para a via corpórea, excedendo a capacidade de contenção e elaboração psíquica. Considerações finais O espaço terapêutico grupal mostrou-se importante ao promover a livre expressão de sentimentos, o intercâmbio de experiências e a aquisição de 316 insights sobre o estabelecimento de padrões de relacionamento estereotipados, de modo a propiciar continência e acolhimento do sofrimento, além de favorecer a formação de vínculos saudáveis. Notou-se que uma das tarefas desempenhadas de forma reiterada pelos coordenadores do grupo foi preservar um clima grupal, que possibilitasse que os(as) participantes apropriassem-se de suas questões emocionais, ao mesmo tempo em que desenvolvessem suas habilidades relacionais para aprender com o outro (aprendizagem por intermédio do outro). Para tanto, o psicólogo que atua com esses pacientes deve buscar tirar o foco que tradicionalmente tende a ser colocado unicamente no problema alimentar, na incessante tentativa de valorizar os recursos pessoais que muitas vezes permanecem desconhecidos e inexplorados. Nesse contexto, o psicólogo pode auxiliar no reconhecimento e aprendizagem de novas estratégias de enfrentamento, fortalecimento de defesas saudáveis e na promoção de saúde mental. Referências BORGES, N. J. B. G., SICCHIERI, J. M. F., RIBEIRO, R. P. P., MARCHINI, J. S., & SANTOS, J. E. (2006). Transtornos alimentares: quadro clínico. Medicina (Ribeirão Preto), 39(3), 340-348. DOS SANTOS, J. E. (2006). GRATA: Nossa história, trabalho e desafios. Medicina (Ribeirão Preto), 39(3), 323-326. GASPAR, F. L. (2005). A violência do outro na anorexia: uma problemática de fronteiras. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 8(4), 629-643. GAYOTTO, M. L. (2003). Liderança! Aprenda a coordenar grupos. 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Email: [email protected] Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRP-USP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Apoio: CAPES, CNPq Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP. E-mail: [email protected] 318 TRANSTORNO DE PÂNICO E IDEAÇÃO SUICIDA: CARACTERÍSTICAS DE PERSONALIDADE ATRAVÉS DO TESTE DE PFISTER17 Panic disorder and suicidal ideation: characteristics of personality in the Pfister’ test. Cicera Andréa Oliveira Brito PATUTTI (Universidade Paulista – UNIP) Evandro GOMES DE MATOS (Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP) Anna Elisa VILLEMOR-AMARAL (Universidade São Francisco – USF) Resumo Este estudo procurou identificar características de personalidade no Teste de Pfister que pudessem distinguir pacientes com ou sem ideação suicida. Noventa e sete pacientes diagnosticados com Transtorno de Pânico foram divididos em grupos, considerando a presença ou não de ideação suicida. Foram utilizados os instrumentos o teste de Pfister, Escala de Ansiedade de Sheehan e Inventário de Depressão de Beck. Os resultados mostraram que ansiedade e depressão estão mais elevadas entre pacientes com ideação suicida e que no Teste de Pfister os dois grupos se diferenciaram pela elevação das cores amarelo, laranja, azul e preto. 17 Artigo derivado da dissertação de mestrado em Saúde Mental pelo Depto. Psicologia Médica e Psiquiatria – FCM – UNICAMP, com orientação do Prof. Dr. Evandro Gomes de Matos, CoOrientação do Prof. Dr. Luís Alberto Magna e apoio financeiro CAPES, no ano de 2004. Agradecemos aos colegas do Núcleo de Atendimento dos Transtornos de Ansiedade (NATA) HC-UNICAMP, pelo apoio e colaboração para conclusão deste trabalho. 319 Palavras-chave: Avaliação psicológica; Pânico; Evidências de validade; Pirâmides coloridas; Psicodiagnóstico. Abstract This study it sought for to identify characteristics of personality in the Pfister´s Test that could distinguish patients with or without suicidal ideation. Ninetyseven patients diagnosed with Panic Disorder were divided into groups considering the presence or not of suicidal ideation. Pfister’s test and Sheehan Scale of Anxiety and Beck Depression Inventory were used. The results have shown that anxiety and depression are more elevated among patients with suicidal ideation, and that in the Pfister’s Test both groups are by the elevation of the colors yellow, orange, blue and black. Keywords: Psychological evaluation; Panic; Evidences of validity; Colored pyramids; Psychodiagnostic. Introdução A Organização Mundial de Saúde (OMS) refere que no Brasil há uma prevalência de 22,6% de transtornos ansiosos, revelando que o impacto negativo sobre a qualidade de vida não fica limitado aos transtornos mentais graves, mas também incide sobre os transtornos de ansiedade, em particular ao Transtorno de Pânico (TP), especialmente no que se refere ao funcionamento psicológico (Markowitz, 1989 e OMS, 2001). A caracterização do quadro do TP, segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR, 2002) requer a presença de ataques de pânico, recorrentes, caracterizados por início súbito, tem seu pico atingido, em geral, em 10 minutos, que leva a pessoa a ter preocupação persistente em relação a novos ataques, que geralmente são acompanhados 320 por pelo menos quatro dos seguintes sintomas: aceleração dos batimentos cardíacos, sudorese, tremor, dificuldade em respirar, dor torácica ou desconforto no peito, náusea ou desconforto abdominal, formigamento ou dormência nas extremidades do corpo, ondas de calor ou frio, medo de perder o controle ou de ficar louco, medo de morrer, sensação de estranheza da realidade (desrealização) ou estranheza de si mesmo (despersonalização). O diagnóstico será feito quando ocorrem pelo menos dois ataques espontâneos seguidos por um período de pelo menos um mês, considerando também o medo de novos ataques, mudança significativa do comportamento, medo de doenças correlacionadas com sintomas do ataque de pânico e o afastamento de causas médicas (hipertireoidismo etc.). A literatura aponta como fatores de risco, para a complicação do TP, a presença de quadros comórbidos, tais como transtornos depressivos, transtornos de personalidade e abuso de substâncias e, nestes indivíduos, aumentam as possibilidades da apresentação de comportamentos suicidas (Beck, 1991; Friedman, 1992; Warshaw, 1995; Florequin, 1995; Henriksson, 1996; Rapeli, 1997; Andrade, 1997 e Placidi et al., 2000). O suicídio é considerado um problema sério da saúde pública e as ideias de suicídio são mais comuns que o suicídio completo. O comportamento suicida, segundo Gliatto (2001), caracteriza-se “como espectro que varia dos pensamentos suicidas passageiros ao suicídio completo”. Estudos clínicos e epidemiológicos sugerem a presença de um gradiente de gravidade e de heterogeneidade entre diferentes categorias, representativas do comportamento suicida, que se manifestam em três domínios distintos: ideias de suicídio, tentativa de suicídio e suicídio completo (Gliatto, 2001). O comportamento suicida no contexto do TP tem sido alvo de muitos estudos. As publicações pioneiras de Coryell (1982) e de Weissman et al. (1989) descreveram a frequente referência de relatos sobre pensamentos e/ou tentativas de suicídio, entre pacientes portadores de TP. Outros estudos enfatizam a necessidade dos profissionais ocuparem-se da compreensão psicodinâmica do quadro clínico do TP, visto que, muitas 321 vezes, os aspectos dinâmicos evidenciam-se na relação que o sujeito estabelece entre seu sofrimento e o aparecimento dos sintomas (Gentil e Roso, 1987). Noyes (1995) e Almeida (2002) apontam a necessidade de considerar os traços de personalidade e estruturas emocionais no âmbito da psicopatologia. Cloninger et al. (1998), através de seus estudos, ressaltam que é de relevância clínica que os perfis de personalidade auxiliem a avaliação dos riscos de suicídio e o planejamento do tratamento. Frente a dados ainda pouco explorados, o presente estudo visou levantar características de personalidade de pacientes portadores de Transtorno de Pânico, que apresentam ideação suicida atual, avaliando a possível relação com sintomas ansiosos e depressivos, através da aplicação do Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister, da Escala de Ansiedade de Sheehan, para medir sintomas ansiosos, e do Inventário de Depressão de Beck (BDI), para fornecer dados quanto aos níveis de sintomatologia depressiva. Método Trata-se de estudo descritivo e transversal. Foi revisto e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa-FCM-UNICAMP, e todos os participantes deram consentimento informado, por escrito, após completo entendimento do estudo. Casuística A amostra foi constituída por 97 pacientes com idade superior a 18 anos, de ambos os sexos, diagnosticados com TP, na ocasião, segundo os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR, atendidos pelo Núcleo de Atendimentos dos Transtornos de Ansiedade (NATA)/HC – UNICAMP. Foram considerados critérios de exclusão a comorbidade com transtornos de personalidade, quadros orgânicos cerebrais e esquizofrenia, pacientes portadores de deficiências visuais que interferem na visão cromática (daltônicos, amblíopes) e pacientes na vigência de tratamento farmacológico para o TP. 322 Os sujeitos foram distribuídos em dois grupos, considerando a presença ou não de ideação suicida: pacientes sem ideação suicida (SIS) e pacientes com ideação suicida (CIS). Instrumentos Roteiro de entrevista desenvolvido pelo NATA (Protocolo NATA), que contempla dados sociodemográficos, antecedentes pessoais, comorbidades, tratamento medicamentosos anteriores e atuais. Escala de Ansiedade de Sheehan trata-se de instrumento subjetivo, que mede a intensidade de sintomatologia ansiosa, contemplado por 45 questões que variam de zero a 4, de fácil entendimento e autoaplicável (Nardi, 1998). Inventário de Depressão de Beck (BDI) é uma escala de avaliação de depressão amplamente utilizada em pesquisa e clínica, não tem pretensão diagnóstica. Consiste em 21 itens, incluindo sintomas e atitudes, cujas intensidades variam de zero a 3 (Calil, 2000 e Gorenstein, 2000). O Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister é um método diagnóstico para avaliar a estrutura afetiva da personalidade, principalmente sua instabilidade e perturbação, através do conhecimento da estrutura dos impulsos (Heiss, 1983). Segundo Villemor Amaral (1978) este instrumento apresenta-se como um bom recurso projetivo, auxiliando em estudos de caso e na investigação de traços psicológicos normais e patológicos. É de fácil administração, não verbal e não requer habilidades educacionais (Calil, 1991; Souza, 1991 e Villemor Amaral, 2002). A versão empregada nessa ocasião, já que o teste estava em fase de validação devido ao parecer desfavorável pelo Conselho Federal de Psicologia, consistiu de cartão contendo desenho de uma pirâmide, subdividida em 15 quadrículos e um jogo de quadrículos coloridos, composto por 10 matizes, subdivididos em catorze tonalidades (Heiss, 1983). Aspectos relacionados aos estados ou reações emocionais podem ser verificados entre as escolhas das cores, que também podem ser valorizadas por vários outros índices – que o teste permite que sejam explorados –, entre eles a amplitude do campo cromático, considerado como um dos fatores estáveis do teste, devido a determinar a menor ou maior capacidade de recepção de estímulos (Villemor Amaral, 1978). 323 Procedimentos e Coleta de dados Os atendimentos foram realizados nas salas do ambulatório geral de adultos/HC-UNICAMP, onde funciona o NATA. A primeira entrevista foi realizada na presença do médico residente de psiquiatria (R2), do psicólogo e, eventualmente, com o acompanhante do paciente. A coleta de dados foi realizada em duas etapas: Primeira etapa: levantamento de dados feito por meio da anamnese completa, realizada pelo médico-residente (R2). Concomitantemente, o psicólogo trabalhava com o preenchimento do Protocolo NATA e a aplicação do BDI e Sheehan. Cada instrumento era lido, em voz alta, para o paciente, e as respostas eram registradas em folha à parte, para posterior tabulação. Neste momento, lia-se também o termo de consentimento livre, esclarecendose todas as questões levantadas pelos pacientes. Os pacientes que preenchiam critérios para TP eram orientados pelo médico-residente quanto à medicação e exames laboratoriais a serem realizados e o retorno era marcado para a semana seguinte, para finalizar o procedimento. Segunda etapa: A aplicação do Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister foi realizada pela pesquisadora e/ou por outra psicóloga, pesquisadora do NATA, treinada, previamente, para a aplicação deste instrumento, considerando-se as normas para execução preconizadas por Heiss (1983). O tempo de duração de aplicação de cada teste era de cerca de 45 a 60 minutos. Análise dos Dados Os dados foram categorizados, digitados e analisados por meio do Statistical Package for Social Sciences (SPSS – Versão 6.0, 1993). Utilizamos tabelas de frequência para as variáveis categóricas e tabelas com médias e correspondentes desvios-padrão para as variáveis contínuas. A análise qualitativa das variáveis categóricas foi realizada por meio do Teste de QuiQuadrado, cujo objetivo era verificar a semelhança ou diferença de proporções 324 da amostra, realizando testes em tabelas de contingência para comparar as proporções e a associação entre variáveis qualitativas. Para a Análise de Variância (ANOVA) foi utilizada para a comparação e análise de duas ou mais médias das variáveis (cores e amplitude cromática), e também a comparação dos diferentes grupos (SIS e CIS). Foi considerada significativa a diferença quando o p foi igual ou inferior a 5% (p 0,05) (SNEDECOR et al., 1974). Resultados e Discussão Os resultados e a discussão serão apresentados simultaneamente, abordando-se os aspectos quantitativos e qualitativos sob a forma de dados percentuais e médias alcançados pela amostra (N = 97). Dados sociodemográficos e a distribuição da amostra em grupos, respectivamente, estão sumarizados na Tabela 1. Weissman et al. (1997), em estudo epidemiológico abrangendo 10 países do mundo, trabalharam com pacientes portadores de Transtorno de Pânico; consideraram variáveis como sexo, idade do início do quadro e comorbidades, procurando determinar a consistência dos achados em diversas culturas. A prevalência quanto ao sexo revelou que as taxas são consistentemente mais altas entre mulheres do que homens. Os resultados obtidos, nesta pesquisa, mostram concordância com estes dados e a proporção encontrada indicou que a prevalência do TP é duas vezes maior entre mulheres do que entre homens (2,4 : 1), proporção próxima à encontrada por Regier et al. (1984) e por Bernik et al. (1997), que foi de 2,2 : 1. 325 Tabela 1 – Características sociodemográficas dos 97 pacientes com Transtorno de Pânico DISTRIBUIÇÃO SOCIODEMOGRÁFICA SIS CIS TOTAL n (%) n (%) n(%) Feminino 38(53) 34(47) 72 (74) Masculino 13(0.5) 12(0,5) 25 (26) Caucasoide 42(53) 37(47) 79(81) Negroide 9(0.5) 9(0.5) 18(19) Solteiros 10(43) 13(57) 23(24) Casados 29(56) 23(44) 52(54) Viúvos 10(59) 7(41) 17(17) Outros 2(40) 3(60) 5(5) Católico 31(57) 23(43) 54 (56) Evangélico 9(53) 8(47) 17(17) Espírita 3(37) 5(63) 8(8) Sexo Raça Estado Civil Religião Outros 8(44) 10(56) 18(18) Com relação à idade constatou-se que a média foi de 35 anos, com uma Escolaridade amplitude de variação de 18 a 73. Com relação à idade indicada como o início dos ataques deFundamental pânico, os resultados 23(50) enquanto o estudo de Weissman et al. Médio 16(53) Superior Legenda: 12(57) revelam média de 30 anos, 23(50) uma46(47) (1997) exibiu a idade de 20 anos. 14(47) 30(31) 9(43) 21(22) 326 Segundo dados do ECA, a idade de 30 anos é considerada rara para o início da sintomatologia. A comorbidade é considerada um fator de risco para a complicação e gravidade do quadro de TP (Caetano, 1985; Weissman et al., 1989 e Gentil et al., 1997). Weissman et al. (1997) indicam que o Transtorno de Pânico está associado com o aumento do risco de agorafobia e Depressão Maior (DM). Verificou-se que em uma considerável parcela da população, deste estudo, foram identificadas diversas comorbidades, destacando-se pelas maiores frequências: 53% agorafobia, 34% fobias especificas e 17% fobia social, 70% depressão, 55% transtornos alimentares e 41% abuso de substâncias. Os quadros comórbidos estão em concordância, diretamente proporcionais, com os níveis de sintomatologia depressiva e ansiosa obtidos por meio do BDI e escala de Sheehan, respectivamente. Assim, constatou-se uma média de 84% de sintomatologia depressiva, sendo cerca da metade em nível moderado e o restante em nível severo. Oitenta e oito por cento de sintomatologia ansiosa, sendo quase metade em nível de ansiedade marcado e o restante severo. Pesquisas anteriores mostram que estes dados estão similares, principalmente, no que se refere à alta incidência de sintomatologia ansiosa. Caetano (1986) ao comparar pacientes com TP com e sem Prolapso da Valva Mitral (PVM), utilizando a escala de Sheehan, verificou ausência de diferenças entre os grupos estudados, já que os escores médios, de pacientes com TP com e sem PVM foram de 91,3% e 86,5%, respectivamente. A presença de sintomas ansiosos e depressivos aponta diferenças estatisticamente significativas entre os grupos (p = 0,002). Pacientes pertencentes ao CIS apresentaram sintomatologia depressiva elevada, em nível severo, enquanto no grupo SIS, o nível marcado destacou-se, conforme dados apresentados na Tabela 2. Andrade et al. (1997) consideram que é alta a prevalência de sintomas depressivos em ansiosos e vice-versa, devido à superposição de sintomas 327 comuns às duas síndromes, e que faltam estudos conclusivos sobre esta relação. Assim, pacientes com Depressão Maior (DM), associada a ataques de pânico, apresentam uma incidência familiar maior de depressão, pânico, fobias e alcoolismo quando comparados a pacientes com DM sem nenhum sintoma ansioso associado. Além disso, sugere que tais pacientes apresentam pior prognóstico, maior grau de desajuste social e pior resposta à terapêutica convencional. Tabela 2 – Tabela de Contingência dos níveis de sintomatologia depressiva nos grupos. BDI SIS CIS n (%) n (%) Mínima 5 (9,8) - Leve 8 (15,7) 2 (4,3) Moderada 26 (51,0) 18 (39,1) Severa 12 (23,5) 26 (56,5) Qui-quadrado (p= 0.002) Legenda: Neste trabalho, os sintomas ansiosos severos foram mais frequentes SIS: Grupo de pacientes Sem Ideação Suicida. entre pacientes do grupo CIS, enquanto o outro grupo (SIS) o nível de CIS: Grupo de pacientes Com Ideação Suicida. sintomatologia ansiosa foi marcado, sendo detectada diferença estatisticamente significativa, com valor de p = 0.002, conforme apresentado na Tabela 3. 328 Tabela 3 – Tabela de Contingência dos níveis de sintomatologia ansiosa nos grupos SHEEHAN SIS CIS n (%) n (%) - - Moderada 11 (21.6) 1 (2.2) Marcada 26 (51.0) 20 (43.5) Severa 14 (27.5) 25 (54.3) Leve Qui-quadrado (p = 0.002) Legenda: SIS: Grupo de pacientes Sem Ideação Suicida. CIS: Grupo de pacientes Com Ideação Suicida. Parcela substancial dos pacientes da amostra estudada fez menção à ideação suicida, ficando evidente que este grupo estava significativamente correlacionado com a presença de sintomatologia ansiosa e depressiva elevada, quando comparado ao grupo de pacientes que não apresentavam pensamentos sobre morte (SIS). Andrade et al. (1997) consideram que pessoas com comorbidade pânico-depressão apresentam maior número de sintomas e maior risco de gravidade do quadro clínico, como “ideias ou tentativas de suicídio” e culpa. Os dados obtidos através do Teste das Pirâmides Coloridas revelaram uma amplitude do campo cromático predominantemente exagerada (Tabela 4). Estes resultados apontam a grande capacidade de recepção de estímulos, próprio de pessoas ansiosas, extrovertidas, lábeis, excitadas e inquietas. 329 Tabela 4 – Tabela de Contingência da correlação da Amplitude do Campo Cromático nos grupos AMPLITUDE SIS CIS (n = 45) (n = 39) Limítrofe 5 (11,1) - Estreitamento 1 (2,2) 3 (7,7) Normal 19 (42,2) 16 (41,0) Exagerada 20 (44,4) 20 (51,3) Qui-quadrado (p = 0.119). 13 casos inválidos. Legenda: Avaliando os resultados obtidos quanto à média de frequência do uso SIS: Grupo de pacientes Sem Ideação Suicida. das cores, apresentadas na Tabela 5, verificou-se que os grupos não CIS: Grupo de pacientes Com Ideação Suicida. possuem diferenças estatisticamente significativas. Entretanto foi possível observar que, entre os grupos, algumas cores possuem média de frequência elevada. Assim, no grupo de pacientes SIS as cores: vermelho, verde e violeta atingiram uma frequência elevada quando comparada ao grupo CIS. O valor simbólico destas cores, em combinação, sugere forte receptividade interna de estímulos e sobrecarga de ansiedade, que podem conduzir à perturbação ou ao comprometimento do equilíbrio emocional. Este tipo de combinação, segundo Villemor Amaral (1978), predispõe o indivíduo a reações do tipo “espetaculares”, próprias de quadros de histeria. 330 Tabela 5 – Análise de variância da correlação das médias de frequências das cores nos grupos CORES SIS CIS P (n = 45) (n = 39) f f Vermelho 0.17 0.16 0.79 Laranja 0.08 0.09 0.57 Amarelo 0.10 0.12 0.20 Verde 0.16 0.14 0.29 Azul 0.18 0.19 0.85 Violeta 0.07 0.05 0.19 Marrom 0.03 0.03 0.45 Branco 0.12 0.12 0.94 Cinza 0.05 0.05 0.90 Outras pesquisas, que focaram a personalidade de pessoas Preto 0.03 0.04 0.16 portadoras de TP, apresentaram em seus resultados uma tendência próxima 13 casos inválidos. à que foi encontrada nesta pesquisa. No estudo, por exemplo, de Roso et al. (1987), no qual Legenda: utilizaram-se do Inventário Multifásico Minnesota de Personalidade (MMPI) em pacientes portadores de TP, encontraram perfil de SIS: Grupo de pacientes Sem Ideação Suicida. personalidade comum, com traços histéricos e depressivos em maior grau e CIS: Grupo de pacientes Com Ideação Suicida. hipocondríacos, paranóides e introversivos em menor grau, além da redução de características esquizóides. Por outro lado, estes autores consideram que as medidas utilizadas na investigação de traços de personalidade ainda não são eficientes, uma vez que a análise dos resultados é sempre relativa a uma determinada situação, não garantindo consistência no decorrer do tempo. Em relação ao grupo CIS observou-se elevação da média de frequência das cores azul, amarelo, laranja e preto. O valor sintomático do preto se acha diretamente ligado à ansiedade depressiva. Combinações das cores azul, 331 preto, amarelo e laranja sugerem uma paralisação do desenvolvimento emocional, cuja capacidade de elaboração interna é, em geral, interrompida, devido ao intenso controle repressor, aliado a índices de imaturidade em lidar com as dificuldades (Villemor Amaral, 1978). Silva et al. (2003) procuraram investigar manifestações emocionais que caracterizassem as patologias do Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Transtorno de Pânico, utilizando para este fim o Teste de Pfister. Encontraram elevação da porcentagem da cor marrom entre pacientes com TOC e azul entre pacientes com Transtorno de Pânico (Villemor Amaral, 2002), revelando similaridade com os achados deste estudo. Embora, convém ressaltar que somente por meio de assinalamentos mais profundos, acerca dos algarismos centrais da fórmula, é que se poderia concluir sobre a eficiência ou grau de perturbação que tais fatores poderiam representar nas atitudes do indivíduo em face do ambiente. Conclusão O Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister demonstrou-se sensível em detectar a ansiedade depressiva entre os pacientes pesquisados, principalmente entre aqueles com ideação suicida. Assim, identificou-se um grupo marcado pela ideação suicida com níveis predominantemente severos de ansiedade e depressão, conforme os dados obtidos pelas escalas de Sheehan e BDI. Estes resultados confirmaram-se por meio dos índices contemplados do teste de Pfister, quer seja pela grande capacidade de recepção de estímulos, próprio de pessoas ansiosas, excitadas e inquietas e pelas cores frequentemente utilizadas, revelando uma ansiedade depressiva com dificuldade de elaboração interna, o que muito provavelmente é intensificado pelo excesso de capitação de estímulos do meio e pelos índices de instabilidade e imaturidade em lidar com dificuldades, psicológicas e sociais, provenientes do mundo externo. 332 Pesquisas que consideram o tratamento medicamentoso entre estes pacientes estão sendo realizadas a fim de comparar se estas características fazem parte de um traço ou se estão ligadas ao estado atual da doença. Referências ALMEIDA, Y.A.; NARDI, A.E. Psychological features in panic disorder. Arq. Neuropsiquiatr. 60 (3-A): 553-7, 2002. 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Atualmente é professor adjunto da Universidade Paulista. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase clinica, saúde mental e avaliação psicológica. Evandro Gomes De Matos: possui doutorado em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Campinas (1992). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas. Anna Elisa Villemor-Amaral: Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1981), com mestrado (1990) e doutorado (1996) em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/EPM), tendo desenvolvido suas teses na área de Disturbios da Comunicação e da Avaliação Psicológica por meio de métodos projetivos, no contexto de saúde, atendimento hospitalar e psicossomática. Fez pós-doutorado na Universidade da Savoia na França em 2003, trabalhando na perspectiva da Psicopatologia Fenômeno-Estrutural. Psicóloga clínica com atuação em Psicanálise e Psicodiagnóstico. Foi membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise e fez diversos cursos de aperfeiçoamento em psicodiagnóstico. Atualmente é Professora Associada Doutora do Programa de Pós-Graduação Strico Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco e líder do grupo de pesquisa Avaliação Psicológica em Saude Mental. É também professora da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desenvolve pesquisas na área de Psicologia da saúde e psicopatologia com Métodos Projetivos, especialmente o Rorschach, Pfister e Zulliger, sendo Bolsista Produtividade CNPq. Presidiu a Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos no período de 2002 a 2006 e hoje é membro de seu conselho consultivo. Foi coordenadora do GT de Métodos Projetivos da ANPEPP de 2008 a 2012. Membro da International Rorschach Society e da Society for Personality Assessment. Correspondência Autor: Cicera Andréa Oliveira Brito Patutti Endereço eletrônico: [email protected] 337 GRUPO DE APOIO MULTIFAMILIAR EM HOSPITAL-ESCOLA: TRABALHANDO A DINÂMICA FAMILIAR NO TRATAMENTO DA ANOREXIA E BULIMIA. Carolina Leonidas Lilian Regina de Souza Costa Manoel Antônio dos Santos Introdução Os transtornos alimentares (TA) podem ser caracterizados como psicopatologias que envolvem alterações no comportamento alimentar. A dinâmica familiar de indivíduos com TA é considerada um dos fatores precipitadores e/ou mantenedores desses quadros. São, geralmente, famílias marcadas por relacionamentos do tipo fusional entre mãe e filha, nos quais a figura paterna encontra-se enfraquecida ou ausente. São famílias com laços muito estreitos e fronteiras indiferenciadas, condição que dificulta a separação e individuação dos membros, e que também apresentam uma tendência a evitar conflitos explícitos. Dallos e Denford (2008) sugerem que os relacionamentos dentro das famílias com um membro acometido por TA processam-se sobre uma base falsa ou frágil, com predomínio de vínculos problemáticos, discussões frequentes, triangulação, desconforto e relação negativa com a alimentação. Os autores também propõem que mulheres acometidas por esses quadros vivenciam sensações frequentes de conflitos reais ou iminentes entre os pais, além de sentirem-se presas no centro desses conflitos e serem coagidas a tomar partido de um dos genitores. Hipotetiza-se que a relação de superenvolvimento entre mãe e filha seja reflexo de tensões implícitas na relação do casal, que se encontram encobertas pelo TA da filha. Dessa forma, pode-se considerar que o quadro psicopatológico funciona, para os pais, como uma “distração” de seus próprios problemas e conflitos (McGoldrick, Gerson, & Petry, 2008). Considerando-se o exposto, percebe-se a necessidade de incluir a família no tratamento, buscando oferecer um espaço onde os membros possam sentir-se acolhidos em suas angústias, de modo a possibilitar a 338 instalação de mudanças na dinâmica familiar que favoreçam a melhora da filha acometida. Nessa perspectiva, é preciso pensar em estratégias de intervenção com os familiares que sejam exequíveis no contexto do tratamento, já que a abordagem familiar pode ser um importante instrumento terapêutico, na medida em que permite que esta se torne uma aliada da equipe nos esforços pela recuperação do paciente (Cobelo, 2004). Nessa vertente, este estudo buscou trazer à luz alguns aspectos do funcionamento de famílias de pessoas acometidas por TA, por meio da análise de sessões de um grupo de apoio multifamiliar. Descrição do grupo de apoio investigado Trata-se do grupo de apoio aos familiares de pacientes com TA, vinculados ao Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares (GRATA) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HC-FMRPUSP). Esse grupo é coordenado pela equipe de Psicologia do serviço, o qual foi criado em 1981, junto ao Ambulatório de Nutrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo. O grupo é aberto, de modo que cada sessão apresenta uma configuração diferente de pessoas e temas. O grupo é multifamiliar, ou seja, os participantes são familiares que acompanham os pacientes no serviço no dia do retorno ambulatorial. Os assuntos debatidos são trazidos espontaneamente pelos participantes, que são estimulados a compartilhar experiências e sentimentos com os demais integrantes do grupo. Cada encontro tem duração de, aproximadamente, 75 minutos. A condução do grupo é fundamentada no referencial psicanalítico. Neste trabalho foram analisadas cinco sessões, transcritas de memória pelas coordenadoras, logo após o término dos encontros grupais. Posteriormente, o corpus de pesquisa, constituído pelos dados obtidos por meio das transcrições, foi submetido à Análise de Conteúdo Temática (Bogdan & Biklen, 1994) e interpretados à luz da teoria psicanalítica. No que concerne à composição dos encontros em grupo analisados, estiveram presentes 23 familiares, sendo que a frequência aos grupos variava de acordo com a frequência do retorno dos(as) filhos(as) acometidos(as). A 339 maioria dos participantes (N = 16) do grupo de apoio era constituída por mães. A presença da figura masculina esteve em menor proporção: três pais, um tio (que assumiu papel de tutor após a morte do pai da paciente) e três parceiros (namorados, marido). As mães, na sua maioria, eram acompanhantes de pacientes do sexo feminino, já que, dentre os pacientes, apenas dois eram do sexo masculino. Desse modo, a maior parte do grupo era composta por mães que compareceram ao serviço com o intuito de acompanhar suas filhas. Compreendendo aspectos subjetivos que emergiram no relato dos participantes No início dos encontros e, principalmente, nos relatos dos participantes novatos foram comuns os temas com enfoque na busca de compreensão do transtorno. Alguns relatos dão testemunho dessa preocupação: Será que essa doença tem cura? Já ouvi muita gente falar que não, mas eu queria que ela conseguisse ficar bem... Não sei o que acontece, elas [as filhas] são tão inteligentes e não conseguem entender que precisam comer. Nos momentos iniciais do tratamento, observa-se a necessidade de acolhimento das angústias manifestadas pelos cuidadores familiares. Esse acolhimento pode se dar, inclusive, por meio do fornecimento de informações relevantes para a continuidade do tratamento dos(as) filhos(as). Com o fortalecimento do vínculo entre os participantes e os esclarecimentos progressivos de aspectos concretos da problemática, começam a surgir falas que revelam sentimentos latentes do grupo, que serão melhor detalhados a seguir. Os laços que se estabelecem entre os próprios familiares no contexto grupal permitem que eles percebam suas potencialidades como cuidadores e valorizem a importância do papel que desempenham, de forma a utilizar seus recursos internos no apoio ao membro acometido, favorecendo assim sua recuperação. O impacto dos relatos positivos nos membros que estão ingressando no grupo é imediato e promove um clima de união e universalidade, pois desperta esperança naqueles familiares que se sentem impotentes ou deprimidos, e que 340 não vêem perspectivas de melhora ou superação da situação problemática (Bechelli & Santos, 2001). É importante que cada membro do grupo perceba que, além de ser um potencial recurso para ajudar na recuperação do paciente, também deve se ver como alguém que poderá alcançar bons resultados para si mesmo, uma vez que o grupo possibilita o autoconhecimento e a ressignificação de atitudes percebidas como negativas. Nota-se que as mães trazem fortes sentimentos de culpa em relação ao transtorno dos filhos. Trata-se de um sentimento difícil de ser percebido de forma consciente, uma vez que envolve questionamentos a respeito de seu papel como mãe e, portanto, não é algo relatado com facilidade. No entanto, após algumas sessões de grupo, é possível perceber algumas falas nas quais emergem questionamentos a respeito de serem ou não “boas mães”. Eu não me sinto culpada, mas será que eu não estou conseguindo dizer “não” quando necessário? Meu filho fala que eu passo muito a mão na cabeça da F., deixo ela fazer o que quer, mas se ela está nessa situação, eu também não posso deixar de fazer o que ela me pede. A relação de superenvolvimento entre mãe e filha também exacerba os sentimentos de culpa, sendo factível pressupor que os sintomas de TA podem ser uma tentativa frustrada de busca da separação-individuação das filhas, aprisionadas no vínculo fusional e mortífero com a mãe. Esse vínculo especial acaba por empobrecer o ego e obstruindo o acesso a uma identidade própria. Por se tratar de um sintoma, no sentido psicanalítico, em vez de quebra da continuidade da relação indiferenciada, o que ocorre é exatamente o oposto, ou seja, a relação simbiótica mãe-filha torna-se ainda mais adesiva e simbiótica, com empobrecimento do ego. Junto ao sentimento de culpa, as mães também relatam dificuldades em voltarem atenção às suas próprias necessidades, alegando que, em razão da preocupação exacerbada com as filhas acometidas, acabam tendo tempo reduzido para cuidar das suas próprias necessidades. Como consequência, as demais relações interpessoais ficam prejudicadas, incluindo a própria relação conjugal. Para ilustrar essa questão pode-se recorrer ao relato de uma das mães, que mencionou não ter tempo sequer para conversar com o marido, sendo que o único momento em que os dois encontram-se a sós é na hora de 341 dormir. Nesse momento, o filho com TA costuma ouvir o que os pais conversam espreitando atrás da porta. Esse dado corrobora estudos que sugerem que a família como um todo torna-se prisioneira dos conflitos vivenciados pela pessoa acometida de TA. Nesse sentido, a família tornaria-se refém do problema, o que tende a paralisála. Com frequência, permanece confinada em uma dinâmica que só perpetua a sintomatologia do filho, exaurindo suas energias livres em torno de um padrão de relacionamento que, ao invés de ser benéfico, termina por dar sustentabilidade aos sintomas psicopatológicos do membro acometido. Como já pontuado anteriormente, as mães configuravam a grande maioria dos participantes dos grupos analisados. Esse fato, além de expressar um aspecto crucial dos TA – a fusão e consequente perda dos limites entre mãe e filha –, também pode reforçar a ideia socialmente construída de que o cuidado com a saúde dos filhos seria uma função exclusiva da mulher. Nesse sentido, a equipe multidisciplinar depara-se com o desafio de trazer os pais (genitores do sexo masculino) e os parceiros das pacientes ao alcance do tratamento, tanto para ampliar a rede de apoio social, quanto para evitar conluios inconscientes com a dupla mãe-filha. Assim, novas possibilidades de vinculação podem ser moduladas nos padrões de relacionamento disfuncionais na família como um todo. A presença de pais (genitores do sexo masculino) no grupo provoca falas que levam as mães a refletirem sobre outros âmbitos de suas vidas, para além dos cuidados com os filhos e o lar. É possível notar que, quando há figuras masculinas presentes, assuntos sobre trabalho, lazer e o próprio relacionamento do casal são abordados, tirando o foco do filho adoecido e da existência restrita ao “ser pai/mãe de um filho com TA”. Assim, pode-se pensar que o pai ajudaria a parceira a olhar para outros aspectos de sua vida que podem estar sendo negligenciados em função da atenção excessivamente canalizada para o filho adoecido. Foram poucos os parceiros de pacientes presentes nos grupos analisados (apenas três: dois esposos e um namorado). Esses parceiros relataram a necessidade de, muitas vezes, exercerem funções paternais em relação às companheiras. Entretanto, o relato dos parceiros por vezes trazia 342 um desejo de proteção tão intenso que parecia invadir os limites da parceira, fazendo com que estes, de forma inadvertida, assumissem o papel da mãe “invasiva”. Com a adoção dessa postura, a relação conjugal parece tornar-se empobrecida e negligenciada. Para exemplificar esse padrão de relacionamento: um dos maridos no grupo revelou que fazia seis anos que não se relacionava sexualmente com a esposa, após dizer que é ele o responsável por todos os cuidados em relação à alimentação, à assiduidade no tratamento e ao seguimento das recomendações médicas e nutricionais. Evidencia-se que, ao assumir o papel de cuidador, as fronteiras do relacionamento conjugal foram obliteradas, não deixando espaço para vicejar a relação afetiva e sexual. Para esse marido, o grupo aparece como um espaço de conscientização e ampliação da percepção a respeito do empobrecimento de sua relação conjugal, possibilitando que ele encontre novas formas de cuidar da esposa, que não impliquem necessariamente em um distanciamento emocional – e até mesmo físico – do casal parental. Outro dado relevante encontrado a partir da análise das sessões foram as dificuldades, detectadas nos pais, de perceberem os filhos como seres independentes, individuados e com desejos próprios. Os pais, em muitos momentos, percebem seus filhos como imaturos e infantilizados, vendo-os como excessivamente necessitados de proteção e cuidado, terminando por tentar exercer controle exagerado sobre eles. Esse cuidado pode, muitas vezes, dificultar que os filhos encontrem espaço seguro para crescer e desenvolver seus próprios esquemas de autonomia. Os dados discutidos apontam para as dificuldades das mães em contribuir para o processo de separação-individuação mãe-filha. Há indícios da perpetuação do padrão de envolvimento afetivo simbiótico nos vínculos amorosos construídos pelas pacientes, que buscam encontrar na relação com o companheiro a reprodução da relação que mantinham com a figura materna. Esses resultados indicam a importância de propor estratégias que apontem essa simbiose para os participantes e que os ajudem a pensar novas estratégias de relacionar-se, contribuindo com a percepção de que é possível cuidar, sem se misturar com o outro. 343 Considerações finais A análise dos diálogos do grupo multifamiliar que reúne cuidadores e familiares de pessoas com TA permitiu elucidar algumas razões pelas quais esse espaço pode funcionar como uma importante alternativa na construção de relacionamentos mais saudáveis e indutores de mudança na dinâmica familiar desses indivíduos. O grupo valoriza a construção desse espaço de escuta como uma estratégia para o fortalecimento dos familiares. Não se trata simplesmente de apontar erros e falhas, no sentido de culpabilização dos pais, mas sim de identificar e aproveitar os recursos de que a família dispõe, como agente de mudança e melhora da saúde do indivíduo adoecido. O grupo de apoio aparece, então, como uma possibilidade de enfrentamento do “aprisionamento” vivenciado pelas famílias, que relatam sentimentos de viverem em função do transtorno do(a) filho(a). Nesse sentido, o trabalho dentro do grupo funciona de forma a ajudar os participantes a descobrirem novas formas de estabelecer conexões entre si e sustentarem relações emocionais mais saudáveis e satisfatórias, mas com base no respeito ao espaço e à individualidade de cada um. Além disso, o grupo é também um espaço de trocas de experiências de sucessos e insucessos que permeiam o longo e sinuoso caminho do tratamento, podendo transformar-se, sob certas circunstâncias, em uma fonte para a troca de conselhos, dicas, posturas, aprendizados e comportamentos, que possam conduzir à resolução dos problemas comuns entre os participantes. De forma geral, considera-se que os dados oriundos dos grupos analisados podem auxiliar a compreensão da dinâmica que rege as famílias que têm um membro com TA, favorecendo a ampliação das estratégias utilizadas pelos profissionais responsáveis pela assistência às pessoas acometidas. Trata-se de um material extremamente denso e rico, que permite explorar com profundidade o universo das famílias que enfrentam essa problemática de saúde que merece maior atenção pública. 344 Referências Bechelli, L. P. C., & Santos, M. A. (2001). Psicoterapia de grupo: Noções básicas. Ribeirão Preto: Legis Summa. Bogdan, R. C., & Biklen, S. K. (1994). Investigação qualitativa em educação: Uma introdução à teoria e aos métodos (M. J. Alvarez, S. B. Santos, & T. M. Batista. Trad). Porto, Portugal: Ciência da Educação. Cobelo, A. (2004) O papel da família no comportamento alimentar e nos transtornos alimentares. Em S. T. Philippi, & M. Alvarenga (Orgs.), Transtornos alimentares: Uma visão nutricional (pp. 119-129). São Paulo: Manole. Dallos, R., & Denford, S. (2008). A qualitative exploration of relationship and attachment themes in families with an eating disorder. Clinical Child Psychology and Psychiatry, 13(2), 305-322. McGoldrick, M., Gerson, R. & Petry, S. (2008). Genograms: assessment and intervention. 3ª ed. Nova York: W. W. Norton Co. Inc. Sobre os autores Carolina Leonidas: Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRPUSP). Bolsista de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. E-mail: [email protected] Lilian Regina de Souza Costa: Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – GRATA (HC-FMRPUSP). Bolsista de Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. E-mail: [email protected] 345 Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USPCNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Apoio: CNPq Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP. E-mail: [email protected] 346