SAÚDE MENTAL E PSICANÁLISE: DO AMOR AO PRÓXIMO À ÉTICA DA DIFERENÇA Hugo Silva Valente Na história recente das orientações políticas em Saúde Mental encontramos uma ruptura com as coordenadas que sustentavam o modelo asilar. A conseqüência desta ruptura toma contornos muito específicos no Brasil. Por um lado vemos o aparecimento de novas alternativas terapêuticas, principalmente depois da criação dos Centros de Atenção Psicossocial. Mas por outro lado ainda percebemos confiança (e financiamento) excessivo nas abordagens medicamentosas, principalmente nos espaços em que o trabalho clínico perde espaço. O conceito de bem-estar se associou com as noções de ‘autonomia’ ‘e ‘participação social’, pretensamente retiradas do campo da Sociologia e da Antropologia. A partir das Reformas Psiquiátricas do século XX surgiu uma aposta decidida na idéia de ‘ordem social produtiva’. Seja nas oficinas terapêuticas ou nos palcos artísticos, o sofrimento psíquico é visto como gerador de objetos culturalmente aceitos, incluindo as relações sociais proveitosas e o reconhecimento do outro como semelhante. Com a inclusão social do usuário/paciente desmanchariam o estigma criado pelo seu modo de vida singular. Substitui-se assim o medicamento pelas oficinas. De acordo com Jacques-Alain Miller a saúde mental ainda é, definitivamente, uma questão de ordem publica (2008). Bem sabem aqueles que já estagiaram em CAPS o quanto sobra de trabalho para ‘psicóticos e neuróticos graves’, e garantias de que a angústia que lhes assoma é nada mais que efeito do preconceito e de situações ambientais desfavoráveis. Pela lógica aditiva importa o maior número de informações; maior número de profissionais atuando também indica bons prognósticos: ver mais, saber mais, prever mais para controlar mais. Forma política que chamaremos de conservação/restituição, lugar de atuação da sentença: quem ama cuida. Neste campo de reformas o lugar da clínica psicanalítica parece sofrer de uma deslocalização justificada por duas formas de ideologia: suposta dificuldade para criar modelos objetivos de avaliação de eficácia; e pela crença de que o método clínico seria ineficaz para produzir efeitos diretos sobre o funcionamento social, ou seja, para atuar sob as máximas da inclusão e da igualdade. Cristian Dunker (2009) afirma que o método psicanalítico privilegia o discurso da singularidade, convocando o sujeito à responsabilidade pelo seu modo de realizar laço com o Outro. Para a transmissão do conhecimento, este método se apóia numa psicopatologia desenvolvida a partir dos estudos de caso. A psicanálise progressivamente abandona o ‘método dos tipos’ para delimitar as conseqüências do conceito de ‘construção do caso clínico singular’. Os exemplos citados geralmente apresentam sintomas mistos, pois é impossível localizar o sujeito entre as mais variadas tipologias clínicas; e o diagnóstico se sustenta na lógica subtrativa, onde o sujeito está na operação de sua própria subtração aos saberes de uma clínica dos tipos (dos signos, sinais e sintomas). A construção do caso clínico comporta a ficcionalidade: a lógica de um saber insconsciente (usada para análise de resultado e eficácia terapêutica); referencialidade: ética sustentada no desejo que se repete singularmente na clínica (permite contrastes diagnósticos entre grupo particular e caso singular); e veridicidade: ligado à retórica e ao uso propedêutico (um cuidado com a enunciação da verdade da experiência). Mas o lado negativo para as atuais políticas públicas é que este método da pouca importância para as análises estatísticas comparadas e para a remissão deliberada de sintomas; muito menos coloca a reabilitação social como objetivo do tratamento. A metodologia de construção de casos isentaria a psicanálise da necessidade de avaliação pragmática dos efeitos terapêuticos? Ou seria necessário contar os sintomas em remissão e categorizar a melhora em termos de funcionamento social? E o fator tempo não é um problema para casos de urgência, indicando necessidade de tratamentos com efeitos imediatos? Dizer que a psicanálise não trata o sintoma, mas sim o sujeito, justificaria descartá-la entre as políticas públicas ávidas de estatísticas de eficácia? Ainda acompanhando Dunker (2009) encontramos um estudo que responde estes questionamentos. Leichsering e Rabung (2008) analisaram quantitativamente a eficácia dos tratamentos psicanalíticos para problemas psiquiátricos. Compararam estudos de mais de mil casos de psicanálise, tratados entre 1960 e 2008, com outras psicoterapias de curto-prazo que incluíam: cognitivo e dialético-comportamental, terapia familiar, suportiva, psicodinâmica de curto-prazo e psiquiatria convencional. Os resultados foram surpreendentes: (a) A psicanálise se mostrou 2 vezes mais eficaz para efetividade genérica, 4 vezes mais eficaz para problemas funcionais de personalidade, largamente mais eficaz para problemas relativos ao funcionamento social e para sintomas específicos. (b) Em casos de transtornos mentais múltiplos e co-morbidades, a melhora geral do tratamento psicanalítico é 96% superior aos demais. (c) Mostrou também que o tratamento psicanalítico acompanhado de medicação psicotrópica é menos eficaz que o mesmo tratamento sem medicação psicotrópica adjuvante. (d) E por último: seria necessário mais de 300 estudos como este, com resultados opostos, para que os dados passassem de significativos para não-significativos. Deste modo, pensamos que a psicanálise não tem como objetivo a remissão de sintomas nem a reabilitação social, mas é inegável que ela produz efeitos na relação do sujeito com o Outro. O ‘bio-social’ participa do que Lacan chamou de função e campo da fala e da linguagem (1953) com os quais a psicanálise trabalha. Mas devemos levar a sério a desorientação em relação a qualquer saber que supostamente contenha a verdade (o Outro é barrado) a fim de não fazer da Diferença um subconjunto da Igualdade e encontrar um caminho generalizado para o bem-estar. “Se a Lei primordial, puramente simbólica, pode ser pensada como universal, sua articulação à estrutura do desejo, em contrapartida, funda a diferença” (Rinaldi,1996). A análise do sujeito comporta efeitos de criação, inovação e estabilização (efeitos de saúde), mas são contingentes, incompletos e indefiníveis a priori; de modo que seria uma impostura oferecê-los como objetivo, premissa ou função diagnóstica. O modelo diagnóstico e de tratamento fundamentado na ética da diferença pensa políticas que privilegiam não o indivíduo como potência de autonomia e participação social, mas como sujeito responsável e separado. Responsável pelo efeito real de suas formas de laço com o Outro e separado da situação, dos discursos alheios ao seu, dos dispositivos garantidores de um saber que o contenha como indivíduo-elemento. A escuta clínica aparece então como o método que, dos saberes anteriormente estabelecidos sobre o indivíduo (identificações e sintomas) se extrai um sujeito: ponto de responsabilidade, pelo efeito de verdade, convocado na entrada de um discurso analítico. O mundo contemporâneo é tributário deste acontecimento. O efeito político desta ética é a apresentação do cidadão como capaz de pensamento, um ser que deseja e impossível de ser representado pelo outro que o contempla: estaríamos então no campo das políticas de Emancipação/Apresentação. Logo, os tratamentos deveriam privilegiar a singularidade e o posicionamento do sujeito frente às identificações e à Lei. Propomos a consistência do discurso subjetivo frente a situação que lhe é imposta pelo anúncio constitucional de sua igualdade, retirando daí a sentença: Diferentes até na igualdade – dando lugar ao desejo, como falta-a-ser, que não cede e nem se iguala. DUNKER, C. Usos e funções da construção do caso clínico em psicanálise. Anais do V Congresso Interamericano de Psicologia da Saúde – a psicanálise aplicada à terapêutica no Hospital: resultados, 2009. LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Escritos, p.276, 1953. LEICHSERING, F; RABUNG, S. Effectiveness of Long-term Psychodynamic Psychotherapy: a Meta-analysis. JAMA: Outubro 1, v. 300, n. 13, 2008. RINALDI, D. A ética da diferença. Rio de Janeiro: Eduerj/Jorge Zahar, 1996. MILLER, J-A. Coisas de Fineza em Psicanálise. Orientação lacaniana v. III, n. 11, 2008.