Programas de proteção social e superação da pobreza - RI-FJP

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Programas de proteção social e superação da pobreza:
concepções e estratégias de intervenção
Carla Bronzo Ladeira Carneiro
Belo Horizonte
Dezembro de 2005
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Programas de proteção social e superação da pobreza:
concepções e estratégias de intervenção
Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Ciências
Humanas: Sociologia e Política, da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Sociologia e Política
Orientadora: Profa. Dra. Laura da Veiga
Carla Bronzo Ladeira Carneiro
Belo Horizonte
Dezembro de 2005
2
AGRADECIMENTOS
Ao olhar retrospectivamente minha trajetória, percebo que não poderia ter realizado um
trabalho de tese sobre outro tema. O tema da pobreza é parte da minha história e hoje vejo
que minha primeira experiência profissional marcou profundamente minha alma e meus
objetivos de vida. Comecei a trabalhar na Associação Municipal de Assistência Social,
instituição ligada à Prefeitura de Belo Horizonte, na qual tive a oportunidade de trabalhar
com Vera Victer e sua equipe, dezenas de pessoas competentes, comprometidas e
afetivamente envolvidas com o que faziam, não perdendo de vista as pessoas, com “nome e
endereço”, atendidas em seus programas. Iniciava-se a gestão do Patrus Ananias em Belo
Horizonte e existia um forte compromisso com o processo de mudança social. As pessoas
atendidas pelas políticas sociais e, especialmente pelas políticas de assistência social, são
as mais marginalizadas, as que se encontram em situação de exclusão, segregação e
desqualificação social. Ter contato tão próximo com a realidade da pobreza mudou para
sempre minha perspectiva de vida e meus anseios de conhecimento.
Já como professora da Escola de Governo/Fundação João Pinheiro, participei de visitas a
iniciativas locais inovadoras no âmbito do Programa Gestão Pública e Cidadania
(FGV/FORD) e vi, a partir dos programas visitados, elementos que agora retomei na tese:
a complexidade de se lidar com a diversidade e heterogeneidade das situações de pobreza e
risco social (Programa Zabelê, para meninas prostituídas em Teresina/Piauí); a necessidade
de uma gestão compartilhada e integrada (Programa Sobral Criança, em Sobral/Ceará); o
tema da inclusão e da intersetorialidade (Programa Integrado de Inclusão Social de Santo
André/São Paulo). Outras ações reforçaram essa “sina” e me colocaram no caminho da
minha tese: o texto produzido para o relatório do BDMG, juntamente com Bruno
Lazzarotti; o curso sobre pobreza que ofereci na AVSI, indicada por Flávia Brasil; os
trabalhos com Cristina Filgueiras, Edgar Magalhães, Bruno e Cristina Fonseca, sobre a
PBH e os programas da Secretaria Municipal de Assistência Social; o projeto Urb-AL, com
Laura da Veiga. Reconstruindo a lógica da minha trajetória, reconheço o sentido de cada
um desses momentos e ações e a contribuição fundamental dessas pessoas que fizeram
comigo parte do percurso que levou a este trabalho de tese; e eu sou profundamente grata a
cada uma delas, do fundo do meu coração.
São muitas as pessoas a agradecer aqui: Bruno Lazzarotti, amigo tão próximo e presente
em minha vida, que me ajudou de muitas e variadas formas a delinear um problema e a
conseguir realizar o trabalho;
Cristina Filgueiras, que leu uma versão preliminar do
3
trabalho e descobriu argutamente a lógica e a intenção ali oculta (pobreza como problema
para o conhecimento e para a ação); Flávia Brasil, que me levou a produzir um texto que
foi o embrião desse trabalho; Ana Fonseca, que me ajudou com textos e informações
preciosas e, sobretudo, que me lembrou sempre, com sua generosidade, que o “mundo é
redondo”; Afonso Henriques, Diretor da Escola de Governo, que me liberou de parte das
minhas obrigações para que eu pudesse me dedicar a esse esforço de tese; Chico Gaetani,
que com sua amizade e presteza me colocou em contato com Vera e com Ana e, mesmo
sem saber, guiou um pouco minha trajetória e me ajudou a pensar de forma mais realista o
meu trabalho; Carlos Aurélio e Jorge Alexandre, que leram a tese na pré-defesa e fizeram
valiosas observações que contribuíram, certamente, para seu aprimoramento; José Moreira,
que me deu um lindo poema que me tocou profundamente; os amigos e colegas da Escola
de Governo – Paulo de Tarso, Telma, Marly, Vera, Ruth, Vanda, Rai – que partilharam
comigo o desassossego e a tensão de conjugar tese e trabalho. Ângela Siman e Adriano,
por serem amigos e iniciados na senda dos trabalhos de tese.
Tenho certeza que, sozinha, não teria conseguido finalizar essa etapa de minha vida e
sobretudo, o trabalho não teria sido concluído sem a orientação cuidadosa de Laura da
Veiga, grande mestra, grande figura que tem acompanhado minha trajetória há tanto
tempo. Sua seriedade, dedicação, compromisso e competência têm sido um exemplo na
minha vida acadêmica e profissional. Sua sensatez e objetividade temperaram meus
arroubos idealistas e meu viés normativo, contribuindo para que eu não perdesse o fio da
meada. A confiança que deposita em mim tem sido um estímulo, me ajudando a superar
medos e inseguranças. Minha gratidão eterna por sua presença em minha vida e, sobretudo,
por sua amizade.
Agradeço de forma especial ao Fernando, Raquel e Sarah, que sentiram, mais do que
ninguém, o que significa o esforço de um trabalho de tese. Sobrou para eles o ônus maior
dessa empreitada. Por mais de um ano, os fins de semana e as noites em família ficaram
comprometidas, mas espero que entendam que não tive outro jeito e que o esforço foi por
uma boa causa. Sem o suporte que me foi dado não teria tido a energia necessária para
concluir esse trabalho. Agradeço à minha mãe, exemplo de força e compromisso, que
buscou me ajudar de toda forma, se colocando disponível para o que fosse preciso e ao
meu pai, que não se cansou de perguntar quando terminaria. Ao meu irmão Marcelo, que
partilhou comigo minhas angústias de tese e a minha irmã Tetê, só por ser minha irmã.
Agradeço à minha avó Natalina, que me deixou o gosto pelas palavras e o exemplo de
4
tenacidade e à minha avó Laura, que choraria, se estivesse viva, ao me ver concluindo esse
trabalho. Também agradeço a Conceição, que cuidou de minha casa e me forneceu, a partir
de relatos de sua vida, elementos que estão de certa forma aqui incorporados.
Dedico esse trabalho não apenas à Raquel e à Sarah, com a esperança de que possam
contribuir no futuro, de alguma forma, para melhorar o mundo, mas sobretudo a todos
aqueles que se interessam pelo tema da justiça social e não desistem de fazer alguma coisa
para torná-la algo mais presente no mundo, aqui e agora. Aos alunos da Escola de
Governo, porque ao ensinar, também aprendemos. A eles, sobretudo, pela esperança.
5
RESUMO
Este trabalho identifica e situa as contribuições da literatura sobre o tema das concepções e
mensuração da pobreza, por um lado, e das políticas de proteção e superação da pobreza,
por outro, para construir um quadro analítico com as categorias chave que articulem dois
campos de tradições científicas sobre pobreza. O trabalho sustenta-se em dois grandes
pontos de apoio: a pobreza é tanto um problema para o conhecimento quanto um problema
para as políticas públicas. A idéia básica é que diferentes concepções levam a diferentes
formas de mensuração e também, ao mesmo tempo, a diferentes respostas quanto às
políticas e estratégias de intervenção. Cada concepção revela uma visão do problema e ao
mesmo tempo uma receita, um remédio para o mal da pobreza.
A pergunta principal e que orienta o trabalho é a seguinte: é possível delinear, senão um
modelo de ação, pelo menos um conjunto de questões relevantes a serem levadas em conta
no desenho das estratégias de inclusão, tendo como referência a literatura sobre o tema?
Para respondê-la, tem-se a análise de parte da literatura sobre pobreza, por um lado, e sobre
políticas públicas e especificamente de proteção social, por outro, para extrair algumas
categorias analíticas centrais, conformando um quadro conceitual a partir do qual as
experiências locais de inclusão social possam ser analisadas.
Essas dimensões – conhecimento e ação – não são tão independentes e freqüentemente
encontram-se imbricadas: toda concepção envolve formas e critérios de mensuração e
idéias implícitas (ou não) sobre as formas e alternativas de intervenção possíveis. O ponto
de partida consistiu na identificação de uma visão ampliada sobre o fenômeno da pobreza,
estruturada a partir do exame dos enfoques: monetário, necessidades básicas insatisfeitas,
capacidades, exclusão social, vulnerabilidade e riscos. Uma análise dos diferentes enfoques
sobre pobreza, com foco mais orientado para as abordagens da exclusão e da
vulnerabilidade, permite destilar alguns elementos que têm implicações para o desenho de
políticas locais de proteção social. A partir da análise dos pressupostos e da
operacionalização das diferentes concepções tem-se que estas se articulam com as
categorias de multidimensionalidade, heterogeneidade e com o reconhecimento das
dimensões subjetivas da pobreza, o que demanda estratégias de intervenção com foco na
autonomia, participação, empoderamento e em ações e políticas intersetoriais e mais
integradas, inclusive no âmbito do território.
Na segunda parte do trabalho tem-se o foco na questão da pobreza como problema para a
ação, para as políticas públicas, e nesse caso a análise volta-se para as características e
6
tendências das políticas de proteção social na Europa, América Latina e Brasil,
considerando pressupostos e os desafios das alternativas em curso. Um aspecto central
nessa discussão refere-se às transformações no plano da produção das políticas de proteção
social e da gestão pública, que configuram modelos e estratégias de intervenção que são
aqui examinadas. A análise das estratégias de inclusão irá considerar, de forma prioritária,
o âmbito de gestão local. Nos novos modelos de proteção social, o principal articulador das
ações de enfrentamento da exclusão social é o âmbito local, e embora não se desconheça a
centralidade do nível nacional para a provisão de bem e serviços sociais, o foco de análise
será o nível local de gestão. No modelo de ação esboçado, as estratégias locais de inclusão
pautam-se pela perspectiva da autonomia individual e comunitária e pelo empoderamento,
orientando-se por estratégias de gestão pautadas pela integralidade das políticas, pelo foco
na demanda e na capacidade de ajustar intervenções às necessidades específicas das
populações e regiões pobres, excluídas ou segregadas.
O trabalho identifica e organiza as dimensões e categorias que emergem na literatura
examinada na primeira e segunda parte do trabalho, e a partir do quadro assim construído,
são examinadas duas estratégias locais desenvolvidas em contextos metropolitanos. Nesse
caso importa identificar, no desenho dos programas desenvolvidos em Belo Horizonte e
São Paulo, elementos do quadro analítico e do modelo de ação aqui esboçado.
7
SUMÁRIO DE FIGURAS, QUADROS E TABELAS
Lista de figuras
FIGURA 1: Enfoques sobre a pobreza em uma linha temporal ...................................................
36
FIGURA 2: Modos de vida sustentáveis .....................................................................................
70
FIGURA 3: Tipologia dos modelos de serviços pessoais, segundo Brugué e Gomá .................
149
FIGURA 4: Relações entre enfoques, categorias e elementos das estratégias de intervenção ...
203
FIGURA 5: Relações entre elementos condutores e interruptores da pobreza crônica .............
204
FIGURA 6: Relações entre mecanismos de superação da pobreza crônica e elementos de gestão
205
FIGURA 7: Programas Sociais Prioritários: um esquema para identificação dos componentes e
suas articulações possíveis ......................................................................................................
256
Lista de quadros
QUADRO 1: Vulnerabilidade, Sensitividade e Resiliência ........................................................
71
QUADRO 2: Tipologia de ativos, segundo C. Moser ................................................................
73
QUADRO 3: Síntese dos principais enfoques examinados sobre pobreza ..................................
80
QUADRO 4: Pobreza absoluta e relativa: mensuração e indicadores .........................................
84
QUADRO 5: Método Integrado de Mensuração da Pobreza ......................................................
88
QUADRO 6: Tipologia dos sistemas de assistência social focalizada na Europa, segundo
Neubourg, Castonguay e Roelen ...............................................................................................
106
QUADRO 7: Tipologia dos sistemas de proteção na América Latina, segundo Fleury e Molina
107
QUADRO 8: Vetores e diretrizes de políticas no contexto da segunda modernidade, segundo R.
Gomà .....................................................................................................................................
140
QUADRO 9: Tipologia de estratégias de enfrentamento, segundo John Hills ...........................
168
QUADRO 10: Dimensões e conteúdo da análise e referenciais empíricos para a consideração
sobre as iniciativas de Belo Horizonte e São Paulo ..................................................................
207
QUADRO 11: Organização dos serviços de assistência social segundo volume e complexidade
do atendimento ...................................................................................................
216
QUADRO 12: Programas desenvolvidos no BH Cidadania: secretarias envolvidas e atendimento
por faixa etária ......................................................................................................
221
QUADRO 13: Síntese dos Programas da estratégia de inclusão de São Paulo ............................
257
QUADRO 14: Programas da estratégia de inclusão social: alguns resultados ...........................
271
8
Lista de tabelas
TABELA 1: Incidência da pobreza e indigência na América Latina 1980 – 2002 .....................
14
TABELA 2: Incidência da pobreza e indigência, Brasil 1990 – 2001 .........................................
16
TABELA 3: Pobreza, indigência e vulnerabilidade em Belo Horizonte, São Paulo, Minas Gerais,
São Paulo e Brasil – 1991 e 2000 .............................................................................................
9
210
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
13
a) Delimitação do problema .............................................................................................................
22
b) Notas metodológicas ....................................................................................................................
28
c) A organização do trabalho............................................................................................................
31
PARTE I – A POBREZA COMO DESAFIO PARA O CONHECIMENTO
33
CAPITULO 1 – - CONCEPÇÕES SOBRE POBREZA: DESAFIOS PARA O CONHECIMENTO
35
1.1 O enfoque monetário: pobreza como condição exclusivamente econômica .............................
37
1.2. O enfoque das necessidades básicas insatisfeitas: noção de privações .....................................
41
1.3. O enfoque das capacidades: o divisor de águas ........................................................................
42
1.4 Exclusão social: dimensões relacionais da pobreza ..................................................................
44
1.4.1 Exclusão como processo: desfiliação e o lugar do trabalho e da sociabilidade ........
48
1.4.2 Em busca de um quadro conceitual: características básicas do conceito de exclusão
52
a) Categoria relacional ...........................................................................................
53
b) Processos e dinâmicas .......................................................................................
54
c) A noção de ação: onde se insere a ação pública .................................................
55
d) Multidimensionalidade ......................................................................................
56
1.4.3 Pobreza e exclusão: aproximações e distinções conceituais ......................................
57
1.5 Vulnerabilidade e risco: posse de riscos, modos de vida e portfólio de ativos ......................
63
2.5.1 Modelo da posse de ativos ........................................................................................
66
2.5.2 Enfoque dos modos de vida .......................................................................................
68
2.5.3 Enfoque do portfólio dos ativos .................................................................................
71
1.6 Pobreza crônica: concepção aglutinadora? ................................................................................
74
CAPITULO 2 - DAS CONCEPÇÕES À MENSURAÇÃO ........................................................................
82
2.1 Mensuração pelo enfoque monetário ........................................................................................
83
2.2 Necessidades básicas: mapas e indicadores sociais ...................................................................
86
2.3 Capacidades e Desenvolvimento Humano .................................................................................
88
2.4 Enfoque participativo: a subjetividade em cena .......................................................................
91
2.5 Exclusão social: complexidade da mensuração .........................................................................
93
2.6 Vulnerabilidade e riscos: a matriz de riscos e a mensuração do empoderamento .....................
96
10
PARTE II – A POBREZA COMO DESAFIO PARA AS POLITICAS PÚBLICAS ..............
100
CAPITULO 3 - POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL E COMBATE À POBREZA: DISTINTAS
CONCEPÇÕES E MODELOS DE INTERVENÇÃO ................................................................................
101
3.1 Estados de bem estar: configurações e tendências de distintos modelos de proteção social na
Europa e América Latina .................................................................................................................
101
3.1.1 Modelos de Bem Estar: tipologia básica ..................................................................
102
3.1.2 O sistema de Bem Estar na América Latina e Brasil ................................................
107
3.2 Tendências e transformações dos sistemas de proteção social ..................................................
111
3.3 Políticas de combate à pobreza: diferentes estratégias, distintas implicações ..........................
120
3.4 Combinando universalismo e seletividade: os difíceis termos da equação ...............................
134
CAPÍTULO 4 - MUDANÇAS NO CAMPO DA PRODUÇÃO DAS POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL
139
4.1 Poder local e governança: elementos de inovação na gestão ....................................................
141
4.2 Modelos locais de proteção social: construindo o caminho de saída .......................................
146
4.3 Incorporação e inserção social: metodologias de intervenção ..................................................
150
4.4 A experiência do Programa Puente/Chile, como estratégia de inclusão ...................................
153
CAPÍTULO 5 - DAS CONCEPÇÕES À AÇÃO OU ELEMENTOS DE ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO
164
5.1 Pobreza crônica: a complexidade da intervenção ......................................................................
165
5.2 Multidimensionalidade e intersetorialidade ...............................................................................
170
5.2.1 Transversalidade, intersetorialidade ou articulação: aspecto central da ação contra a
pobreza .............................................................................................................................
172
5.3 Heterogeneidade da pobreza, flexibilidade na oferta dos serviços e território ..........................
179
5.3.1 Território: políticas territoriais e políticas territorializadas ......................................
179
5.3.2 Infra-estrutura social: um enfoque pertinente sobre território e comunidade ...........
182
5.3.3 “Personalização” do atendimento e oferta flexível de serviços .................................
186
5.4 Autonomia, capacidades e oportunidades ..................................................................................
188
5.5 Articulando as categorias em um quadro analítico ....................................................................
196
CAPÍTULO 6 – AS EXPERIÊNCIAS DE BELO HORIZONTE E SÃO PAULO: DAS IDÉIAS ÀS AÇÕES
206
6.1 Belo Horizonte: o BH Cidadania como estratégia de enfrentamento da exclusão social ..........
213
6.1.1 A estratégia do BH Cidadania ..................................................................................
214
6.1.2 Considerações sobre a experiência ..........................................................................
227
a) Autonomia, capacidades, empoderamento .........................................................
227
b) Aspectos organizacionais: governança e intersetorialidade ...............................
236
c) Território: unidade de focalização ou de intervenção? ......................................
243
11
6.2 São Paulo: os programas sociais prioritários para inclusão social .............................................
249
6.2.1 – Pressupostos e diretrizes da estratégia de inclusão em São Paulo ..........................
251
6.2.2 - Considerações sobre a estratégia .............................................................................
275
a) Autonomia, empoderamento e desenvolvimento de capacidades ......................
275
b) Intersetorialidade e redes multiníveis: os desafios da integração ......................
286
c) Território e desenvolvimento local ....................................................................
295
6.3 Belo Horizonte e São Paulo em perspectiva ..............................................................................
298
CAPÍTULO 7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................
302
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................................
314
ANEXOS ............................................................................................................................................
324
Anexo I – Mensuração da pobreza e das condições de vida em Belo Horizonte
324
Anexo II – Organização dos serviços de assistência social da prefeitura de Belo Horizonte
328
Anexo III – Mensuração da pobreza e condições de vida em São Paulo
332
12
INTRODUÇÃO
Esse trabalho trata do tema da pobreza, abordando diferentes concepções e implicações
para o desenho de políticas públicas locais de inclusão social. O eixo do trabalho reside na
interlocução analítica entre a dimensão relativa a concepções e formas de mensuração da
pobreza e a dimensão das políticas de proteção social e combate à pobreza.
Inicialmente é importante apresentar, ainda que apenas brevemente, alguns dados que
permitam identificar a magnitude da pobreza e da desigualdade no mundo, na América
Latina e no Brasil. Dentre as inúmeras informações disponíveis sobre a pobreza e a
desigualdade em escala mundial 1 , ressaltamos apenas duas: 799 milhões de pessoas em
todo o mundo são subnutridas e mais de 34 mil crianças menores de cinco anos morrem a
cada dia por causa da fome ou em razão de doenças evitáveis (Pogge, 2004, p. 242). Os
números são impactantes. Mais de 2,8 bilhões de pessoas em todo o mundo vivem com
menos de 2,15 dólares ao dia, o que totaliza uma renda anual per capita de menos de mil
dólares. A renda agregada de toda essa população é de 384 bilhões de dólares, menos de
1,5% do “produto social global de 31,5 trilhões”, conforme estimativa do Banco Mundial
(Pogge, 2004, p. 244). A disparidade de renda entre o quinto mais rico e o quinto mais
pobre da população mundial evidencia a desigualdade e seu crescimento ao longo das
décadas: em 1960, essa disparidade era de 30 para 1, passou de 60 para 1 em 1990 e de 74
para 1 em 1997 (Pogge, 2004, p. 243) 2 . Não apenas a desigualdade em escala mundial
aumenta, mas também a pobreza e a desnutrição:
“Nos onze anos que se seguiram ao fim da guerra fria, o número de pessoas que
subsistem abaixo da linha de pobreza representada pelos 2,15 dólares diários (1993)
cresceu em mais de 10%, e o número ds pessoas subnutridas permaneceu basicamente
o mesmo” (Pooge, 2004, p. 243).
A América Latina apresenta dificuldades para superar altos índices de pobreza e
desigualdade, em um contexto de mercado internacional globalizado, que impõe novas
regras e dinâmicas produtivas e tecnológicas. Embora o ritmo de crescimento tenha
1
Diversos relatórios mundiais produzidos por agências multilaterais e internacionais permitem evidenciar a
magnitude da pobreza e da desigualdade mundial com grande riqueza de dados.
2
O absurdo dessa desigualdade extrema fica evidente na seguinte afirmação: “os bens de três grandes
bilionários ultrapassam em valor o total dos PIBs de todos os países menos desenvolvidos, com seus 600
milhões de habitantes” (Pogge, 2004, p. 245). E mais ainda quando as estimativas apontam que, se fosse
duplicada a renda das populações extremamente pobres (2,8 bilhões de pessoas) , isso implicaria que o decil
mais rico da população teria seus rendimentos reduzidos em cerca de 1,5%, o que não alteraria
substancialmente suas vidas (Pooge, 2004, p. 244)
13
modificado as condições de vida da população na América Latina entre os anos 50 e 70 3
(aumento da taxa alfabetização, queda da mortalidade infantil, aumento da esperança
média de vida, melhora nos indicadores de saúde e nutrição), este foi insuficiente para dar
conta da excessiva demanda e extrema desigualdade entre os distintos países e em diversos
grupos sociais e regionais internos. A excessiva desigualdade e exclusão social produzem
“núcleos duros” de pobreza, estratos sociais nos quais a pobreza se reproduz de geração
em geração, apresentando alto grau de vulnerabilidade e marginalização.
De acordo com o Panorama Social de América Latina (CEPAL, 2004), em 1990, 93
milhões de pessoas (22,5%) encontravam-se abaixo da linha de indigência e 200 milhões
(48,3%) eram pobres. Em 2002, são 97 milhões de indigentes (19,4%) e 221 milhões
(44%) de pessoas situadas abaixo da linha da pobreza na América Latina (Tabela 1). Em
2003 eram 226 milhões de pobres e 100 milhões de indigentes (CEPAL, 2004, p. 58).
Entre 1999 e 2002, a pobreza cresceu 0,2% e a indigência 0,9%, o que mostra o
agravamento da situação (CEPAL, 2004, p. 56). Em 22 anos (de 1980 a 2002), tem-se um
crescimento da incidência da pobreza e da indigência na América Latina, ainda que o
crescimento econômico, medido em termos do PIB per capita, tenha sido positivo.
Tabela 1 - Incidência da pobreza e indigência na América Latina 1980 - 2002
Pobres
Indigentes
Milhões de
pessoas
%
Milhões de
pessoas
%
1980
135,9
40,5
62,4
18,6
1990
200,2
48,3
93,4
22,5
1997
203,8
43,5
88,8
19,0
1999
211,4
43,8
89,4
18,5
2000
207,1
42,5
88,4
18,1
2001
213,9
43,2
91,7
18,5
2002
221,4
44,0
97,4
19,4
Fonte: Preparado pela autora a partir das tabelas existentes no documento da CEPAL,
2004, pp. 55 e 56. Dados relativos a 18 países da região, além do Haiti.
3
De acordo com Iglésias (1992, pp. 74,75), entre 1950 e 1980 o produto interno bruto da América Latina
cresceu a uma taxa de 5,5% ao ano, ligeiramente maior do que a taxa de desenvolvimento dos países
industrializados; crescimento acompanhado por intenso processo de inversão e transformação produtiva e
tecnológica.
14
Além da alta proporção de pobres e indigentes, a América Latina continua registrando
acentuada concentração de renda. Grande parte da pobreza se explica pela desigualdade
existente. Simulações realizadas mostram que alguns países da América Latina deveriam
ter um crescimento de 2,9% ao ano na renda per capita, por 11 anos, para reduzir pela
metade a pobreza extrema, meta primeira dos objetivos do milênio. Em países como o
Brasil, esse crescimento deveria ser de 3,1 % ao ano para se alcançar o mesmo resultado.
Caso haja uma redução de 0,025 pontos no valor do coeficiente de Gini (o que
corresponderia a uma queda de 5% de seu valor atual), a taxa de crescimento poderia ser
significativamente menor (2,1%) para se alcançar o mesmo resultado de superação da
pobreza (CEPAL, 2004, pp. 68-70).
“Lo anterior corrobora la importancia de la redistribución del ingreso como un factor
muy importante que podría facilitar a la región el cumplimiento de las metas de
reducción de la pobreza, sobre todo en aquellos casos en que las tasas de crecimiento
requeridas son de difícil consecución. En este sentido, el aumento de la inversión social
y de los programas asistenciales, así como la mayor integración de las personas de
bajos recursos al aparato productivo, son fundamentales para avanzar en la dirección
propuesta” (CEPAL, 2004, p. 70).
Observando a situação da América Latina sob o ponto de vista da desigualdade, tem-se que
os 40% mais pobres se apropriam de 13,6% da renda total, enquanto que os 10% mais ricos
se apropriam de 36,1%. No Brasil, em 2001, os 40% mais pobres ficavam com 10,2% da
renda total, os 10% mais ricos se apropriavam de 46,8% (CEPAL, 2004, p. 89). Quando se
observa a distribuição geográfica da pobreza e da indigência, tem-se que 30% dos pobres e
25% dos indigentes da América Latina encontram-se no Brasil (CEPAL, 2004, p. 57).
O estado social no Brasil não destoa do cenário da América Latina. Depois de alguns anos
de crescimento, o Brasil entra na década de 80 com grande dinamismo político, mas sob o
signo de uma crise econômica e altos níveis de inflação. Ainda que tenha, em 30 anos,
alterado profundamente sua estrutura social rural-urbana, constituído uma infra-estrutura
básica e com grande capacidade instalada - inclusive em setores de ponta - o Brasil não
apresentou projetos para a grande massa de pobres e registra um dos piores índices
mundiais relativos à concentração de renda e parâmetros de justiça social. A capacidade
do Brasil para transformar crescimento econômico em desenvolvimento social tem-se
revelado menor que a da maioria dos países latino-americanos semelhantes. Ainda que a
“década perdida” tenha mostrado avanços no campo político-social - com a criação e
expansão de novos direitos sociais, alterando o perfil e o conteúdo da proteção social,
definindo novas competências, efetuando mudanças importantes no arcabouço institucional
15
para planejamento e gestão de políticas sociais - as conquistas legais e constitucionais
estão longe de efetivar a universalidade de direitos.
A magnitude tanto da pobreza quanto da indigência no país permitem confirmar a não
garantia de direitos básicos para um grande contingente da população. Quanto à incidência
da pobreza, houve uma redução, no Brasil, na última década (Tabela 2): de 48% da
população abaixo da linha da pobreza, em 1990, para 37,5% em 2001. A indigência
também decresce, passando de 23,4% da população em 1990 para 13,2% em 2001.
Outras formas de mensuração identificam valores diferentes 4 . Pela mensuração da pobreza
a partir do salário mínimo, usualmente utilizada para a definição da linha de pobreza no
Brasil, em 2002 havia 52,3 milhões de pobres, correspondente a 30,6% da população. Na
indigência, estavam 20 milhões de pessoas, ou 11,6% da população (PNUD, 2004, p. 15) 5 .
Henriques (2004) afirma que seriam 55 milhões de pobres (34% da população).
Tabela 2 - Incidência da pobreza e indigência, Brasil 1990 - 2001
Brasil
Pobres %
Indigentes %
Apropriação
renda dos 40%
mais pobres
Apropriação
de
renda dos 10%
mais ricos
1990
48,0
23,4
9,5
43,9
1996
35,8
13,9
9,9
46
1999
37,5
12,9
10,1
47,1
2001
37,5
13,2
10,2
46,8
Fonte: elaborado pela autora a partir das tabelas em Cepal, 2003, pp. 54,73
Considerando outros indicadores tem-se as medidas de intensidade da pobreza 6 , que
revelam que a situação piorou ao longo da década (CEPAL, 2003, p. 57). Além da
permanência e do recrudescimento da pobreza, tem-se a persistência de patamares elevados
de desigualdade social ao longo das décadas: “al analizar varios índices no cabe duda de
4
A metodologia da Cepal define a linha de pobreza a partir da estimativa do custo de uma canastra de bens e
serviços que permita às pessoas satisfazerem suas necessidades básicas. Segundo o método do custo das
necessidades básicas, é considerado pobre o indivíduo que apresenta uma renda per capita inferior ao valor
necessário para adquirir a canastra básica (CEPAL, 2004, p. 57).
5
Outras fontes, ainda que utilizando o mesmo parâmetro (salário mínimo), identificam valores diferentes
para o mesmo ano. De acordo com o documento do IPEA (2005), em 2002 eram 49 milhões de pessoas
pobres, correspondendo a 29% da população. Desses, 18,7 milhões eram indigentes, correspondendo a
11,2%. Tomando como base os domicílios, tem-se em 2002, 10 milhões de domicílios pobres e 3,7 milhões
em condição de indigência (IPEA, 2005a, p. 87). Como se vê, para o mesmo ano e tendo como o mesmo
parâmetro (salário mínimo), os valores apresentam importantes diferenças. Não é o caso de explicá-las aqui,
mas de salientar a existência dessas discrepâncias.
6
Uma medida é a da brecha da pobreza, que mede a renda média dos pobres, e a outra é o índice de Foster,
Greer e Thorbecke (FGT), que mede a disparidade da distribuição de renda entre os pobres.
16
que Brasil pueda considerarse, en términos generales, el país más desigual” (CEPAL,
2003, p. 80). A apropriação da renda pelos 40% mais pobres da população aumentou, ainda
que em níveis irrisórios, se comparados pelo acréscimo na apropriação da renda por parte
dos 10% mais ricos da população.
Pobreza e desigualdade são fenômenos diversos. Existem países com baixos índices de
pobreza absoluta e grande desigualdade, bem como países com grande incidência de
pobreza e baixa desigualdade. Mas no Brasil esses dois fenômenos se sobrepõem 7 . Parte da
pobreza persistente no Brasil decorre da forte desigualdade de renda. Embora os mais
pobres tenham melhorado, ainda que timidamente, sua participação, a distância entre os
extremos pouco se alterou, tendo, na verdade, se agravado. Em 1992, os 20% mais ricos se
apropriavam de 55,7% da renda nacional e em 2002, de 56,8% (PNUD, 2004, p. 16).
Segundo Henriques (2004), a situação da desigualdade no Brasil 8 - naturalizada e não
considerada ainda seriamente como objeto de intervenção prioritária por parte do governo
e da sociedade - fica evidente ao considerar que os 10% mais ricos detêm 50% da renda do
país e que 50% mais pobres se apropriam de apenas 10%. Apenas 1% da população detêm
parcela de renda superior à renda de 50% da população brasileira (Henriques, 2004, pp. 6364).
Em termos de renda per capita, o Brasil não pode ser classificado como um país pobre no
plano internacional. Esta renda era, em 2003, de 2.710 dólares (IPEA, 2005b), perto de
seis mil reais nos valores de hoje, bem superior a qualquer valor que possa ser associado à
linha de pobreza. Cerca de 77% da população mundial vive em países com renda per
capita inferior à brasileira (Henriques, 2004), e aproximadamente 64% dos países do
mundo têm renda per capita inferior à brasileira. Alguns autores (Barros et al, 2000)
demonstram que, se no Brasil tem-se mais de 30% da população abaixo da linha da
pobreza, em países com renda per capita similar à brasileira esse valor é inferior a 10%, o
7
.Para entender a permanência da pobreza no Brasil tem-se que olhar para a estrutura da desigualdade de
renda. Apenas dois países em um conjunto de 92 países apresentam um coeficiente de Gini superior ao
encontrado para o Brasil, que é próximo de 0,60. Olhando-se a distribuição por quintis, tem-se que a renda
média dos 20% mais ricos representa mais de 30 vezes a renda média dos 20% mais pobres (Barros et al,
2000, pp. 23-25). Em 1992, 20% das pobres detinham 3% da renda das famílias. Dez anos depois, essa
participação se elevou para 4,2%, devido, principalmente, às transferências de renda operadas através de
programas de assistência e previdência. Um ponto importante de ser destacado, ainda que não aprofundado
agora, refere-se ao peso das transferências na redução da incidência da pobreza e indigência. Segundo
simulações do IPEA, excluir tais transferências significara um crescimento de 10% no número de indigentes
no Brasil (PNUD, 2004, p. 16).
8
Uma distribuição de renda mais eqüitativa seria suficiente para erradicar a pobreza, uma vez que existem
recursos para isso. A renda per capita e o PIB per capita são de 5 a 8 vezes superior à linha de indigência e
de 3 a 4 vezes à linha de pobreza no Brasil (Henriques, 2004).
17
que indicaria que parte expressiva da pobreza no Brasil não está associada à escassez de
recursos, mas sim à perversa estrutura de desigualdade na distribuição da renda. Os autores
afirmam que a distribuição mais equitativa dos recursos disponíveis seria mais do que
suficiente para eliminar toda a pobreza (Barros et al, 2000, p. 20; Henriques, 2004) 9 .
Considerando-se outros indicadores além da renda, tem-se um retrato mais completo da
pobreza no Brasil. Ainda que as últimas décadas tenham apresentado avanços nos
indicadores sociais no Brasil (aumento da expectativa de vida, redução da mortalidade,
melhoria dos indicadores de acesso à saúde, educação, habitação e transporte), tem-se, em
2003, que quase 20% da população de 40 anos ou mais é analfabeta; 11,6%, ou 14,6
milhões de pessoas com 15 anos ou mais são analfabetas; 6,6 milhões de pessoas moram
em domicílios localizados em favelas; quase 42 milhões de pessoas, ou 28,5% da
população urbana não têm acesso simultâneo aos serviços de água, esgoto e coleta de lixo
(IPEA, 2005b). O acesso a esgoto sanitário é realidade para apenas 50% dos domicílios no
Brasil, sendo essa condição pior para os pobres e indigentes: menos de 30% dos domicílios
pobres estão conectados com redes públicas de esgoto ou contam com sistemas mais
simplificados de tratamento, como fossa séptica. Entre os domicílios em condição de
indigência, apenas 26% dispõem de algum tipo de saneamento (IPEA, 2005a, p. 107).
Os indicadores relativos ao mercado de trabalho são importantes para dimensionar os
desafios para a superação da pobreza no país. Sem políticas efetivas de fomento da
produtividade e de abertura de postos de trabalho, o enfrentamento sustentado da pobreza
9
Tanto o crescimento econômico quanto a distribuição de renda são consideradas como medidas centrais
para o combate à pobreza. Uma instigante simulação ressalta os diferentes impactos que uma e outra
estratégia provocariam para alterar nesse cenário: um crescimento de 4% ao ano de renda per capita por um
período de 10 anos reduziria a pobreza em 12,5 pontos percentuais; enquanto que a redução do grau de
desigualdade ao nível existente em Costa Rica (alterando o índice de Gini de 0,60 para 0,46), por exemplo,
seria suficiente para alcançar o mesmo resultado, mesmo na ausência de crescimento econômico (Barros et
al, 2000, pp. 27-28). É necessário um longo período de crescimento econômico estável para que se possa
chegar ao mesmo resultado que uma alteração na estrutura de desigualdade provocaria. Uma estratégia eficaz
de combate à pobreza seria alterar um dos mais importantes determinantes da pobreza, que é a desigualdade.
Em 2005, a simulação é feita utilizando o indice de Gini do Uruguai (o menor da América Latina) e sustenta
que a redução da desigualdade no Brasil ao valor existente no Uruguai, seria suficiente para reduzir em 20%
a pobreza, que passaria de 34% para 14% da população (Henriques, 2004). Isso quer dizer que o caminho do
crescimento econômico é importante, embora seja lento, para combater a pobreza. A busca de maior
equidade deve ser o eixo central de uma política eficaz para fazer frente à pobreza. Na avaliação dos
economistas do IPEA, sem alterar de forma radical a estrutura de desigualdade vigente, pouco pode ser feito
para alterar o cenário de pobreza no Brasil. Esse debate entre crescimento e desigualdade é complexo e
muito especializado e não é o objetivo aqui explorá-lo diretamente. Existem evidências, segundo parte da
literatura corrente, que o crescimento econômico é insuficiente para acabar com a pobreza, mas também é
evidente que existem condições pré existentes mais favoráveis para que o crescimento econômico seja
condição não só necessária, mas também suficiente para acabar com a pobreza. Como se vê, existe um amplo
campo para pesquisas e estudos nesse campo. Embora interessante e importante, essa não constitui a
preocupação central do presente trabalho.
18
não se efetiva. Vale ressaltar, a esse respeito, que houve uma redução da taxa de inserção
formal no mercado de trabalho, que caiu de 22,2% para 20,7% para os pobres e de 11,2%
para 10,4% para os indigentes, no período entre 1993 e 2002. A taxa de participação na
PEA é menor entre os pobres e indigentes, abaixo da média nacional, o que revela uma
dificuldade desses em encontrar uma ocupação no mercado de trabalho. Mas quando se
observa essa taxa para as faixas etárias entre 10 e 14 anos e acima de 60 anos (que não
deveriam estar trabalhando), tem-se uma alteração, com uma presença mais significativa,
nos estratos mais baixos de renda, de uma população idosa e infantil na PEA. Esse ponto é
importante e sinaliza as estratégias utilizadas pelos pobres e indigentes, de inserção de
crianças e idosos no mercado de trabalho, como forma de enfrentar a pobreza e a exclusão
(IPEA, 2005a, p. 103).
Quando se discrimina entre o contexto urbano e rural, tem-se que a redução da pobreza
ocorreu quase que exclusivamente na área rural, e o que se assiste é um processo de
urbanização ou metropolização da pobreza, principalmente a pobreza extrema (IPEA,
2005a, p. 97). Se houve um crescimento na renda dos domicílios pobres (6,6%) e
indigentes (14,2%) no Brasil no período de 1993 a 2002, tem-se um resultado diferente
quando se observa o contexto metropolitano: os ganhos de renda domiciliar entre os pobres
e indigentes foram menores, 3,6% e 4,2%, respectivamente (IPEA, 2005a, pp. 91,92) 10 .
Conforme apontam Torres e Marques (2004), quando se observa em escala nacional, a
pobreza não pode ser considerada como um problema metropolitano: apenas 19% dos
indigentes (com renda abaixo de um quarto de salário mínimo per capita) estão nas
regiões metropolitanas, mais de 34% concentram-se nas zonas rurais e mais de 46% estão
em regiões não metropolitanas. As regiões metropolitanas concentram aproximadamente
30% da população nacional e menos de 20% dos indigentes. Mas considerando apenas o
Sudeste, essa proporção se altera: nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro
e Belo Horizonte se concentram 39% dos indigentes, o que mostra que a pobreza é sim um
fenômeno metropolitano (Torres e Marques, 2004).
Segundo dados do IPEA (2005a), nas regiões metropolitanas do Brasil são mais de 3
milhões de indigentes, totalizando 6% de toda a população das metrópoles em 2002.
Nessas regiões, a taxa de desocupação foi superior à taxa nacional, passando de 9,3% em
10
O aumento do valor real do salário mínimo pode ser considerado o principal responsável pelo acréscimo de
renda dos pobres, enquanto que para os indigentes, os benefícios e transferências são mais relevantes para
explicar ganhos de renda per capita (IPEA, 2005a, p. 95).
19
1993 para mais de 13,2% em 2002. Nessas áreas, a taxa de desocupação entre os jovens
pobres com idade entre 15 e 24 anos é de 40%, e entre os jovens indigentes, ultrapassou
52%, em 2002 11 . Ainda de acordo com as análises do IPEA, o percentual de domicílios
com chefe desocupado é maior nas metrópoles do que a média do país. Entre 1993 e 2002,
houve uma redução do setor formal de quase 7% nas regiões metropolitanas, enquanto que
para o país como um todo houve um crescimento desse setor, que passou de 37,5% para
38,4% no mesmo período (IPEA, 2005a, p. 100). Esses dados são suficientes para
identificar uma situação de agravamento da pobreza no contexto metropolitano, ou ainda
para apontar para novos perfis da pobreza e problemas que são colocados nesse âmbito.
Essa constatação justifica o foco do trabalho na questão da pobreza urbana, com ênfase nas
políticas locais de enfrentamento da pobreza e exclusão.
Como se pode verificar a partir do exposto, a questão da pobreza ainda não foi
equacionada de forma efetiva, sendo um ponto citado à exaustão no âmbito internacional e
no campo das agências multilateriais e de desenvolvimento e nos fóruns e espaços globais
de deliberação.
Na literatura sobre modelos de desenvolvimento, uma das respostas para a superação da
pobreza é o crescimento econômico, entendido como a via mais direta para reduzir a
pobreza. A concepção de que crescimento econômico seria suficiente, por si só, para
superar a pobreza
é problemática. A trajetória de vários países torna evidente a
permanência da pobreza, mesmo nos casos de crescimento econômico. Por exemplo, o
relatório de 2004 do Chronic Poverty Research Centre afirma que
“although human development indicators have improved over the past two decades,
aggregate per capita household expenditure has barely risen – on average less than a
half a percent – despite economic recovery and positive growth in the 1990s. In some
countries, such as Peru, poverty rates rose and poverty gaps widened alongside
substantial economic growth” (p. 79)
Entretanto, ainda que pesem as evidências quanto a sua insuficiência, grande ênfase tem
sido dada à estimativa das taxas de crescimento econômico necessárias para acabar com a
pobreza. Essa é a perspectiva dominante, embora se argumente, inclusive através das
agências internacionais como o Banco Mundial, que devem ser identificados modelos de
crescimento que levem em conta a desigualdade. No âmbito desse debate importa
11
Para o país como um todo, no mesmo ano, a taxa de desocupação entre os jovens de 15 a 24 anos ficou em
18,1%, enquanto que para jovens pobres e indigentes foi de 22,9% e 28,6%, respectivamente (IPEA, 2005a,
p. 105).
20
estabelecer, ainda dentro de uma visão estritamente econômica e individualizada da
pobreza, as relações entre crescimento, desigualdade e pobreza, com evidências de que o
crescimento deve ser combinado com redução da desigualdade para produzir efeitos na
redução da pobreza. Embora expandindo a concepção tradicional sobre crescimento
econômico e desenvolvimento, essa abordagem estrutura-se sobre a mesma ordem e
conjunto de preocupações tradicionais do debate sobre pobreza e crescimento
econômico 12 .
Nas palavras de Ricardo Henriques, a suposição que orienta essa perspectiva é mais ou
menos a seguinte: a pobreza resulta da não riqueza, crescimento gera riqueza, logo riqueza
reduz pobreza, sendo decorrente daí a estratégia, ou seja, crescimento econômico
(Henriques, 2004, p. 65). O que é efetivamente novo nesses esforços recentes parece ser
inserir nessa equação a variável desigualdade, que intervêm nesse processo de “riqueza
reduz pobreza”, mas sem abandonar os pressupostos ou a orientação básica desse conjunto
de suposições.
A questão da distribuição e, por conseguinte, da desigualdade é complexa e não deve ser
abordada de uma forma ligeira. Não vamos nos estender nesse debate, mas apenas pontuar
que, para uma abordagem estratégica da pobreza, deve-se considerar a possibilidade de
políticas mais universais de provisão de bens e serviços sociais, além de estratégias
redistributivas para reduzir os níveis de desigualdade. Além da incorporação da temática
da desigualdade e da exclusão na agenda pública,
tem-se o desafio de garantir as
condições para sua implementação, o que significa recursos, alterações no padrão de
financiamento, condições institucionais e gerenciais para maior eficiência do gasto e maior
efetividade das políticas implementadas.
Um ponto importante e que justifica o trabalho refere-se ao fato de que pouco consenso há,
entre outras coisas, quando se trata das formas e conteúdos das políticas, bem como das
condições (sociais, políticas, econômicas e institucionais) necessárias e suficientes para seu
êxito. Embora antigo, o debate permanece, desafiando a ação dos agentes públicos
encarregados de desenhar e implementar estratégias concretas e efetivas para prevenção e
12
A concepção de desenvolvimento sustentável espelha essa ordem de preocupações, ao reverter o eixo das
concepções de desenvolvimento, colocando no centro e tendo como base as pessoas, sob a ótica do
desenvolvimento humano. Outros modelos de desenvolvimento, como os delineados nas formulações do
PNUD, ultrapassam a perspectiva da renda, abrangendo o desenvolvimento como desenvolvimento humano
(PNUD, 1996). A dimensão econômica, que não deixou de ser estruturante da mensuração das condições de
vida (sendo um dos três componentes do IDH), refere-se agora a desenvolvimento econômico sustentável
(PNUD, 2004). Obviamente a discussão e o debate na área é bastante mais ampla e profunda da que a
desenvolvida aqui.
21
superação da pobreza. O presente trabalho situa-se precisamente aí, na tentativa de lançar
luz e tornar mais evidentes e articulados alguns elementos apontados na literatura sobre
pobreza e políticas públicas como necessários para alterar a realidade mundial de milhões
de pessoas que vivem com múltiplas privações. Dentre a pobreza em geral, importa
ressaltar a pobreza crônica, severa e transmitida de geração a geração, que implica perdas
muitas vezes irreparáveis em várias dimensões da existência humana. Trata-se de focalizar
um subconjunto dos pobres, os muito pobres, os que são pobres há muito tempo, que
vivenciam situações de privações objetivas e imateriais e que não apresentam, por si só,
condições de saírem dessas condições de privações e espirais negativas de fragilização e
marginalização social.
Embora muito se produza sobre o fenômeno da pobreza, suas manifestações e formas de
mensuração, não parece existir um estoque de conhecimento que permita a identificação e
o uso de “tecnologias” adequadas e suficientes para se desenhar estratégias de políticas
públicas efetivas para o enfrentamento da pobreza e de novas formas de exclusão social.
De quais modelos dispomos para orientar a intervenção nas políticas voltadas para o
enfrentamento da pobreza crônica? Obviamente existe uma pergunta prévia sobre a
possibilidade de construir modelos formalizados, identificando os elementos que emergem
na literatura como sendo importantes de serem considerados 13 . Deixando essa questão e
essa pretensão de lado, trata-se aqui de fornecer um arcabouço conceitual capaz de
fornecer parâmetros para análise de experiências empíricas.
a) Delimitação do problema
A pergunta principal e que orienta o trabalho é a seguinte: é possível delinear, senão um
modelo de ação, pelo menos um conjunto de questões relevantes a serem levadas em conta
no desenho das estratégias de inclusão, tendo como referência a literatura sobre o tema?
Para respondê-la, tem-se a análise de parte da literatura sobre pobreza, por um lado, e sobre
políticas públicas e especificamente de proteção social, por outro, para extrair algumas
categorias analíticas centrais, conformando um quadro conceitual a partir do qual as
experiências locais de inclusão social possam ser analisadas. Evidentemente o presente
trabalho não cobriu todo o campo de produção científica sobre o tema da pobreza, como
por exemplo a rica produção no campo da história e do trabalho social. As escolhas
13
Uma imagem insólita: como se fosse possível preparar uma poção antipobreza, com determinados
ingredientes que aparecem na literatura examinada como necessários para a compreensão dos fenômenos da
exclusão e também da inclusão social.
22
realizadas ao longo do processo de tese inviabilizaram a incorporação de outras
abordagens. Ainda que essas pudessem acrescentar elementos para a análise, o material
identificado já se mostrava suficiente para os propósitos da pesquisa.
Para compreender a problemática da pobreza no mundo contemporâneo, o enfoque
tradicional da pobreza, calcado em uma perspectiva monetária, pode não ser mais
suficiente. Esse é um pressuposto e um ponto de partida de toda a construção do
argumento. Existe um movimento, tanto em países desenvolvidos como em
desenvolvimento, no sentido de ultrapassar a visão da pobreza para além do enfoque
monetário. Entretanto, é importante deixar claro que, para todos os enfoques examinados, a
centralidade da dimensão econômica permanece, embora essa não seja suficiente para
caracterizar, por um lado e para superar, por outro, as condições de pobreza crônica. O
enfoque econômico ampliado encontra ressonância na abordagem da vulnerabilidade e
ativos. Entretanto, quais os limites e potencialidades do uso de novas concepções para a
compreensão da pobreza, principalmente quanto ao desenho das intervenções sociais?
Qual pode ser a efetiva utilidade de conceitos tais como exclusão, vulnerabilidade e riscos
para iluminar o desenho de estratégias consistentes e adequadas para lidar com as situações
de privações múltiplas em contextos urbanos do século XXI? Uma análise dos diferentes
enfoques sobre pobreza, com foco mais orientado para as abordagens da exclusão e da
vulnerabilidade, permite destilar alguns elementos que têm implicações para o desenho de
políticas locais de proteção social.
Uma primeira aproximação do tema será o próprio exame da literatura sobre pobreza e
sistemas de proteção social. O esforço consiste em identificar e sistematizar parte da
produção sobre o tema da pobreza, algo como um survey dos estudos e perspectivas
existentes, no sentido de detectar pressupostos e categorias analíticas, apontar diferenças e
similaridades entre os enfoques e mapear em torno de quais dimensões analíticas e
estratégias de intervenção há maior ou menor convergência e até que ponto divergências e
convergências esclarecem e ajudam na composição do quadro analítico.
A visão tradicional e mais utilizada sobre pobreza considera esse fenômeno a partir da
dimensão da renda, do consumo, que se expressa pela identificação dos pobres a partir do
estabelecimento de padrões mínimos de vida que são traduzidos em um valor monetário.
Essa abordagem caracteriza a pobreza como ausência ou insuficiência de renda, dimensão
considerada suficiente para identificar privação ou pobreza. A unidimensionalidade
presente no enfoque monetário da pobreza seria um obstáculo à compreensão do caráter
23
multideterminado e multidimensional das condições de privação, o que abre espaço para
outras abordagens sobre o problema da destituição.
Esse é o primeiro ponto do argumento: a renda é, apesar de central, insuficiente para
caracterizar a pobreza, principalmente pobreza crônica, e para permitir desenhar estratégias
potencialmente mais efetivas de inclusão.
Outros enfoques consideram que outras dimensões seriam centrais e necessárias: pobreza é
um processo que envolve dimensões políticas, sociais e culturais, sendo, portanto,
inadequado abordá-la exclusivamente sob o aspecto econômico. Para uma compreensão
mais abrangente da pobreza, principalmente da pobreza crônica, extensa no tempo e
marcada pela intensidade das privações, é necessário incorporar outros fatores menos
tangíveis, para caracterizá-la, explicar sua produção, reprodução e também para sua efetiva
superação. Que categorias devem ser, então, necessariamente consideradas?
Os enfoques das capacidades, exclusão e vulnerabilidade reconhecem que processos de
inclusão e redução da vulnerabilidade social envolvem, além da renda, o acesso a serviços
públicos e sociais de qualidade; relações sociais, familiares e comunitárias de caráter mais
positivo; acesso a trabalhos qualificados, que confiram aos indivíduos não apenas renda,
mas também uma identidade e um “lugar social”. Além disso, tem-se a necessidade de se
viver em territórios dotados de adequada infra-estrutura social.
Esse é o segundo ponto do argumento: é necessário incorporar, para uma adequada
compreensão do problema e das estratégias de superação, não apenas a dimensão mais
tangível de bens e serviços oferecidos pelo Estado como também a dimensão relacional e o
foco no território, porque a pobreza é também fruto de relações sociais e de processos de
segregação e marginalização sócio-espacial. Reconhecida a centralidade do caráter
relacional da pobreza, principalmente a crônica, a pergunta seguinte é: que conseqüências
isso traz para o desenho de estratégias de intervenção?
O terceiro ponto do argumento é que, para enfrentar estrategicamente a pobreza, pode ser
imprescindível, do ponto de vista do conteúdo das políticas, desenvolver ações pautadas
pela busca da autonomia, ampliação das capacidades ou empoderamento das pessoas,
grupos e regiões. Sendo assim, as relações entre os agentes públicos e os usuários das
políticas ganham centralidade, pois esses se tornam os agentes catalisadores das mudanças,
atuando na direção do empoderamento, ampliação da capacidade de escolha e melhoria
efetiva nas condições e perspectivas de vida. A dimensão da agência tem aí um papel de
24
destaque, e essa categoria é entendida como capacidade de ação e de protagonismo, de coautoria e co-responsabilidade do indivíduo pela sua trajetória de inserção e é utilizada para
afirmar o papel dos agentes institucionais, informais e familiares na produção de bem estar.
E finalmente tem-se a dimensão da infra-estrutura social, que identifica a ação combinada
de fatores da infra-estrutura formal (rede de bens e serviços existentes no território) e
fatores relativos à organização social (mecanismos de controle formais e informais, rede
associativa e ação de grupos diversos no processo de “auto-ajuda” comunitária), como
categoria pertinente para orientar a análise tanto do fenômeno da pobreza quanto das
estratégias para seu enfrentamento.
O aporte para essa discussão vem da literatura sobre exclusão e vulnerabilidade, englobada
no rótulo genérico de abordagens mais amplas sobre a pobreza. Claramente evidente aí é o
tom prescritivo e não vamos seguir por esse caminho. O que importa ressaltar é que os
elementos aportados por essas abordagens podem atuar como os condutores de saída das
condições de pobreza crônica, como mostra parte expressiva da literatura sobre o tema.
O ponto de chegada desse esforço de depuração consiste em definir, a partir das
concepções de capacidades, exclusão e vulnerabilidade, um quadro analítico apropriado
para compreender processos e dinâmicas sociais complexas no contexto urbano e, a partir
dessa identificação, são apontados elementos para nortear estratégias de ação para o
enfrentamento da pobreza crônica. Esse esforço analítico compõe a primeira parte da tese.
A segunda parte do trabalho recorre a outro conjunto da literatura relativa ao campo das
políticas públicas e políticas de proteção social. A pobreza aí é tratada não mais como
problema do conhecimento, mas como desafio para as políticas públicas.
A adoção das concepções de exclusão e vulnerabilidade para compreender de forma mais
abrangente as realidades de pobreza implica mudanças no marco institucional de políticas e
programas locais. Exclusão refere-se, sobretudo, ao tema da integração e manutenção da
ordem social, sinalizando as rupturas do lien social. Forçosamente, equacionar o problema
da exclusão implica rever normas e padrões de justiça que orientam as ações distributivas
em cada sociedade 14 . Em outro plano, bem mais modesto, estratégias locais de inclusão
14
Entretanto, sabemos que tais questões extrapolam o âmbito de atuação das políticas sociais, demandando
soluções de natureza macroeconômica, que não serão examinadas aqui. As políticas sociais encontram
limites muito fortes e que dizem respeito a salários, emprego e distribuição de renda, dinâmicas do mercado
de trabalho, de desenvolvimento urbano e rural, o que remete a outros conjuntos de políticas do Estado. As
implicações das políticas econômicas, de desenvolvimento, urbanas e de infra-estrutura estão diretamente
relacionadas com as situações de pobreza e exclusão e funcionam como barreiras ou, em caso de ausência ou
25
pautam-se pela perspectiva da autonomia individual e comunitária e do empoderamento, e
por estratégias de gestão orientadas pela integralidade das políticas, pelo foco na demanda
e na capacidade de ajustar intervenções às necessidades específicas das populações e
regiões pobres, excluídas ou segregadas.
A análise das estratégias de inclusão irá considerar, de forma prioritária, o âmbito de
gestão local 15 . Nos novos modelos de proteção social, o principal articulador das ações de
enfrentamento da exclusão social é o nível local, pois a proximidade facilitaria o processo
de capturar demandas heterogêneas e fornecer respostas adaptadas às necessidades da
população, o que poderia significar uma prestação de serviços mais qualificada.
Além disso, por sua proximidade das clientelas dos serviços, esse âmbito de gestão
desempenharia papel estratégico para viabilizar a conformação de redes, articular setores
governamentais e coordenar a cooperação entre o setor público e organizações nãogovernamentais 16 .
A perspectiva da flexibilização dos serviços para ajustá-los à diversidade das demandas e a
alta interação entre agentes públicos e público alvo para a consecução das metas de
superação da pobreza são elementos, portanto, que pautam o campo das transformações de
natureza técnico-institucional em curso. Essa mesma perspectiva, de flexibilização da
oferta, captura da heterogeneidade e especificidades da pobreza combina-se, por outro
lado, com a necessidade de maior interação entre agentes públicos e as pessoas e famílias
atendidas, dada a natureza das mudanças ou dos efeitos pretendidos junto a essa população.
Com base no quadro assim construído, e tendo como referência as categorias analíticas e
os elementos explorados ao longo da primeira e da segunda partes do trabalho, tem-se
condições para examinar duas experiências locais de inclusão social em metrópoles
brasileiras, com o objetivo de identificar a presença desses elementos no desenho das
estratégias de intervenção. Esse termo, desenho, é aqui entendido como o conjunto de
pressupostos e concepções de natureza teórica (e normativa) que orientam ou embasam a
intervenção pública, e refere-se ao campo das teorias em uso que informam as ações ou as
má qualidade dos serviços, como elementos potencializadores e perpetuadores dessas mesmas condições de
vulnerabilidade e destituição.
15
Na Europa tem-se, nas últimas duas décadas, um movimento de re-politização do âmbito da gestão local,
movimento que encontra correspondência com processos de descentralização e municipalização das políticas
sociais no Brasil.
16
No campo da gestão social, a perda do monopólio da gestão pelo Estado significou a ampliação das
parcerias público- privadas e a presença mais direta de organizações não governamentais na provisão dos
serviços.
26
concepções existentes quanto à mudança social e o papel das intervenções nesse processo
de transformação social. Uma definição forte de desenho engloba outro nível de questões,
que envolve não apenas a dimensão mais conceitual e substantiva, mas também recursos e
o marco operacional e institucional das políticas. A pretensão ao se examinar as duas
experiências é ressaltar se, e em que medida, essas estratégias contemplam, em seu
desenho, elementos do quadro analítico aqui apresentado, o que representa colocar em
movimento as categorias mobilizadas e buscar identificá-las nas ações efetivamente
realizadas.
Com esses elementos em tela tem-se um quadro com as categorias necessárias para
posicionar, na contraluz, o desenho das estratégias de intervenção dos programas de São
Paulo e Belo Horizonte. A apresentação dos casos, mais uma vez, não tem a pretensão de
validar nenhum modelo ideal típico de intervenção, mas sim de prover elementos
empíricos para as categorias de análise, apontando alguns limites nos quais se esbarra na
prática quando se busca implementar, no nível local, as diretrizes de intersetorialidade e da
governança, por um lado, e metodologias e processos de empoderamento, por outro. Não
se trata de uma análise propriamente dita da implementação dos programas, ou de seus
resultados, no sentido estrito. Procura-se recuperar, a partir de fontes secundárias no caso
de São Paulo e também de fontes primárias no caso de Belo Horizonte, elementos que
fazem parte das estratégias de intervenção adotadas, identificando questões que, na prática
e no contexto da implementação, impõem limites para a tradução de ideais em ações
concretas. A idéia básica consiste em sustentar que as categorias e os elementos
identificados na literatura, tanto na primeira quanto na segunda parte do trabalho, são
fundamentais no desenho de estratégias efetivas de superação da pobreza; e também
mostrar alguns tipos de dificuldades que podem aparecer quando se tenta implementar de
fato tais estratégias.
Este trabalho identifica e situa as contribuições da literatura sobre o tema das concepções e
mensuração da pobreza, por um lado, e das políticas de proteção e combate à pobreza, por
outro, para construir um quadro analítico com as categorias chave que articulem dois
campos de tradições científicas sobre pobreza. O trabalho sustenta-se em dois grandes
pontos de apoio: a pobreza é tanto um problema para o conhecimento quanto um problema
para as políticas públicas. Para tanto, são identificados os elementos centrais de uma visão
ampliada de pobreza, que se articulam com as categorias de multidimensionalidade,
heterogeneidade e com o reconhecimento das dimensões subjetivas da pobreza, com foco
27
na autonomia, participação, empoderamento, e em ações e políticas intersetoriais e mais
integradas, inclusive no âmbito do território 17 . A proposta é capturar e organizar as
dimensões e categorias que emergem na literatura examinada com o objetivo de analisar, a
partir do quadro assim construído, duas estratégias locais desenvolvidas em contextos
metropolitanos.
O presente trabalho não tem a pretensão de cobrir o vasto campo de produção teórica e
empírica sobre a pobreza, em todos os campos e disciplinas nos quais essa discussão ou
preocupação se insere. O esforço aqui é infinitamente mais modesto e essa escolha deixa
de fora importantes contribuições de outros campos de conhecimento, como a economia e
a história social, por exemplo. Como toda investigação científica, trata-se de proceder a um
recorte da realidade, da seleção de pontos de vista a partir do qual se constrói o objeto de
conhecimento. No caso, não se trata aqui de discutir as causas da pobreza, o que
demandaria um outro tipo de trabalho. Certamente trata-se de um tema bastante denso,
espinhoso, de difícil tratamento, cuja análise envolvera questões relativas aos processos
econômicos, demográficos e urbanos, que não foram examinados aqui. A intenção foi fazer
um balanço de parte da literatura sobre o tema da pobreza e políticas públicas e organizar
os enfoques e perspectivas em um marco integrado de análise, capaz de fornecer subsídios
para a ação, orientando o desenho de estratégias de intervenção.
b) Notas metodológicas
Para identificar as diversas concepções ou enfoques foi realizada uma pesquisa junto a
diversos organismos governamentais e não governamentais, nacionais e internacionais, a
distintos periódicos e autores que trabalham com o tema abordado. Evidentemente não foi
possível cobrir todo o material disponível e nem essa era uma meta factível de ser
colocada. A escolha foi por identificar algumas fontes básicas, que apresentassem um certo
acúmulo de reflexão, produção teórica e empírica sobre questões diversas relacionadas ao
tema da pobreza, exclusão, vulnerabilidade, etc. Não se tinha uma lista a priori, sendo que
estas instituições foram sendo identificadas ao longo do trabalho de pesquisa. Basicamente
o acesso à maioria dos textos se deu por meio eletrônico, o que não excluiu a busca e o uso
17
Uma idéia bastante preliminar desse conjunto de preocupações foi desenvolvida por mim e por Bruno
Lazzarotti Diniz Costa em uma publicação em 2002. Posteriormente, quando convidada para ministrar um
curso na AVSI sobre pobreza e políticas públicas pude começar a desenvolver analiticamente tanto os
diferentes enfoques sobre a pobreza como suas implicações para o conteúdo das políticas de inclusão de
forma mais sistemática.
28
de textos e artigos disponíveis apenas em meio físico. Dentre as instituições e fontes, podese enumerar as seguintes:
•
Comisión Econômica para América Latina y el Caribe (CEPAL), órgão das Nações
Unidas voltado para a produção de pesquisas e publicações sobre um vasto conjunto de
temas, dentre eles, pobreza e políticas sociais.
•
Chronic Poverty Research Centre (CPRC), criado em 2000 com recursos do
Departamento para Desenvolvimento Internacional do governo da Grã Bretanha
(Department for International Development/DFID), que consiste em um grupo
internacional de universidades, organizações não governamentais e institutos de pesquisas
voltados para o estudo da pobreza crônica.
•
Department for International Development (DFID), ministério do governo britânico
que apresenta uma vasta produção sobre o enfoque dos modos de vida (livelihood
approach).
•
Institute of Development Studies (IDS), um instituto de pesquisa independente,
fundado em 1966 e com sede na Universidade de Sussex, voltado para o desenvolvimento
internacional e também conta com apoio do Departamento de Desenvolvimento
Internacional do governo britânico.
•
Social Exclusion Unit (SEU), unidade criada em 1997 pelo Primeiro Ministro da
Grã Bretanha, encarregada da produção de políticas de inclusão social.
•
Overseas Development Institute (ODI), uma organização
não governamental
sediada na Grã Bretanha, voltada para atuação no campo do desenvolvimento e para
questões humanitárias.
•
Comparative Research Programme on Poverty (CROP), uma organização não
governamental criada em 1992 pelo Conselho Internacional de Ciências Sociais e com sede
na Noruega e atua também em parceria com a Universidade de Manchester, na Grã
Bretanha.
•
Centre of Analysis on Social Exclusion (CASE), criado em 1997 pelo Conselho de
Pesquisa Econômica e Social da London School of Economics and Political Science.
•
Queen Elizabeth House, da University of Oxford, que apresenta uma série de
produções teóricas e empíricas sobre os diversos enfoques sobre pobreza, exclusão.
29
•
Centro Latinoamericano de Administracion para el Desarrollo (CLAD),
organização pública internacional criada em 1972 por iniciativa conjunta de três países
(México, Peru e Venezuela), com sede na Venezuela, orientada para os temas da
administração pública.
•
International Institute for Labour Studies (IILS), unidade da Organização
Internacional do Trabalho que produziu, a partir de um projeto de pesquisa que contou com
o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) , uma série de
textos sobre o tema da exclusão.
•
Banco Mundial, organização financeira internacional que fornece uma vasta
produção teórica e empírica sobre os temas da pobreza, vulnerabilidade e risco, proteção,
capital social, desenvolvimento social, dentre outros, em suas diversas unidades e projetos.
•
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que desenvolve
uma grande produção sobre o tema da pobreza, direitos e desenvolvimento humano.
No Brasil foram identificadas as produções realizadas principalmente pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e as disponíveis em periódicos principais das áreas
de políticas públicas e afins (como Revista Brasileira de Ciências Sociais e Dados,
principalmente).
Os artigos, relatórios e documentos identificados a partir do survey realizado nas diversas
instituições forneceram material para a primeira parte do trabalho, principalmente. A
segunda parte, que contém relatos empíricos, foi além de fontes secundárias (documentos,
relatórios e livros produzidos sobre os programas examinados) e se utilizou também de
informações geradas pela autora. As informações, principalmente no caso de Belo
Horizonte, foram resgatadas a partir da coleta de dados primários realizada junto à
Prefeitura, no âmbito de um trabalho de consultoria realizado pela autora juntamente com
Laura da Veiga, no projeto URB-AL, orientado para a discussão da intersetorialidade nos
programas de combate à pobreza, desenvolvido no ano de 2005. No caso de São Paulo, as
fontes foram exclusivamente secundárias e, na maioria das vezes, oficiais. Na análise do
Programa Puente mesclam-se fontes oficiais e artigos e resultados de avaliação, que não
são ainda abundantes, dado o pouco tempo de implementação da estratégia. Evidentemente
o uso excessivo de fontes oficiais é um ponto sensível e para minimizar os riscos da análise
permanecer refém das informações oficiais, outras fontes disponíveis foram consultadas.
30
c) A organização do trabalho
A primeira parte do trabalho tem como eixo a pobreza como um problema do
conhecimento. O primeiro capítulo aborda as distintas concepções e enfoques sobre
pobreza, vulnerabilidade, exclusão, que se ligam, no segundo capítulo, com as diferentes
formas de mensuração que se referem, no final das contas, à identificação dos grupos
destinatários das políticas de proteção social. Nesses capítulos que compõem a primeira
parte do trabalho, tem-se a relação entre concepção e mensuração, o que remete à própria
construção do objeto no campo da sociologia. A perspectiva da construção do objeto
encontra ressonância em Weber e em teóricos clássicos da sociologia como Pierre
Bourdieu, e com essa perspectiva se quer enfatizar que o analista, ao se debruçar sobre
uma realidade, procede a uma seleção de aspectos dessa realidade, no sentido de configurar
um objeto analítico, que não se confunde com a própria realidade, muito mais complexa e
disforme. A construção do objeto parte sempre de uma certa concepção, uma seleção de
categorias ou dimensões consideradas como relevantes para serem contrastadas com a
realidade empírica. Neste trabalho, esse processo envolve uma compreensão do que é a
pobreza, o que a caracteriza, como ela pode ser identificada, o que a causa, o que a faz
permanecer, o que é necessário para superá-la. Essas questões são importantes para situar
o problema da pobreza enquanto um problema de conhecimento. Contudo, elas ganham
materialidade quando a pobreza é tratada também como problema para a ação.
A segunda parte do trabalho centra-se em um ponto distinto do debate sobre a pobreza,
mais especificamente sobre as políticas de proteção social. A perspectiva da segunda parte
do trabalho é olhar a pobreza não do ponto de vista do conhecimento, mas como objeto de
ação. Essas dimensões – conhecimento e ação – não são tão independentes e
freqüentemente encontram-se imbricadas: toda concepção envolve formas e critérios de
mensuração e idéias implícitas (ou não) sobre as formas e alternativas de intervenção
possíveis.
O terceiro capítulo focaliza o tema da pobreza do ponto de vista das políticas de proteção
social, a partir da identificação de modelos teóricos e alternativas de enfrentamento da
pobreza e da exclusão, mapeando tendências em curso. Duas grandes linhas teóricas de
entendimento da questão social podem ser delineadas e são determinantes do desenho das
estratégias atuais nos países desenvolvidos e em desenvolvimento no que se refere ao
enfrentamento da pobreza e das novas formas de manifestação da questão social. A questão
social pode ser focalizada a partir da velha e estruturante questão da sociologia, relativa à
31
produção e manutenção da ordem social, às relações que vinculam indivíduos à sociedade
e permitem a coesão social ou, no mínimo, a não dissolução da vida social. Uma visão
mais afinada com as perspectivas do individualismo sociológico contrapõe-se a uma visão
de matriz coletivista, e essa dualidade se expressa também nas distintas visões sobre os
sistemas de proteção social e o papel que tais políticas devem e podem cumprir na
superação da pobreza. Tem-se, nesse sentido, estratégias de proteção que tendem ao
universalismo ou ao residualismo e mais ou menos sustentadas pela ênfase nos aspectos
sociais ou coletivos da pobreza.
O quarto capítulo apresenta o conjunto de elementos que decorrem das novas agendas no
âmbito da proteção social e da gestão pública, que, somados às categorias identificadas na
primeira parte, constituem os elementos de um modelo de ação para políticas de
intervenção anti-pobreza, exclusão e vulnerabilidade social. Embora questões relativas ao
contexto da formulação e da implementação de políticas sejam cruciais para entender
processos e resultados de políticas públicas, sua consideração será secundária no âmbito
desse trabalho.
O objetivo do quinto capítulo é fornecer uma espécie de síntese dos capítulos anteriores.
Com base nas discussões realizadas, o esforço é derivar das distintas concepções e
enfoques as implicações para o desenho de políticas, enfatizando as conseqüências de se
focalizar a perspectiva da pobreza sob o prisma da exclusão, das capacidades e da
vulnerabilidade. Ao se agregar a essa questão as categorias relativas ao tema da pobreza
como problema para a ação, têm-se os elementos necessários para delinear o arcabouço
analítico que situa a problemática da pobreza enfrentada pelas políticas locais.
O sexto capítulo apresenta duas estratégias de intervenção efetivamente implantadas, tendo
como pano de fundo os mapeamentos e “modelos” anteriormente construídos. O objetivo é
identificar, no desenho das políticas em curso em duas metrópoles brasileiras (Belo
Horizonte e São Paulo), elementos do quadro analítico e do modelo de ação aqui esboçado.
O sétimo capítulo apresenta algumas considerações finais, embora não conclusivas.
Um dos objetivos da tese é estabelecer o nexo entre a pobreza como problema para o
conhecimento e como problema para as políticas públicas, algo pouco trabalhado nos dois
grandes conjuntos da literatura examinados. A pobreza crônica e a desigualdade
permanecem não equacionadas pelos processos de crescimento econômico e se somam a
novas formas de vulnerabilidade e exclusão próprias do mundo contemporâneo. A
tendência de dualização, de formação de sociedades divididas entre quem está dentro e
32
quem está fora dos circuitos das trocas sociais, existe como sombra do processo de
transformação global, e os resultados desse processo não se restringem a, mas sofrem os
efeitos das políticas desenvolvidas no campo da proteção social local e da natureza da
relação que se cria entre tal sistema e os indivíduos e grupos entitulados pobres (Paugam,
2003). Pensar sobre as dimensões e características das políticas de proteção social, de
forma articulada com uma reflexão sobre distintas concepções de destituição, pode ser um
caminho para tornar mais claros e evidentes, principalmente para os formuladores e
gestores de políticas públicas, os desafios para o enfrentamento estratégico da pobreza no
âmbito local.
33
PARTE I – A POBREZA COMO DESAFIO PARA O CONHECIMENTO
A primeira parte do trabalho, formada pelos capítulos um e dois, é voltada para o exame da
pobreza do ponto de vista do conhecimento e o foco permanece no exame de distintas
concepções sobre a pobreza e na sua operacionalização, na tentativa de mapear como cada
enfoque apresenta uma forma de identificar e distinguir os pobres dos não pobres.
A idéia básica aqui é que diferentes concepções levam a diferentes formas de mensuração e
também, ao mesmo tempo, a diferentes respostas quanto às políticas e estratégias de
intervenção. Explorar as diferentes visões sobre a pobreza significa identificar, dentre
outros elementos, os principais pressupostos de cada enfoque, suas categorias constitutivas,
ênfases disciplinares, os elementos pelos quais cada enfoque aborda o problema da
pobreza, sobre o que cada visão lança luz e o que deixa na sombra.
O primeiro passo é proceder à análise das diferentes concepções, enfoques ou abordagens
sobre pobreza, tendo claro que cada perspectiva envolve escolhas sobre dimensões a serem
consideradas na definição ou na caracterização da pobreza (capítulo 1). Tem-se uma forma
de mensuração embutida em cada concepção, o que leva a diferentes formas pelas quais a
pobreza pode ser empiricamente identificada ou, em outros termos, como as distintas
concepções e enfoques são operacionalizados (capítulo 2).
Essa discussão, para além do interesse propriamente conceitual e metodológico, apresenta
uma centralidade no debate sobre políticas de enfrentamento da pobreza, uma vez que
remete tanto às concepções que informam a leitura ou o diagnóstico da realidade quanto à
identificação dos públicos legítimos das estratégias de intervenção no campo da proteção
social.
Cada concepção revela uma visão do problema e ao mesmo tempo uma receita, um
remédio para o mal da pobreza, segundo Fanfani (1991). As soluções propostas para atacar
o problema espelham uma certa visão, uma perspectiva particular que revela e oculta algo
ao mesmo tempo. Os “remédios” ou a ação prescrita são objeto da segunda parte do
trabalho, ao considerar a pobreza como um problema não apenas para o conhecimento,
mas para a ação.
34
CAPÍTULO 1 - CONCEPÇÕES
SOBRE
POBREZA:
DESAFIOS
PARA
O
CONHECIMENTO
“Detrás de cada estilo de política publica siempre existe, en forma implícita o explicita,
una determinada perspectiva teórica, es decir, un modo especifico de ver las cosas.
Una teoria, en sintesis, es un sistema de categorias de percepción” (Fanfani, 1991, p.
92).
O objetivo do presente capítulo é examinar as diferentes concepções ou enfoques sobre
pobreza, entendendo por enfoque o conjunto de pressupostos conceituais que informa a
visão sobre a pobreza, aspectos e dimensões que a definem. Distintas abordagens levam a
diferenças na identificação de quem são os pobres, a partir de distintas formas de
mensuração da pobreza, o que tem implicações para a política pública, incluindo, dentre
outras coisas, o aspecto da focalização (Laderchi, Saith e Stewart, 2003, p. 26). Os critérios
de focalização utilizados para definir o público legitimamente demandatário das políticas
estão diretamente relacionados com a concepção de pobreza que lhe é anterior. Quer dizer,
os critérios, escolhas e unidades de análise da focalização decorrem de definições prévias
sobre o que é a pobreza e como ela deve ser caracterizada. Também essas definições
trazem, de forma mais ou menos explícita, uma proposta de solução para o problema da
pobreza.
Partindo da identificação e análise dos diferentes enfoques, tem-se, portanto, dois
desdobramentos. Um remete diretamente ao problema da mensuração, da identificação de
indivíduos e famílias considerados pobres e distintos de um grupo não-pobre. O segundo
remete não apenas à mensuração, mas também às alternativas de intervenção que são
desenhadas para sua superação. O esforço aqui realizado é o de analisar as concepções e as
hipóteses que lhes são subjacentes para explorar as implicações e os nexos para a
formulação e implementação de políticas locais de bem estar social. Os enfoques não
incorporam ou enfatizam o mesmo conjunto de questões, relativas à definição da pobreza,
ao que a causa, o que a faz permanecer, o que é necessário para superá-la.
Alguns estudos situam diferentes enfoques e tradições no estudo sobre pobreza (Spicker,
2005; Mideplan, 2002; Laderchi, Saith e Stewart, 2003; Feres e Mancero, 2001; Franco,
35
2003), embora não haja consenso sobre os enfoques existentes18 . Procura-se explorar como
cada concepção emerge e em que se fundamenta: como ausência de recursos monetários,
de não realização de capacidades, como necessidades básicas insatisfeitas, como processos
de desqualificação social, como vulnerabilidade e riscos. Cada perspectiva constrói-se em
torno de conceitos e pressupostos teóricos chaves que orientam as metodologias de
mensuração. O objetivo é construir, a partir do exame dos arcabouços nos quais tais
enfoques se enquadram, um quadro teórico abrangente para a análise da pobreza em
sociedades urbanas atuais 19 .
Os enfoques e as diferentes estratégias de mensuração distinguem-se em pontos diversos: o
grau em que os parâmetros utilizados em um contexto podem ser aplicados sem alterações
significativas em outros; a ênfase em métodos objetivos ou subjetivos na mensuração do
fenômeno; a visão uni ou multidimensional da pobreza; seleção de unidades de análise
(indivíduos, famílias, territórios); definições de cadeias de causalidade
da pobreza e
estratégias para sua superação (Laderchi, Saith e Stewart, 2003). Uma primeira constatação
com relação a esses enfoques refere-se à identificação de uma certa linha temporal,
graficamente representada na figura 1.
Figura 1: Enfoques sobre a pobreza em uma linha temporal
Antes dos
anos 70
Pobreza
como
ausência de
renda
Anos 70
Conceito
necessidades
básicas, que
envolve acesso a
certos bens e
serviços
Anos 80
Enfoque das capacidades e
da exclusão social, e a
percepção de que pobreza
é relativa e conectada com
dimensões políticas,
morais e culturais de cada
sociedade. Noção de
trajetória
Anos 90
Pobreza multidimensional
e altamente especifica ao
contexto. Foco não mais
exclusivamente na
caracterização da pobreza,
mas nos processos. Noção
de risco e vulnerabilidade.
Ativos, empoderamento
Fonte: Elaborado pela autora
18
O documento do Mideplan (2002), por exemplo, discute brevemente os seguintes enfoques: a) o da renda,
b) o das necessidades básicas, c) o do desenvolvimento humano, das capacidades e realizações, d) o do
capital social, e) o da exclusão, f) o da vulnerabilidade, g) o do direito ao desenvolvimento. Outros dois
textos (Laderchi, Saith e Stewart, 2003; Franco, 2003) comparam quatro enfoques: a) monetário, b)
capacidades c) exclusão social e d) participativo.
19
A pobreza, embora seja um fenômeno igualmente relevante no âmbito urbano ou rural, apresenta
características diferenciadas em um e outro contexto e causas também distintas. Embora algumas categorias
sejam úteis para pensar a pobreza em ambos, o foco aqui será a pobreza urbana, por uma questão de delimitar
o campo de análise e tornar mais manejável o exame da literatura sobre o tema da pobreza. Além disso, e de
forma mais substantiva que metodológica, a nova pobreza é essencialmente urbana e apresenta tendências
de agravamento.
36
1.1- O enfoque monetário: pobreza como condição exclusivamente econômica
O enfoque dominante na produção científica sobre pobreza aborda a pobreza a partir da
perspectiva monetária, focalizando a renda e o consumo de indivíduos e domicílios como
informação básica tanto para a concepção quanto para a mensuração da pobreza. Nesse
caso, são pobres aqueles que não alcançam um nível de renda suficiente para satisfazer as
necessidades, absoluta ou relativamente estabelecidas, de sobrevivência.
A percepção da pobreza como um problema sobre o qual a ciência poderia se debruçar
emerge no final do século XIX, época de constituição das ciências sociais e econômicas.
Charles Booth e Seebhom Rowntree 20 seriam os pioneiros nos estudos de mensuração da
pobreza, precursores dos pesquisadores voltados para quantificação e análise do tema da
pobreza. Segundo Laderchi (2003), uma questão importante refere-se à ênfase concedida,
nesses trabalhos seminais, nos procedimentos técnicos, mais do que nas questões analíticas
(Laderchi, 2003, p. 9). Pobreza é identificada com o baixo consumo e baixa renda, sendo
possível, com as ferramentas apropriadas, estabelecer métricas monetárias uniformes que
possam, independente da heterogeneidade entre indivíduos e situações, capturar níveis de
bem estar através da renda, entendida como proxy do estado de privação individual
(Laderchi, Saith , Stewart, 2003, p. 7). A definição da pobreza é, portanto, dada por sua
20
Booth, em 1887, motivado para saber de fato se um terço das pessoas em Londres eram pobres, como
afirmavam os socialistas, buscou informações junto a “school board visitors” - que eram oficiais
encarregados de identificar domicílios onde crianças pobres viviam e garantir a elas educação adequada,
segundo o ato de educação compulsória de 1877 (Laderchi, 2003, p. 6) – para desenhar um mapa da pobreza
de Londres. Com base nessa e outras informações, Booth desenvolveu, durante dezessete anos, um retrato
minucioso e detalhado sobre a vida e o trabalho em Londres no fim do século 19, com mapas sobre regiões e
equipamentos existentes, documentando, em cores, a realidade existente e o modo de vida dos pobres. Com a
intenção de estudar os diferentes modos de vida e trabalho, Booth teria identificado oito classes sociais,
sendo quatro abaixo e quatro acima da “linha de pobreza”. Sua intenção original, mais do que estabelecer um
valor monetário para distinguir entre pobres e não pobres (embora tenha feito isso), era analisar as diferenças
qualitativas entre as classes, e pontuar a centralidade da dimensão do trabalho e moradia para definir a
condição de pobreza. Em seus estudos, salientou a questão da cultura da pobreza, compreendendo por isso
uma série de fatores que influenciavam, mais do que a renda em si, para essa condição. Em uma perspectiva
distinta, pouco tempo depois, tem-se o estudo de Rowntree, em 1899, o primeiro survey realizado sobre a
pobreza na cidade de York. Sua intenção foi a de estimar, com base nos padrões nutricionais mínimos
recentemente estabelecidos, a linha de “pobreza primária”, definida a partir de padrões nutricionais
acrescidos de custos com roupas e moradia. Diferentemente de Booth, os dados de Rowntree foram
recolhidos diretamente em uma amostra de 2/3 dos domicílios existentes, sendo que os entrevistadores foram
orientados para observar domicílios nos quais, embora apresentando uma renda para manter eficiência
mínima, as pessoas viviam em situação de pobreza, designada “pobreza secundária”. Ao distinguir entre
pobreza primária e secundária, Rowntree postulou causas diferentes para os dois tipos de pobreza como
também a dimensão relativa existente a ser incorporada na mensuração da pobreza. Existem padrões de estilo
de vida ou de bem estar considerados aceitáveis - contextual e temporalmente - como mínimo adequado
(Laderchi, 2003, p.7) e essa condição não permitiria que se considerasse a pobreza sob uma forma absoluta,
supondo, sem problematização, a possibilidade de se estabelecer uma linha de demarcação entre pobres e
não pobres de forma inequívoca e imune a questões valorativas.
37
mensuração: pobreza está ligada direta e substancialmente com ausência de renda, sendo
pobres os que se situam abaixo de uma linha de rendimento monetário definida de forma
absoluta ou relativa. Esse ponto tem conseqüências diretas na produção atual sobre o tema
da pobreza, que enfatiza sobretudo a dimensão metodológica, com a preocupação com a
geração de dados e desenvolvimento de técnicas “científicas e objetivas” para a
mensuração da pobreza. A suposta neutralidade seria problemática, uma vez que a conexão
com o campo dos valores políticos é direta: “searching for objectivity on the one hand and
waiting to inform political processes on the other” (Laderchi, 2003, p. 3).
Booth e Rowntree partilhavam uma concepção de pobreza como algo externamente
perceptível, e acreditavam na capacidade da ciência de propor ações efetivas para a
redução da pobreza, baseadas na objetividade dos dados obtidos (Laderchi, 2003, p. 6 e 9).
A pobreza existe “lá fora” e pode ser medida de forma objetiva, sem considerar aspectos
ou dimensões subjetivas. Os dois entendiam a pobreza sob uma perspectiva individualista,
sem percebê-la como resultado de processos sociais. Laderchi salienta a influência dos
valores vitorianos na concepção e nas proposições feitas pelos autores, que incluíam a
deportação de pobres para colônias de trabalho nas quais eles seriam bem cuidados,
empregados de manhã à noite, e onde poderiam ser fortalecidos, já que padeciam de uma
espécie de fraqueza moral (Laderchi, 2003, p. 8).
Entretanto, apesar de ambos partilharem um conjunto importante de pressupostos e
orientações, o foco de Booth incluía uma perspectiva qualitativa, definindo a pobreza a
partir da visão de agentes locais, localizando-a espacial e cartograficamente, de forma
semelhante ao que se faz hoje - com as devidas distinções dadas, sobretudo, pelo avanço
das estatísticas e da tecnologia -, nos mapas de exclusão social. Rowntree, por sua vez,
focalizou medidas estatísticas, priorizando a coleta extensa de dados com vistas a
estabelecer a distinção entre pobres e não pobres, sendo a perspectiva que dominou,
durante muito tempo e de forma quase absoluta, o campo de estudos da economia. Esses
estudos seminais, desenvolvidos no fim do o século XIX, ainda inspiram, de forma
dominante, os estudos realizados sobre o tema da pobreza no século XXI.
O enfoque da pobreza sob uma perspectiva monetária decorre diretamente dessa
abordagem pioneira de Rowntree. A concepção baseada na vertente nutricionista, que
emerge com os trabalhos pioneiros, considera a pobreza do ponto de vista de padrões de
subsistência mínimos, no âmbito da subsistência ou sobrevivência (Lavinas, 2003, pp. 29,
30). Rowntree estabeleceu uma linha monetária, calculada a partir das necessidades básicas
38
de alimentação, vestuário e moradia. Apesar de se sofisticar ao longo dos anos, a idéia que
orienta os estudos e análises que fazem parte da produção atual ainda dominante no campo
da economia é a mesma presente em Rowntree. A dimensão dos requisitos nutricionais
mínimos continua pautando a estratégia de mensuração. A linha monetária da pobreza é a
mais utilizada como critério para identificação do público e para o estabelecimento de
valores de transferência de renda em grande parte das políticas de proteção social em
curso.
A abordagem econômica utiliza uma variável monetária, basicamente a renda 21 , como
medida de pobreza. A partir da visão da pobreza como fenômeno exclusivamente
econômico, mede-se o nível da qualidade de vida tendo como referência uma linha de
pobreza. A linha de pobreza demarca os não pobres e os pobres e, dentre esses, os
indigentes ou situados em pobreza extrema. Uma pessoa é pobre se a renda ou os gastos
agregados forem inferiores a um valor estabelecido como necessário para a sobrevivência.
Esse valor pode ter como referência um padrão absoluto (calculado a partir de requisitos
nutricionais) ou ser relativo ao padrão vigente em dada sociedade. Tal distinção orienta a
visão da pobreza absoluta e pobreza relativa.
Embora este seja o enfoque mais considerado no discurso e nas práticas de mensuração da
pobreza, ele tem fragilidades e limitações. O central desse enfoque e o que nos interessa
discutir são os pressupostos de que é possível identificar uma descontinuidade entre pobres
e não pobres que pode ser demarcada por alguma espécie de linha. Tem-se como axioma
que é possível distinguir os pobres dos não pobres de forma objetiva, ainda que seja
problemático estabelecer padrões básicos universais, válidos para todos os tempos, lugares
ou condições de vida de indivíduos e grupos. Uma das fragilidades reside na
impossibilidade de definir, de forma não controversa, um nível mínimo abaixo do qual os
indivíduos encontram-se ameaçados em sua sobrevivência. Existe esse nível, mas não se
pode desconsiderar que ele, mesmo estabelecido como ponto de demarcação, é sempre
relativo, fruto de uma convenção 22 .
21
A abordagem econômica é muito mais sofisticada do que a forma como é apresentada aqui, uma vez que
considera renda, gastos ou consumo como medidas diferentes da pobreza. Para o propósito do trabalho,
consideramos como referência básica o enfoque monetário, que engloba essas diferentes dimensões do
aspecto econômico.
22
A questão reside na impossibilidade de estabelecer, de forma universal, esse mínimo necessário em termos
nutricionais: existem diferenças de sexo, idade, atividades e taxas metabólicas diferenciadas, que implicam
necessidades diferenciadas, em contextos também diferenciados.
39
Outra limitação desse enfoque refere-se à ênfase exclusiva na dimensão econômica do
problema, que limita o âmbito, as
possibilidades e a clareza sobre os limites das
alternativas de intervenção. Esse constitui, a nosso ver, o ponto central a ser considerado.
A mais grave limitação desse enfoque é o seu suposto básico – pobreza é sinônimo de
insuficiência de renda - e as conseqüências daí advindas, de que basta fornecer renda para
alterar a situação de vida das populações pobres. Além disso, considerar a renda dos
indivíduos, verificada em um momento no tempo, não permite distinguir entre pobreza
crônica e temporal, dificultando o desenho de estratégias diferentes para uma e outra
situação (Mideplan, 2002, p. 9).
Mesmo compartilhando pressupostos básicos, mudanças importantes na perspectiva
econômica da pobreza estão ocorrendo, ampliando o enfoque, sem contudo descaracterizálo. Alguns estudos questionam a abordagem necessariamente individualista do enfoque
econômico (Comim e Kuklys, 2002) e outros priorizam o exame do fenômeno em uma
perspectiva diacrônica, incorporando o tempo como categoria de análise (Hills, 1998). Os
estudos de pobreza crônica enfrentam a questão do tempo para caracterização dos pobres e
da pobreza. Entretanto, mesmo assim, a idéia de processo (crucial na abordagem
sociológica da pobreza) não está presente na abordagem econômica. Incorporando a
dimensão do tempo, mensurações via renda e consumo podem ampliar o conhecimento dos
movimentos de indivíduos e domicílios no que se refere à linha de pobreza, ao longo do
tempo, mas tal enfoque da renda continua não considerando outros aspectos da pobreza
como relevantes para sua caracterização 23 .
23
O uso de bases de dados longitudinais, coletadas desde o inicio da década de 60 na Grã Bretanha, permitiu
avançar na análise de diferentes trajetórias de indivíduos a partir de estudos sobre renda. O estudo apontado
por Hills permite evidenciar essa perspectiva. No caso em questão, interessava saber, sobretudo, porque
algumas pessoas, partindo de um mesmo ponto de renda, cumprem trajetórias tão distintas. Como elas se
movimentam ao longo do tempo entre os diferentes grupos de renda? Existem padrões nesses movimentos ou
eles são aleatórios? As pessoas saem da pobreza? Existem diferenças nessa saída? As situações de pobreza
são persistentes? (Hills, 1998, p. 46). Ao longo de três períodos de tempo, a pesquisa acompanhou grupos de
indivíduos, permitindo identificar trajetórias e padrões de mobilidade dos grupos ao longo do tempo. A partir
de análises estatísticas, foram traçadas cinco trajetórias possíveis: a) uma denominada trajetória “flat”, na
qual os indivíduos permanecem no mesmo grupo ou em limites bem próximos. Podem ser trajetórias poorflat e non-poor flat; b) trajetórias ascendentes, nas quais todos os movimentos são de subida ou no mínimo de
permanência: rising up of poverty; c) trajetórias descendentes, nas quais, por mais de dois períodos, existe
uma queda: falling into poverty; d) situação na qual a trajetória básica é de permanência, mas que em um
período de tempo apresenta uma situação que vai além dessa trajetória, denominada blips; e) outras
trajetórias, que não se enquadram nas anteriores (Hills, 1998, pp. 49,50). Uma limitação desse estudo, como
bem aponta o autor, refere-se à unidimensionalidade da medida, que não permite verificar como tais
trajetórias são influenciadas por fatores como idade, circunstâncias familiares, educação, condições da
vizinhança. Algumas evidências são instigantes, como as que mostram que os indivíduos mais pobres, que
conseguem sair da pobreza, têm muito mais chance de voltar a cair nela do que os indivíduos menos pobres,
numa proporção de 25% para 7%. Tais considerações podem condicionar o desenho de estratégias de bem
40
Embora a tecnologia e o avanço das estatísticas permitam incorporar a categoria tempo no
enfoque monetário, a unidimensionalidade da perspectiva não se altera. É a renda no
decorrer do tempo a medida para identificar tipos e trajetórias de pobreza. Nesse enfoque
não se estabelecem conexões entre a renda e outras dimensões da vida das pessoas, como
se essas não existissem ou não importassem para entender o problema da pobreza e as
formas para sua superação.
1.2. O enfoque das necessidades básicas insatisfeitas: noção de privações
Abordagens mais amplas do conceito de pobreza surgem a partir das críticas quanto a
insuficiência do enfoque da renda para caracterizar o fenômeno e afirmam a existência de
variáveis não monetárias que influem na condição de pobreza. Entretanto, se a dimensão
da renda é insuficiente para identificar os pobres, que outras variáveis devem ser
consideradas para identificá-los?
A perspectiva das necessidades básicas ganha destaque na América Latina entre os anos
1970 e 1980, centrada na identificação de déficits e níveis de carência que condicionam a
pobreza. Ela sustenta que são pobres as pessoas que não têm suas necessidades básicas
satisfeitas, cujo consumo de bens e serviços não atinge o mínimo considerado necessário.
As variáveis identificadas não são padronizadas ou estabelecidas a priori de forma não
contextualizada, mas geralmente abrangem um grande leque de possibilidades: acesso aos
serviços básicos (educação, saúde, habitação, transporte etc.), o que é mais comum,
variáveis relacionadas a processos de natureza psico-social (participação, auto-estima,
autonomia, capacidades etc.), em uma versão ampliada da noção de necessidades, mais
próxima da ótica das capacidades. O enfoque das necessidades insere, de forma clara, a
relatividade presente na caracterização e mensuração da pobreza: as necessidades são
relativas a tempos e lugares e referidas aos padrões vigentes em cada sociedade.
Entretanto, embora apresentem diferenças importantes, tanto o enfoque monetário quanto o
das necessidades básicas insatisfeitas priorizam dimensões materiais da pobreza e
estabelecem um limiar entre pobres e não pobres sob a ótica dos mínimos sociais.
De toda forma, o enfoque abandona a renda como medida de pobreza, focalizando os
resultados efetivos em termos de qualidade e condições de vida. A perspectiva incorpora
uma concepção multidimensional da pobreza, apontando a inter-relação entre as diversas
estar social, ao decidir pela priorização do público em situação de pobreza extrema, construindo alternativas
e “escoras” suficientemente fortes para dar conta do movimento de saída da pobreza e a sustentabilidade
dessa situação.
41
carências. Mas essa perspectiva, embora permita descrever parte do fenômeno, tem uma
utilidade limitada para orientar o conteúdo de programas anti-pobreza, uma vez que não
situa as conexões entre os fatores condicionantes da pobreza e sobre sua reprodução.
A partir das críticas às limitações dos da renda e do enfoque das necessidades básicas, e
também a partir do avanço das metodologias e das bases de dados que ganham força, a
partir dos anos 80, novos enfoques sobre o tema da pobreza emergiram no debate.
1.3. O enfoque das capacidades: o divisor de águas
O trabalho de Amartya Sen constitui um divisor de águas, ao colocar sob foco o conceito
de capacidades, elaborado a partir das críticas ao enfoque do utilitarismo e às concepções
de bem estar daí derivadas 24 . A partir de suas formulações, tem-se a expansão dos
enfoques para além da renda e da utilidade. Esse movimento de expansão conceitual tem se
dado, segundo De Haan, tanto em países desenvolvidos como em países em
desenvolvimento:
“the poverty studies (in developing countries) seem to be moving in the same direction
as poverty studies in the West: from rather economic conceptualizations towards more
complex “human” concepts, including social and political rights and people’s
capabilities” (De Haan, 1994, p. 7).
Nessa perspectiva a pobreza é definida como carência ou privação de capacidades, sendo
pobres aqueles que carecem de capacidades básicas para operarem no meio social, que
carecem de oportunidades para alcançar níveis minimamente aceitáveis de realizações, o
que pode independer da renda que os indivíduos possuem.
Rejeitando o utilitarismo como medida de bem-estar e a maximização da utilidade como
suposição comportamental, Sen faz uma crítica aos fundamentos éticos do utilitarismo
(Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 14). O bem estar, na visão de Sen, é visto em relação à
realização do potencial humano, entendido como a liberdade de indivíduos viverem a vida
que valorizam. O foco não é mais a renda, sendo que os recursos monetários são meio para
adquirir o bem estar e não o bem estar em si. Esse enfoque incorpora, de forma plena, as
diferenças entre os indivíduos, salientando que as diferenças de saúde, idade, condição
física e contexto social, dentre outras, implicam diferentes necessidades, fazendo com que
24
A perspectiva de Sen é bastante mais complexa do que a aqui apresentada. Suas contribuições têm
suscitado profícuo debate no âmbito acadêmico, no campo da economia, da filosofia e também das teorias
do desenvolvimento. Aqui será enfatizada a articulação que a perspectiva de Sen estabelece entre a
abordagem econômica e a sociológica da pobreza.
42
algumas pessoas precisem de mais recursos do que outras para obter as mesmas realizações
(Laderchi, Saith , Stewart, 2003, p. 14).
Para Sen a renda permite, em tese, a realização de uma capacidade, mas o central é a
capacidade e não a renda. Esta é apenas um meio e não o fim, sendo que os objetivos de
uma boa vida incluem viver uma vida longa, saudável e criativa, desfrutar de um nível de
vida decente, com liberdade, dignidade, auto-estima e respeito (Mideplan, 2002, p.11). O
eixo do enfoque é a
ampliação das oportunidades, da expansão das capacidades
(capability) básicas para que as pessoas possam levar uma vida digna.
Embora alguns autores se esforcem para salientar as semelhanças entre os enfoques
monetário e o das capacidades 25 , há uma mudança de foco. Na abordagem monetária a
ênfase reside nos recursos privados aos quais os indivíduos têm acesso, enquanto que no
enfoque das capacidades o importante é examinar a vida que os indivíduos podem ter.
Nesse sentido importa perguntar, frente às oportunidades disponíveis em uma dada
sociedade, quais são os constrangimentos e possibilidades dadas pelas condições sociais,
políticas ou econômicas existentes para que seus membros possam ter uma vida digna.
A abordagem de Sen destaca-se do conjunto dos enfoques apresentados, pois vai além da
preocupação dominante com a mensuração da pobreza. Ao ser calcada em pressupostos e
concepções próprias dos estudos sobre ética, economia, teoria da justiça e filosofia política
e econômica, insere a dimensão da liberdade no centro da discussão sobre pobreza, justiça
e direitos humanos. Uma passagem, dentre outras tantas possíveis, permite evidenciar o
ponto, que trata das origens filosóficas das concepções de Amartya Sen. Para Aristóteles,
de acordo com Sen, uma vida empobrecida é aquela na qual o individuo não tem liberdade
para desenvolver atividades que tenha razões para escolher (Sen, 2000. p. 4). A mesma
concepção é partilhada por Adam Smith, na medida em que, para esse autor, as
necessidades são definidas a partir dos efeitos sobre a liberdade dos indivíduos para
viverem vidas não empobrecidas. Nesse sentido, Smith colocou no centro da análise sobre
pobreza as idéias de inclusão e exclusão, principalmente quando define necessidades para
levar a vida de forma decente, incluindo a capacidade de aparecer em público sem sentir
vergonha ou humilhação. Nas palavras de Smith,
25
Como salientado por alguns, ambos enfoques, monetário e das capacidades, adotariam uma perspectiva
individualista: privação de utilidade ou fracasso das capacidades remetem ao plano do indivíduo, ainda que
as comunidades e a vizinhança possam atuar como importantes determinantes para o alcance do bem estar
individual. Ambos os enfoques adotam padrões de avaliação externos (objetivos, independentes das
avaliações e percepções dos pobres sobre sua condição), e nenhum busca capturar as causas e a dinâmica da
pobreza (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 20).
43
“by necessaries I understand not only the commodities which are indispensably
necessary for the support of life, but what ever the custom of the country renders it
indecent for creditable people, even the lowest order, to be without....Custom has
rendered leather shoes a necessary of life in England. The poorest creditable person of
either sex would be ashamed to appear in public without them” (Apud Sen, 2000, p. 7).
Com o enfoque das capacidades, tem-se a expansão da visão sobre pobreza para além das
dimensões materiais. Mas ainda que essa abordagem reconheça o componente relacional,
permanece o foco no âmbito dos indivíduos, na perspectiva das capacidades que permitam
aos indivíduos o exercício da liberdade.
A dificuldade de operacionalizar de forma
adequada a concepção de capacidades - também porque ela se refere, sobretudo, ao futuro,
à capacidade de ser e de fazer algo – é uma das limitações. Mas sobretudo cabe enfatizar
que as noções de autonomia e agência, decorrentes do enfoque das capacidades,
sobrevivem nos enfoques da exclusão e da vulnerabilidade e ganham mais materialidade a
partir das noções de ativos e empoderamento.
1.4 Exclusão social: dimensões relacionais da pobreza
A abordagem das capacidades, ao trazer para o centro do debate o tema da liberdade,
recuperando suas raízes aristotélicas, relativas ao pertencimento a um todo social (Sen,
2000), articula-se com a perspectiva da exclusão social, a partir dos temas relacionados ao
pertencimento, identidade e coesão social. A emergência da concepção de exclusão social
agrega um outro olhar sobre a pobreza, ressaltando a presença, na caracterização desse
fenômeno, de aspectos subjetivos, relativos a valores, identidade, crenças e
comportamentos, apontando para a dimensão relacional presente na produção e reprodução
da pobreza.
A idéia subjacente ao termo exclusão é bastante antiga e constitutiva do próprio objeto das
ciências sociais. Entretanto, esse termo é um dos mais controvertidos no debate atual sobre
pobreza. Sem contornos claros, com fronteiras amplas e ambíguas, o conceito é abordado
diferentemente por diversas tradições disciplinares e enfoques. É criticado por alguns
autores, por um lado, devido à sua generalidade, imprecisão e ambigüidade 26 , e defendido
por outros pelas possibilidades abertas de investigação empírica. Mesmo tendo emergido
tão recentemente, e apresentando contornos fluidos e consensos fracos sobre o seu
significado e alcance, ganhou centralidade nos discursos e na agenda política internacional,
26
Exclusão é um termo utilizado, freqüentemente, para se referir a todo tipo de mazela social, e é usado de
forma pouco parcimoniosa com sentidos sobrepostos, referindo-se a fenômenos diversos tais como pobreza,
desigualdade, isolamento, preconceito, privação, vulnerabilidade, dentre outros.
44
nos conselhos de decisão mundial e nas agências internacionais, ocupando grande espaço
na produção acadêmica e de pesquisa atual (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 20) 27 . O
enfoque da exclusão foi adotado recentemente pela União Européia 28 para analisar
processos e condições de pobreza nos países europeus contemporâneos, ganhando espaço
cada vez maior nos discursos programáticos e nos estudos e produção teórica e acadêmica
latino-americana.
Uma explicação para a plasticidade do conceito de exclusão é dada por Hilary Silver
(1995), que relaciona diferentes visões sobre a exclusão com diferentes contextos e
tradições políticas e intelectuais. Grande parte da ambigüidade e excessiva plasticidade do
conceito decorrem, a partir dessa leitura, de visões distintas que cada sociedade tem sobre a
natureza da ordem social e da relação entre indivíduo e sociedade, bem como do papel do
Estado nesses processos. A amplitude do conceito de exclusão não se deve apenas à
multiplicidade de referenciais empíricos capazes de traduzir processos de exclusão 29 , mas
principalmente pelo fato de os diferentes usos e significados do conceito estarem
embebidos em diferentes paradigmas das ciências sociais e distintas ideologias políticas,
revelando visões diferentes sobre a reintegração social e, em suma, traduzindo diferentes
valores e visões de mundo (Silver, 1995, pp.60, 61). Como tipos ideais weberianos, os
paradigmas – da solidariedade 30 , da especialização 31 e do monopólio 32 – apontam para
27
Uma rápida pesquisa nas bibliotecas virtuais e nas publicações disponibilizadas pelas agências
internacionais pode comprovar isso: Citamos, dentre outras: Centre for Analysis of Social Exclusion/London
School of Economics; Banco Mundial; Banco Interamericano; International Institute for Labour
Studies/UNDP; Cepal; United Nations Development Programme/UNDP; Comparative Research Programme
on Poverty/CROP.
28
Resolução do Conselho de Ministros sobre a luta contra a exclusão social (1989); Carta Comunitária dos
direitos fundamentais dos trabalhadores (1989) (Guibentif e Bouget, 1997, pg. 4)
29
Existem, dessa forma, inúmeros campos e dimensões a partir das quais podem-se posicionar os indivíduos
excluídos: do trabalho, do acesso ao crédito, da educação, de níveis básicos de consumo, de habilidades e
capacidades básicas para uma vida digna, do estado de bem estar e dos direitos de cidadania, do acesso a
terra, segurança, bens públicos, habitação, respeito, vivência familiar e comunitária, dentre um campo quase
infinito de possibilidades, o que remete à questão: excluído de quê?
30
A perspectiva original do conceito de exclusão, tal como cunhada na França, assenta-se em uma matriz
republicana, inspirada em Rousseau e Durkheim, que salienta a dimensão coletiva, coercitiva e vinculadora
da ordem social e concebe a exclusão como ameaça à ela.
31
Tal visão compreende a ordem social sob uma ótica individualista quanto ao método: “it thus conceives of
the social order, like the economy and politics, as networks of voluntary exchanges between autonomous
individuals with their own interests and motivations” (Silver, 1995, p. 67). Essa perspectiva, afinada com o
liberalismo, partilha uma visão da sociedade como formada por esferas autônomas, salientando as múltiplas
causas e dimensões da exclusão, afirmando que a exclusão em uma esfera não implica necessariamente
exclusão em relação a outras esferas sociais. A exclusão, nesse sentido, refere-se à impossibilidade dos
indivíduos participarem livremente das trocas sociais.
32
Na perspectiva do monopólio, bastante influente no pensamento da esquerda européia, a exclusão é
conseqüência da disputa e dos interesses conflitantes existentes na sociedade, tendo como categoria central a
noção weberiana de status, sendo o status de grupos uma manifestação de relações de poder (Silver, 1995, p.
69). Weber usa o termo social closure para se referir a “process of subordination where by one group
45
visões diferentes sobre a ordem social, sobre os seus fundamentos e os seus elementos
explicativos centrais. Tais considerações, segundo a autora, iluminam os diferentes usos do
termo exclusão: “choosing one definition means accepting the theoretical and ideological
baggage associated with it” (Silver, 1995, p. 70).
A origem do termo exclusão não pode ser atribuída a um autor em particular 33 . A aparição
do termo data de meados da década de 1960 34 e, naquele momento de prosperidade
econômica, a noção remete a uma população mantida à margem do progresso econômico e
da partilha dos benefícios do desenvolvimento. O sentido e o sentimento que tal termo
carrega dizem respeito a uma desilusão com o progresso que, em sua marcha, não
consegue erradicar os mecanismos de reprodução da miséria. A concepção de exclusão,
nesse momento, refere-se a uma espécie de “resíduo inevitável”, que não confere ameaças,
entretanto, à sobrevivência do conjunto da sociedade.
Em 1974, René Lenoir, então Secretário de Ação Social da França, utilizou o termo para se
referir a 10% da população do país, delimitando um conjunto diversificado de pessoas, tais
como deficientes físicos e mentais, crianças sexualmente abusadas, delinqüentes, suicidas,
usuários de drogas, idosos, inválidos, dentre outros, que não estavam, naquele momento,
incorporadas no sistema francês de proteção social (Silver, 1995, p. 63; Saith, 2001, p. 3;
Mideplan, 2002, p. 29). A noção envolvia diferentes tipos de problemas e condições
individuais e coletivas, relacionadas à inserção precária ou não inserção no mercado de
trabalho, situações de dependência, segregação, grupos vulneráveis afetados por situações
de desestruturação familiar, por doenças e incapacidades ou por condições específicas
ligadas ao ciclo de vida familiar (Lavinas, 2003; p.37; Haan, 1999; Laderchi, Saith,
Stewart, 2003, p.20; Burchardt, Le Grand, Piachaud, 2002, p. 3). O conceito chamava a
atenção para diversos tipos de pessoas - os inadaptados sociais - que não conseguiam viver
de forma socialmente adequada, que não compartilhavam dos frutos do crescimento ou das
monopolizes advantages by closing off opportunities to outsiders whom it defines as inferior or
ineligible….By restriction access to opportunities and resources, closure allows collectivities to maximize
rewards. The group of insiders share a common culture and identity and hence, norms legitimating
exclusion” (Silver, 1995, p. 69). Esse paradigma assenta-se, em termos ideológicos, na perspectiva da social
democracia, sendo os direitos de cidadania as fontes de integração, diferentemente dos outros paradigmas,
nos quais tais fontes estariam ou na integração moral (como no paradigma da solidariedade) ou nas trocas
livres (como no paradigma da especialização) (Silver, 1995, p. 62).
33
Mesmo René Lenoir, a quem se atribui a paternidade da categoria de exclusão, afirmou ter escolhido o
título de seu livro (Les Exclus, un français sur dix) a partir de uma lista de outros títulos fornecida por seu
editor, tendo esse termo sido raramente utilizado ao longo do texto (Paugam, 1996, p. 9).
34
De acordo com Paugam, o termo exclusão aparece inicialmente em uma obra (L´exclusion social)
publicada no auge do movimento internacional ATD Quart Monde, por seu fundador, Joseph Wrésinski e
também no documento (Les dividendes du progrés) de Pierre Massé, secretário geral do Plano do governo
francês (Paugam, 1996, p.9).
46
marés cheias dos ciclos de prosperidade econômica. Lenoir não era um teórico e o uso do
termo exclusão não tinha pretensões de funcionar como categoria analítica, mas antes
como elemento que norteasse a formulação de políticas, que dirigisse a ação
governamental de forma consistente a grupos menos favorecidos.
O termo se expande a partir dos anos 80 na Europa, quando os analistas articulam o
fenômeno da exclusão aos processos de instabilidade dos vínculos entre indivíduos e
sociedade, tendo como referência central a dimensão do trabalho. As mudanças no
mercado de trabalho e os processos decorrentes da globalização levam à ampliação do
conceito de exclusão para referir-se aos fenômenos provocados pelo desemprego
recorrente, de longa duração, pela inserção pouco qualificada de indivíduos no mundo do
trabalho, ressaltando as conseqüências, também sociais, daí advindas. Os temas da nova
pobreza e a dimensão da precariedade ocupam a cena e os debates na França, sendo sob
esse registro que o fenômeno da pobreza passa a ser enfocado nos anos 80. O foco não são
mais os grupos marginais, mas sim grupos de pessoas que tinham um emprego e um lugar
social e foram deslocados em função da instabilidade econômica e do mercado de trabalho,
os novos pobres.
Os estudos nessa época e com essa abordagem centram-se na análise das trajetórias sociais
e profissionais, nos
comportamentos e formas de adaptação diferenciadas frente às
mudanças do mercado de trabalho e novas configurações do Estado e da sociedade. A
constatação, cada vez mais clara, era que o desemprego e a precariedade do trabalho
tinham conseqüências para além da renda, provocando alterações em outras dimensões da
vida social, enfraquecendo laços e redes sociais, diminuindo a auto-estima, provocando o
isolamento e a apatia (Saith, 2001, p. 3).
O conceito de exclusão deixou de referir-se a grupos periféricos ou desviantes para
constituir-se em uma situação que afeta a todos em uma sociedade, remetendo à natureza
dos vínculos que unem indivíduos e sociedade, ligada ao tema da coesão social. O conceito
sinaliza, e essa constatação é sua marca, processos de desintegração social, ameaças de
ruptura nas relações entre indivíduo e sociedade. O conceito de exclusão coloca com toda a
ênfase a questão da ordem social - “in sum, exclusion became a new way to describe the
difficulty of establishing solidarities between individuals and groups and the larger
society” (Silver, 1995, p. 64) – e também aponta para os limites da excessiva desigualdade
e destituição para a vigência da democracia e o efetivo exercício dos direitos sociais. A
47
partir dessa perspectiva, inúmeros programas 35 foram desenvolvidos nos anos 80, no
âmbito do sistema francês de proteção social, todos ancorados em uma visão republicana
do Estado e da sociedade, sustentados pelas noções de solidariedade, coesão, laços sociais
(Silver, 1995, p. 64). Trata-se, portanto, da dimensão da integração social, eixo central para
compreender a vida social (Mideplan, 2002, p. 31). “Le succes de la notion d´exclusion est
qu´elle met l´accent, au moins implicitement, sur une crise du lien social” (Paugam, 1996,
p. 15). Essa concepção é usual no entendimento da exclusão: “la exclusión implica
fracturas en el tejido social, la ruptura de ciertas coordenadas básicas de integración. Y,
en consecuencia, la aparición de una nueva escisión social en términos de dentro/fuera”
(Gomá, 2004, p. 4).
1.4.1 Exclusão como processo: desfiliação e o lugar do trabalho e da sociabilidade
Um autor central no debate sobre a exclusão social é Robert Castel. O livro de Robert
Castel - As metamorfoses da questão social – concentra-se na importância das trajetórias
para a compreensão dos processos de exclusão, que o autor denomina de desfiliação.
Tendo como base as mudanças no mundo do trabalho, esse termo relaciona-se com o
sentido de perda de raízes e “situa-se no universo semântico dos que foram desligados,
desatados, desamarrados, transformados em sobrantes, inúteis e desabilitados
socialmente” (Kowarick, 2002, p. 73).
Castel aborda o conjunto das transformações econômicas e sociais tendo como base a
questão social, entendida a partir das possibilidades de manutenção do tecido social:
“a aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua
coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em
questão a capacidade de uma sociedade (o que, em termos políticos, se chama de uma
nação) para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência”
(Castel, 2003, p. 30).
35
No campo da ação pública, em 1981, o documento do Primeiro Ministro na França articula a noção de
pobreza com a noção de precariedade e começa a se reportar a uma nova questão estruturadora das ações
destinadas a grupos vulneráveis e desfavorecidos. A Renda Mínima de Inclusão (RMI) constitui a resposta da
sociedade francesa aos processos de ameaça de coesão da ordem social, como “modo de regulação do liame
social” (Paugam, 1996), relacionado com a problemática do trabalho e seus efeitos sociais. Busca dar
respostas às vítimas da degradação do trabalho e de seus efeitos sociais, e constitui a tentativa e a aposta de
resposta coletiva do governo francês para a ameaça de ruptura do tecido social. O RMI pauta-se pela idéia de
direito e não pelo mérito da necessidade. Foi estabelecido fora das instituições tradicionais de ajuda social na
França, embora não tenha sido também incorporado nas instituições de seguridade e segundo o princípio de
seguro social (Guibentif, Bouget, 1997, p. 61). Reconhecer o beneficio como um direito e não como
necessidade limita a atitude de discricionaridade presente nessa última perspectiva.
48
Analisando as mudanças no campo social, Castel enfatiza, sobretudo, a emergência de
“inúteis para o mundo”, “pessoas e grupos que se tornaram supranumerários diante da
atualização das competências econômicas e sociais” (Castel, 2003, p. 32). Os assalariados
de ontem, mesmo que explorados e ocupando posições desfavorecidas, não eram
dispensáveis no conjunto das trocas sociais. As mudanças das sociedades contemporâneas
colocam outras questões, que não estavam postas no horizonte do debate sobre o
pauperismo. Os integrados, os vulneráveis e os desfiliados de hoje “pertencem a um
mesmo conjunto, mas cuja unidade é problemática”. Nas palavras do autor: “o que é
possível fazer para recolocar no jogo social essas populações invalidadas pela conjuntura
e para acabar com uma hemorragia de desfiliação que ameaça deixar exangue todo o
corpo social?” (Castel, 2003, p. 34). O autor prefere os termos desfiliação e invalidação
social ao de exclusão 36 e afirma que o conceito de exclusão é estanque, e não captura
processos, percursos e trajetórias que a determinam. O foco da concepção de desfiliação
está na visão dos processos que levam da integração à vulnerabilidade, ou da
vulnerabilidade para a “inexistência social”. Seu objetivo, como ele próprio afirma, é:
“dimensionar este novo dado contemporâneo: a presença, aparentemente cada vez
mais insistente, de indivíduos colocados em situação de flutuação na estrutura social e
que povoam seus interstícios sem encontrar aí um lugar designado. Silhuetas incertas,
à margem do trabalho e nas fronteiras das formas de troca socialmente consagradas –
desempregados por período longo, moradores dos subúrbios pobres, beneficiários da
renda mínima de inserção, vítimas das readaptações industriais, jovens à procura de
emprego e que passam de estágio a estágio, de pequeno trabalho à ocupação
provisória...- quem são eles, de onde vêm, como chegaram ao ponto em que estão, o
que vão se tornar?” (Castel, 2003, p.23).
O autor privilegia a categoria de trabalho e assalariamento, na análise da questão social,
identificando a emergência de uma nova instabilidade com o fim do trabalho como eixo
privilegiado de integração social, ou como ele diz, como “suporte privilegiado de
inscrição na estrutura social” (Castel, 2003, p. 24). O foco reside nas relações existentes
entre a precariedade econômica e a instabilidade social, sendo a “vulnerabilidade social
uma zona intermediária, instável, que conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade
dos suportes de proximidade” (Castel, 2003, p. 24). Trabalho e sociabilidade, de forma
geral, constituem os dois grandes eixos estruturadores da concepção de vulnerabilidade.
Para esse autor, a dimensão econômica, pautada pela estabilidade e regularidade do
36
Parece não haver uma diferença substantiva entre esses dois conceitos - exclusão e desfiliação - , ao se
considerar que a dimensão do processo é essencial para a caracterização do fenômeno da exclusão. Mas
Castel enfatiza essa distinção.
49
trabalho, e a dimensão social, referindo-se às redes de sociabilidade primária – família,
vizinhança, comunidade – configuram quatro zonas: de integração, vulnerabilidade,
assistência e desfiliação. A primeira, integração, reflete uma situação de emprego estável e
relações sociais sólidas; a vulnerabilidade é marcada por uma fragilização das condições
de inserção produtiva e social; a assistência configura uma situação na qual o recebimento
de subsídios públicos constitui a forma de se evitar um desligamento social e econômico e
a desfiliação marca uma situação de desemprego e de perda dos laços sociais (Kowarick,
2002, p. 73).
A coesão de um conjunto social é dada, segundo Castel, a partir do equilíbrio existente
entre essas zonas. A redução e o controle das zonas de vulnerabilidade é condição para
manutenção do equilíbrio social, para a “estabilidade de sua estrutura”. Castel se pergunta,
contudo, se a expansão da zona de assistência seria a única saída para fazer frente à fratura
na zona de integração, à expansão da zona de vulnerabilidade e à desfiliação (Kowarick,
2002, p. 73).
O foco na abordagem da exclusão (ou da desfiliação, nos termos de Castel) chama a
atenção para os processos e trajetórias e para dimensões que salientam o peso das
relações sociais na produção do fenômeno.
Um exemplo dessa abordagem fica evidente no trabalho de Serge Paugam (2003). Esse
autor, de forma mais concreta que Castel, ao analisar o processo da exclusão tendo como
referência o sistema francês de proteção social, incorpora as categorias de dinâmica e
processo na análise das trajetórias das famílias em situação de pobreza, destituição ou
exclusão social, enfatizando as diversas situações de vulnerabilidade que minam a ordem e
a coesão social. Na esteira da produção francesa sobre o tema da exclusão social, esse
autor aborda o tema da “desqualificação” social 37 , relacionando os processos de
desqualificação aos serviços de proteção social. A abordagem de Paugam insere-se no
campo de uma sociologia compreensiva 38 que busca recuperar, para além das condições
37
A origem da noção de desqualificação relaciona-se diretamente com o termo desfiliação, cunhado por
Castel para dizer dos mesmos processos e dinâmicas aos quais estão sujeitos indivíduos e grupos ao longo do
tempo.
38
A perspectiva original é de Simmel que, dentre os clássicos da sociologia, analisou a construção social da
pobreza, vendo a pobreza sob a perspectiva das representações sociais, das interações que delimitam um
problema e denominam a realidade e o grupo dos pobres e excluídos. Essa abordagem traduz uma visão
sociológica da pobreza, salientando a construção social dessa categoria, sendo os pobres definidos a partir de
sua inserção nos sistemas de assistência social. Simmel afirma que a “pobreza não pode ser definida como
um estado quantitativo em si mesmo, mas tão somente a partir da reação social que resulta dessa situação
específica” (Simmel, apud Lavinas, 2003, p. 32). Além da pobreza ser considerada como uma construção
social, que existe a partir de critérios de identificação, ela envolve, já em Simmel, uma relação de
50
objetivas da pobreza, o sentido e o significado que as pessoas conferem à sua situação
vivida, tendo como pano de fundo questões relativas à construção da identidade, status e
resistência ao estigma, variáveis centrais para compreender o processo de desqualificação
social, tendo como foco grupos e indivíduos que gravitam, com intensidade distinta, em
torno do sistema francês de proteção social.
Paugam não está interessado na análise propriamente dita das situações de pobreza, mas
aborda essa questão relacionando-a com o
“status das populações que ocupam os últimos degraus da hierarquia social, isto é, a
identificação parcial ou total com um conjunto de comportamentos mais ou menos
sistematizados e relativamente fixos, que correspondem a papéis sociais reconhecidos
como legítimos por elas próprias e pela sociedade” (Paugam, 2003, p.48).
O autor identifica diversas categorias de públicos que sinalizam três fases do processo de
desqualificação social: os fragilizados, os assistidos e os marginalizados. O primeiro grupo
refere-se à fragilidade na qual se encontram indivíduos que estão em uma situação de
temporária vulnerabilidade, sem emprego, sem renda, e que relutam em serem inseridos
nos serviços sociais, temendo o estigma e a perda da dignidade. Os assistidos relacionamse com a dimensão da dependência dos indivíduos que fazem parte da rede de serviços,
que foram capturados pelo sistema de proteção e que se encontram resignados com a
situação, mantendo relações estáveis com os profissionais da área. Os marginalizados
representam a ruptura do processo de assistência, e constituem o último grau do processo
de desqualificação social (Paugam, 2003, pp. 31-41).
Paugam denomina desqualificação social a esse processo de marginalização, a partir do
foco nos serviços e na natureza das relações que se criam entre o sistema e os grupos
demandatários. Essa leitura da pobreza, que a vincula ao campo dos direitos e das ações de
assistência, é um nexo importante, principalmente tendo
em vista os desafios para
intervenções mais consistentes no campo social. O ponto pelo qual a formulação de
Paugam é pertinente refere-se à abordagem da pobreza a partir dos processos de
identificação operados pelos serviços sociais. Os pobres, e, portanto, legítimos
demandatários das políticas de proteção social, constituem uma categoria construída pelos
agentes das políticas de proteção, e a pobreza é examinada sob a ótica dos serviços sociais,
a partir das relações que se processam entre os beneficiários e agentes da intervenção
pública. O mérito do trabalho de Paugam reside em analisar como processos e trajetórias
interdependência e de vínculos entre os pobres e os não pobres, dentre os quais se destaca de forma
proeminente os prestadores de serviços sociais.
51
de exclusão interagem com dinâmicas que ocorrem no campo do sistema de proteção
social, cuja atuação pode ter um impacto profundo nas condições de vida dos indivíduos
intitulados pobres, redefinindo ou reforçando essas mesmas trajetórias. Esse ponto é
fundamental para o exame das implicações para as políticas públicas de inclusão social.
Voltaremos a ele adiante, quando essa questão será analisada sob uma outra perspectiva.
Ao enfatizar a dimensão dos processos e trajetórias essa abordagem lança luz sobre as
estratégias de prevenção e não apenas de superação das condições de pobreza e exclusão.
Esse pode ser um grande mérito que tende a passar despercebido nas discussões
conceituais sobre pobreza: em que medida a concepção de exclusão resulta em uma nova
orientação na intervenção social, no conteúdo e na forma de prestação de serviços sociais.
Sob a perspectiva da exclusão, a estratégia de ação pode estar mais fortemente orientada
para a prevenção, com maior atenção aos processos que levam da vulnerabilidade e
precariedade à desqualificação e exclusão social. Ainda que tal enfoque não apresente as
categorias analíticas que permitam operacionalizar essa perspectiva da prevenção, ele lança
as bases que serão ampliadas e consolidadas com a abordagem da vulnerabilidade e dos
ativos, decorrentes da concepção de processos e trajetórias de desqualificação social.
Os estudos levados a cabo tendo como objeto a alteração das situações dos desfavorecidos
e os efeitos das ações desenvolvidas permitiram ver diferentes fases do processo de
desqualificação social, “d´un cumul de handicap set d´une rupture progressive des liens
sociaux” (Paugam, 1996, p. 14), contribuindo para a constituição de um novo enfoque para
a compreensão da pobreza que ganha força nos anos 90. Um ponto importante, presente
nos estudos sobre processos de exclusão, consiste em afirmar que estes processos são
dinâmicos, mas não inexoráveis. As políticas públicas, econômicas e de proteção social,
são fundamentais na reversão de processos de exclusão, desfiliação ou desqualificação
social.
1.4.2 Em busca de um quadro conceitual: características básicas do conceito de exclusão
Alguns elementos são comuns em praticamente toda a literatura analisada sobre o tema da
exclusão. Vários autores salientam tais características, configurando um mesmo, ou
bastante similar, conjunto de questões 39 . De forma geral, entretanto, encontra-se
39
Atkinson identificou, de forma pioneira, três características principais que serviram de base para o debate
sobre o conceito de exclusão, que ele denominou como relatividade, dinâmica e agência (Atkinson, 1998;
Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 20). Posteriormente foram sendo agregadas outras dimensões, tais como a
perspectiva da multidimensionalidade e da vizinhança (“ausência ou deficiência de facilidades de uso
comum”) (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 21).
52
estabelecido na produção sobre o tema (Atkinson, 1998; Laderchi, Saith, Stewart, 2003;
de Haan, 1999, 2004; Hills, 2002) um conjunto de aspectos ou elementos que fazem parte
estruturante da noção de exclusão.
•
a) Categoria relacional
O conceito de exclusão envolve, de uma forma ou de outra, uma dimensão contextual. A
idéia básica é que o todo processo de exclusão traduz um fenômeno contingente e
modelado a partir de características próprias de diferentes sociedades e culturas: “people
are excluded from a particular society, it refers to a particular place and time” (Atkinson,
1998, p 13). Exclusão se define a partir dos padrões de integração vigentes em cada
sociedade particular: “la exclusión es una construcción social contingente que realiza
cada sociedade de modo particular” (Mideplan, 2002, p. 30). Ao contrário da concepção
de pobreza centrada em parâmetros absolutos, a noção de exclusão é relativa, dependente
do contexto. Não é possível olhar para o indivíduo, isolado do contexto, para julgar se ele é
ou não excluído (Saith, 2001, p.12). Existe, com o enfoque da exclusão, uma ampliação do
foco para além da renda de modo a considerar dimensões sociais, políticas e culturais
envolvidas. Essa dimensão relacional não se expressa apenas no fato de a exclusão ser
socialmente construída, na medida em que cada sociedade define seus padrões de
integração social, mas também no fato da exclusão ser produto de relações e interações
sociais.
O enfoque da exclusão identifica como base de análise as relações sociais, os grupos e
comunidades mais do que indivíduos (Mideplan, 2002, p 30; Atkinson, 1998, p 14; Sen,
2000; Hills, 2002; Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 21). A ênfase nas relações sociais, a
natureza e a qualidade dos laços sociais, é o que constitui, de acordo com vários autores, a
matriz genética básica do conceito. A situação na qual um indivíduo se encontra não
depende apenas ou é decorrente somente de seus recursos próprios, mas também dos
recursos da comunidade local, familiares e tradições locais, padrões de cooperação e redes
de sociabilidade.
Uma idéia estruturante da concepção de exclusão consiste, portanto, na ênfase dada às
dimensões relacionais, à centralidade dos aspectos mais especificamente sociológicos
envolvidos na construção social da pobreza. Estão presentes, nas condições de pobreza e
exclusão, elementos simbólicos, de natureza subjetiva, relacionados à discussão clássica da
53
sociologia sobre a constituição e manutenção da ordem social (identidade, valores e
crenças, normas e padrões sociais). A atenção às dimensões menos tangíveis do processo
da pobreza, tais como perda da auto-estima e da identidade, enfraquecimentos dos laços
familiares, sociais e comunitários, com repercussões na manutenção da coesão social, das
redes de reciprocidade e solidariedade, é o que constitui, para vários autores, a
especificidade e a relevância da concepção de exclusão social (Sen, 2000; Atkinson, 1998).
Considerar a subjetividade como dimensão importante na compreensão da privação
significa destacar que nas situações de pobreza estão envolvidos aspectos relacionados a
valores, condutas e atitudes, que acabam por reforçar a manutenção de situações de
vulnerabilidade e destituição (Raczinsky, 2002). Baixa auto-estima, resignação, apatia,
ressentimento, subalternidade, baixa expectativa quanto ao futuro, são expressões de
natureza não-material que acabam por limitar as possibilidades de as pessoas pobres se
apropriarem de sua vida e acharem saídas para a situação em que se encontram. É
importante ter claro, entretanto, que tais atitudes de natureza psico-social são construídas
nas interações que os indivíduos estabelecem com vizinhos, família, comunidade e
instituições.
•
b) Processos e dinâmicas
Além de ser contextual, relativa e relacional, exclusão aponta sempre para um processo,
devendo ser vista como uma dinâmica e não como um estado, o que valoriza uma
compreensão mais ampla do problema (Mideplan, 2002, p 30; Hills, 2002) e envolve
expectativas sobre o futuro: “people are excluded not just because they are currently
without a job or income but because they have little prospects for the future” (Atkinson,
1998, p. 14; Saith, 2001, p.13). Isso significa que as expectativas de futuro são tão
relevantes quanto as circunstâncias correntes para a definição da exclusão, bem como
ganha centralidade o processo que gera privação: “the definition of social exclusion
typically includes the process of becoming poor, as well as some outcomes of deprivation”
(Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 21). Na concepção de exclusão a dimensão do tempo é
central. Na abordagem monetária da pobreza, o tempo não é considerado como categoria
privilegiada de análise. As estratégias de mensuração não captam diferenças entre pobreza
crônica e temporária e só recentemente estudos longitudinais, que medem a renda de um
mesmo conjunto de indivíduos ao longo de vários anos, têm-se referido à dimensão do
tempo e das trajetórias (Hills, 1998). Já a perspectiva da exclusão, ao chamar atenção para
54
o caráter dinâmico da pobreza, enfatiza os processos que favorecem a entrada em situações
de exclusão e as baixas perspectivas de futuro (Saith, 2001, pp. 12,13)
•
A noção de ação: onde se insere a ação pública
Atkinson (1998) chama atenção para a noção de agência, outra característica que, ao lado
da relatividade e do caráter dinâmico do fenômeno, constituem o conjunto de
características definidoras da concepção de exclusão. Isso significa que exclusão implica
ato, tem sempre presente uma dimensão de ação: “people may be excluded by the decisions
of banks who do not give credit, or insurance companies who will not provide cover.
People may refuse jobs preferring to live on benefit or they may be excluded from work by
actions of other workers, unions, employers or government” (Atkinson, 1998, p. 14).
Embora pouco explorado pelo autor, o tema remete à responsabilidade de atores diversos
na produção do fenômeno da exclusão, dimensão ausente nas perspectivas do enfoque
monetário ou no das necessidades básicas (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 23).
Gomà salienta, nesse sentido, embora em outros termos, que a exclusão é um fenômeno
politizável. Uma das características definidoras da exclusão, para esse autor, consiste no
fato deste ser um fenômeno inscrito em atos e decisões de agentes. Isso quer dizer que a
exclusão, a desigualdade ou marginalização não estão inscritas de forma fatalista no
destino das sociedades e seriam passíveis de reversão. Nesse caso, o que se pontua é que
se deveria falar de exclusões e não de exclusão, já que cada sociedade, cada tempo e lugar,
apresenta seus limites próprios de inclusão /exclusão. A agência relaciona-se com atitudes
e decisões de agentes públicos, mas também com atos e escolhas dos próprios excluídos.
“O fato de dotar a idéia de exclusão de uma clara dimensão estrutural deve ser
articulado com sua natureza relativa e emoldurada por uma rede de agentes que tomam
decisões, das quais podem originar-se processos de exclusão. Em outras palavras,
estrutura e agência se combinam nas raízes da exclusão, de forma específica, em
lugares e tempos concretos” (Gomà, 2004, p. 4).
Essa característica, embora pouco enfatizada na literatura examinada, é fundamental para
reposicionar o conjunto da sociedade no enfrentamento da exclusão. Nessa perspectiva, a
pobreza deixa de ser um atributo ou condição individual e sua solução remete ao conjunto
da sociedade e suas instituições, em especial aos sistemas e serviços de proteção social.
55
•
d) Multidimensionalidade
Outra característica essencial da perspectiva de exclusão, embora Atkinson não o
reconheça explicitamente, relaciona-se com o fato de a exclusão ser um fenômeno
multidimensional 40 . Este remete ao mesmo tempo a uma questão econômica (acesso de
indivíduos aos meios para satisfazer suas necessidades básicas); ao campo político
(direitos) e a aspectos sócio- culturais (participação de indivíduos em redes e relações entre
atores, grupos e instituições sociais). Essas dimensões estão inter-relacionadas, com
intensidade e gradações variadas, o que faz com que as situações de exclusão sejam
múltiplas (Mideplan, 2002, p. 30).
É bastante consensual na literatura tratar a exclusão como um fenômeno multidimensional:
a exclusão não se explica segundo uma única causa; trata-se, antes de tudo, de um acúmulo
de circunstâncias desfavoráveis, freqüentemente interrelacionadas, o que torna
problemática
uma
intervenção
unidimensional
e
setorial
da
exclusão
social.
“Marginalização, como temática da agenda pública, requer abordagens integrais em sua
definição e horizontais ou transversais em seus processos de gestão” (Gomà, 2004, p. 18).
Se a exclusão não se refere a uma única dimensão, a ênfase recai prioritariamente nas
interações entre diversas dimensões do problema (Hills, 2002), mais do que em observar
cada dimensão individualmente (Saith, 2001, p.11). Outros autores (Subirats, 2002;
Burchardt, Le Grand, Piachaud, 2002) também salientam que a exclusão não é passível de
ser explicada por referência a uma única causa e grande parte do esforço investigativo atual
dos estudos sobre pobreza busca estabelecer as correlações ou os nexos entre as diversas
dimensões.
Tem-se, como síntese, que o enfoque da exclusão social enfatiza e confere centralidade às
relações sociais, focalizando os grupos, mais do que os indivíduos isoladamente; diz
respeito a processos e trajetórias e não a condições estáticas; aponta para a natureza
multidimensional dos fenômenos da pobreza, destituição e privação, abrindo caminhos
amplos para o uso de indicadores sociais e para o desenvolvimento de metodologias mais
qualitativas, que resgatam dimensões também subjetivas do fenômeno da pobreza e da
exclusão.
40
Essa dimensão foi agregada por Room, que concordou com os aspectos apontados por Atkinson como
definidores da exclusão, mas agregou a eles a questão da multidimensionalidade e da vizinhança (Laderchi,
Saith, Stewart, 2003, p. 21).
56
Em síntese, uma abordagem bastante presente na literatura sobre a exclusão a concebe
como
“fenômeno inserido no molde das transformações das sociedades pós-industriais,
relacional, cambiante, complexo e susceptível a mediações políticas coletivas. Como
conceito que engloba a pobreza – ou seja, a insuficiência de renda- mas vai mais além
à medida em que se define também pela impossibilidade ou dificuldade intensa de ter
acesso tanto aos mecanismos culturais de desenvolvimento pessoal e inserção social,
como aos sistemas preestabelecidos de proteção e solidariedade coletiva” (Gomà,
2004, p.19.)
1.4.3 Pobreza e exclusão: aproximações e distinções conceituais
Ainda que os termos de pobreza e exclusão possam ser fronteiriços e muitas vezes
sobrepostos, Atkinson afirma as distinções entre os dois conceitos e sustenta que pobreza
relaciona-se mais diretamente com ausência de renda e de bens materiais, enquanto
exclusão soa melhor como “shut out from society”, como afirmou Tony Blair, em 1997.
Esses processos podem ou não convergir, e nesse caso pessoas podem ser pobres sem
serem excluídas e podem ser socialmente excluídas sem serem pobres (Atkinson, 1998, p.
9). Embora pobreza e exclusão não sejam termos idênticos, ter renda (e nesse sentido, não
ser pobre) é parte essencial de um programa de redução da exclusão, como afirma o autor:
“while poverty is not the same as exclusion, raising people´s incomes via social security is
an essential part of any programme to reduce exclusion” (Atkinson, 1998, p. 11). Uma
hipótese de trabalho, aqui considerada, é que o conceito de exclusão complementa o de
pobreza, ao contemplar um espectro maior e mais diversificado de aspectos.
Quando se adota uma concepção ampliada de pobreza, tais termos (pobreza e exclusão)
tendem a se confundir. Contudo, tradicionalmente o conceito de pobreza apresenta uma
forte perspectiva econômica e um viés unidimensional, enquanto o conceito de exclusão
aponta não apenas para a multidimensionalidade como também para as dimensões não
materiais e relacionais (Mideplan, 2002, p. 30). Pode-se argumentar que essa perspectiva
seja mais adequada para abordar processos que têm lugar em sociedades complexas.
Uma crítica forte à concepção de exclusão é a de que esse seria um termo vago, impreciso
e sobreposto ao conceito de pobreza. Para alguns autores, dentre eles Amartya Sen,
concepções mais amplas sobre a pobreza não teriam nada a dever a concepções emergentes
ligadas à exclusão social. Nesse sentido, consideram que exclusão não acrescenta nada ao
conceito de pobreza, sendo irrelevante ou, em alguns casos, servindo para identificar um
subgrupo de pobres, “os mais pobres dos pobres” (Burchardt, Le Grand, Piachaud, 2002,
57
p.3). Essa não parece ser, contudo, uma interpretação justa do alcance do termo exclusão.
A condição de exclusão inclui ausência de renda mas vai além dela, e aponta para uma
acumulação de barreiras e limites para uma inserção minimamente qualificada na vida
econômica, política, social e cultural de uma dada sociedade, ainda que seja sempre
problemático estabelecer o ponto de corte entre exclusão e inclusão social. Existe algo
mais do que a privação de renda na concepção de exclusão e esse algo, de natureza social
e cultural, remete aos processos de estigmatização e segregação, também espacial.
Embora reconhecendo que a concepção de exclusão seja uma formulação engenhosa,
alguns autores salientam que não há verdadeira inovação no uso dos termos exclusão em
relação ao de pobreza, muito menos no que se refere a formas de mensuração e nesse caso
seria um exagero afirmar que se trata de um novo enfoque:
“so neither the widening of the range of indicators relevant to identifying a lack of
resources, nor the broadening of the focus from an individual – or household – level to
include the community and locality should be seen as entirely new. Expanding the time
horizon to facilitate dynamic analysis can be seen, at least in part, as the product of
improvements in information technology and the availability of longitudinal data.
Dynamic analysis has been part of the economist´s toolkit for some time, especially in
the USA where longitudinal datasets are more mature” (Burchard, Le Grande e
Piachaud, 2002, p. 5).
A mesma perspectiva da irrelevância do conceito de exclusão, principalmente nos casos
dos países em desenvolvimento, é expressa por Ruhi Saith:
“most studies although labelled as ‘social exclusion’ are thus quite similar to earlier
multidimensional poverty studies performed in the respective countries. Poverty
research that earlier looked at landlessness now looks at exclusion from land; those
that looked at gender, caste or race based discrimination now look at exclusion on the
basis of gender, caste or race; those that looked at access to health, nutrition, education
now look at exclusion from basic rights or basic capabilities; studies on child labour
are recast as looking at exclusion from a secure childhood; earlier studies on income or
monetary poverty are recast as exclusion due to poverty. Thus the concept of ‘social
exclusion’ as it originated in Western Europe, seems to have played a role in the reopening of old debates and discussions in developing countries under new terminology”
(Saith, 2001, pp. 9,10).
Em outro registro, Amartya Sen (2000) desenvolve um argumento forte para atenuar a
novidade conceitual da exclusão. O que o autor faz é inserir essa concepção no marco de
análise da pobreza como privação de capacidades, entendendo a privação de relações
sociais – termo equivalente ao de exclusão, para esse autor – como uma privação em si e
como causa de outras privações. Esse autor afirma, de forma categórica, que o enfoque da
exclusão representa uma continuidade e uma ampliação do enfoque das capacidades, mais
do que sua negação ou superação.
58
Sen reconhece que a importância do conceito reside menos na novidade conceitual que
supostamente apresenta e mais na ênfase que essa perspectiva coloca nos aspectos
relacionais. O argumento de Sen consiste em entender o conceito de exclusão sob a
perspectiva do enfoque da pobreza como privação de capacidades, o que permitiria,
segundo esse autor, apreciar a ênfase e a especificidade que a noção de exclusão social
ajuda a iluminar, fortalecendo as bases conceituais e analíticas do conceito de exclusão ao
conectá-lo com uma perspectiva bem estruturada nos estudos sobre pobreza e privação
(Sen, 2000, pp.5-8). “The perspective of social exclusion reinforces – rather than competes
with – the understanting of poverty as capability deprivation” (Sen, 2000, p. 46). Isso
porque a abordagem da exclusão adota uma perspectiva mais especializada para analisar
os aspectos relacionais das privações, o que acaba por reforçar um e outro enfoque:
“if (as is the case in many traditional analyses of deprivation and underdevelopment)
poverty is seen in terms of income deprivation only, then introducing the notion of
social exclusion as a part of poverty would vastly broaden the domain of poverty
analyses. However, if poverty is seen as deprivation of basic capabilities, then there is
not real expansion of the domain of coverage, but a very important pointer to a useful
investigative focus. In this essay, social exclusion has been placed within the broader
perspective of poverty as capability deprivation, and this conceptual linkage both
provides more theoretical underpinning for the approach of social exclusion and helps
us to extend the practical use of the approach” (Sen, 2000, pp. 44-45).
A ênfase prática que o conceito de exclusão coloca nos aspectos ou dimensões relacionais
abre um vasto campo de investigações e reside aí, para esse autor, a maior contribuição que
pode ser dada pela perspectiva da exclusão social. De acordo com o argumento de Sen, a
“vantagem investigativa” da concepção de exclusão está em possibilitar a análise de causas
e inter-relações entre as diversas privações, ao ajudar a compreender como aspectos
relacionais influenciam a geração de outras privações, mais tradicionalmente reconhecidas
no escopo do enfoque das capacidades (Sen, 2000, p. 10) 41 . Para entender melhor como a
perspectiva relacional, eixo da noção de exclusão, pode funcionar como categoria analítica,
Sen distingue entre a relevância constitutiva da exclusão social e sua importância
instrumental. No primeiro caso, ser excluído é, em si mesmo, uma privação, na medida em
que torna o indivíduo incapaz de se relacionar e de tomar parte da vida da comunidade,
41
Ao buscar exemplificar alguns casos que podem ser beneficiados com o uso da perspectiva da exclusão,
Sen identifica e discrimina diversas explicações causais possíveis para os fenômenos da fome e da inanição:
dentre essas causas, tem-se as que apresentam um caráter mais “natural" (perda da colheita devida a
fenômenos climáticos), outras que referem-se a causas macroeconômicas (desemprego) e relativas às
alterações no mercado (mudanças nos padrões de preço relativos), e outras que apresentam um caráter mais
diretamente relacional e, portanto, melhor focalizadas sob as lentes da exclusão social. A fome pela retirada
dos subsídios concedidos a alguns grupos envolve uma forma ativa de exclusão que é central para um bom
entendimento da questão, como afirmado por Sen (2000, p. 11).
59
levando a uma vida empobrecida (impoverishment of human life). Do ponto de vista
instrumental, a exclusão pode levar a outros tipos de privações, levando ao
empobrecimento da vida humana através de suas conseqüências (Sen, 2000, p. 13). Com
isso o autor sustenta que as privações relacionais podem ter uma importância constitutiva
ou instrumental, sendo importantes em si mesmas ou enquanto meios ou canais para outras
privações 42 . Dessa forma reconhece explicitamente seu valor, ao enfatizar a
multidimensionalidade das privações e o foco nos processos relacionais, pontos centrais da
abordagem da exclusão social.
“The real issue is not whether the idea of “social exclusion” deserves a celebratory
medal as a conceptual advance, but whether people concerned with practical
measurement and public policy have reason to pay attention to the issues to which the
idea helps to draw attention. The answer, I believe, is in the affirmative, despite the
misgivings that the somewhat disorganized and undisciplined literature has often
generated” (Sen, 2000, p. 47).
Apesar de Sen não reconhecer a ruptura trazida pela concepção de exclusão nos estudos
sobre pobreza, uma parte significativa da literatura pontua exatamente o oposto: a fissura
radical que esse enfoque traz na percepção sobre a natureza da pobreza e sobre as formas
de mensuração. Para esses, o foco da exclusão expressaria uma outra perspectiva para
entender a ordem e a vida social, sendo que as diferenças entre o enfoque monetário e o
enfoque da exclusão espelham divergências no campo das teorias e paradigmas sobre a
sociedade e o Estado. Tais perspectivas ancoram-se em diferentes tradições intelectuais e
políticas, sendo que em uma perspectiva tem-se a pobreza como atributo individual, sendo
que o papel das políticas sociais consiste, nesse caso, em assegurar os recursos suficientes
para que as pessoas possam sobreviver em um cenário competitivo. Em outra perspectiva,
a sociedade não é um agregado de indivíduos atomizados, mas é vista como uma estrutura
mantida coesa por direitos e obrigações mútuas, em uma dimensão coletiva. A função
básica das políticas sociais, nesse caso, consiste em uma tarefa de reintegração do
indivíduo na sociedade, na reconstrução dos “liames” sociais (Saith, 2001, pp.11,12).
Nenhuma outra abordagem da pobreza coloca tanta ênfase na dimensão coletiva
quanto o enfoque da exclusão e daí sua relevância para o presente trabalho.
A polarização no campo das teorias e paradigmas nas ciências sociais não é recente, nem é
um problema irrelevante. Ao contrário, ter essa perspectiva em tela reforça o fato de que as
42
Um exemplo óbvio é quando a privação da sociabilidade reduz as oportunidades econômicas que advêm
dos contatos sociais, seja através do conhecimento da oferta de vagas de trabalho, acesso a créditos e
subsídios econômicos.
60
formulações conceituais vigentes em cada tempo e lugar são marcadas por fatores de
natureza extra-científica, de ordem social, política, cultural. Essa constatação – de que
diferentes concepções sobre exclusão estão ancoradas ou embebidas em contextos, valores
e ideologias distintas – fornece um elemento a mais para entender os diferentes usos e
significados do termo exclusão e, dessa forma, compreender melhor sua plasticidade e
ambigüidade. Mesmo abandonando o campo da sociologia do conhecimento, vale ressaltar
que considerar dimensões menos tangíveis, o caráter relacional e o aspecto de construção
social da pobreza, resulta em um modelo mais compreensivo no entendimento da
pobreza 43 .
Exclusão insere uma cunha sociológica ao tema da pobreza, trazendo em cena os temas da
identidade e das relações sociais, tendo como pano de fundo ou marco mais geral de
análise, os processos de manutenção ou ruptura dos mecanismos de coesão social 44 .
Exclusão seria o termo mais adequado do que o de pobreza para designar processos de
destituição no contexto da globalização. Seria a expressão de uma corrente ideológica
cultural (republicanismo ou normativismo francês) em contraposição à concepção anglosaxã da pobreza; aquela foca na coesão social e diz respeito à responsabilidade do coletivo
para reverter situações de exclusão, ao contrário da concepção da pobreza que focaliza o
indivíduo e sua responsabilidade por sua situação (Corera, 2002, p. 333).
Algumas críticas à idéia de exclusão devem ser, contudo, incorporadas. Segundo Saith, por
exemplo, uma questão importante refere-se às implicações de se buscar traduzir a
concepção de exclusão, forjada em contextos de países desenvolvidos, centrada nos eixos
do trabalho e proteção social, para países em desenvolvimento, com altos níveis de
desemprego e privação básica, que não contam com sistemas consolidados de bem estar
social. Segundo a crítica, o uso do termo exclusão, forjado na Europa ocidental e
identificado com os eixos do trabalho e da proteção do Welfare State, encontraria limites
para ser aplicado a outros contextos.
43
O ponto central é que o uso do conceito de exclusão é relevante por apontar de forma enfática para
elementos e dimensões pouco consideradas no debate sobre o tema da pobreza. Logicamente essa relevância
não existe para todas as ciências, sendo que para a economia, por exemplo, de caráter mais uniparadigmático,
pode ser irrelevante, o que não é o caso nas ciências sociais, multiparadigmáticas.
44
O problema dos subúrbios franceses (banlieues), realidade social que emerge com força nos anos 80, não
pode ser explicado apenas segundo as concepções de segregação espacial e estrutura de desigualdades, uma
vez que se trata também de processos de natureza subjetiva, psico-social, que remete a sentimentos de
solidão, abandono, perda de sentido da existência, o que acentua a questão da crise da coesão social
(Paugam, 1996, p. 15).
61
O status em relação ao emprego é definidor da condição ou não de excluído, na concepção
original do termo. Também a inserção ou não no sistema de proteção caracteriza a
exclusão social: ser excluído é ser excluído do sistema. Nos países desenvolvidos, a
vigência de sistemas mais estruturados de proteção social garante seguros, renda e inclusão
no sistema de bem estar. Entretanto, ainda que incluídos no sistema, os desempregados são
considerados excluídos socialmente. Isso porque a questão do desemprego não diz respeito
somente à renda ou à produção, como visto a partir de Castel (1998), mas também tem a
ver com a dimensão da sociabilidade, da identidade, dos laços sociais e sentimento de
pertencimento e auto-estima. Os excluídos são excluídos, sobretudo, do ponto de vista das
relações sociais. No entanto, nos países em desenvolvimento, a estrutura do mercado de
trabalho (tendo a informalidade e sazonalidade como características principais) tornaria
problemática a aplicação do conceito (Saith, 2001, p.8).
Nos países em desenvolvimento é utilizada uma pluralidade de perspectivas e enfoques,
tais como o das capacidades básicas, risco, vulnerabilidade, sendo diferente a apropriação
da concepção de exclusão. Na visão de Saith, dadas as diferenças estruturais entre os
contextos, seria preferível incorporar algumas vantagens do conceito de exclusão – tal
como a ênfase nos processos – no interior dos enfoques existentes e dominantes nos países
em desenvolvimento, a tentar modificar e adaptar, para países em desenvolvimento, uma
concepção formulada para o contexto e a realidade de países desenvolvidos (Saith, 2001,
pp.13,14).
Essa crítica é pertinente, uma vez que as realidades da Europa e América Latina são
distintas quanto à incidência/magnitude e severidade da pobreza e quanto à abrangência
dos sistemas e políticas existentes. Entretanto, se o foco permanece na dimensão relacional
e multidimensional, como afirma De Haan, o termo exclusão pode ser adequado mesmo
nos contextos de países em desenvolvimento.
“A notion of social exclusion – especially as defined within a ‘solidarity’ paradigm –
may take us a step further in the direction of an holistic understanding of deprivation.
The application of the notion is not restricted to particular situations of deprivation –
the value of the notion lies in the light it sheds on these situations, and hence would be
equally relevant for deprivation in richer countries as in situations of mass poverty. The
policy implications of such an understanding may also be different” (De Haan, 1999,
pp. 7, 8).
De acordo com o autor (De Haan, 1999), existem razões pelas quais o conceito de exclusão
apresenta vantagens ao ser utilizado em países em desenvolvimento e com pobreza de
massa. Para o autor, duas características seriam centrais na definição da exclusão: o
62
enfoque multidimensional e o foco nas relações e aspectos sociais e psicológicos da
privação (De Haan, 1999, p. 10). Pelo fato de nos países em desenvolvimento existirem
distintos e múltiplos níveis de privações, a perspectiva da exclusão, com o foco na
multidimensionalidade, poderia funcionar melhor do que nos países desenvolvidos, para
analisar como se sobrepõem os diversos vetores de privação em cada contexto específico.
Nessa perspectiva, a pobreza como ausência ou insuficiência de renda seria um elemento
da exclusão social, sendo que as políticas de redução da pobreza fazem parte,
necessariamente, de estratégias de integração social (De Haan, 1999, p. 11).
Quanto ao aspecto relativo às dimensões relacionais do fenômeno da privação, o autor
sustenta que não há diferenças substantivas entre as agendas dos países desenvolvidos e em
desenvolvimento no combate à exclusão e por isso considera útil a utilização do conceito
também nos países em desenvolvimento:
“The social aspects of deprivation are not only a result of deprivation, but is integral
part of it, and also causes the overall situation of deprivation.... Both see social
relations and social integration as determining for and a crucial element of
deprivation… The central point for the discussion here is that the building of such
policies depart from an holistic view of society, and places social relations in the broad
sense in the centre of the analysis of deprivation” (De Haan, 1999, p. 10,11).
É essa perspectiva do conceito de exclusão que importa reter: sua ênfase na
multidimensionalidade, no aspecto relacional (com o tema também da identidade,
confiança, estigma etc.) e a idéia de processo, como elementos que caracterizam e
explicam a condição de exclusão. Ainda que se reconheçam as especificidades do contexto
europeu no qual a concepção de exclusão surge e as restrições para sua aplicação em
países em desenvolvimento (como afirma Saith, 2001), a perspectiva adotada no trabalho
reconhece a relevância de se adotar o enfoque da exclusão como concepção que permite
entender processos em curso nos países em desenvolvimento, uma vez que essa concepção
incorpora privações básicas e materiais, mas vai além delas, sendo uma concepção mais
abrangente para entender o problema e mais adequada para iluminar a produção da
proteção e a inserção social.
1.5 Vulnerabilidade e risco: posse de ativos, modos de vida e portfólio de ativos
O conceito de desfiliação, tal como trabalhado em Castel (1998), ao ter como foco as
trajetórias que levam à invalidação social, permite agregar ao conceito de exclusão outro
elemento importante, o da vulnerabilidade. Essa concepção permite uma aproximação
mais imediata com a empiria, ao estabelecer posicionamentos distintos dos indivíduos e
63
grupos no processo de exclusão, e possibilita distinguir áreas e tipos distintos de
vulnerabilidade, o que abre caminhos mais diretos para a intervenção pública no campo da
assistência e proteção social.
O enfoque da vulnerabilidade contribui para alterar a forma de entender a pobreza. Os
enfoques mais tradicionais adotam uma perspectiva ex post da pobreza, enquanto que a
literatura afinada com a concepção de vulnerabilidade preocupa-se com a vulnerabilidade
ex-ante, para identificar as causas da vulnerabilidade à pobreza. A visão da pobreza pela
ótica da renda e necessidades concentra-se nos resultados, enquanto que a visão da pobreza
na perspectiva da exclusão e vulnerabilidade orienta-se para os processos, examinando as
estratégias que as famílias utilizam para lidar com os eventos e a queda de bem-estar. Há
estratégias que permitem escapar da pobreza e outras que a fazem perpetuar, o que remete
à contribuição possível e necessária das políticas públicas no fortalecimento das
capacidades de indivíduos, famílias e regiões para o enfrentamento e a superação da
condição de pobreza.
A concepção de vulnerabilidade encontra ressonância no enfoque da exclusão, que também
focaliza processos, trajetórias, em uma visão dinâmica dos processos de privação.
Entretanto, se a exclusão apresenta-se matizada pela perspectiva mais claramente
sociológica, o enfoque da vulnerabilidade e dos riscos permite uma ponte mais direta com
o campo das políticas públicas ao explicitar as diferentes estratégias que devem ser
desenvolvidas para fazer frente a riscos específicos 45 .
O enfoque que associa pobreza à vulnerabilidade parte de uma literatura distinta da que
examina o fenômeno da exclusão. Vulnerabilidade articula-se freqüentemente com a idéia
de risco e, conseqüentemente, com as estratégias de enfrentamento, prevenção e mitigação
dos riscos. Liga-se diretamente com o campo da proteção social, o que não ocorre com o
enfoque da exclusão, cujos trabalhos concentram-se ou na discussão conceitual sobre
características peculiares do conceito e sua novidade ou se dedicam ao esforço de
mensuração e estabelecimento de indicadores, tanto objetivos quanto subjetivos, para a
identificação dos excluídos. A hipótese aqui é que a junção entre essas duas
formulações - exclusão e vulnerabilidade – pode ampliar a capacidade das políticas
45
O enfoque da vulnerabilidade, tal como tratado em Castel, tendo como eixo o olhar da desfiliação, não se
desdobra em conseqüências diretas em termos de políticas e estratégias para o enfrentamento das diferentes
formas de privação. Embora Castel trabalhe de forma seminal a noção de vulnerabilidade, o faz em uma
abordagem de natureza mais sociológica, de forma bastante aproximada à concepção de exclusão. Como
visto anteriormente, a noção de vulnerabilidade em Castel situa-se nos eixos ou dimensões do trabalho e das
relações sociais, que também constituem eixos privilegiados da concepção de exclusão social.
64
locais para enfrentar a pobreza, pois possibilitaria adotar um marco analítico mais
abrangente para subsidiar o desenho de alternativas de inclusão e redução das zonas
de vulnerabilidades, tendo como foco a pobreza crônica.
A noção de vulnerabilidade, trabalhada em Castel sob uma perspectiva de zonas de
vulnerabilidade configuradas a partir das alterações nos eixos relações de sociabilidade e
trabalho, distancia-se das abordagens tradicionais de pobreza. Estes dois universos –
pobres e vulneráveis – não são necessariamente os mesmos. Nem todos os que se
encontram em situação de vulnerabilidade são pobres e nem todos os pobres são
vulneráveis da mesma forma. O estudo da vulnerabilidade no campo da análise da pobreza
e do desenvolvimento 46 emerge vinculado ao estudo das ameaças e desastres,
principalmente à fome. A temática do risco é a contra face da vulnerabilidade, e por riscos
entende-se uma variedade de situações, que englobam riscos naturais (como terremotos e
demais cataclismas), riscos de saúde (doenças, acidentes, epidemias, deficiências), riscos
ligados ao ciclo de vida (nascimento, maternidade, velhice, morte, ruptura familiar), riscos
sociais (crime, violência doméstica, terrorismo, gangues, exclusão social), econômicos
(choques de mercado, riscos financeiros), riscos ambientais (poluição, desmatamento,
desastre nuclear), riscos políticos (discriminação, golpes de estado, revoltas), tal como
sistematizado pela unidade de proteção social do Banco Mundial 47 . Nessa perspectiva,
vulnerabilidade significa “un proceso multidimensional que confluye en el riesgo o
probabilidad del individuo, hogar o comunidade de ser herido, lesionado o dañado ante
cambios o permanencia de situaciones externas y/o internas” (Mideplan, 2002, p.32).
O conceito de risco refere-se a eventos que podem prejudicar o bem estar das pessoas, que
são incertos quanto à magnitude dos danos que podem causar. Esse enfoque baseia-se na
idéia de que todas as pessoas estão sujeitas a riscos diversos, sejam esses naturais ou
46
O foco da concepção de vulnerabilidade emergiu inicialmente nos estudos sobre desenvolvimento rural
(Prowse, 2003, p.4).
47
Não existe um único conceito de vulnerabilidade, sendo essa uma concepção que se expande em vários
campos disciplinares, com enfoques, ênfases e estratégias de mensuração distintas. Um estudo interessante
feito por Alwang, Siegel e Jorgesen (2001) contribui para entender as diversas perspectivas sobre
vulnerabilidade. Fornecendo um panorama dos estudos sobre vulnerabilidade em diferentes campos
disciplinares, entende-se melhor a inconsistência por vezes observada na literatura examinada. Na literatura
econômica, a concepção de vulnerabilidade concentra-se no exame dos resultados – poverty status -, sem
considerar com ênfase os diferentes processos ou respostas aos riscos. A intenção é achar uma medida que
possa comparar diferentes resultados, sendo essa métrica do tipo monetário. Ainda no campo econômico,
uma outra literatura sobre dinâmica da pobreza reconhece a pobreza como resultado de um processo,
incorporando a dimensão do tempo. Essa perspectiva faz uma diferenciação entre pobreza crônica e
temporária ou transitória, mas o foco permanece no resultado do processo e não no processo. Outro enfoque,
baseado nos princípios econômicos, é o de ativos (asset-based). Nesse enfoque, a pobreza é produto de um
acesso inadequado a ativos tangíveis e não-tangíveis, sendo que o foco reside na compreensão das respostas
dadas aos riscos por parte dos indivíduos, domicílios e regiões.
65
provocados pelos seres humanos. Entretanto, os pobres apresentam menos condições para
enfrentá-los. O enfoque do manejo dos riscos associa pobreza à vulnerabilidade, pois as
pessoas pobres estariam mais expostas a riscos e teriam menos instrumentos para enfrentálos (Mideplan, 2002, p. 36).
O foco, nessa abordagem, reside nas condições que pessoas, famílias e comunidades
apresentam para fazer frente aos riscos, às mudanças do entorno. A vulnerabilidade
apresenta gradações, sendo que indivíduos e grupos se posicionam diferentemente quanto à
capacidade de resposta aos riscos e às mudanças do entorno. Fortalecer a capacidade de
resposta significa diminuir os níveis de vulnerabilidade de indivíduos e coletividades
diante de choques externos. Vulnerabilidade mede a resistência ao choque, a capacidade de
resistência quanto ao declínio do bem estar (Sojo, 2003, p. 134).
Entretanto, embora as distintas abordagens calcadas na perspectiva da vulnerabilidade e
riscos partilhem de pressupostos comuns como os acima apresentados, pode-se distinguir,
pelo menos, três sub-abordagens que sinalizam matizes e ênfases diferentes dentro de um
mesmo campo de preocupações de um “paradigma”. O manejo de riscos, modelo de modos
de vida e do portfólio de ativos
constituem essas três perspectivas, que consideram
diferentes ativos e enfatizam diferentes aspectos e elementos do enfoque da
vulnerabilidade e dos riscos.
1.5.1 Modelo da posse de ativos
O enfoque da vulnerabilidade, de forma geral, apresenta três componentes, que conformam
a cadeia de risco (risk chain): os eventos de risco, a resposta a eles, e os resultados em
termos de bem estar (Alwang, Siegel, Jorgensen, 2001, p. 2). Riscos e eventos do risco,
combinados a respostas a eles, levam a distintos resultados quanto ao bem estar. Os
resultados dependem do evento do risco e do sucesso ou fracasso dos instrumentos de
manejo, ou das respostas dadas ao evento negativo. Essa é a lógica. Os resultados são
identificados a partir de um parâmetro, que constitui um mínimo socialmente aceito que
serve como benchmark para os diferentes tipos de vulnerabilidade 48 . As respostas aos
riscos podem ser, basicamente, de dois tipos: ex ante e ex post, relativas a estratégias
desenvolvidas antes da ocorrência do evento de risco ou após sua existência. No primeiro
48
Nesse sentido, a vulnerabilidade à desnutrição, por exemplo, é vista tendo como parâmetro os valores de
índices antropométricos que avaliam relação peso, altura e idade.
66
caso, as ações podem se dar ou na perspectiva da redução do risco ou de sua mitigação 49 .
No caso de estratégias ex post, o objetivo é enfrentar os riscos, uma vez que os eventos
tenham ocorrido (ex post risk coping activities) 50 (Alwang, Siegel, Jorgensen, 2001, p. 3).
A partir do mapeamento das vulnerabilidades, tem-se os riscos e as populações mais
sujeitas a eles, o que permite, pelo menos em tese, a elaboração de matrizes de risco e de
estratégias de prevenção, mitigação e enfrentamento, que permitiriam delinear, pelo menos
idealmente, sistemas de proteção social. Ao partir do reconhecimento da natureza
multidimensional da pobreza, agregando ao âmbito do emprego e do mercado de trabalho
outras fontes de vulnerabilidade, o enfoque da vulnerabilidade incorpora o de exclusão e
agrega com centralidade a categoria de ativos. Em nenhuma outra abordagem essa
noção aparece como categoria analítica central, como é o caso do enfoque da
vulnerabilidade e dos riscos. Embora a abordagem das capacidades tenha essa
dimensão implícita, somente a partir da abordagem da vulnerabilidade e dos riscos a
noção de ativos passa a integrar o modelo de explicação e de ação. Na perspectiva de
superação da pobreza, a noção de manejo de riscos envolve três componentes centrais: a
noção de ativos, as estratégias de uso dos ativos, e o conjunto de oportunidades que o
Estado, a sociedade e o mercado oferecem a indivíduos e comunidades (Mideplan, 2002, p.
32). Os ativos (humanos, físicos, financeiros e sociais), bem como as estratégias de uso,
condicionam a capacidade de resposta de indivíduos e comunidades e a mobilização deles
é condição para acesso às oportunidades do entorno.
A noção de ativos articula-se diretamente com risco e vulnerabilidade. Um exemplo
permite elucidar essa articulação: para os pobres, as estratégias que podem parecer como
as mais adequadas no curto prazo implicam conseqüências e perturbações no médio e
longo prazo, de magnitude bem maior do que os eventos que lhes deram origem. A venda
de ativos (propriedades, bens), o “desinvestimento” em capital humano (como o abandono
da escola) ou a redução da ingestão de calorias, constituem estratégias utilizadas pelos
pobres para lidar com riscos imediatos, mas exigirão esforços maiores, no futuro, para que
49
Um exemplo do primeiro tipo, de ações ex ante de redução de riscos, os autores apresentam o uso de redes
de proteção contra mosquitos, para prevenir o risco de contaminação por malária, bem como estratégias de
redução dos focos de mosquito. Um exemplo de estratégia de mitigação seria a poupança ou a compra de
seguros de vida (Alwang, Siegel, Jorgensen, 2001, p. 3).
50
Um exemplo desse tipo seria a venda de ativos, a migração de membros da família, o recurso ao trabalho
infantil como estratégia para compensar a perda de renda familiar (Alwang, Siegel, Jorgensen, 2001, p. 3).
67
sejam sanados os efeitos produzidos (Sojo, 2003, p. 123; Holzman, Jorgesen, 2000, p.
10) 51 .
Os enfoques dos ativos (asset-based approaches) focalizam, de forma geral, a categoria de
ativos e a cadeia de riscos. Apresentam um recorte basicamente econômico, sendo que o
enfoque do manejo de riscos é o que sustenta o modelo ideal de proteção social tal como
concebido, dentre outros atores, pelo Banco Mundial. Voltaremos a esse ponto adiante,
explicitando os pressupostos desse enfoque de proteção e sua relação com a perspectiva do
enfoque dos ativos.
1.5.2 Enfoque dos modos de vida
A segunda abordagem que tem como base a concepção de vulnerabilidade e riscos é o dos
meios de vida, modos de vida ou livelihood approach 52 . A definição dada por Chambers e
Conway, em 1992, tem sido a mais adotada. Nessa perspectiva,
“a livelihood comprises the capabilities, assets (including both material and social
resources) and activities required for a means of living. A livelihood is sustainable
when it can cope with and recover from stresses and shocks and maintain or enhance its
capabilities and assets both now and in the future, while not undermining the natural
resource base” (Murray, 2001, p. 6).
Essa perspectiva é bastante ampla e não se configura como uma abordagem com fronteiras
muito demarcadas 53 . Diversas outras abordagens (“urban assets vulnerability framework,
entitlements analysis, or food security and survival strategy frameworks”) poderiam ser
incluídas no campo de “livelihoods approaches” (ODI, 2002). O enfoque teve sua origem
no estudo da pobreza nas zonas rurais 54 , no campo de interesse e especialidade dos estudos
51
Holzman e Jorgesen (2000, p. 9) incluem tais estratégias no rol dos mecanismos informais de superação de
riscos, com altos custos futuros para os indivíduos pobres que a eles recorrem. Os sistemas informais de
compartilhamento de riscos, por sua vez, são freqüentes em sociedades mais tradicionais e estão sustentados
por princípios de reciprocidade, obrigações e cuidados mútuos. No entanto, tais mecanismos e sistemas de
seguros recíprocos seriam precários, frágeis, inadequados em caso de riscos e choques de grande envergadura
e tenderiam a excluir do sistema de troca os mais pobres, que não teriam condições de retribuir favores de
forma compensatória (Holzman e Jorgesen, 2000, p. 9). O isolamento e a fragilização dos vínculos sociais e
comunitários são manifestações desse tipo de vulnerabilidade social.
52
A idéia de modos de vida sustentáveis (sustainable livelihoods) pode ser identificada de forma pioneira no
trabalho de Robert Chambers e outros, em finais de 80, ganhando corpo no início dos anos 90, em um
trabalho do Instituto de Estudos sobre Desenvolvimento (Institute of Development Studies-IDS) da
Universidade de Sussex, envolvendo pesquisas em países da África, em particular (Murray, 2001).
53
Na literatura podem ser encontradas definições distintas: “livelihoods are taken as ways in which people
satisfy their needs and earn a living” (Alwang, Siegel, Jorgensen, 2001, p. 11). Em outro lugar, Livelihoods
approaches “are concerned largely with household-based productive activities and (generally to a less extent)
with risk management, voice and social protection” (ODI, 2002). De toda forma, os modelos de modos de
vida e da noção de ativos, de forma geral, articulam-se com a perspectiva das capacidades.
54
Uma referência importante para a sistematização e divulgação da abordagem é a DFID, Department for
International Development, Ministério para o Desenvolvimento Internacional do governo britânico, e ODI –
68
sobre desenvolvimento, e posteriormente ganhou espaço em agências de pesquisa e de
financiamento no campo das políticas para o desenvolvimento (como CARE, OXFAM,
PNUD, DFID).
Algumas características são centrais nessa abordagem. O foco nas pessoas, o que significa
privilegiar a participação e a visão dos pobres na orientação das estratégias de intervenção.
A concepção de modos de vida sustentáveis é compreensiva, por reconhecer a
multiplicidade tanto de atores, quanto de fatores e elementos causadores da pobreza,
diferentes estratégias e resultados. Trata-se de uma abordagem dinâmica, centrada na
perspectiva das mudanças e processos, orientada para identificar potencialidades e
recursos de domicílios e comunidades, sustentada por uma visão múltipla de
sustentabilidade - econômica, ambiental, social, institucional, ainda que não seja claro a
que se refere essa sustentabilidade, para quem e sob quais critérios ela pode ser avaliada
(Murray, 2001, pp. 6,7).
As unidades de análise das pesquisas são grupos sociais identificáveis, sem pressupor uma
homogeneidade a priori.
“Relevant social divisions may include those relating to class, caste, age, ethnic,
gender; they can only be defined and agreed through an iterative process of
participatory enquiry at community level” (Norton e Foster, 2001).
O modelo dos modos de vida busca cobrir um amplo leque de dimensões e categorias
analíticas, dentre os quais têm-se alguns dos elementos dos enfoques anteriores, conforme
pode ser visualizado na Figura 2. Como no enfoque da exclusão, centra-se nas relações
sociais, tanto as que ocorrem no contexto intra-domiciliar quanto as externas aos
domicílios, além de reconhecer os contextos histórico, institucional, social, que
constrangem o modo de vida de domicílios e comunidades (Murray, 2001, p.5)
55
. A
questão que permanece refere-se à dificuldade de, também nesse caso, se estabelecer o
patamar abaixo do qual se situaria a vulnerabilidade.
O diagrama abaixo representa a abordagem dos modos de vida, conforme consta em
diversos textos examinados:
Overseas Development Institute -, situado em Londres, um centro de pesquisa independente que publica
pesquisas, artigos e boletins na área. www.odi.org.uk/nrp/
55
Não foi possível esclarecer, sem ambigüidades, as unidades de análise consideradas em cada uma das
abordagens sustentadas pela perspectiva da vulnerabilidade. Em alguns casos (asset-based approach), parece
que a unidade são domicílios; no enfoque dos modos de vida (livelihood approach) , parece ser domicílios e
comunidades; no enfoque do manejo de portfólio de ativos (asset vulnerability framework), as unidades
referem-se a indivíduos, famílias e comunidades.
69
Figura 2 - Modos de vida sustentáveis
Legenda: Ativos H (humanos),
S (sociais), N (naturais), F
(físicos), F (financeiros)
Recursos de meios de vida
Contexto de
vulnerabilidade
influência
Ativos
H, S, N,
Acesso
F, F
Processos e
estruturas em
transformação
Estratégias de
meios de vida
Resultados dos
meios de vida
Fonte: Norton, A. e Foster M. (2001, p. 34); DFID (1999, p. 2).
Essa abordagem também recorre à noção de ativos dos pobres, entendidos como elementos
centrais para examinar as estratégias de respostas, os resultados e o contexto de
vulnerabilidade. Capital humano, social, natural, financeiro e físico seriam os ativos
principais, incluindo os ativos naturais, ausentes no enfoque anterior. A perspectiva dos
modos de vida focaliza as potencialidades e as fortalezas dos pobres, mais do que suas
debilidades e ausências; reconhece as múltiplas determinações que influenciam as
condições de vida das pessoas e domicílios; a diversidade de respostas de estratégias
possíveis, bem como de resultados, frutos dessas estratégias. O enfoque resgata a
centralidade do papel do Estado no campo das políticas públicas. Esse ponto aparece no
diagrama e no modelo sob o termo Processos e estruturas em transformação. As
estruturas, organizações
e processos
(leis, políticas, normas sociais e incentivos)
influenciam o acesso, o uso e o controle de ativos por parte dos pobres e é a partir daí que
se estabelece a conexão entre o plano micro (indivíduos, domicílios e comunidades) e o
plano macro (regional, governo, negócios privados). A noção de agência aparece
implicitamente, na medida em que as políticas e as leis apontam a responsabilidade do
poder público, e o uso dos ativos e a escolha de estratégias remetem às decisões de agentes
no plano micro. Dependendo dos ativos disponíveis, das estruturas e processos vigentes e
do contexto de vulnerabilidade, as pessoas escolhem estratégias, que por sua vez podem
produzir distintos resultados quanto ao bem-estar.
70
1.5.3 Enfoque do portfólio dos ativos
A terceira abordagem no campo de estudos sobre vulnerabilidade refere-se à
vulnerabilidade de ativos (asset vulnerability framework). Vulnerabilidade é tratada a
partir de dois eixos: um que reflete a sensitividade 56 do sistema (indivíduo, família,
comunidade) quanto aos eventos externos; e outro que expressa sua resiliência, ou a
facilidade e rapidez com que um sistema se recupera do stress (Moser, 1998, p. 23). Na
definição mais comum,
“resilience is the household´s ability to resist downward pressures and ability to
recover from a shock. Resilience depends on, among other things, the effectiveness of
the risk response and the capability to respond in the future. Sensitivity is the extent to
which the household’s asset based is prone to depletion following responses to risk”
(Alwang, Siegel e Jorgesen, 2001, pp. 12,13).
Essas duas dimensões permitiriam identificar situações distintas de vulnerabilidade,
conforme explicita o quadro abaixo. O que define a vulnerabilidade é a combinação
peculiar das dimensões de resiliência e sensitividade/sensibilidade (Quadro 1)
Quadro 1 – Vulnerabilidade, Sensitividade e Resiliência
Resiliência alta
Resiliência baixa
Sensitividade alta
vulnerável
muito vulnerável
Sensitividade baixa
não vulnerável
vulnerável
Fonte: (Alwang, Siegel e Jorgesen, 2001, p.13)
Nessa perspectiva o foco está nas estratégias e nos recursos que os pobres utilizam para
fazer frente a situações de privação. A concepção de portfólio de ativos, que tomou forma
a partir dos trabalhos de Caroline Moser, contribui para expandir a base de ativos,
incorporando aspectos como capital social e o papel das relações familiares como
elementos de um portfolio de ativos. Pode-se sugerir, nesse sentido, que a abordagem aqui
enfatiza elementos de natureza mais propriamente sociológica, tais como laços e relações
familiares e comunitárias. Um estudo levado a cabo em 1996 por uma equipe do Banco
Mundial em quatro comunidades urbanas 57 (Moser, 1998) forneceu as bases para entender
as estratégias de nível micro, adotadas pelos pobres para fazer frente aos processos de
56
O termo, conforme tradução feita em português, é esse, embora possa ser mais adequadamente traduzido
como sensibilidade. Optamos por manter aqui essa tradução (sensitivity) direta do termo em inglês.
57
Os estudos tiveram lugar em quatro comunidades pobres situadas em 4 países: Zâmbia, Equador, Filipinas
e Hungria (Moser, 1996, p. 23)
71
deterioração econômica 58 . “There is a growing recognition that the poor are strategic
managers of complex asset portfolios” (Moser, 1998, p. 26). A partir do mapeamento dos
ativos (tangíveis e não tangíveis), é possível identificar estratégias de manejo dos ativos
(asset portfolio management), as formas pelas quais indivíduos, famílias e comunidades
lançam mão de seus ativos durante períodos de crises e mudanças e se conseguem ou não
sobreviver a elas. A ênfase dessa abordagem concentra-se nos processos e estratégias de
enfrentamento, o que pode contribuir, na outra ponta, para o desenho de intervenções mais
adequadas do ponto de vista da proteção social.
A concepção de pobreza no enfoque da vulnerabilidade de ativos não parte da renda como
variável determinante para caracterizar a pobreza, e busca uma compreensão abrangente
das realidades locais, complexas e diversas. Uma decorrência é reconhecer a interação
entre os diferentes tipos de ativos. Diferentes estratégias mobilizam diferentes conjuntos
de ativos que podem produzir resultados diferentes quanto à vulnerabilidade, o que faz
com que não haja sempre uma relação unívoca e unidirecional entre pobreza e
vulnerabilidade. Por exemplo: “households that keep children in school, rather than send
them out to work, were poorer in income terms; however in the longer term their strategy
was intended to reduce vulnerability, through consolidating human capital as an asset”
(Moser, 1998, p. 38). Embora algumas famílias possam se situar acima da linha da pobreza
com o rendimento do trabalho de seus filhos, elas encontram-se em um nível maior de
vulnerabilidade do que famílias que abdicaram dessa estratégia, comprometendo ativos e
condições de vida presente e futura. Algumas estratégias de curto prazo das quais as
famílias lançam mão (trabalho infantil) podem danificar, a longo prazo, sua base de ativos.
De forma semelhante, a erosão do ativo relações familiares pode ter implicações
econômicas, na medida em que a saída de um dos cônjuges do espaço doméstico pode
implicar na diminuição da renda familiar.
Os ativos considerados no estudo foram agrupados em três níveis (Quadro 2), incluindo
três níveis ou unidades de análise – indivíduo, família e comunidade - e cinco ativos
principais: trabalho, capital humano, moradia, relações familiares, capital social 59 .
58
A pesquisa buscou entender como, em situações de crise, as famílias utilizam seus portfólios de ativos,
mapeando a capacidade dos pobres em usar seus recursos para reduzir sua vulnerabilidade, enfrentar os
eventos negativos e se recuperar deles.
59
Não existe um consenso na literatura sobre os tipos de ativos existentes. A perspectiva de Moser salienta
esses cinco ativos, enquanto que em outras análises, a denominação é diferente. O “assets pentagon”, por
exemplo, é constituído de capital natural, físico, humano, financeiro e social. Talvez as diferentes agregações
sejam devidas a perspectivas de diferentes tradições disciplinares, que enxergam a realidade segundo seus
conceitos e categorias. Provavelmente, a perspectiva do “asset pentagon” seja de cunho mais econômico,
72
Vulnerabilidade está diretamente relacionada com a propriedade de ativos: “The more
assets people have, the less vulnerable they are. And the greater the erosion of their assets,
the greater their insecurity” (Moser, 1998, p. 24).
Quadro 2 – Tipologia de ativos, segundo C. Moser
Planos ou níveis de análise
Ativos
plano individual
- trabalho
- capital humano
plano da família
ativos produtivos (principais):
- moradia,
- relações familiares
plano comunitário
- capital social
reciprocidade).
(confiança,
normas
e
redes
de
Fonte: Elaboração própria a partir de C. Moser (1998)
O trabalho é um dos ativos no plano individual. Em contextos de crise, o primeiro e
principal recurso do qual as famílias pobres se utilizam é o aumento no número de
trabalhadores da família, inclusive fazendo uso do trabalho infantil. As respostas dadas
quanto ao uso do trabalho como ativo dependem da estrutura e composição dos domicílios,
o que acarreta uma heterogeneidade de respostas possíveis. O ativo capital humano
encontra-se ligado à provisão da infra-estrutura econômica e social (educação, saúde, água,
transporte e eletricidade). Uma adequada provisão de serviços 60 pode viabilizar que os
indivíduos utilizem suas habilidades e conhecimentos de forma produtiva. Os ativos
produtivos englobam uma variedade de itens, desde carro e utensílios domésticos a
moradia e terra, principais ativos produtivos na zona urbana e rural, respectivamente. As
relações familiares constituem outro importante ativo e diz respeito à composição,
estrutura e coesão dos laços familiares. Em tempos difíceis, a família pode atuar como
importante rede de suporte, antes mesmo da assistência externa (Moser, 1998, p. 34). As
relações familiares e as estratégias das quais as famílias lançam mão em momentos de crise
ou mudança, seja interna (nascimento, morte, separação dos cônjuges) ou externa
(desemprego, por exemplo), constituem recursos centrais para a redução da vulnerabilidade
moldada segundo as tradições e perspectivas desse campo disciplinar. Muitos críticos dizem que falta nesse
conjunto, por exemplo, a dimensão política e outros autores diferenciam, no campo do ativo social, entre
capital sócio cultural e capital sócio político (Hulme, Moore e Stepherd, 2001, p. 30). Entretanto, agregar ou
suprimir dimensões de ativos depende da perspectiva a ser salientada na análise.
60
Quando os serviços públicos são ineficientes, influenciam a capacidade de mobilização de outros ativos. A
esse respeito a autora cita como exemplo as mulheres que gastam horas de seu dia carregando água na
cabeça, ao invés de utilizar esse tempo para atividades de renda e trabalho.
73
e da capacidade de resposta aos riscos. O capital social, tal como as relações familiares, é
um ativo não tangível e dinâmico, podendo aumentar ou diminuir em função do uso, se
consolidar ou erodir em função das mudanças externas 61 . Nessa perspectiva, quanto maior
a colaboração de instituições de base social, maior o estoque de capital social.
“Ensure that social capital is not taken for granted. Social capital is the key to
communities´ ability to cope with economic crises and reverse the downward spiral of
misery. It needs to be strengthened by, for example, improving trust between
communities and the government and giving greater value to volunteer community
work” (Moser, 1996, p. vi).
O enfoque dos modos de vida e do portfólio de ativos, bem como o enfoque dos ativos
(assets based), apresentam um conjunto de categorias comuns, organizadas, contudo, de
forma e com ênfases diferenciadas. As noções de capacidades e da pobreza como privação
de liberdade fornecem o arcabouço mais geral. O enfoque dos ativos é mais fortemente
lastreado na economia; a abordagem dos modos de vida é mais utilizada no campo do
desenvolvimento rural e a abordagem do portfólio de ativos, mais sociológica, centra-se
mais diretamente nas estratégias de respostas das famílias em situação de pobreza.
Elementos das três abordagens são pertinentes na conformação de um quadro analítico;
embora a perspectiva do portfólio de ativos seja mais abrangente ao contemplar
elementos dos outros dois, e configura-se como o mais adequado para perceber
processos que ocorrem nos contextos urbanos. O enfoque dos modos de vida, por outro
lado, embora tenha sido formulado e usado no âmbito da pobreza e do desenvolvimento
rural, agrega uma dimensão importante ao quadro analítico, ao enfatizar o peso dos
processos e estruturas na conformação das condições de vulnerabilidade ou em sua
superação. Além de sua parcimônia analítica, no enfoque do portfolio, os ativos são
discriminados em três âmbitos: o dos indivíduos, o das famílias e o das comunidades,
o que permite delinear estratégias de ação mais apropriadas para cada nível.
1.6 Pobreza crônica: concepção aglutinadora?
Para finalizar este capítulo, é importante salientar que os diferentes enfoques, de forma
geral, não distinguem entre tipos de pobreza. No entanto, a pobreza não é apenas múltipla,
mas apresenta gradações, intensidades, níveis e tipos distintos de privações. A noção de
pobreza crônica aponta exatamente as diferenças entre tipos de pobreza. Pobreza crônica
61
A concepção de capital social utilizada é a de Putnam: “as the informal and organized reciprocal networks
of trust and norms bedded in the social organization of communities – with social institutions both
hierarchical and horizontal in structure” (Putnam, apud Moser, 1998, p. 25).
74
remete à intensidade da pobreza bem como à sua duração. Nas análises de pobreza
crônica as unidades de análise envolvem indivíduos, domicílios 62 , grupos sociais e áreas
geográficas.
“These are the chronic poor: those who suffer poverty for many years, often for a
lifetime, and who are likely to transfer their poverty to their children. They are the
people who benefit least, or suffer most, from the current process of globalisation and
policies for development and who are the most difficult to assist. They are found in poor
and rich countries, remote rural areas and inner city slums. They experience social
exclusion because of their gender, age, ethnicity, disability, caste and social position,
among others” 63 .
Quais são, contudo, as ligações entre a perspectiva da vulnerabilidade e dos riscos e a
concepção de pobreza crônica? De fato, não parece existir um vínculo entre a literatura da
vulnerabilidade e a que trata mais especificamente da pobreza crônica. 64
A pobreza
crônica é objeto de outro conjunto de abordagens e métodos de mensuração 65 .
Em um certo sentido, o olhar sobre a cronicidade da pobreza é convergente com a
perspectiva da exclusão, ao apontar para situações onde as privações são múltiplas e nas
quais as relações sociais desempenham um importante papel. Novamente, os contornos
entre as diferentes concepções sobre o tema da pobreza se diluem, para dar lugar a uma
distinção mais matizada entre os cronicamente pobres e os excluídos.
62
Definidos como grupos de pessoas que “comem do mesmo pote” e dividem a mesma unidade residencial
(household), constituem a unidade de análise mais utilizada para analisar a pobreza crônica. O sentido é de
unidade domiciliar, de família. O uso do domicílio como unidade preferencial para análise da pobreza
crônica tem levado a uma maior atenção aos processos e dinâmicas dentro do domicílio, percebendo que o
bem estar é estratificado no âmbito familiar por variáveis como gênero, idade, sexo, status de saúde.
Pesquisas qualitativas podem contribuir para entender melhor tais dinâmicas e suas implicações em termos de
políticas públicas.
63
Citação retirada de documento Escaping poverty. Can policy reach the chronically poor? Insights Issue
#46, March 2003, denominado ID21: “id21 is the free development research reporting service, bringing you
the latest and best UK-resourced research on developing countries”.
64
Pode-se dizer, de forma geral, que existem três definições de pobreza crônica que sustentam as análises no
campo, e que em duas percebe-se a ausência de articulação da concepção de pobreza crônica com a
concepção de risco (Barrientos e Sheperd, 2003, p. 8). Uma enfatiza a continuidade da pobreza no tempo,
medida a partir de uma linha de renda ou consumo, em diversos pontos de observação. Outra (shortfall
approach) reconhece que a renda e o consumo contêm elementos permanentes ou constantes e outros
flutuantes e consideram cronicamente pobres os domicílios cuja renda e consumo constantes estejam abaixo
da linha durante um certo período de tempo. Uma terceira definição considera a probabilidade de renda e
consumo futuro, que pode ser estimado pela posição atual da renda e consumo do domicilio em relação à
linha de pobreza. Essa definição, ao considerar a variação futura na renda e no consumo, é a única que leva
em conta a vulnerabilidade e os riscos na identificação e caracterização da pobreza crônica (Barrientos e
Sheperd, 2003, p. 9).
65
Os enfoques da vulnerabilidade e da pobreza crônica são trabalhados de forma preferencial pelo CPRC,
Chronic Poverty Research Centre, instituído em 2000, com financiamento do Departamento de
Desenvolvimento Internacional (DFID) do Reino Unido. Trata-se de uma parceria internacional de
universidades, centros de pesquisa e organizações não governamentais que tem como foco a pobreza crônica,
com o objetivo de estimular o debate, ampliar o conhecimento sobre as causas e contribuir, assim, como guia
de políticas para sua redução.
75
Em uma perspectiva mais limitada e na esteira das pesquisas de corte mais econômico, a
idéia de pobreza crônica destaca, fundamentalmente, o tempo de duração da pobreza. A
categoria tempo é necessária e suficiente para demarcar situações de pobreza crônica.
Geralmente esse tempo é variável, mas gira em torno de cinco anos 66 (Hulme, Moore e
Stepherd, 2001). A pobreza temporária ou transitória constituiria uma situação distinta da
situação de pobreza crônica e a abordagem de cada uma delas exigiria elementos e
estratégias diferentes. Essa distinção não é consensual e críticas consistentes têm sido
feitas, afirmando que tais grupos e condições são realidades superpostas, com contornos
fluidos e não “crisp sets”. Voltaremos a esse ponto adiante, salientando suas implicações
para o desenho de políticas de proteção social.
A partir do tempo de duração, pode-se definir uma tipologia de pobreza que considera os
que sempre foram pobres, os usualmente pobres, os pobres “flutuantes” (“churning
poor”), os ocasionalmente pobres e os nunca pobres.
Além do tempo, a pobreza crônica pode ser ainda identificada a partir de uma característica
fundamental, a severidade, ou seja, a profundidade da pobreza 67 . Similarmente a outros
enfoques, têm-se aqui problemas para delimitar o ponto de corte: que grau de severidade
da pobreza é suficiente para caracterizar a pobreza crônica. “It is hypothesised that a
significant proportion of people experiencing chronic poverty are severely poor, and that
those suffering extreme poverty have a high probability of experiencing chronic poverty”
(Hulme, Moore e Stepherd, 2001, p. 18). Agregando duração e severidade, poder-se-ia
identificar como cronicamente pobres 68 os que apresentam renda muito abaixo da linha da
pobreza por um longo período de tempo.
Outra dimensão considerada para definir pobreza crônica seria a transmissão entre as
gerações (IGT - Poverty Intergenerationally Transmitted). Em uma definição mais restrita
de pobreza crônica, a ênfase recai sobre essa dimensão e transmissão intergeracional seria,
ao mesmo tempo, uma característica e a causa da pobreza crônica. Entretanto, existem dois
conjuntos distintos de questões envolvidas na transmissão intergeracional da pobreza.
66
Achados empíricos têm mostrado que se uma família ou domicílio permaneceu pobre nos últimos 5 anos,
são muito grandes as chances de continuarem pobres pelo resto de suas vidas. Entretanto, tal periodicidade
varia inclusive tendo como base a periodicidade dos dados disponíveis.
67
Em algumas abordagens, pobreza crônica é associada com a multidimensionalidade das privações e é nesse
sentido que a noção de severidade é também considerada.
68
Uma outra noção é a de pobreza extrema relativa, definida a partir da renda média nacional. Quando
utilizada essa medida - que é definida a partir de uma linha de pobreza e indigência definida em termos de
percentuais da renda nacional e não de forma absoluta - na América Latina e Caribe, por exemplo,
passaríamos de 6,5% da população vivendo com menos de 1 dólar ao dia para 51,4% da população com
menos de 1/3 da renda média nacional. (Hulme, Moore e Stepherd, 2001, p. 18).
76
Trata-se de saber, por um lado, o que é de fato repassado ou transferido entre as gerações.
Quanto a isso, a literatura aponta a questão do capital humano, do capital financeiro e
material, meio ambiente e recursos naturais, elementos culturais e psicológicos. Por outro
lado, é importante indagar: porque algumas pessoas, sob certas circunstâncias, são
incapazes de escapar da pobreza enquanto outras conseguem sair? “What are the
likelihoods are that a child born into poverty will suffer as a poor child, become a poor
adult and pass poverty on to her or his own descendents?” (Hulme, Moore e Stepherd,
2001, p. 18). Uma primeira exigência analítica para abordar a transmissão intergeracional
da pobreza consiste em saber como os fatores se relacionam, reforçando-se mutuamente
para a perpetuação da situação através das gerações.
O conhecimento maior das interações entre as diferentes dimensões, que se reforçam
mutuamente, permite não apenas desenhar redes de proteção mais apropriadas mas também
pode contribuir para prevenir a transmissão intergeracional da pobreza. Os pobres crônicos
experimentam várias formas de destituição ao mesmo tempo e essas combinações, sempre
sujeitas tanto a fatores estruturais quanto idiossincráticos, configuram situações de
perpetuação da pobreza, com crescente bloqueio às oportunidades de escape (Barrientos,
Shepperd, 2003, p. 8).
A ligação entre riscos, vulnerabilidade e pobreza crônica é direta. Para lidar com os riscos,
preveni-los e enfrentá-los, os que estão em condições de pobreza crônica apresentam muito
mais dificuldade do que os pobres “transitórios” e muito menor capacidade para utilizar, de
forma não predatória, sua base de ativos. É evidente, quase senso comum, que os pobres
crônicos são mais expostos a riscos, apresentam menos recursos e capacidades para
enfrentá-los, sendo que as respostas e estratégias utilizadas levam freqüentemente a
armadilhas que acabam por aprofundar e aprisionar ainda mais os indivíduos, famílias e
grupos na condição de pobreza.
O reconhecimento de que existem tanto fatores estruturais quanto idiossincráticos que
contribuem para a manutenção da pobreza crônica e também o reconhecimento de que esta
se inscreve, em certa medida, nos atos e decisões de agentes 69 podem orientar modelos de
ação (políticas de proteção social) mais sensíveis para captar e se adequar às diversas
situações que conformam os modos de vida e as estratégias (ou falta de alternativas) a que
69
A dimensão da agência expressa-se pelas decisões que ocorrem no espaço micro e cotidiano, tais como as
discriminações intradomiciliares, até decisões mais momentâneas, como a de retirar a criança da escola, por
exemplo, como salientado por Barrientos e Sheperd (2003, p. 8).
77
as famílias cronicamente pobres estão submetidas. O exame de riscos e vulnerabilidade
para grupos específicos poderá funcionar como mecanismo para ajustar as intervenções à
preservação e/ou recuperação de ativos.
Com a concepção de pobreza crônica conclui-se o primeiro capítulo do trabalho. A
perspectiva da pobreza crônica - que não é propriamente inovadora nos estudos, sobretudo
econômicos, sobre pobreza - pode ser uma categoria central tanto para analisar o fenômeno
quanto para atuar sobre ele. A dimensão inovadora consiste em apontar como elementos
definidores dessa condição não apenas a renda muito baixa por um longo período de
tempo, mas também a multidimensionalidade e a intensidade das privações. A perspectiva
da pobreza crônica complementa os enfoques anteriores, embora a pobreza crônica não
seja propriamente um enfoque e se configure mais uma forma de delimitar um subconjunto do universo dos pobres, que se constituem em públicos específicos para
determinados tipos de políticas de proteção social.
As categorias e elementos presentes na concepção de pobreza crônica e nos enfoques de
exclusão e vulnerabilidade constituem as bases do arcabouço analítico que busca
compreender a pobreza como um problema para o conhecimento. O cerne da inovação do
conceito de exclusão reside na centralidade que ele confere às relações sociais, às
dimensões do processo, trajetória e dinâmicas que levam à privação e a fazem persistir.
Nesse enfoque, essas perspectivas não são acessórias. Como também não é acessória a
percepção de que a pobreza é uma condição que ultrapassa a questão da ausência ou da
baixa renda. A concepção de pobreza crônica, em certo sentido, pode se sobrepor à de
exclusão ou complementá-la. Pobreza crônica salienta a dimensão do tempo, focaliza a
severidade e a perpetuação intergeracional da pobreza e, como o conceito de exclusão,
enfatiza a multidimensionalidade e a centralidade das relações sociais na explicação e
enfrentamento das condições de pobreza.
Para entender de forma mais abrangente a produção e a reprodução da pobreza crônica, o
aporte dos vários enfoques é fundamental. Esse grupo ou tipo de pobreza pode permitir a
confluência dos distintos enfoques, na medida em que é necessário considerar que essa
condição geralmente envolve, além da precariedade da renda por um longo período de
tempo, necessidades insatisfeitas, relações sociais fragilizadas, aspectos psico-sociais
negativos e baixa capacidade de mobilização de ativos.
Uma vez tendo apresentado as matrizes e os elementos conceituais de distintos enfoques
sobre a pobreza, o capítulo seguinte continua na mesma trilha, mas aborda uma outra
78
dimensão do processo de construção do objeto, que se refere à operacionalização, ou
mensuração do problema. O próximo passo é examinar as implicações de cada enfoque ou
abordagem quanto às formas de mensuração, sendo que esse ponto não é importante
apenas em termos metodológicos, mas sobretudo práticos, uma vez que as formas de
mensuração têm conseqüências diretas na definição dos grupos de pobres e indigentes e,
portanto, nas estratégias e parâmetros para focalização. O percurso a ser trilhado parte da
análise da pobreza como problema do conhecimento – o que justifica os capítulos onde se
apresentam as concepções e formas de mensuração da pobreza – em direção à pobreza
como problema de ação, de políticas públicas. O capítulo dois aproxima a discussão
conceitual do plano da ação, ao focalizar como cada enfoque delimita a pobreza, como
operacionaliza suas definições e concepções de forma a delimitar, empiricamente, o
fenômeno da pobreza.
O Quadro 3, sinóptico, sintetiza alguns elementos centrais dos enfoques apresentados.
79
Quadro 3 – Síntese dos principais enfoques examinados sobre pobreza
Enfoques
Histórico, autores, campos
Concepção
Modelo, dimensões, tipologias
Monetário
Concepção pioneira: Rowntree.
Abordagem majoritária na
análise e mensuração da pobreza.
Pobreza focalizada a partir da renda e do
consumo. Concepção unidimensional da
pobreza.
Distinção entre pobreza absoluta (sustentada em padrões nutricionais
mínimos) e relativa (em relação a renda média de uma dada sociedade).
Linha de pobreza (renda suficiente para cobrir necessidades alimentares e
demais necessidades) e indigência (renda abaixo do necessário para cobrir
os custos de uma cesta de alimentos). Unidade de análise: indivíduos e
domicílios
Necessidades
Básicas
Insatisfeitas
Booth foi um dos primeiros a
representar a pobreza a partir do
acesso a bens e serviços
localizados. Como enfoque mais
sistematizado, emerge por volta
dos anos 70 na América Latina.
Pobreza como condição de privação de
necessidades consideradas básicas.
Geralmente a lista de necessidades básicas
envolve educação, saúde, moradia, infra
estrutura.
Mensuração direta da pobreza. Identificação das necessidades é relativa e
dependente do contexto. Abordagem fortemente orientada para dimensões
mais tangíveis da pobreza. Unidade de análise: indivíduos e áreas (mapas
de pobreza, índices de qualidade de vida urbana)
Perspectiva de Amartya Sen.
Críticas ao utilitarismo
(economia clássica do bem estar).
Pobreza definida a partir da perspectiva da
liberdade. Identificada com carência ou
privação de capacidades que permitam às
pessoas viver uma vida digna. Considera
dimensões menos tangíveis, como autorespeito, autonomia, dignidade, senso de
liberdade.
Noção de capability set: conjunto de capacidades, não previamente
identificadas, capazes de possibilitar aos indivíduos viver com liberdade de
fazer escolhas, de forma digna e autônoma.
Capacidades
Entendida na perspectiva dos processos de
desqualificação e desfiliação social.
Matriz francesa dos estudos sobre
exclusão social. Concepção
original do termo exclusão,
relativo aos processos de ruptura
ou fragilização dos laços de
coesão social.
Exclusão Social
- Presença da noção de
“trajetória” e dinâmica dos
processos de destituição.
União Européia adotou o enfoque
da exclusão como base das
estratégias de proteção.
Castel: Eixos de análise: precariedade
econômica e a instabilidade social.
Vulnerabilidade social como zonas que se
situam entre os eixos da precariedade do
trabalho e a fragilidade dos suportes de
proximidade.
Paugam: Eixos de análise: processos de
natureza sociológica, tais como construção e
perda de identidades sociais e o papel dos
serviços sociais na construção do fenômeno da
pobreza.
Exclusão implica ausência ou precariedade de
renda, mas a ultrapassa. Insere uma
perspectiva mais claramente sociológica nos
estudos sobre pobreza.
80
Castel: Trabalho e redes de sociabilidade (família, comunidade).
Processos de Desfiliação
Integração (situação de inserção qualificada no mercado de traba lho e laços
sociais fortes)
Vulnerabilidade (fragilidade da inserção no trabalho e debilidade dos laços
sociais)
Assistência (benefícios do Estado como fonte de integração social)
Desfiliação (desemprego e perda dos laços sociais)
Paugam: Tipologia baseada na categoria de status e relação com
serviços sociais. Processos de desqualificação social
Fragilizados – fragilidade e vulnerabilidade quanto aos processos
econômicos e sociais, que relutam pela inserção no sistema de proteção
(identidade e estigma)
Assistidos – dependência dos serviços sociais. Resignação
Marginalizados – ruptura e recusa do processo da assistência. Último
degrau da desqualificação social
Unidade de análise: indivíduos e grupos
Características da exclusão: multidimensional, relacional, processual, ligada
ao contexto, envolve aspectos psico-sociais (auto-estima, identidade, autorespeito)
Enfoques
vulnerabilidade
e ativos
Histórico, autores, campos
Concepção
Banco Mundial / BIRD– Setor de
Proteção Social. Segunda metade
década de 90, para redesenhar
ação do Banco no campo da
proteção social.
Referências: Holzman, Jorgesen
(2000)
Vulnerabilidade:“un proceso
multidimensional que confluye en el riesgo o
probabilidade del individuo, hogar o
comunidade de ser herido, lesionado o
dañado ante cambios o permanencia de
situaciones externas y/o internas” Articulação
da noção de vulnerabilidade com a idéia de
risco. A noção de risco envolve riscos
naturais, de saúde, ligados ao ciclo de vida,
sociais, econômicos, ambientais, políticos.
Foco nos processos que causam pobreza e nas
estratégias ou respostas dadas pelos domicílios
para lidar com eventos negativos. Ênfase em
metodologias participativas, em abordagens
“centradas nas pessoas”. Reconhecimento do
caráter dinâmico dos modos de vida (ao longo
do tempo e do espaço) e da multiplicidade de
fatores causais, de estratégias e de resultados
possíveis e reconhecimento da multiplicidade
de atores. Atenção aos processos e estruturas
de natureza institucional, social, econômica,
política. Foco nos ativos.
Foco na dimensão dos ativos que indivíduos,
domicílios e comunidades pobres mobilizam e
gerenciam para fazer frente a situações de
pobreza. Agrega dimensões de mensuração de
renda e consumo, mas agrega dimensão dos
ativos, olhando a perspectiva da
vulnerabilidade não somente do ponto de vista
das ameaças e riscos, mas também da
resiliência e sensitividade, que expressam a
capacidade de resposta aos choques e a
resistência aos choques e alterações do
entorno.
Pobreza crônica definida a partir da duração
da situação de pobreza, severidade e
multidimensionalidade das formas de
privação. Foco na transmissão intergeracional
da pobreza.
Cronicamente pobres: os que apresentam
renda muito abaixo da linha da pobreza por
um longo período de tempo.
DFID
(Departament
for
International Development governo
britânico)
e
Universidade de Sussex; ODI
(Overseas
Development
Institute). Noção de meios de
vida sustentáveis. Utilizado por
diversas agências no campo de
estudos e políticas para o
desenvolvimento.
Origem:
estudos sobre comunidades e
desenvolvimento rural.
Banco Mundial/BIRD. Debate
sobre o desenvolvimento;
originalmente desenvolvimento
rural.
Referência: Caroline Moser com
trabalhos na área urbana. Relação
com enfoque dos direitos
humanos
Pobreza crônica
Chronic Poverty Research Centre
(CPRC) - O reconhecimento da
pobreza crônica é comum no
campo de estudos da economia.
Modelo, dimensões, tipologias
Fonte: elaboração própria, a partir dos autores considerados
81
O enfoque da vulnerabilidade apresenta três componentes, que conformam
a cadeia de risco (risk chain): os eventos de risco, a resposta a eles, e os
resultados em termos de bem estar. Os ativos (humanos, financeiros,
físicos e sociais) condicionam as respostas quanto: a) aos níveis de
enfrentamento: prevenção, mitigação ou superação do evento de risco; b)
Estratégias de enfrentamento: sistemas informais, sistemas mercado, setor
público; c) Atores:indivíduos e famílias, comunidades, organizações
(governamentais e não governamentais)
Ativos de modos de vida (livelihood assets): capital humano, natural,
social, físico e financeiro.
Papel das estruturas e processos na definição das estratégias dos modos de
vida
Idéia de mobilização de ativos (Moser)
Plano individual
Trabalho
Capital humano
Plano familiar
Ativos produtivos
Relações familiares
Plano comunitário
Capital social (confiança, normas e redes de reciprocidade)
Tipologia baseada nas posições de indivíduos e domicílios quanto à duração
da pobreza: sempre pobres, usualmente pobres (posições que
caracterizam pobreza crônica), “churning poor”, ocasionalmente pobres
(ambos conformando a pobreza transitória, temporária), nunca pobres.
CAPITULO 2 - DAS CONCEPÇÕES À MENSURAÇÃO
Esse capítulo trata do tema da operacionalização das diferentes concepções sobre pobreza,
ou seja, das formas de mensuração que decorrem dos diferentes enfoques. Esse é um tema
bem amplo e por demais complexo para ser devidamente tratado em algumas poucas
páginas. A pretensão aqui é mais modesta e consiste em identificar em linhas gerais como
cada um dos enfoques anteriormente analisados considera a pobreza sobre o aspecto de sua
mensuração.
Se do ponto de vista teórico e analítico os diferentes enfoques divergem e se distinguem
quanto à caracterização da pobreza, e se tais concepções divergentes levam a diversos
métodos de mensuração e a diferentes resultados, as conseqüências práticas não são
irrelevantes, principalmente do ponto de vista das políticas públicas. A questão, antes de
tudo, consiste em saber se os diferentes enfoques identificam as mesmas pessoas como
pobres. Esse ponto ganha importância não pela questão propriamente metodológica, mas
pelo fato de que diferentes enfoques podem levar, entre outras coisas, a identificar
diferentes grupos de pobres, o que tem implicações diretas na provisão de bens e serviços
públicos, definindo público alvo das intervenções, orçamentos e alocações de recursos
públicos. Que diferenças ocorrem na prática quando métodos alternativos são usados? Os
universos delimitados são os mesmos? Se sim, o uso da renda como base de mensuração,
apesar de suas deficiências teóricas, poderia ser utilizado como proxy de outras privações.
Em torno dessas questões, Laderchi, Saith e Stewart (2003) identificaram estudos
empíricos levados a cabo em diferentes países e que são instigantes do ponto de vista de
seus resultados. Comparando a medida de pobreza pela renda (pobreza monetária) com a
mensuração sob o enfoque da capacidade (mensurada pelo acesso à água, esgoto e pelos
indicadores de educação e saúde) não há uma congruência ou uma grande sobreposição
dos universos mensurados pelos dois enfoques. Existe uma “limitada consistência
empírica” entre os enfoques, sendo que essa questão não é banal. O que é difícil de aceitar
é como baixos níveis de pobreza medidos por um enfoque sejam compatíveis com alto
índice de pobreza em outro 70 .
70
E o que os estudos mostram é uma significativa ausência de sobreposição em identificar os indivíduos
pobres em um e outro enfoque. Por exemplo, na Índia, 43% das crianças e mais de 50% dos adultos
considerados pobres pelo enfoque das capacidades, não eram pobres no enfoque monetário e no Peru um
terço dos adultos e crianças considerados pobres do ponto de vista da capacidade educacional não eram
pobres na medida monetária. Quando a comparação é com o enfoque participativo, as distâncias são ainda
maiores. Na Índia, apenas metade dos classificados com baixo bem estar (enfoque participativo) eram pobres
quanto a renda. No Peru, 48% não pobres quanto a renda foram identificados como pobres de acordo com o
82
O tema da mensuração a partir de diferentes concepções teóricas ganha assim uma
importância analítica adicional. Este capítulo discutirá as diferentes formas de mensuração
relacionadas a cada um dos enfoques, com ênfase nos da exclusão e vulnerabilidade.
2.1 Mensuração pelo enfoque monetário
A mensuração da pobreza mais utilizada é a decorrente do enfoque monetário,
operacionalizada a partir do estabelecimento de linhas de pobreza e indigência 71 . A
primeira é estimada tendo como base o custo de uma cesta de alimentos que cubra as
necessidades nutricionais da população, agregando a esse valor os recursos necessários
para satisfazer necessidades básicas não alimentícias (Mideplan, 2002, p. 6). Como itens
não alimentares tem-se, por exemplo, habitação, vestuário, saúde e cuidados pessoais,
transporte e comunicação, artigos de residência, entre outros (Rocha, 2003, p. 63). A linha
de pobreza é, portanto, a soma dos valores calculados para cesta alimentar e para as demais
despesas básicas não alimentares. A linha de indigência, por sua vez, refere-se ao custo da
cesta alimentar mínima, sem considerar as demais necessidades. Os indigentes são, dessa
forma, um subconjunto dos pobres.
Tem-se, com essas duas linhas assim estabelecidas, a definição da pobreza absoluta. O
conceito de pobreza relativa, por sua vez, agrega uma medida de desigualdade, para indicar
que a pobreza se define em termos de carências materiais expressas por meios monetários,
mas também que as necessidades são determinadas culturalmente, parâmetros do que uma
sociedade considera como mínimo de vida aceitável (Rocha, 2003, pp. 11-12). Essa
perspectiva ganha corpo a partir dos anos 70, considerando a pobreza mais explicitamente
tendo como referência um padrão médio. Ênfase é dada às medidas de intensidade da
pobreza, que buscam capturar a desigualdade entre os pobres, na tentativa de mensurar o
hiato que separa os pobres de um padrão médio considerado (Lavinas, 2003, p. 36).
ranking do bem estar e 39% dos extremamente pobres quanto ao bem estar não eram pobres do ponto de
vista da renda. Quase 30% dos que se auto declararam pobres quanto ao bem estar eram não pobres quanto à
renda e 42% dos pobres quanto à renda não se consideravam pobres quanto ao nível de bem estar (Laderchi,
Saith e Stewart, 2003, p. 33).
71
Uma boa referência sobre este tema encontra-se em Sônia Rocha (2003), que desenvolve uma extensa
produção sobre a composição e mensuração das linhas de pobreza e indigência no Brasil.
83
Como afirma Amartya Sen, pobreza absoluta e relativa são complementares, e existiria um
núcleo irredutível de pobreza que se manifesta na ausência ou precariedade de um mínimo
necessário para a sobrevivência física (Mideplan, 2002, p. 8) 72 .
Quadro 4 – Pobreza absoluta e relativa: mensuração e indicadores
O que mede
Pobreza
absoluta
Identifica as pessoas que
estão abaixo de um
padrão de vida
considerado
minimamente aceitável.
identifica as pessoas que
tenham um nível de vida
baixo em relação à
sociedade em que vivem.
Fonte: Elaboração própria
Pobreza
relativa
Como mensura
Linha de pobreza:
identifica pobres e não
pobres
Indicadores
custo de uma cesta de alimentos que
cubra as necessidades nutricionais da
população, agregando a esse valor os
recursos necessários para satisfazer
necessidades básicas não alimentícias,
tais como vestuário, moradia, saúde e
cuidados pessoais, transporte e
comunicação, entre outros.
Linha de Indigência:
identifica os miseráveis
e a pobreza extrema
custo de uma cesta básica de alimentos.
Linha de pobreza
Definida a partir de um valor
considerado mínimo na sociedade em
questão, definido mais ou menos
arbitrariamente.
A principal vantagem do uso de enfoques baseados na renda consiste na possibilidade de se
identificar, sem muito problema, o universo alvo da intervenção. Uma vez estabelecidos os
parâmetros para as linhas de demarcação entre pobres e não pobres, simplifica-se o
processo de identificação dos pobres, indigentes e não pobres.
Estabelecer a distinção entre pobres e não pobres constitui uma primeira etapa na
quantificação da pobreza. Tem-se, além dessa distinção básica, alguns índices que
permitem avaliar outros aspectos. A incidência da pobreza, por exemplo, refere-se a essa
quantificação da pobreza para áreas ou populações específicas. A brecha (ou hiato) da
pobreza, por sua vez, permite determinar a profundidade da pobreza, através da distância
média entre a renda dos pobres e a linha da pobreza. Essa medida permitiria identificar
quanto é necessário acrescentar na renda média dos pobres para que eles superem a
condição de pobreza ou indigência. Finalmente, a terceira medida captura a severidade da
pobreza e procura discriminar grupos e subgrupos mais vulneráveis. Ela é extremamente
importante por permitir comparar populações pobres, o que possibilita identificar grupos
onde a magnitude da pobreza é maior.
72
A abordagem da pobreza relativa é mais freqüente nos países mais desenvolvidos, nos quais o mínimo vital
é mais universalmente garantido para todos. Trata-se, nesse caso, de apontar situações de privação que
ultrapassam as questões de sobrevivência física.
84
Cabe aqui ressaltar o caráter intrinsecamente relativo do estabelecimento das linhas de
pobreza e indigência, mesmo que se parta da noção de pobreza absoluta e baseada no
consumo mínimo. Laderchi, Saith e Stewart apontam a centralidade dos julgamentos de
valor que formam um aspecto intrínseco da metodologia de mensuração, na definição do
que deve compor a cesta de consumo, por exemplo (2003, p. 13). No que se refere à cesta
básica, trata-se de definir a composição da cesta e escolher os preços adequados para cada
produto. Não se tem uma única solução possível e a questão se complica quando se trata
de outras necessidades que não as nutricionais mínimas (vestuário, moradia etc). Quando
se diz não ter uma solução única, o que se quer enfatizar é o caráter controverso do que
deve ser considerado mínimo, que envolve sempre uma normatividade. Como estabelecer
o que é mínimo para uma pessoa viver? Isso aponta para a complexidade de se estabelecer
o que seja considerado mínimo, seja para identificar pobreza ou até mesmo indigência
(Rocha, 2003, p.14).
Sob a aparente objetividade das medidas baseadas na renda, tem-se uma série de operações
e decisões mais ou menos arbitrárias que acabam por definir os padrões mínimos a partir
dos quais se delimita a pobreza e a indigência. Alguns autores têm pontuado a questão de
múltiplos ajustes nas estimativas empíricas sobre a pobreza, que fazem com que as taxas
de pobreza variem entre 13% e 66% na mensuração da pobreza em 17 países latinoamericanos (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 12). A magnitude da variação pode indicar,
de acordo com os autores, que muitas estimativas monetárias da pobreza não são robustas.
Sônia Rocha, para o Brasil, chega a conclusões semelhantes (Rocha, 2003, p. 174). Os
ajustamentos técnicos requeridos para a mensuração em termos monetários envolvem
numerosos julgamentos de valor, apesar da aparente objetividade.
Na medida em que a arbitrariedade relativa das definições e ajustes técnicos fica implícita,
corre-se o risco de atribuir maior “objetividade” às medidas de renda como síntese de
pobreza, o que pode contribuir para uma oposição entre métodos que procuram captar
dimensões mais objetivas ou dimensões menos tangíveis da pobreza.
A outra ressalva seria que o enfoque monetário estabelece os parâmetros para definição de
pobreza independente dos pobres e externamente a eles, sem levar em conta a percepção
que os pobres têm de sua própria situação 73 . Claramente, percebe-se aqui a dimensâo das
73
A emergência do enfoque participativo tem como contraponto exatamente essa questão: os critérios de
identificação não são externos, impostos pelos pesquisadores, mas decorrem de categorias elaboradas a partir
de percepções dos próprios pobres sobre a sua situação.
85
diferentes ênfases disciplinares que marcam o debate sobre a pobreza. Aqui a ênfase é
basicamente econômica.
A segunda fragilidade, também de natureza metodológica, decorre da ambigüidade do
enfoque, que considera pobreza como atributo individual, mas ao mesmo tempo utiliza
dados da renda de domicílios. Têm-se informações sobre domicílios e, a partir de
procedimentos estatísticos, calcula-se um valor per capita médio, sem discriminar portanto
as diferenças de necessidades entre os indivíduos em função da idade e condições de vida,
por exemplo, ou os mecanismos internos às famílias – de poder, culturais - para
distribuição dos recursos existentes (Laderchi, Saith , Stewart, 2003, p. 12; Lavinas, 2003,
p. 35). Embora as medições utilizem escalas de equivalência para tentar chegar a valores
individuais a partir da composição familiar, os procedimentos podem alterar a incidência
da pobreza entre famílias com grande número de dependentes e não captar desigualdades e
relações de poder intrafamiliar, relativas ao gênero e faixa etária (Lavinas, 2003, p. 35).
A terceira objeção refere-se às dificuldades e limitações do uso da renda como indicador de
pobreza. Vários autores discutem a questão (Mideplan, 2002; Laderchi, Saith e Stewart,
2003; Franco, 2003), salientando a fragilidade da medida quanto à confiabilidade dos
dados, o que pode levar à superestimação da pobreza. Muitos rendimentos podem ficar
fora do radar e não serem considerados, tais como os benefícios públicos, por exemplo.
Além disso, a medida não considera bens e serviços adquiridos fora do mercado, tais como
os que são providos pelo Estado ou pelas redes de solidariedade familiar ou comunitária ou
produzidos de forma autônoma, como a auto-produção de alimentos, por exemplo
(Mideplan, 2002, p. 7). A ênfase exclusiva na dimensão econômica desconsidera recursos
sociais que são fundamentais para o bem estar das pessoas, como saúde e nutrição, por
exemplo.
2.2 Necessidades básicas: mapas e indicadores sociais
O enfoque monetário, ao adotar um corte unidimensional para distinguir entre pobres e
não-pobres, seja em termos de linhas ou de valores monetários (um ou dois dólares ao dia),
pretende estabelecer uma métrica universal para possibilitar, inclusive, a comparação entre
países. No caso do enfoque das necessidades básicas, obter indicadores que possibilitem a
comparação entre países é ainda mais discutível, pois a definição de necessidades básicas é
altamente dependente do contexto. A solução adotada, de forma geral, é uma
operacionalização do conceito através de
86
variáveis relacionadas às condições de
residência, aglomeração dos domicílios, disponibilidade de serviços (água potável,
eletricidade, serviços sanitários), acesso à escola, capacidade econômica do chefe de
família, dentre outras. Esse enfoque, ao estabelecer os graus mínimos de satisfação de
necessidades básicas, define uma linha de pobreza a partir da noção de mínimos sociais.
Ao centrar-se no exame das condições de acesso e usufruto, em cada sociedade, de bens e
serviços tais como moradia, água potável, energia elétrica, serviços sanitários, educação,
saúde, nutrição, entre outros, esse método incorpora a noção de pobreza relativa. Mas não
há consenso sobre quais são as dimensões relevantes e sobre o peso a conferir a cada
uma 74 . Aprender a ler e escrever é uma necessidade básica, mas em um contexto de
população alfabetizada, pode ser irrelevante para definir pobreza, sendo mais adequado
utilizar como critério um nível de escolarização mais alto. Saneamento é uma necessidade
básica, mas a forma de a atender varia de acordo com o contexto: na zona rural, o uso da
fossa pode ser adequado, situação distinta da área urbana, onde a existência de rede de
captação de esgoto é necessária (Rocha, 2003, p. 19).
Uma vantagem desse enfoque é que, ao focar na mensuração dos bens e serviços, ele
permite combinar zonas geográficas e nível de satisfação de necessidades básicas,
possibilitando capturar a heterogeneidade de situações que podem ser expressas, por
exemplo, em mapas de pobreza. O enfoque monetário, em sua forma pura, ao considerar
como base indivíduos, não incorpora de forma natural outras unidades de focalização,
como território, por exemplo. Os problemas, também aqui, decorrem da operacionalização
do método, da dificuldade de ponderar valores para necessidades básicas insatisfeitas,
definir que necessidades são mais ou menos importantes; ou da dificuldade de comparar
regiões, sem levar em conta as especificidades de cada uma (Mideplan, 2002, p. 10). Além
74
Dentre alguns índices utilizados na Grã Bretanha para mensurar privações, tem-se: A) Department of the
Environment: Desemprego: residentes ativos economicamente que estão desempregados; Pensão: domicílios
com pessoas sozinha acima de 60 / 65 anos; Habitação: domicílios com mais de 1 pessoa por quarto; Pais
sozinhos: famílias monoparentais (com crianças abaixo de 15 anos);Ausência de amenidades: domicílios sem
banho ou banheiro dentro da casa;Etnicidade: moradores em domicílios nos quais o chefe nasceu em paises
da nova comunidade européia ou no Paquistão. B) Peter Townsend: Desempregado: residentes ativos
economicamente com idade entre 16-59/64 anos desempregados; Sem carro: domicílios que não possuem um
carro; Aluguel: domicílios não ocupados pelo proprietário; Habitação: domicílios com mais de 1 pessoa por
quarto. C) Breadline: Desemprego: pessoas economicamente ativas desempregadas; Sem carro: domicílios
sem carro; Aluguel: domicílios não ocupados pelos proprietários; Pais sozinhos: domicílios com pais
sozinhos como proporção de todos os domicílios; Doenças de longa duração:domicílios contendo uma pessoa
com doença limitante de longa duração; Baixa classe social: pessoas em classe social IV ou V (Peter Lee,
Alan Murie, David Gordon, ano?)
87
disso, os indicadores adotados para mensuração tendem a desconsiderar potencialidades e
os aspectos de natureza cultural, associativa e relativos à capacidade de organização
social das comunidades (Raczynski, 1999, p. 196).
A combinação do enfoque da renda com o das necessidades básicas originou uma tipologia
para identificar diferentes condições de pobreza que permite caracterizar os domicílios em
quatro situações distintas: pobreza crônica, renda se encontra abaixo da linha de pobreza e
com ao menos uma necessidade básica não satisfeita; pobreza inercial, renda acima da
linha de pobreza e pelo menos uma carência; pobreza recente, renda abaixo da linha e
nenhuma carência e integração social ou não pobreza, renda acima da linha de pobreza e
nenhuma carência. Esse método, conhecido como “método integrado de medição da
pobreza”, permite captar a mobilidade de grupos em relação à linha de pobreza e
estabelecer perfis diferentes da pobreza (Mideplan, 2002, p.10).
Quadro 5 – Método Integrado de Mensuração da Pobreza
Renda abaixo da linha
Pelo menos uma
Pobreza crônica
necessidade
insatisfeita
Nenhuma
Pobreza recente
carência
Renda acima da linha
Pobreza inercial
Não pobreza/integração
Fonte: elaborado pela autora a partir Mideplan (2002)
2.3 Capacidades e Desenvolvimento Humano
O enfoque das capacidades encontra mais dificuldades para sua operacionalização. A
definição do que sejam capacidades básicas e do grau de realização dessas capacidades é
uma questão central (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 17) e não existe nesse enfoque, de
forma explícita, uma lista de necessidades, para deixar em aberto tais especificações para
serem definidas de acordo com as normas societárias vigentes em diferentes culturas.
Identificar capacidades básicas é um problema análogo ao de identificar as necessidades
básicas. Toda tentativa de especificação envolve uma concepção do que seja uma boa vida,
tal como apontam Laderchi, Saith, Stewart (2003, p. 17), ao comentar a definição de
requisitos essenciais para uma vida humana plena. Além disso, tais especificações seriam
muito gerais, não permitindo definir pontos de corte para definir privação.
O desafio está, portanto, em operacionalizar o conceito das capacidades em algo
mensurável - “all the possible achievements an individual may have, which together
constitute the capability set” (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 18). O conceito aponta
88
para resultados potenciais - a capacidade de realizar algo, e não a realização em si - e isso
torna problemático identificar esse resultado empiricamente. Algumas tentativas de
operacionalizar a concepção de capacidades elaboram listas que definem os aspectos de
saúde, educação e nutrição considerados como mínimos, adotando os mesmos elementos
do enfoque das necessidades básicas, o que demonstra uma forte tendência para medir
funcionamentos mais do que capacidades. Os indicadores concentram-se em expectativa de
vida, morbidade, alfabetização, níveis de nutrição, o que os aproxima e os torna
virtualmente idênticos aos utilizados no enfoque das necessidades básicas (Laderchi, Saith,
Stewart, 2003, p. 18). As implicações disso é que a distância que pode separar a concepção
de necessidade da concepção de capacidade diminui consideravelmente quando se observa
a mensuração decorrente de cada um dos enfoques, uma vez que as variáveis e indicadores
podem ser tão parecidos.
Como em outros, o enfoque das capacidades necessita identificar quebras na distribuição
das capacidades que possam diferenciar pobres e não pobres. A escolha de tais cortes é
também, como nos casos anteriores, dependente do contexto e em certa medida arbitrária.
Um problema adicional, nesse mesmo sentido, refere-se à agregação das diversas
dimensões a serem consideradas, particularmente relevante em um enfoque que adota a
multidimensionalidade como perspectiva básica. Entretanto, embora haja um nível de
arbitrariedade nas escolhas para operacionalizar o conceito, semelhante ao do enfoque
monetário, alguns autores sustentam que no enfoque das capacidades as escolhas feitas são
mais visíveis e portanto estão mais sujeitas ao escrutínio do que as do enfoque monetário
(Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 20). Além da complexidade em operacionalizar o
conceito de capacidades, tem-se ainda o desafio de estabelecer medidas que permitam
comparações entre grupos diferentes, que partilham valores e normas culturais distintas,
muitas vezes irredutíveis umas às outras. Essa limitação também vale para o enfoque da
exclusão e para todas as abordagens que utilizam critérios adicionais ao de renda.
Portanto, o enfoque das capacidades parece padecer de uma curiosa situação: do ponto de
vista conceitual seus supostos o aproximam de uma concepção da pobreza entendida como
exclusão (Sen, 2000), quando se trata de mensuração, as limitações dos métodos fazem
com que tal enfoque sofra um encolhimento, reduzindo-se à mensuração no nível das
necessidades básicas. A perspectiva do desenvolvimento humano e do seu índice (IDH)
permite ilustrar o ponto. O enfoque do desenvolvimento humano decorre diretamente da
abordagem das capacidades. Forjado e divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o
89
Desenvolvimento (PNUD) a partir dos anos noventa, ele marca uma inovação importante
na abordagem do desenvolvimento. O eixo desse paradigma reside na constatação da
insuficiência do crescimento econômico em produzir, mecanicamente, maiores índices de
desenvolvimento social. Tal concepção rompe com um viés tradicionalmente
economicista, ao propor um desenvolvimento das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas,
e como componentes o aumento da produtividade, a procura da equidade e o compromisso
com a sustentabilidade. Combinada a essa diretriz, a noção de empowerment, traduzida
como empoderamento, reflete a preocupação com o capital social, enfatizando a
participação ativa das pessoas no próprio desenvolvimento.
Para mensurar os avanços e os desafios dos diversos países quanto à consecução dos
objetivos do desenvolvimento humano, o PNUD investiu na construção de índices
referenciais, como o Indice de Desenvolvimento Humano-IDH 75 , elaborado e divulgado a
partir de 1992 para 175 países, um sistema integrado de “medições sociais” e um
importante instrumento de desenho e orientação de políticas e programas sociais. Os
indicadores utilizados para caracterizar o desenvolvimento humano têm a vantagem de
permitir a comparação entre países, mas essa vantagem é também a causa principal de sua
insuficiência, pois a necessidade de dados comparáveis faz com que se adote indicadores
muito básicos e incapazes de refletir adequadamente o conceito de capacidades proposto
por Sen. O conceito de desenvolvimento humano, bastante ambicioso, sofre uma notável
redução na sua operacionalização, sendo mensurado a partir dos anos de vida, níveis de
escolaridade e do nível de renda 76 .
75
O IDH compreende, basicamente, três componentes: longevidade, conhecimento e padrão de vida. Todas
as pessoas devem poder desfrutar uma vida longa e saudável, adquirir conhecimento e ter acesso aos recursos
necessários a um padrão de vida decente. Como indicador de longevidade, utiliza-se a esperança de vida ao
nascer. Como indicadores de nível educacional, a taxa de alfabetização de adultos combinada com taxa de
matrícula nos ensinos fundamental, médio e superior e como indicador de acesso a recursos, a renda per
capita (Fonte: Relatório do Desenvolvimento Humano/ PNUD, 2004)
76
Essa limitação da medida do IDH é reconhecida por Sen: “Devo reconhecer que não via no início muito
mérito no IDH em si, embora tivesse tido o privilégio de ajudar a idealizá-lo. A princípio, demonstrei
bastante ceticismo ao criador do Relatório de Desenvolvimento Humano, Mahbub ul Haq, sobre a tentativa
de focalizar, em um índice bruto deste tipo - apenas um número -, a realidade complexa do desenvolvimento
e da privação humanos” (Relatório de Desenvolvimento Humano, 1996). Outros índices têm sido criados, na
tentativa de lançar luz sobre aspectos específicos das condições de vida em países diversos. O Indice de
Pobreza Humana, o IPH, é introduzido no relatório do Desenvolvimento Humano de 1997, e leva em
consideração “se as pessoas do mundo em desenvolvimento dispõem das escolhas e oportunidades básicas
que lhes permitam ter uma vida longa e saudável e gozar de um padrão de vida aceitável” (PNUD, 1997).
Desenvolvido para 78 países, o IPH pondera três variáveis: curta duração de vida (percentual da população
cuja expectativa de vida não atinge os 40 anos), falta de educação elementar (percentual da população que é
analfabeta), falta de acesso aos recursos públicos e privados (porcentagem das pessoas com falta de acesso
aos serviços básicos de saúde, água potável e nutrição razoável). Existem dois índices de pobreza humana:
90
No que tange à mensuração, tanto os estudos mais restritos sobre pobreza, que se limitam
ao uso de indicadores como baixa renda, até estudos que ampliam esse conceito, adotando
um enfoque mais abrangente, não conseguem de fato apreender outros aspectos da pobreza
que não os aspectos mais tangíveis. O enfoque das capacidades, embora centrado nas
condições materiais, tem abertura para incorporar dimensões da política e da cultura,
condição impensável para o enfoque monetário, preso a uma dimensão única do fenômeno
da pobreza.
2.4 Enfoque participativo: a subjetividade em cena 77
Os três enfoques – monetário, das necessidades básicas e das capacidades – fornecem
parâmetros objetivos e externos aos indivíduos para caracterizar situações de privação. A
noção de externo é definida a partir do uso de padrões adotados pelos pesquisadores para
avaliar a pobreza, externos aos indivíduos analisados. Outro enfoque sobre pobreza
(participatory poverty assessments) vem ganhando evidência crescente e utiliza métodos
qualitativos e centrados nas falas e interpretações dos pobres sobre sua condição de vida,
fazendo emergir a partir daí outra compreensão de fatores, dimensões e processos que
criam e reproduzem a pobreza em condições, lugares e tempos específicos. Nesse caso a
mensuração é feita a partir das definições dos próprios atores imersos nas condições de
pobreza.
A abordagem enfatiza o uso de métodos e técnicas qualitativas para apreender a visão dos
pobres sobre suas condições e sobre o que é necessário fazer para solucionar ou minimizar
a situação de privação. Essa abordagem não configura, propriamente, um enfoque teórico,
tendo sido forjada por pesquisadores do Banco Mundial 78 para complementar a análise
monetária da pobreza. Inicialmente restrito a projetos em pequena escala, em sua maioria
rurais, tal enfoque vem ganhando proeminência no interior de agências internacionais
como uma perspectiva complementar e necessária para analisar a pobreza. No relatório de
desenvolvimento mundial de 2000/2001, o Banco Mundial publicou uma pesquisa extensa
um relativo aos países em desenvolvimento (IPH 1) e outro (IPH 2) para países desenvolvidos, sendo que
varia, basicamente, os parâmetros das variáveis.
77
Esse enfoque participativo não foi trabalhado no capítulo anterior pelo fato de não se constituir, a nosso
ver, em uma concepção sobre pobreza, sobre o que a define, o que a produz, o que a faz permanecer. O
enfoque participativo não tem, digamos assim, conteúdo substantivo, configurando-se mais como ferramenta
metodológica, como uma perspectiva para a mensuração da pobreza. Dado o tema desse capítulo, justifica-se
a sua inserção aqui.
78
Um dos expoentes dessa perspectiva é R. Chambers, que em 1994 inicia essa abordagem (Laderchi, Saith,
Stewart, 2003, p.23).
91
que envolveu 60 países e cerca de 60 mil homens e mulheres 79 , denominada Voices of the
Poor. “The poor are the true poverty experts”, é a senha que marca tal enfoque.
Recentemente, políticas e estratégias de redução da pobreza do Banco Mundial e do FMI
consideram o uso de metodologias participativas como condição para empréstimos aos
países pobres (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p.23).
O enfoque da vulnerabilidade e riscos, bem como o enfoque da exclusão, caracterizam-se
pela abertura a dimensões menos tangíveis da pobreza, com o uso intensivo de métodos e
indicadores que buscam captar aspectos de natureza subjetiva, coletados através de
técnicas participativas. Configurando formas alternativas de mensuração da pobreza, tais
métodos são fortemente contextuais, e adotam o pressuposto de que as pessoas pobres
sabem, mais do que ninguém, analisar a própria realidade. Essa perspectiva, embora tenha
seus méritos, padece de uma certa ingenuidade ou, no mínimo, de uma recusa da
capacidade analítica dos pesquisadores, que abdicam de sua perspectiva para assumir como
verdade a perspectiva do que o outro diz sobre sua própria situação. Críticas mais
contundentes a esse enfoque salientam a dificuldade de escolher as vozes a serem ouvidas
em comunidades heterogêneas ou com divisões e conflitos internos, sendo que o uso de
tais métodos acabam por fortalecer vozes dominantes, ou favorecer relações sociais
existentes (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p.25). As críticas são também de outra natureza
e referem-se ao uso de técnicas subjetivas e ao uso de amostras pouco representativas da
população. Fica difícil, dessa forma, chegar a medidas estatísticas significativas ou
conseguir comparar realidades. Além disso, aceitar a visão do pobre sobre sua condição
como base para análise não pode significar passar por cima das condições objetivas da
pobreza.
Talvez seja preciso incorporar, nos métodos “objetivos”, a interpretação dos pobres sobre
sua condição, o que não significa adotar a definição deles do que seja pobreza. O uso de
enfoques participativos, contudo, poderia contribuir para resolver alguns problemas
encontrados nos outros métodos, uma vez que poderia permitir ajudar a validar o que pode
ser considerado mínimo para o consumo alimentar, qual seria o conjunto das necessidades
básicas ou os elementos que contam para identificar os excluídos sociais.
79
A pesquisa gerou três séries distintas de documentos: O primeiro - Can anyone hear us- ouviu 40 mil
homens e mulheres em 50 países. O segundo – Crying out for change – envolveu um outro trabalho de
campo em 23 países e o terceiro – From many lands – é o produto de um estudo de caso realizado em 14
países. Trata-se de um esforço considerável do Banco Mundial em inserir uma perspectiva qualitativa na
mensuração da pobreza.
92
2.5 Exclusão social: complexidade da mensuração
Para além de suas virtudes, a abordagem multidimensional da pobreza encontra
dificuldades de ser operacionalizada, tanto no enfoque das necessidades básicas quanto no
das capacidades ou no da exclusão. Uma pessoa pode ser pobre em apenas uma das
dimensões ou em relação a um número crítico de dimensões. Estudos sobre pobreza,
principalmente os que se utilizam de enfoques multidimensionais, têm mostrado que os
grupos de pobres e não pobres não configuram realidades estáticas ou bem delineadas,
sendo denominados como fuzzy sets (como afirmado por Chiappero Martinetti, apud
Barrientos e Sheperd, 2003, p. 14). Como estabelecer o corte? No campo conceitual,
embora muito se produza tendo como inspiração a concepção de exclusão, esta ainda não
encontrou um razoável consenso na literatura de maneira a subsidiar processos de
mensuração e distinção entre excluídos e não excluídos.
Alguns estudos de natureza empírica concentram-se na análise de situações concretas de
exclusão, sem se deter no emaranhado conceitual de questões de definição ou na busca de
uma concepção geral de exclusão social 80 . Tais estudos, a partir da definição da exclusão
como ausência de participação em aspectos chave da sociedade, se dedicam, na esteira dos
estudos de mensuração da pobreza e privação, a verificar empiricamente tais questões,
definindo indicadores e índices variados para medir a exclusão social. Tal perspectiva não
altera, de forma radical, as dimensões consideradas em enfoques anteriores, no registro dos
estudos de pobreza. A novidade talvez esteja, como visto, na ampliação do arco de
indicadores utilizados (Burchard, Le Grande e Piachaud, 2002, pp. 4, 5). De acordo com os
críticos do enfoque da exclusão, essa concepção, embora agregando um número maior de
indicadores para mensuração, estaria localizada na esteira dos estudos de mensuração da
pobreza e da privação, sem apresentar uma real novidade, pelo menos quanto à
mensuração da exclusão. Tal perspectiva insere, contudo, uma visão mais ampla da
pobreza, rompendo com a unidimensionalidade e abarcando outras dimensões e aspectos
das desvantagens ou destituições sociais; priorizando análises dinâmicas e não estáticas do
80
Estudos bastante instigantes têm sido realizados por diversas agências internacionais e centros acadêmicos
em todo o mundo sobre o tema da exclusão e diversas formas de expressão de situações de vulnerabilidade e
risco. Um exemplo é o Centro de Análise da Exclusão Social (Center of Analysys on Social ExclusionCASE) da London School of Economics, que apresenta um conjunto expressivo de publicações e pesquisas
em curso sobre o tema, com uso intensivo de dados longitudinais (Atkinson, Hills etc), dados urbanos
espaciais, métodos qualitativos e quantitativos de mensuração da exclusão social. Um dos focos dos estudos
consiste no exame da exclusão em áreas e espaços urbanos, o que configura um importante aporte para a
análise das situações de pobreza urbana.
93
fenômeno e alterando o foco do indivíduo para o nível da comunidade (Room, citado por
Burchard, Le Grande e Piachaud, 2002, p. 5). Amplia a compreensão do fenômeno, ao
articular dimensões objetivas e subjetivas, aspectos mais e menos tangíveis, expandindo o
arco de dimensões consideradas como relevantes na caracterização e explicação da
pobreza. Nenhuma dessas questões é tratada com centralidade nas concepções mais
tradicionais sobre pobreza. Isso em si, não é pouco.
A mensuração da exclusão avança em relação aos enfoques anteriores. Embora o foco na
ausência de recursos materiais permaneça central, têm-se outros fatores de exclusão discriminação, doenças crônicas, localização geográfica, identificações culturais,
fragilização ou ruptura de laços sociais – que precisam ser considerados na mensuração. O
uso da noção de exclusão social contribui para uma compreensão mais aprofundada da
privação, embora do ponto de vista da mensuração não exista de fato muita novidade em
relação ao que vem sendo feito há dezenas de anos com o uso de indicadores múltiplos de
privações, em estudos orientados para verificar correlações entre eles.
Entretanto, ao considerar a dimensão relacional, contextual e relativa à ordem social da
concepção de exclusão, um desafio nada trivial consiste em definir os limites pelos quais
se demarcam os excluídos em sociedades particulares, especialmente em países em
desenvolvimento ou em sociedades tradicionais, nas quais as desigualdades e os sistemas
de castas naturalizam a exclusão. Definir os marcos da normalidade para então se demarcar
as fronteiras da exclusão pode ser uma tarefa impossível e vários estudos empíricos em
países em desenvolvimento têm adotado uma variedade de enfoques, sem uma devida
problematização ou justificativa da escolha particular, ou mesmo sem ter como referência
o que é considerado “normal” nas diferentes sociedades (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p.
22).
Examinando estudos empíricos sobre a mensuração da exclusão em países em
desenvolvimento, Saith reconhece uma grande diversidade de abordagens e de usos de
indicadores diversos. Nos estudos sobre a Índia, por exemplo, onde 83% da força de
trabalho está na economia informal e apenas 14% tem salário regular e estabilidade de
benefícios, outros critérios e variáveis têm sido utilizados (Appasamy et al; Nayak, apud
Saith, 2001) e enfatizam a exclusão em termos de direitos de bem estar básicos (saúde,
educação, moradia, acesso a água potável, serviços sanitários e seguridade social,
desagregados por gênero, idade, nível de renda, religião e casta). Outra pesquisa enfatiza a
exclusão de bens básicos devido à baixa renda, a exclusão do emprego e a exclusão de
94
direitos, focalizando situações de trabalho infantil e exclusão via castas (Nayak, apud
Saith, 2001). No estudo sobre a exclusão social no Peru (citado por Saith), considerou-se
três dimensões, econômica, política e cultural, agregando indicadores diversos: acesso ao
mercado de trabalho, a crédito e seguros, direitos de propriedade e direitos de proteção
social e acesso a serviços públicos básicos (saúde, educação e justiça) e exclusão cultural
(participação em redes sociais). Em um outro conjunto de estudos da Organização
Internacional do Trabalho (ILO), os grupos em risco de exclusão são definidos a priori, e
incluem uma diversidade de coletivos possíveis 81 .
Saith destaca, ao identificar a variedade de estudos de mensuração da exclusão em países
em desenvolvimento, que não há uma convergência clara entre as dimensões consideradas
e o que deve ser considerado em cada uma delas. As realidades são distintas e, dada a
multiplicidade de carências e a baixa capacidade de discriminação da dimensão do trabalho
para caracterizar a exclusão em países em desenvolvimento (dada pelo contingente
expressivo de desempregados e pela estrutura do mercado de trabalho), a mensuração da
exclusão nesses países é muito parecida com os estudos orientados por uma concepção
multidimensional de pobreza (Saith, 2001, p.9).
O cerne da crítica de Saith quanto ao conceito de exclusão – entendido da forma utilizada
nos países da Europa, com referência às dimensões do trabalho e do estado de bem estar
social – reside na tentativa de adaptá-lo ao cenário dos países em desenvolvimento. Nesses
contextos, a mensuração da pobreza não pode se ampliar para além de formas mais
consolidadas de medir a pobreza e nesses casos são utilizados, de forma predominante,
enfoques das necessidades básicas insatisfeitas, das capacidades, do desenvolvimento
humano, vulnerabilidade e risco social.
Vale salientar, concordando com Saith, que o enfoque das capacidades tem uma ampla
aplicação em países desenvolvidos e em desenvolvimento, e sua operacionalização vai
além das necessidades básicas, podendo capturar aspectos de auto-estima, identidade,
dignidade, liberdade e auto-respeito, categorias centrais na perspectiva de Sen. Mas nos
casos dos países em desenvolvimento, com tantas privações básicas, a mensuração tem se
81
Como na Tanzânia urbana, mendigos, cortadores de pedras, traficantes, comerciantes de rua, vendedores
de alimentos nas ruas, cortadores de peixe, trabalhadores casuais. Nos grupos rurais da Tanzânia, os
excluídos referem-se aos sem terra ou com acesso precário a ela e o não acesso a fertilizantes. Na Rússia, a
exclusão é mensurada a partir do desemprego a longo prazo, salário do estrato social médio, e proporção de
moradores em zonas rurais. Na Tailândia, os grupos excluídos são formados por minorias étnicas, mulheres,
doentes, camponeses com pouca educação, trabalhadores do setor informal e pessoas sem casa, vivendo
debaixo das pontes (Saith, 2001).
95
restringido às capacidades mais básicas (Saith, 2001, p.12). A adoção de parâmetros de
mensuração relativos é pertinente em países desenvolvidos, mas no caso dos países em
desenvolvimento, ainda tem sentido adotar padrões absolutos para medir privações, tais
como os enfoques das necessidades básicas e, de certa forma, o enfoque das capacidades.
Isso quer dizer que adotar a característica de relatividade do conceito de exclusão para
pensar realidades tais como a brasileira, com altos e múltiplos níveis de privações, pode ser
dispensável. Entretanto, não estamos no Brasil na mesma situação de diversos países da
África, por exemplo, que se encontram, de forma mais homogênea, no nível de ampla
insatisfação de necessidades básicas. No caso do Brasil, as grandes diferenças regionais e
intra-regionais demandam e justificam o uso de critérios relativos de mensuração, capazes
de capturar, de forma mais clara, as dimensões da desigualdade.
2.6 Vulnerabilidade e riscos: a matriz de riscos e a mensuração do empoderamento
A abordagem da vulnerabilidade e riscos aumenta a complexidade da mensuração da
pobreza, ao agregar, além das dimensões objetivas de privações, aspectos de resiliência e
sensitividade. Por outro lado, esse enfoque permite ultrapassar as dificuldades decorrentes
de uma concepção multidimensional da pobreza, ao focar os ativos, que permitem um
ponto estável para construção de parâmetros para mensuração. A abertura para estratégias
mais qualitativas possibilitaria capturar a visão dos pobres sobre suas necessidades e
potencialidades, e dar voz às suas reivindicações.
Um viés importante da abordagem de livelihood é que, ao reconhecer a diversidade de
ativos os quais as pessoas lançam mão para fazer frente aos riscos, dificulta dizer de
antemão que ativos seriam mais centrais. As matrizes de risco consolidam a leitura dos
riscos, sendo organizadas segundo lógicas distintas em diferentes lugares 82 . Considera-se
que os riscos estão associados a condições próprias do ciclo de vida e a condições do meio
familiar, comunitário, social e econômico, configurando matrizes de vulnerabilidades que
mapeiam, por um lado, fatores individuais e, por outro, dimensões mais coletivas, como
famílias e comunidades.
82
A matriz elaborada pelo FOSIS (Fondo de Solidaridad e Inversion Social),
por exemplo, situa
necessidades e riscos a partir de faixa etária ou ciclos de vida e contempla a identificação dos principais
riscos em cada faixa e de suas formas de expressão; as condições para reduzir a exposição aos riscos e a
presença de fatores protetores que incidem sobre o nível de vulnerabilidade; os indicadores de proteção; o
mapa das oportunidades (ações, programas e projetos que atuam na prevenção, mitigação ou superação)
(Carneiro e Veiga, 2004, pp. 10-12).
96
Vulnerabilidade situa-se, como vimos, a partir da dimensão de exposição ao risco e da
capacidade de resposta, material e simbólica, que indivíduos, famílias e comunidades
conseguem fornecer para fazer frente ao risco ou ao choque (que significa a materialização
do risco). São múltiplos os fatores de riscos, que atuam de forma interdependente e em
interação complexa. Tem-se, como básico, que a vulnerabilidade consiste em uma soma de
vulnerabilidades diversas. A baixa renda, a ausência ou precariedade de trabalho, acesso
precário a serviços básicos e a condições básicas de vida constituem elementos produtores
de vulnerabilidade. As relações sociais, que envolvem as relações com os agentes públicos,
meio comunitário e familiar, conformam outro importante ativo, nos termos de Moser. A
partir dessa perspectiva entende-se que “incluir” significa melhorar as condições materiais
das pessoas, famílias e comunidades; melhorar o acesso a serviços públicos básicos;
viabilizar a melhoria da infra-estrutura do território; promover alteração nas dimensões
psico-sociais;
ampliar as capacidades, entendidas aqui sob a perspectiva do capital
humano e capital social.
Ao considerar a perspectiva da vulnerabilidade e, principalmente, do portfólio de ativos e
dos modos de vida, tem-se uma conexão com a questão do empoderamento, entendido
tanto como o processo quanto o resultado do fortalecimento da capacidade de resposta dos
indivíduos e grupos, e da ampliação da capacidade destes fazerem escolhas efetivas e de
transformarem escolhas em atos e resultados (Alsop, 2005). Considerar essa perspectiva
implica mensurar tanto a dimensão dos ativos (nível dos indivíduos, domicílios e
comunidades) quanto as estruturas de oportunidades que permitem transformar a escolha
em ações efetivas 83 .
O ponto é que a adoção de formas de mensuração capazes de mensurar processos
complexos como os processos de empoderamento não é algo simples, mas também não
representa uma impossibilidade, além de ser necessário para intervenções com metas e
objetivos mais claros. Indicadores objetivos de empoderamento podem ser elencados, tais
como aumento da escolarização, acesso a crédito, poupança, aumento de renda e melhoria
das condições de saúde etc. Indicadores que buscam capturar outro nível de mudanças,
mais qualitativas em sua natureza, requerem medidas indiretas que permitam verificar
alterações no âmbito subjetivo e relacional, de natureza mais intangível, mas possível de
ser considerado na mensuração. Para delimitar um modelo de análise e de mensuração
83
Por exemplo, não adianta muito ampliar a capacidade das pessoas fazerem escolhas se não existem
estruturas de oportunidades (entendidas como regras e instituições formais e informais) que tornem possível
efetivar as escolhas, transformar agência (como capacidade de agir) em ação efetiva (resultados).
97
pertinente para o tema do empoderamento, Ruth Alsop (2005) reconhece distintos graus de
empowerment
que se manifestam em diferentes domínios - do Estado, mercado e
sociedade -, em vários subdomínios: justiça, política e entrega de serviços (no caso do
domínio do Estado); quanto ao crédito, trabalho e bens (no caso do domínio do mercado) e
no âmbito da família e da comunidade (no caso do domínio da sociedade). Além dos
diferentes domínios e subdomínios, a autora reconhece diferentes níveis nos quais as
pessoas experimentam empoderamento: local, intermediário e nível macro. Esse arcabouço
permite analisar processos e resultados quanto ao aumento da capacidade de escolha das
pessoas e as estruturas de oportunidades, entendidas como características do contexto, que
permitem efetivá-las e produzir resultados. O que fica evidente, nessa perspectiva, é a
dificuldade de se encontrar medidas universais de empoderamento, uma vez que estas são
relativas aos contextos e por eles determinadas.
O tema da mensuração encontra seu sentido maior quando se relaciona com a questão da
focalização, estando assim situado no plano mais específico das estratégias e ferramentas
de intervenção no campo de formulação e avaliação de políticas públicas, identificando os
usuários das políticas de proteção social, os sujeitos e objetos das políticas de inclusão
social. Nesse ponto tem-se que, para cada visão da pobreza, identifica-se um conjunto de
pessoas, grupos ou regiões, conforme o modelo e o arcabouço de mensuração, e que esses
conjuntos não são os mesmos.
O sentido maior do esforço até aqui desenvolvido consiste em situar, a partir da análise da
literatura, o conjunto de dimensões e processos que configuram o arcabouço conceitual à
partir do qual possa-se definir que alternativas e desenhos são mais adequados, pertinentes
e eficazes. O que cada abordagem aporta para estruturar um modelo, ou melhor, uma
hipótese de trabalho, sobre os elementos constitutivos básicos de uma política de inclusão
social adequada aos problemas da população urbana de grandes metrópoles, em países com
grande incidência de pobreza e indigência, notável e estável desigualdade, com uma
posição não central nos processos de globalização?
O que se quer enfatizar aqui é que existem tantas formas e resultados da mensuração
quanto são as concepções sobre o que é a pobreza. Diferentes enfoques identificam
dimensões distintas, salientam aspectos da realidade como mais legítimos e adequados de
serem considerados na mensuração do fenômeno, enquadrando as diversas situações de
privações sob certas matrizes cognitivas e também valorativas e assim delimitam a
realidade, construindo-a como objeto de análise e de intervenção social.
98
Não se trata, contudo, somente de uma disputa teórica ou metodológica, uma vez que
diferentes enfoques e formas de mensuração que lhes são correspondentes conduzem à
seleção de grupos distintos de beneficiários, o que impacta fortemente não apenas o
processo de focalização mas também a
proposição de alternativas de solução. Que
implicações ocorrem no campo das políticas sociais quando se considera a
multidimensionalidade da pobreza, quando se afirma sua heterogeneidade e a presença de
elementos de natureza mais propriamente sociológica em sua produção e reprodução? Esse
ponto será retomado adiante, no capítulo 5. Por agora importa reter que a questão da
mensuração extrapola o âmbito de interesse especificamente metodológico e remete ao
tema das políticas públicas pela via da focalização, da identificação de quem são os pobres
e de como deve ser feita a distinção entre pobres e os não pobres de forma a identificar o
público alvo das políticas de proteção voltadas para pobreza crônica. A parte seguinte do
trabalho é orientada para o exame da pobreza como problema para a ação, para as políticas
públicas.
99
PARTE II – A POBREZA COMO DESAFIO PARA AS POLITICAS PÚBLICAS
Na primeira parte, a pobreza foi focalizada do ponto de vista conceitual, como um objeto
que ainda desafia o conhecimento nas ciências sociais. A segunda parte concentra-se no
exame da pobreza do ponto de vista das políticas públicas, a partir de uma discussão, sem
dúvida não exaustiva, das políticas de proteção social e, principalmente, de enfrentamento
da pobreza.
No primeiro capítulo partiu-se do exame de distintas concepções sobre pobreza,
identificando as categorias relevantes em cada enfoque ou abordagem. Cada concepção
constrói (no sentido metodológico de construção do problema do conhecimento) a pobreza
sob uma perspectiva, colocando luz em determinados aspectos e deixando outros
elementos ocultos, não problematizados. A cada enfoque corresponde uma forma de
operacionalização, uma certa compreensão de como a pobreza pode ser mensurada, objeto
do segundo capítulo. Uma vez identificado o “mal”, tem-se que ter o remédio adequado
para seu enfrentamento, nas palavras de Fanfani, o que remete à segunda parte do trabalho:
toda estratégia de intervenção tem implícita ou explícita uma “teoria” ou uma visão
construída sobre o problema, que fornece o arcabouço para a ação.
Na segunda parte do trabalho o eixo reside no exame das políticas de enfrentamento da
pobreza, identificando elementos que inspiram as diferentes alternativas e modelos de
proteção social (capítulo 3) e elencando aspectos do processo de produção de políticas de
proteção social que têm impactos no desenho de estratégias para o enfrentamento da
pobreza e da exclusão. Destaca-se aí a centralidade do nível local de gestão (capítulo 4).
É a partir do mapa construído a partir dos dois percursos, realizados na primeira e segunda
parte do trabalho, que se pode identificar elementos e categorias analíticas que decorrem,
por um lado, do uso de concepções mais amplas sobre pobreza
e, por outro, das
considerações sobre a produção de políticas no cenário contemporâneo. A perspectiva da
intersetorialidade, a ênfase no empoderamento e na autonomia e a temática do
território são elementos que se combinam a considerações de natureza política e
institucional e que conformam o arcabouço analítico sugerido para o exame de
experiências empíricas de estratégias locais de enfrentamento da pobreza. O capítulo 5
apresenta uma síntese das categorias identificadas previamente e o capítulo 6 constitui
uma ilustração empírica das discussões anteriores, desenvolvidas na primeira e segunda
parte do trabalho.
100
CAPITULO 3: POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL E COMBATE
DISTINTAS CONCEPÇÕES E MODELOS DE INTERVENÇÃO
À
POBREZA:
O objetivo desse capítulo é situar o debate sobre as alternativas de políticas e estratégias de
proteção social 84 e de combate à pobreza que estão sendo delineadas e efetivamente
implementadas, como um primeiro passo para problematizar a questão da pobreza
enquanto objeto das políticas públicas.
Procura-se aqui identificar os elementos que compõem a proteção social no âmbito
europeu 85 e latino-americano, no sentido de ampliar o conhecimento sobre o que existe,
em termos de componentes das políticas, sob essa denominação de proteção social,
identificando as ações voltadas para os públicos mais vulneráveis, ou para a pobreza
crônica, que estão designadas, geralmente, como do âmbito da assistência social.
3.1 Estados de bem estar: configurações e tendências de distintos modelos de
proteção social na Europa e América Latina
A temática dos modelos, sistemas e regimes de bem estar é inevitavelmente importante
para análise das políticas de combate e superação da pobreza, uma vez que as políticas
sociais constituem as respostas desenvolvidas pelo Estado para fazer frente aos problemas
da pobreza, vulnerabilidade e desigualdade social. Nas palavras de F. Filgueira (2005)
“Las políticas sociales pueden ser definidas de múltiples maneras. Aquí siguiendo a
Esping Andersen se considera que las mismas son instrumentos y dispositivos de
desmercantilización y desfamialirización estructurados en torno a principios de
necesidad, estamento o ciudadanía y operativizados en base al esfuerzo social
organizado con el estado como el actor privilegiado para dar respuesta a las
necesidades sociales de la población. Entre ellas se distinguirán aquí al menos cuatro
grandes sectores que tradicionalmente estructuran los esfuerzos nacionales en políticas
sociales: educación, salud, pensiones, y asistencia social, las cuales se complementan y
pujan entre sí por recursos, y que históricamente no siguen el mismo recorrido ni se
mueven en las mismas arenas político institucionales” (F. Filgueira, 2005).
O debate sobre esse tema, contudo, é bastante extenso e complexo para ser reproduzido
aqui em sua amplitude, o que superaria o espaço disponível nesse trabalho.. A perspectiva
que orienta o nosso olhar é mais restrita e não se pretende aqui uma discussão ampla sobre
84
É preciso deixar claro, novamente, que não existem definições consensuais sobre o que está contido no
termo proteção social, sendo que esse conceito é permeado por valores, culturas, estruturas políticas e
institucionais que afetam o que a proteção social engloba em diferentes contextos.
85
Essa parte tem como base um estudo cross survey sobre as redes de segurança social em nove países
europeus (Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Itália, Portugal, Reino Unido, Suécia), que fornece
informações valiosas para entender o estágio atual dos sistemas de proteção social nessa região e os desafios
enfrentados (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005). Esse trabalho servirá de base da presente exposição,
dada sua abrangência, atualidade, qualidade e pertinência ao tema aqui tratado.
101
os modelos e tipologias existentes, histórico e tendências das configurações institucionais
dos modelos de Welfare State, mas salientar apenas alguns pontos que podem ser mais
diretamente relacionados ao eixo principal do trabalho. Uma vez que pretendemos olhar
“mais para dentro” das políticas de proteção social (especificamente políticas de combate à
pobreza), salienta-se na tese mais as dimensões do marco conceitual das estratégias de
intervenção do que seus aspectos históricos, políticos e institucionais, que constituem a
ênfase de grande parte do debate sobre Estados de Bem Estar Social. Entretanto, não é
possível delimitar um campo de análise da pobreza do ponto de vista das políticas públicas
sem identificar os principais elementos do debate sobre modelos, sistemas e regimes de
bem-estar.
3.1.1 Modelos de Bem Estar: tipologia básica
As políticas sociais emergem timidamente nos fins do século XIX e ganham corpo a partir
da segunda metade do século XX, como um conjunto coerente de intervenção do Estado na
garantia de direitos sociais. Esse esforço de organização da ação social do Estado tem
profundas implicações na estrutura e dinâmica social: “A partir de los modelos de
protección y más generalmente de las politicas sociales se está, constantemente,
redisenando la composición de la estructura social en términos de la distribución de poder
y de recursos” (Fleury e Molina, 2000, p. 28). Os diferentes sistemas de bem estar
espelham visões distintas sobre a realidade da pobreza, suas causas e características, sobre
o papel do Estado na produção do bem estar, as relações necessárias e adequadas com o
mercado e com a sociedade civil, uma certa visão de mundo sobre as relações entre
indivíduo e sociedade, uma dada conjugação de forças e grupos de interesses de tipos
diversos, em dinâmicas institucionais complexas e específicas. A tipologia elaborada por
E. Andersen 86 (1991) continua válida como referência para a compreensão dos distintos
modelos de Estados de Bem Estar Social que emergiram nesse momento (meados do
século XX) na Europa e Estados Unidos.
O modelo liberal de Welfare State enfatiza uma intervenção seletiva, limitada no tempo,
para aqueles comprovadamente necessitados. Com caráter residual, as políticas vêm ex86
Esping-Andersen identifica diferentes regimes de Estados de Bem Estar, a partir dos arranjos diferenciados
existentes entre o Estado, mercado e a família. O primeiro tipo, liberal, enfatiza assistência mediante a
comprovação da carência, com transferências modestas e também modestos planos de seguros. Outro tipo,
de caráter corporativo, se caracteriza pela manutenção de status diferenciado e a vigência de direitos
acoplados a diferenciais de classes e status. O terceiro tipo, social democrata, segue os princípios do
universalismo e busca a igualdade em padrões altos e não uma igualdade em termos de necessidades mínimas
(Esping-Andersen, 1991).
102
post, quando os canais “naturais” de satisfação de necessidades mostram-se insuficientes.
As políticas de proteção nessa perspectiva buscam prover o padrão de vida mínimo para
aqueles que não conseguem se inserir no mercado. Nesse regime os benefícios são
focalizados, operando uma distinção entre deserving poor e underserving poor, sendo os
primeiros os inválidos, incapacitados para o trabalho e os últimos considerados como tendo
potencial de inserção no mercado, para quem os benefícios são menores. Nesse modelo
(cujo exemplo típico é os Estados Unidos), geralmente, os benefícios apresentam valores
mais baixos (World Bank, 2003, p. 6).
Uma segunda forma (ou tipo ideal) de Welfare State apresenta caráter corporativo,
meritocrático ou particularista, de cunho conservador, sendo os benefícios aplicados para
categorias selecionadas, principalmente pelo corte ocupacional (caso da França e
Alemanha e marca da “cidadania regulada” vigente no Brasil até fins dos anos oitenta).
O terceiro tipo, predominante nos países de tradição social-democrata, é o sistema de bem
estar universal, previsto para todos, sob a ótica da equidade e solidariedade, sendo a Suécia
a referência desse modelo. Uma concepção universalista de direitos sociais coaduna-se
com a busca de maior igualdade via políticas de Estado, com ênfase nos mecanismos
redistributivos. Sua premissa básica é que o mercado não é capaz de realizar, deixado à sua
própria dinâmica, uma alocação de recursos que elimine a pobreza e a desigualdade. De
forma geral os benefícios são universais e com valores relativamente altos, voltados para
indivíduos mais do que para domicílios. Não se utiliza muito o sistema de verificação de
renda para discriminar receptores de benefícios de seguro e de assistência social 87 . Em
alguns casos, há uma atuação ativa do Estado voltada para desenvolver programas
relacionados ao mercado de trabalho.
Olhando não apenas do ponto de vista das estruturas do Estado de Bem Estar mas em
termos da composição da proteção social, tem-se, de forma mais abrangente, uma
distinção básica entre benefícios contributivos (aposentadoria, seguro desemprego,
enfermidade funcional, ligados a riscos diretamente relacionados com o mercado de
trabalho) e não contributivos, que cobrem uma gama ampla de ações 88 . Os benefícios não
contributivos incluem renda mínima, benefícios de moradia, benefícios familiares
(universal ou verificação de carência), benefícios para atenção à criança, benefícios para
87
Embora com o aumento do desemprego essa situação esteja mudando, estando os sistemas se orientando
em direção a critérios de verificação de carência (means tested) para concessão dos benefícios, uma vez que
benefícios universais têm estado sob pressão (World Bank, 2003, p. 7) .
88
Esses componentes variam de país para país e mesmo de região para região no âmbito da OECD.
103
pais solteiros e benefícios condicionais de emprego. A assistência social 89 é apenas uma
parte desses conjuntos de benefícios não contributivos:
“A assistência social focalizada com base na renda, na Europa Continental, é o
instrumento de proteção social de último recurso. Ela fornece uma rede de segurança
para todos aqueles que já caíram pela bem construída rede de provisões de outros tipos
de proteção social” (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p.37).
De acordo com Neubourg, Castonguay e Roelen, têm-se outras distinções possíveis entre
os componentes dos sistemas de proteção que não reconhecem apenas dois tipos de
benefícios ou componentes - contributivos e não contributivos -, mas três: intervenções
voltadas para o mercado de trabalho 90 , iniciativas orientadas pela perspectiva do seguro
social, que se refere aos sistemas de benefícios contributivos, e assistência social, também
denominada por social safety nets. A última é definida como o conjunto de benefícios
monetários ou em espécie que são repassados a partir de critérios de elegibilidade pautados
por alguma linha de focalização (World Bank, 2003, p. 3). É problemático considerar a
assistência social sem ter em conta as outras políticas de proteção, constituídas pelos
benefícios contributivos e pelas intervenções no mercado de trabalho. Mas o que
geralmente se faz, tanto no campo do conhecimento quanto no campo da ação, é localizar o
problema da pobreza, principalmente a pobreza crônica, no âmbito da assistência e
focalizar as políticas para superar a pobreza que são aí desenvolvidas.
Os programas de assistência social, nos países de economia avançada, constituem uma
parte, pequena, marginal, de um amplo sistema de proteção, que inclui benefícios
universais e generosos. Esse é um ponto que deve ficar bem marcado quando se pretende
contrapor estratégias de enfrentamento da pobreza crônica (e exclusão) na América Latina
e Europa. No Brasil, a política social de transferência de renda, maior política distributiva
desenvolvida até então, atende a mais de sete milhões de famílias, tendo como base a
verificação de carência e exigências de contrapartidas 91 .
Para se ter uma visão mais adequada do lugar da assistência social no conjunto da proteção
social no modelo europeu, tem-se que ter claro a magnitude do gasto social nesses países.
89
Programas não contributivos de assistência social de apoio à renda para os pobres é o termo utilizado para
identificar as redes de segurança social (social safety nets) (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005)
90
Políticas de criação de empregos, regulamentação, incentivos, informação, formação etc.
91
O Bolsa Família, o mais importante programa de transferência de renda no país, atende 7,3 milhões
famílias beneficiárias, com renda per capita de até R$ 100, em 5.542 municípios. O programa beneficia 12,9
milhões de crianças e adolescentes, com idades entre 6 e 15 anos (dados do site do MDS, em 22 de julho de
2005). Verificação de carência refere-se à necessidade comprovação da condição de pobreza como critério
de acesso ao benefício e condicionalidade refere-se ao conjunto de exigências que são feitas ao beneficiário
em troca do recebimento do benefício (manter filhos na escola, vacinação e cuidados básicos de saúde em
dia, manter-se ativo para buscar trabalho etc. ).
104
Quando se observa o desempenho da proteção e o volume de gastos, percebe-se de forma
clara a orientação dos sistemas de proteção da Europa Continental 92 . Esse gasto é superior
a 31% do PIB na Suécia, entre 20 e 30% para os demais países da Europa; já nos Estados
Unidos, o gasto é menor que 15% do PIB.
Cobertura ampla e benefícios altos caracterizam o padrão vigente na Europa Continental
(95% dos benefícios são universais), em comparação com Estados Unidos. A assistência
social não contributiva apresenta uma participação tímida no conjunto dos gastos sociais,
cerca de 1,5% nos países europeus 93 . Os gastos com benefícios focalizados como
proporção dos gastos sociais totais totalizam 40% nos Estados Unidos, cerca de 32% Reino
Unido e perto de 20% no Canadá. Para outros 10 países da Europa e Japão, os gastos
focalizados não chegam 10% do total de gastos sociais (Neubourg, Castonguay e Roelen,
2005, p.13).
Programas de assistência social com verificação de renda assumem formas diversas em
diferentes países, e diferentes tipologias são construídas no sentido de identificar padrões e
conformações institucionais distintas. Neubourg, Castonguay e Roelen (2005), por
exemplo, distinguem entre procedimentos de apoio, procedimentos seletivos ou
procedimentos inclusivos.
Nos procedimentos de apoio, têm-se benefícios universalmente acessíveis, garantidos
como direitos e em um nível generoso, com ênfase na inserção ou reintegração dos
beneficiários no mundo do trabalho. Os países como Bélgica, França, Alemanha, Holanda
e Suécia pertencem a esse grupo. Nos procedimentos seletivos, existe uma forte pressão
para a vigência de mecanismos de solidariedade dentro e entre as famílias, com alto poder
discricionário do poder local no desenho e implementação do sistema, com o
financiamento sob a responsabilidade dos níveis regionais e locais, com grandes diferenças
entre os países. Itália, Espanha e Portugal pertencem a esse grupo. Nesses países, a
assistência social é menos residual do que na Alemanha e França, e as outras partes dos
sistemas de proteção também são menos amplas quando comparadas com os sistemas
existentes em países como Bélgica, Suécia ou Dinamarca. O procedimento inclusivo, por
92
Não apenas o volume dos gastos varia. As diferenças na ênfase dos benefícios são expressivas. Na
Espanha, aparece o alto gasto com benefícios aos desempregados, enquanto que na Itália grande parte do
gasto é para idosos e sobreviventes de guerra. Na Suécia, Portugal e Holanda cerca de 12% do gasto é com
benefícios pagos aos portadores de necessidades especiais e França, Suécia e Bélgica enfatizam os benefícios
pagos a famílias e crianças (Neubourg, Castonguay, Roelen, 2005, p. 3).
93
Não custa enfatizar que a participação pequena e residual dos programas de assistência social nesses paises
deve-se, em parte, ao bom funcionamento dos serviços universais de educação e saúde, que atuam como
redes de segurança anteriores à entrada da assistência social com verificação de renda.
105
sua vez, tem uma grande parte do sistema de proteção voltada para os pobres, com maior
centralidade a verificação de carência, como o que ocorre no Reino Unido (Quadro 6).
Quadro 6 – Tipologia dos sistemas de assistência social focalizada na Europa,
segundo Neubourg, Castonguay e Roelen
Tipos de sistemas de
assistência social
procedimentos
de
apoio
procedimentos
seletivos
procedimentos
inclusivos
Princípios e benefícios
países
benefícios universalmente acessíveis, garantidos
como direitos a todos os cidadãos e em um nível
generoso, com ênfase na inserção ou reintegração
dos beneficiários no mundo do trabalho.
forte pressão para a vigência de mecanismos de
solidariedade dentro e entre as famílias. Alto poder
discricionário do poder local no desenho e
implementação do sistema, com o financiamento sob
a responsabilidade dos níveis regionais e locais, com
grandes diferenças entre os países.
grande parte do sistema de proteção voltada para os
pobres, tendo centralidade a verificação de carência.
Bélgica, França,
Alemanha, Holanda e
Suécia
Itália, Espanha e Portugal
Reino Unido
Elaborado pela autora a partir de Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005
Uma outra classificação dos sistemas de proteção é proposta por Fleury e Molina (2000,
pp. 6,7) e estabelece distinções entre modalidades de proteção do tipo assistência social,
seguro social e seguridade social. O primeiro tipo puro assenta-se em uma perspectiva
residual da proteção, sustentada pelo princípio da caridade e pela ideologia liberal. Para
aqueles que “fracassaram”, tem-se um conjunto de ações, freqüentemente fragmentadas e
pontuais, com uma cobertura focalizada, voltada para grupos vulneráveis ou focos de
pobreza. A cidadania invertida se expressa no fato de os indivíduos tornarem-se objeto da
ação pública somente a partir de seu próprio fracasso social (Fleury e Molina, 2000, p. 8).
No modelo de seguro, denominado também meritocrático, tem-se o princípio da
solidariedade 94 e a ideologia corporativa, com a cobertura dada pelos critérios
ocupacionais, base da cidadania regulada, estruturada a partir da inserção dos indivíduos
na estrutura produtiva. No tipo de seguridade social, do tipo institucional, tem-se o
princípio da justiça e a ideologia da social democracia, com os benefícios alinhados com a
perspectiva dos direitos - cidadania universal - e não vistos de forma desqualificante
(assistência) ou como privilégios (seguro).
94
Deve-ser ressaltar aqui que esta noção de solidariedade se refere à solidariedade entre uma mesma classe e
grupo, mais do que um princípio que tenha como referência a sociedade como um todo e um pacto interclasses, em uma concepção mais republicana (e durkheimiana) da noção de solidariedade.
106
Quadro 7 – Tipologia dos sistemas de proteção segundo Fleury e Molina
componente
Assistência
social
Seguro social
Princípios e tipos
Principio da caridade e pela ideologia liberal.
Tipo liberal. Cidadania invertida
Principio da solidariedade e a ideologia
corporativa. Tipo meritocrático. Cidadania
regulada
Seguridade
Principio da justiça e a ideologia da social
social
democracia. Tipo institucional. Cidadania
universal
Elaborado pela autora a partir de Fleury e Molina, 2000
Benefícios e cobertura
Perspectiva residual da proteção
Cobertura dada pelos critérios
ocupacionais
Benefícios alinhados com a perspectiva
dos direitos
A tipologia acima apresentada não se distancia das anteriores. Pode-se dizer que existe um
relativo consenso na literatura quanto à utilização de uma tipologia que reconhece três
modelos básicos de proteção social que são suficientes para identificar as experiências de
sistemas de bem estar na Europa: um de matriz universalista, outro residual e um terceiro
de base corporativa ou ocupacional. Na América Latina, a realidade apresenta-se mais
matizada.
3.1.2 O sistema de Bem Estar na América Latina e Brasil
Na América Latina não se pode, a rigor, afirmar a existência de estados de bem estar da
mesma forma que ocorreu nas democracias capitalistas avançadas. Como salienta Bryan
Roberts, na América Latina, mesmo nos países que procuram viabilizar sistemas de
cobertura ampla, os níveis de seguridade social alcançados não são comparáveis nem
mesmo ao existente nos países avançados que adotaram modelos de tipo liberal, no qual o
Estado tem a participação mais reduzida (Roberts, 1997, p. 9).
Na América Latina os modelos de proteção social ganham corpo nas décadas de 40, 50 e
60, a partir do desenvolvimento de políticas setoriais, guiadas pelo governo e planejadas e
executadas de forma centralizada (Raczynski, 1999, pp. 172,173) 95 . Entre os anos 30 e 40,
a América Latina desenvolveu uma profunda alteração na sua base produtiva e em sua
organização social. Processos de urbanização, industrialização e a fratura de uma ordem
tradicional de base agrária constituem o cenário para
a emergência dos sistemas de
políticas sociais, fortemente orientados para o setor urbano e para trabalhadores vinculados
ao mercado formal de trabalho (Raczynski, 1999, p. 174; Filgueira, 1999, p. 80).
95
Fleury e Molina apontam, entretanto, que alguns países da América Latina contavam, já a partir dos anos
20, com “fortes e complexos mecanismos de engenharia política e institucional no campo do seguro ou da
seguridade social, antecedendo os Estados Unidos e países nórdicos”.Os autores citam, reproduzindo MesaLago, países como Uruguai, Argentina, Brasil, Chile e Cuba, que desde os anos 20 começaram a estruturar
medidas de proteção social (Fleury e Molina, 2000, p. 11)
107
Altamente permeável a segmentos organizados da sociedade (como classe média,
funcionários públicos, trabalhadores urbanos, burguesia industrial etc), que pressionavam
para o acesso diferenciado aos benefícios disponíveis, esse modelo gerou um esquema
segmentado, fragmentado e com benefícios muito diferenciados, destinados a grupos
específicos (Raczynski, 1999, pp. 173,174; Roberts, 1997, p. 10). A estratificação é a
marca do sistema na maioria dos países latino americanos, sendo que grande parte da
população se encontra excluída dos benefícios da seguridade social, por não estar
vinculada ao mercado formal de trabalho. Nos sistemas de base contributiva, os benefícios
são fortemente determinados pela atuação de grupos de pressão e elites burocráticas
(Fleury e Molina, 2000, p. 15). A expansão do sistema também foi marcada pela
segmentação, privilegiando grupos com organizações mais fortes, que obtiveram mais e
contribuíram menos com o financiamento do sistema (Raczynski, 1999, p. 175).
No plano institucional, a prestação de serviços sociais se estabeleceu a partir de
burocracias grandes e centralizadas, geridas diretamente pelo Estado. Homogeneidade e
padronização dos serviços e a escassa possibilidade de adaptação aos contextos e
condições específicas de cada lugar constituem características centrais do modelo adotado
com mais vigor na década de 60. A homogeneidade e a uniformidade dos programas e
procedimentos, bem como a participação social inexistente, 96 eram marcas do modelo
vigente na América Latina, na maioria dos países (Raczynski, 1999, p. 177).
Em relação ao financiamento e distribuição dos benefícios, tem-se na América Latina um
progressivo aumento da responsabilidade do Estado pelo financiamento do sistema e um
caráter altamente regressivo do gasto social. O modelo enfatizava o financiamento de
serviços de maior complexidade, tais como atenção curativa na saúde (e não prevenção e
serviços primários). Além disso, se beneficiam do sistema os que menos precisam, sendo
isso especialmente verdadeiro para os gastos em seguridade social, educação secundária e
superior e habitação, embora na maioria dos países a educação básica e saúde maternoinfantil apresentem um caráter progressivo (Raczynski, 1999, p. 177).
Grande parte dos sistemas de seguridade social na região é financiada por contribuições de
empregados e empregadores, o que torna essa base instável. As alterações e crises no
mercado de trabalho formal e na massa salarial disponível dificultam a estabilidade de
96
Quanto ao lugar da participação e envolvimento da sociedade civil, a leitura de Raczynski é que a presença
dominante do Estado minou ou enfraqueceu as iniciativas comunitárias, e mesmo nos países onde existiram
nesse período experiências de promoção social, estas eram “de cima para baixo”, e dificilmente moldadas às
realidades locais (Raczynski, 1999, p. 176).
108
financiamento do sistema (Fleury e Molina, 2000, p. 16). O volume do gasto não é
desprezível. Embora essa questão seja suficientemente complexa para exigir um estudo a
parte, vale ressaltar que algumas análises do comportamento do gasto social 97 na América
Latina mostram que para grande parte dos países, o gasto público social per capita é bem
maior do que 400 dólares, média para a região em fins dos 90, valor não desprezível no
contexto internacional. Os países com maior gasto per capita também apresentam maior
participação do gasto social em relação ao PIB, com valores que chegam a quase 20% para
o Brasil e a mais de 22% no Uruguai, entre 1996 e 1997, segundo Fleury e Molina (2000,
p. 18) 98 .
Embora o ritmo de crescimento econômico tenha modificado as condições de vida da
população na América Latina entre os anos 50 e 70 99 (aumento da taxa alfabetização,
queda da mortalidade infantil, aumento da esperança média de vida, melhora nos
indicadores de saúde e nutrição), ele foi insuficiente para dar conta da excessiva demanda e
extrema desigualdade entre os distintos países e entre diversos grupos sociais e regionais
internos.
O Brasil acompanha a tendência da América Latina. Tomando como marca os anos 30, em
50 anos o Brasil teve sua produção nacional multiplicada por 18,2 vezes, a uma taxa de 6%
ao ano, estabelecendo uma nova base da estrutura produtiva no país, centrada na produção
urbano industrial (Pochmann, 2004 b, p. 9). Entretanto, apesar da expansão das políticas
públicas de educação, saúde, previdência e assistência, não se constituiu, no país, um
esquema de proteção social de base universalista. O modelo adotado no Brasil, consolidado
entre os anos 30 e 70, de caráter meritocrático e de forma autoritária e tecnocrática, tinha
como base a posição ocupacional e de renda adquirida na estrutura produtiva, a
universalização ficando restrita a educação básica e saúde para atendimento de urgência.
A posição ocupada pelos indivíduos na estrutura ocupacional é que definia a incorporação
no sistema de proteção brasileiro, em uma perspectiva particularista, configurando um
97
Estão contemplados nessa referência de gasto social os gastos com seguridade social, educação, saúde e
habitação (Fleury e Molina, 2000, p. 20)
98
Na análise da estrutura do gasto social na década de 80, Draibe contraria, de certa forma, a perspectiva de
Fleury e Molina, quando afirmam que 400 dólares per capita não seria algo desprezível no contexto
internacional. Draibe aponta o baixo volume do dispêndio público social no Brasil. Dado o volume do PIB
brasileiro em 1986, 18,3% do gasto significa um gasto de aproximadamente 400 dólares per capita, enquanto
que nos Estados Unidos e nos países da OCDE o montante per capita era superior a 2.000 dólares (Draibe,
1990, p. 24).
99
De acordo com Iglésias (1992, pp. 74,75) , entre 1950 e 1980 o produto interno bruto da América Latina
cresceu a uma taxa de 5,5% ao ano, ligeiramente maior do que a taxa de desenvolvimento dos países
industrializados; crescimento acompanhado por intenso processo de inversão e transformação produtiva e
tecnológica.
109
modelo de cidadania regulada, na denominação de Wanderley Guilherme dos Santos
(1979).
Aberto a interesses corporativos e fisiológicos, as políticas não geraram um sistema de
proteção social e de garantia de mínimos sociais de caráter mais universalista, mas sim um
esquema assistencial denso e expressivo em termos de recursos, mas ineficiente e ineficaz
(Draibe, 1990, pp. 10,11; Draibe, 1997, p. 216). Na área da assistência, principalmente, a
conformação da política caracterizou-se pelo caráter precário, fragmentado e insuficiente
dos programas, o que não permitiu a estruturação de um sistema abrangente e consistente
de garantia de cidadania social. De nenhuma forma, nem com a expansão do sistema, este
foi capaz de reverter a situação dos bolsões de pobreza ou a desigualdade no país (Draibe,
1993, p. 202). Para grupos específicos, formou-se um denso esquema de base não
contributiva, com uma profusão de programas pulverizados, sobrepostos, fragmentados,
focalizados, sustentados pelo clientelismo, assistencialismo e pela ótica da caridade e da
filantropia.
De acordo com a caracterização do modelo brasileiro de proteção social, até meados da
década de 80, a estrutura burocrática era caracterizada pela centralização de recursos e
serviços na esfera federal; pela opacidade nas transferências, corrupção, ineficiência,
desperdício e pulverização dos recursos, excessiva superposição e fragmentação de
programas, clientelas e instituições. A demora na alocação dos recursos e seu desvio em
relação aos objetivos e público alvo, o caráter regressivo do gasto social 100 , a excessiva
permeabilidade da máquina social aos interesses corporativos, privados e burocráticos,
somados à ausência de mecanismos de avaliação e controle, e a uma distância total entre os
formuladores e beneficiários dos programas, estão entre as características fundamentais do
sistema de proteção social no Brasil (Draibe, 1990, pp. 15,16).
O sistema de proteção no Brasil combina elementos dos três modelos: caracterizado como
meritocrático-particularista (Draibe, 1993b), articula-se com um esquema assistencial
denso, com um amplo conjunto de ações focalizadas e pulverizadas de combate à pobreza,
por um lado, e com elementos de um modelo de base universalista, por outro (no que se
refere à educação básica, saúde e benefícios da Lei Orgânica de Assistência Social/LOAS).
Os processos de mudança nos sistemas de proteção tornam incerta a configuração futura
100
Quanto a esse ponto, os dados para 1986 mostram que famílias que recebiam de 1 a 2 salários mínimos
per capita beneficiavam-se de 56% do gasto social, enquanto que as famílias de até um quarto do salário
mínimo recebiam 6% dos benefícios sociais (Draibe, 1990, p. 23).
110
das políticas de proteção social no Brasil. Os sistemas de proteção social, tanto na Europa
quanto na América Latina, têm sofrido pressões para produzir alterações em sua estrutura e
composição. A seção seguinte examina as tendências em curso para posteriormente, em
outro nível de análise, focalizar estratégias de intervenção que se pautam por uma
perspectiva mais residual ou universal de proteção social.
3.2 Tendências e transformações dos sistemas de proteção social
Os anos 70 marcam o fim da Idade de Ouro, com a perda do dinamismo das principais
economias ocidentais. Há uma baixa nas taxas de lucro e produtividade, desorganização do
sistema financeiro internacional, elevação das taxas de desemprego, aceleração
inflacionária e desequilíbrios financeiros dos Estados-nação que, aliados à descrença na
capacidade do Estado em gerenciar as desigualdades, levam a uma renovada crítica do
Estado de Bem Estar Social.
Conforme aponta Faria (2002), recuperando Esping Andersen, a discussão sobre a crise do
Welfare State é presente desde a década de 50, com os argumentos se concentrando seja no
impacto do gasto social nos processos inflacionários, na excessiva burocratização do
sistema ou na incapacidade deste de processar novas demandas que surgem a partir das
décadas de 70 e 80 (Faria, 2002, pp. 203, 204). Entretanto, a crise atual, a partir dos anos
noventa, aponta para um conjunto de questões que combinam o reconhecimento do caráter
estrutural do desemprego; a fragilização da capacidade de atuação social do Estado, dada
pelo impacto dos processos de globalização 101 ; mudanças nas configurações e dinâmicas
familiares; surgimento de novas demandas e novas desigualdades, o que confere à crise
atual uma maior amplitude.
101
Os processos de globalização, ao acirrarem a competição internacional por investimentos, provocariam
uma redução da atuação do Estado no campo social, com a queda nos valores dos benefícios e na provisão de
serviços (Faria, 2002, p. 205). A análise dos processos de globalização nas dinâmicas mundiais extrapola
claramente os limites desse trabalho. Dentre o conjunto de autores que poderiam ser aqui indicados
(Anthony Giddens, Ulrick Beck, Zygmunt Baumann, dentre outros) destaca-se aqui David Held (Democracy
and the global order, 1996. Polity Press) que focaliza os desafios da democracia na nova ordem global
salientando as mudanças políticas que alteram os sistemas nacionais como núcleos centrais das estratégias
humanas organizadas; ou seja, examina o deslocamento e a perda da centralidade dos estados-nação como
eixo de iniciativas econômicas, sociais e políticas. Seja do ponto de vista da lei internacional (cuja
implantação limita o princípio de soberania do Estado), seja a partir do exame dos processos de decisão
políticos (cujo papel dos organismos internacionais coloca sob pressão a autonomia dos estados-nação), ou a
partir do exame das estruturas de segurança internacional (estando as estratégias de defesa nacional
constrangidas pelo sistema internacional de relações de poder), o que Held enfatiza é que tais mudanças ou
disjunções colocam novos desafios para a garantia da soberania nacional e impactam a discussão sobre a
democracia nas próximas décadas. Junta-se a essas três disjunções – lei, política, segurança – a questão da
globalização da cultura (e a emergência dos movimentos transnacionais) e a internacionalização da produção,
para se ter um cenário realista da magnitude dos processos que afetam a organização das democracias no
mundo contemporâneo.
111
A crescente interpenetração das economias mundiais, aliada às mudanças radicais no
padrão tecnológico e à crise do próprio modelo de desenvolvimento impõe mudanças nos
modelos de proteção social. Excessiva centralização e burocratização, incapacidade de dar
respostas mais flexíveis e a inadequação entre demanda e oferta, dualização da
sociedade 102 , gasto social significativo são algumas das razões apontadas para a crise do
Welfare State (Fanfani,1991; Gomà e Brugué, 1998) 103 . Nesse contexto de crítica ao
estado de bem estar, os defensores das teses do Estado Mínimo recusam a intervenção do
Estado e de sistemas de bem estar sobre os mecanismos do mercado, o que estimularia a
perda de confiança na capacidade do Estado de resolver os problemas sociais. Do ponto de
vista social e cultural, há os que afirmam uma crise de valores nas sociedades pósindustriais, uma crise de solidariedade e sustentam a necessidade de promover um novo
compromisso social, um novo pacto entre as classes. Nesse sentido, Neubourg, Castonguay
e Roelen (2005) não reconhecem que as mudanças econômicas sejam a principal causa
para alterações e reformas realizadas nos sistemas europeus. Os argumentos de
insustentabilidade financeira dos sistemas não seriam os mais centrais para explicar as
mudanças, mas sim a indisposição de um número crescente da população em pagar pelas
transferências sociais, o que, segundo percepções vigentes, alimentaria a dependência de
uma parte da população em relação ao sistema de proteção. O discurso político foi alterado
e a idéia da cultura da dependência do bem estar 104 muito contribuiu para isso 105 .
102
Com esse termo Fanfani quer enfatizar que uma implicação desse modelo está na emergência de
sociedade duais, com duas velocidades, uma regida pela lógica do setor produtivo e outra pela lógica da
provisão de bens e serviços para grupos marginalizados (Fanfani, 1991, p. 116).
103
Segundo Draibe e Henrique (1988), a crise do Estado de Bem Estar Social permite diversas leituras.
Elementos econômicos, políticos, institucionais e culturais têm sido apontados como centrais para explicar a
crise do Welfare State. Na dimensão econômica, tem-se a ênfase nos limites de financiamento do sistema em
função da expansão da demanda e da crise fiscal. Uma vez que o financiamento dos gastos sociais assenta-se
nas contribuições de massas ativas de trabalhadores, há uma relação direta entre a capacidade de obtenção de
recursos e as oscilações da economia. Entretanto, para além dos desequilíbrios macroeconômicos e
financeiros que sacudiram as economias mundiais nas décadas de 70 e 80, tem-se a difusão da ideologia
neoliberal, baseada nos modelos de mercado e em formas de provisão privada dos serviços.
104
Um ponto salientado pelos autores refere-se à armadilha da dependência, que pode surgir e
frequentemetne surge quando o sistema de proteção social mantém as pessoas assistidas por um tempo longo,
capaz de criar dependência do beneficio, com todas as conseqüências negativas daí advindas, seja quanto ao
financiamento e sustentabilidade econômica do sistema seja em relação aos processos de reconhecimento e
de integração social. Um dos pontos para se julgar a efetividade dos programas de assistência e de proteção
social é verificar a recorrência da entrada e a duração do beneficio, que podem ser indicadores de uma
relação de dependência. Na Suécia, por exemplo, apenas 14% dos beneficiários permanecem por 24 meses ou
mais, ao contrário de países como Espanha, Portugal ou Reino Unido, onde essas taxas chegam a 61, 58 ou
70%, respectivamente (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p. 27).
105
Obviamente os problemas de financiamento se colocam como elementos de restrição. Mas além da
dimensão econômica, financeira e fiscal, tem-se ainda elementos culturais (como o individualismo que marca
a sociedade ocidental moderna) que deslegitimam as políticas centradas na redistribuição de renda e nas
prestações dos sistemas de bem estar (UAB, 1998, p. 18).
112
Entretanto, por mais que o Estado de Bem Estar social seja criticado sob variados pontos
de vista, o fato é que o processo em curso aponta para uma transição mais do que para uma
superação ou “desmantelamento” de sua estrutura (Faria, 2002, p. 207). A mudança
demográfica, com o aumento da taxa de fecundidade, e a mudança no comportamento das
mulheres, com a entrada dessas no mercado de trabalho são elementos importantes,
salientados pelo autor, para explicar a natureza mais aguda da crise atual, em um cenário
de desemprego estrutural e crescente. Existe uma pressão para a ampliação da cobertura
dos programas de assistência social, com a emergência de outros grupos de “titulares” de
direitos e também com a expansão do desemprego. Novas necessidades, demandas e novos
riscos 106 aos quais as populações estão sujeitas demandam remodelagens nos padrões de
socialização dos riscos, reposicionando Estado, mercado e a família nesse processo. Nesse
sentido, o Welfare State é “apenas um dos três elementos de gestão dos riscos sociais. Os
outros dois são a família e o mercado” (Faria, 2002, p. 214) 107 .
Embora reconhecendo que os procedimentos da proteção social na Europa estão sob
pressão, seja em razão dos recursos fiscais ou em função dos supostos resultados perversos
que produzem, Neubourg, Castonguay e Roelen (2005) sustentam, baseados em um estudo
cross survey sobre sistemas de proteção social na Europa, que o modelo europeu apresenta
uma certa estabilidade, sendo que as alterações introduzidas não provocam mudanças
substantivas nos sistemas, mantendo-se praticamente inalterado o conjunto dos benefícios
e os mecanismos redistributivos existentes. Isso aponta não para a idéia de dissolução ou
desaparecimento dos estados de bem estar, mas para sua renovação.
Os países europeus, no processo de reforma dos sistemas de proteção, têm como eixo duas
ordens de questões, relacionadas, mas distintas: por um lado, a dimensão dos incentivos ao
106
Novos riscos dados, sobretudo, pelas novas dinâmicas produtivas e tecnológicas que reduzem as chances
de o trabalho atuar como elemento de integração social e pelas alterações no âmbito social e cultural que
provocam mudanças nos padrões familiares e fragilizam a posição da família como suporte de proteção
(Faria, 2002, pp. 220,221).
107
A importante contribuição da crítica feminista à literatura sobre os modelos e sistemas de bem-estar reside
na atenção que confere à família como um elemento central de provisão de bem estar, como produtora de
bens e serviços, o que a coloca como central no debate atual sobre as reconfigurações dos regimes de bem
estar (Faria, 2002, p. 215). O lugar da família como provedora de bem estar é variável, de acordo com os
tipos de sistemas de proteção vigentes. Na caracterização dos diversos regimes de bem estar formulado por
E. Andersen, a família é central no modelo conservador, enquanto que no modelo liberal o caráter central
cabe ao mercado, sendo que no modelo social-democrata o papel central cabe ao Estado (Faria, 2002, p. 218).
Nos processos de transição, as respostas quanto ao lugar da família na provisão da proteção variam de acordo
com os distintos modelos. Conforme aponta Faria, os regimes conservadores enfatizam transferências
monetárias e reforçam o papel da família na gestão dos riscos; no modelo social democrata, as respostas
reforçam a provisão de serviços e transferências pelo Estado; no modelo liberal, cabe ao mercado a gestão
dos riscos, ponto que fica evidenciado na ênfase pela privatização e pelo incentivo ao trabalho (Faria, 2002,
p. 222).
113
trabalho, ponto central nas estratégias de reforma. Por outro, as questões trazidas pela nova
pobreza ou exclusão social invocam outras demandas, advindas das mudanças
demográficas e das transformações nas estruturas econômicas e nas instituições (World
Bank, 2003, p. 11) 108 .
Algumas mudanças têm sido introduzidas no sentido de reduzir a duração e mesmo alterar
a postura dos beneficiários no sistema. Para tanto se procura tirar os beneficiários da
passividade, ativá-los, e, para os autores, a perspectiva da “ativação” dos beneficiários tem
sido a tônica das alterações realizadas 109 (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, pp. 3335; Guibentif, Bouget, 1997, pp. 35-37).
O segundo conjunto de alterações refere-se ao que os autores denominaram “reforma dos
incentivos aos provedores”, que diz respeito a alterações “na organização da administração
da proteção social”, que envolve, em graus diferentes para os países, a descentralização, a
privatização e uma maior integração dos serviços 110 (Neubourg, Castonguay e Roelen,
2005, p. 35).
São alterações institucionais que acompanham novas demandas e conteúdos das políticas.
De acordo com Filgueira, os eixos da reforma em curso e dos novos modelos propostos
enfatizam a focalização, a descentralização, a integralidade na gestão e a delegação ao
108
Para uma diferenciação entre os distintos regimes de bem-estar (liberais, corporativos ou universalistas)
quanto a provisão de serviços sociais, principalmente os voltados para atendimento infantil em creches, ver
Faria, 1998. Esse autor demonstra, a partir de uma análise do tipo e volume de atendimento, as diferentes
lógicas que presidem a provisão de serviços: a lógica da máxima responsabilidade privada ou da máxima
responsabilidade pública. Ainda que tenha havido mudanças expressivas na provisão de serviços dos modelos
escandinavos, a lógica subjacente ao modelo permanece, afirmando a centralidade do Estado na provisão e
garantia de direitos sociais.
109
Desconsiderar ganhos mais altos, quer dizer, que a renda do trabalho não seja suficiente para excluir o
beneficiário do programa; fornecer incentivos financeiros diversos para inserção e permanência no emprego;
utilizar pressão administrativa para que os beneficiários ingressem no mercado (trabalho social, por
exemplo); estabelecer maior rigidez das regras e sanções; inserir mudanças nos critérios e direitos de
elegibilidade (por exemplo, excluindo grupos ou restringindo os direitos de outros, tais como decidir se os
jovens e os imigrantes na Europa devem ou não ser elegíveis ao recebimento dos benefícios); assistência
individualizada (que prevê uma orientação mais personalizada, com foco na elaboração de planos de ação,
tais como existe na Alemanha, Reino Unido, Holanda, França) dentre outros, constituem medidas em curso
em vários países da Europa após 1997 para viabilizar a inclusão, antecipar a saída e possibilitar a
independência e a autonomia dos beneficiários (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, pp. 33-35). Vale
ressaltar que as diretrizes de privilegiar a inclusão ou a reintegração no mercado de trabalho (o foco na
“ativação” e “reciclagem”) produzem efeitos perversos, ao privilegiar, como beneficiários, aqueles que
dispõem de maiores recursos e condições de serem incluídos, deixando para trás o conjunto de indivíduos e
grupos menos “ativáveis”. Além da dualização entre os “ativáveis” e os “não ativáveis”, a exigência de uma
“ativação” dos beneficiários, visando um ingresso rápido no mercado de trabalho, leva à aceitação de
empregos precários, que favorece uma situação de desempregado no futuro, com o retorno ao sistema de
proteção. De acordo com os autores, o fenômeno da “porta giratória”, com as freqüentes reentradas no
sistema de proteção, aponta para uma vulnerabilidade de longo prazo, permeada por estigmas e por uma
condição de dependência.
110
Os autores referem-se, na verdade, a postos de atendimento integrado, e com isso remetem a uma
preocupação com a qualidade, eficiência e transparência no uso dos recursos públicos.
114
mercado de certas funções sociais (Filgueira, 1999, p. 77) 111 . As reformas têm alterado
não a quantidade, mas a distribuição dos benefícios, o que leva à constituição de dois
grupos de beneficiários: os que podem ser incorporados ao mercado e aqueles que não
podem ou que são mais difíceis de serem ativados, que permanecem no sistema de
proteção. As opções, para esse grupo, são duas: a permanência no sistema de proteção ou a
saída da condição de beneficiário. No caso do término do benefício, os custos recaem sobre
as famílias, redes, terceiro setor ou para o mercado informal; enquanto que a permanência
na condição de beneficiário pode levar a uma inserção em segmentos específicos do
mercado de trabalho 112 (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p.37).
Nos países europeus, que adotaram de forma mais enfática a concepção da exclusão social
como pressuposto conceitual para definição das políticas, ocorre o reconhecimento de
novos grupos de excluídos e condições específicas de exclusão, ocasionando uma pressão
pela ampliação da cobertura da assistência social. As respostas dos distintos sistemas de
proteção diante da exclusão têm sido diferentes 113 . As mudanças para viabilizar o escape
das armadilhas da pobreza e da dependência não são homogêneas ou na mesma intensidade
ou direção nos diversos países e variam em função da duração e do nível dos benefícios,
das condições e critérios para deixar de receber os benefícios, dos requisitos de busca ativa
de empregos, das diferenças que se estabelecem entre os benefícios de seguro social e de
assistência social, dentre outros fatores (World Bank, 2003, p. 13; Guibentif, Bouget, 1997,
pp. 49-50).
A situação da Europa, seja quanto aos índices e tipos de pobreza seja quanto às condições
institucionais para enfrentá-la, é distinta da que se observa na América Latina e Brasil,
onde existe pobreza de massa, situações de pobreza crônica e grande parte da população
vivendo situações de intensa vulnerabilidade. Além da escala e da maior complexidade, a
111
Faria também aponta mudanças que ocorrem no sistema sueco de proteção social a partir da década de 90,
quando as dotações orçamentárias discriminadas por tipo de serviço passaram a ser parte de um repasse único
de verbas, que seriam alocadas segundo as necessidades e decisões das municipalidades, o que provocou
alterações significativas na universalidade da provisão de serviços de atendimento às crianças pequenas
(Faria, 1998, pp. 296,297).
112
Tal como estabelecido no sistema belga, que prevê oportunidade de trabalho para beneficiários de longo
prazo em setores de serviços de baixa produtividade. Os salários modestos, pagos pelos compradores de
serviços, permitem que os beneficiários encontrem uma condição de inclusão, sem serem forçados a competir
livremente no mercado de trabalho (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p. 37).
113
Os sistemas de cunho liberal enfatizam a dimensão dos incentivos ao trabalho. Sistemas conservadores
enfatizam a coesão social e a nova pobreza, com os esforços orientados para o treinamento e nos incentivos
ao trabalho, gradualmente adotando reformas políticas em direção a um viés mais liberal de bem estar. Já nos
sistemas de natureza universal, social democrata, as reformas têm sido no sentido de reduzir o valor dos
benefícios, que permanecem ainda bem altos em relação a outros países da OECD e do fortalecimento da
intervenção no mercado de trabalho (World Bank, 2003, p. 16).
115
capacidade institucional do Estado brasileiro tem se revelado limitada para implementar as
políticas de proteção de base assistencial. A citação abaixo abaixo elucida, ainda que na
contraluz, o ponto:
“Os sistemas europeus são todos caracterizados por uma alta densidade de escritórios
regionais de assistência social, que operam em áreas com alta densidade populacional
e relativamente urbanizadas. Os escritórios são bem equipados e possuem funcionários
bem treinados, com considerável poder discricionário. Os funcionários desses
escritórios dispõem de um extenso portfolio de benefícios e de assistência não
financeira. O sucesso dos sistemas de assistência social da Europa é em parte devido
ao fato de que eles possuem um número reduzido de beneficiários, visto que muitas
pessoas são atendidas pela rede de segurança antes que cheguem à última instância,
que é a assistência social. Em parte devido ao fato de que eles operam na proximidade
dos recebedores e dispõem de uma ampla gama de instrumentos. A proximidade dos
escritórios de assistência social reduz o problema de abrangência, facilita o controle e
fortalece o caráter pessoal dos serviços com relação aos beneficiários” (Neubourg,
Castonguay e Roelen, 2005, pp. 40,41) 114 .
Embora promovendo ajustes e revisões no modo de funcionamento, critérios e valor dos
benefícios, o modelo europeu ainda mantém um sistema de ampla cobertura, sustentado
por princípios mais universalistas, orientados pela ótica dos direitos, de cidadania e de
pertencimento social. Nessa perspectiva, a proteção social não se restringe a uma ação
residual de bem estar para os mais pobres, mas expressaria o fundamento de uma ordem
baseada na promoção da justiça e na coesão social. As conquistas em termos de direitos
sociais constituem o patamar no qual o reordenamento exigido pela “segunda
modernidade” parte. Quer dizer, a dimensão universalizante das políticas de proteção
“forman parte indisoluble de la legitimidade y de la cultura políticas de los países de la
Europa occidental” (UAB, 1998) e constitui o patamar no qual a discussão das mudanças
nos modelos de bem estar se coloca.
Nos países desenvolvidos, com sistemas de bem estar robustos e estáveis, a perspectiva
universal persiste, ainda que sofrendo mudanças. Na América Latina, a transição nos
sistemas de proteção tem se dado em um sentido diferente. O desafio aqui é como
implementar tais sistemas de provisão pública universal em países em desenvolvimento,
com pobreza de massa, expressivo número de indigentes, poucos recursos para
investimento e capacidades institucionais frágeis para a formulação, gestão e avaliação de
políticas públicas. Uma equação desafiadora, sem dúvida e marcada por distintos
114
Um modelo equivalente para o Brasil, que tem como público definido para o Bolsa Família o conjunto de
11 milhões de famílias, exigiria o total de 22 mil escritórios (supondo que cada um atendesse a um conjunto
de 500 famílias). A precariedade das políticas de proteção no país deixa na órbita das políticas de assistência
um volume nada desprezível de pessoas, o que dificulta a adoção de modelos de proteção similares aos
existentes nos países europeus.
116
determinantes: econômicos, políticos, ideológicos, sociais, culturais. Obviamente a
implementação de modelos mais ou menos universalistas e agendas mais amplas ou
restritas de proteção social é dependente de vontade política, de decisão, de financiamento,
capacidade de implementação e coordenação, marcada por disputas entre valores e
interesses nem sempre facilmente conciliáveis.
A forma de conceber os problemas sociais mudou durante as décadas de 80 e 90, segundo
Raczynski (1999), tendo maior peso questões como a restrição do gasto, descentralização,
privatização, focalização, subsídios pela demanda e introdução de mecanismos de mercado
no setor público (Raczynski, 1999, p. 179). A América Latina, ao contrário dos países
europeus, tem intensificado o desenvolvimento de modelos afinados com uma perspectiva
mais residual de proteção social (Faria, 2002, p, 209; Molina, 2003; Filgueira, 1999;
Raczynszi, 1999).
As transformações em curso nas políticas sociais no Brasil apontam para a criação de uma
nova institucionalidade, dinâmicas, princípios e formas de cooperação entre atores e
instituições diversas. E a princípio, na perspectiva normativa, a partir da Constituição de
1988 ocorre um adensamento do caráter redistributivo das políticas sociais e um inegável
avanço do sistema de direitos sociais. A assistência social adquire, pela primeira vez, o
status de política pública. Novos direitos são reconhecidos e emerge uma tendência à
maior universalização da proteção, combinada a novos modelos institucionais e gerenciais
fundamentados nas diretrizes de descentralização e participação social, como apontado por
Sônia Draibe. Embora tenha havido um reconhecimento na legislação da universalização
dos direitos e da ampliação do escopo da proteção, na prática das políticas e programas a
tendência tem sido distinta. Além de o gasto ser reduzido, sua estrutura de financiamento,
de base contributiva e atrelado ao emprego assalariado formal, levou a que o sistema de
proteção, ao ampliar a cobertura, gerasse uma queda no valor dos benefícios e a
precarização dos serviços oferecidos pelo setor público (Pochmann, 2004 b, p.12) 115 .
Novos elementos entram na agenda das políticas públicas e sociais – descentralização,
participação, novas relações entre Estado e sociedade civil, setor público e privado,
parcerias e co-gestão, eficiência, eficácia, accountability, dentre outros – e apontam para
115
Esse processo levou a que a classe média buscasse serviços de educação e saúde no setor privado,
fragilizando a aliança entre classes que poderia dar suporte político à universalização da proteção social. As
estratégias de focalização rígidas, pautadas pela busca de contenção dos gastos e maior eficiência do gasto
social, contribuíram para polarizar a sociedade, afastando as classes médias dos serviços públicos, o que
estimulou ainda mais a precarização dos mesmos (Filgueira, 1999).
117
uma outra maneira de conceber a produção, organização e distribuição de bens e serviços
sociais. Que modelo de proteção social está sendo delineado? Ao indagar sobre as
perspectivas que se colocam para a América Latina, Filgueira sustenta que
“las propuestas y tendencias centrales, hoy, apuntan a modificar el modelo y las
políticas de protección social drásticamente allí donde existieron y fueran
desarrolladas bajo modelos centralistas con pretensiones de universalidad, y apostar,
en los países que conocieran bajo o nulo desarrollo de los sistemas de protección social
a un modelo emparentado a la tradición residual-liberal “ (Filgueira, 1999, p. 77).
No mesmo sentido, para Molina (2003), o caminho que se está trilhando na América Latina
é o de um modelo de proteção para os pobres, sob uma matriz residual de proteção social.
A proposta neoliberal enfatiza, como estratégia de políticas de proteção, a transferência de
recursos monetários, desenhadas “sob medida” para os públicos desfavorecidos, com
ênfase em políticas focalizadas e na provisão privada de bens e serviços, tendo o mercado
como o grande disciplinador, nas palavras de Fanfani (1991). Ao Estado cabe reservar a
cada indivíduo ou família uma renda mínima; o resto é feito pelo mercado.
“En este modelo el Estado se concentra en atender a parte de la población pobre, a
través de la oferta subsidiada de servicios sociales y de transferencias de ingresos de
carácter temporal, buscando con ello aliviar su condición de pobreza. La población
que no califica en este grupo debe, por su parte, intentar proveerse directamente los
servicios sociales que necesita. En este modelo, la población a la cual se dirige la
acción estatal -parte de los pobres-, se reconoce a través de criterios técnicos y
formales” (Molina, 2003, p. 3) .
A diferença quanto ao modelo residual é que nesse novo modelo de proteção social para os
pobres os critérios de seleção são institucionalizados e não pautados pelo caráter
discricionário e pela ótica da caridade. A responsabilidade de proteção, na nova versão do
tipo residual de proteção social, recai sobre o Estado. A seleção se faz com base
fundamentalmente em critérios de renda individual ou familiar, sem muita atenção a outros
indicadores de acesso a serviços ou critérios mais coletivos (Molina, 2003, p. 3). As
modalidades de proteção predominantes são transferências diretas de recursos monetários
para os mais pobres e vulneráveis. São transferências temporais, de emergência, não
necessariamente ligadas a direitos, ao contrário de modalidades de caráter estrutural (por
oposto a emergencial e de curto prazo), que se referem à oferta de bens e serviços
permanentes, universais e que respondem a direitos de cidadania (Molina, 2003, p. 14).
Um modelo que apresentaria um corte residual de proteção social é o denominado Manejo
Social de Risco, tal como formulado pelo Departamento de Protección Social, Red de
118
Desarrollo Humano, do Banco Mundial, na segunda metade da década de 90, no contexto
de revisão das estratégias do Banco na área de proteção social (Holzmann e Jorgensen,
2000) 116 . De acordo com a formulação original, o manejo de riscos envolve a definição de
estratégias para enfrentar os riscos, estabelecendo um marco que inclui três estratégias
(prevenção, mitigação, superação), três níveis de formalidade (informal, de mercado e
público) 117 e vários atores envolvidos (pessoas, comunidades, governos, agências
internacionais, ONGs etc) (Holzmann, Jorgesen, 2000, p. 11).
Segundo Sojo (2003) e Lavinas (2003), críticas da concepção de manejo de riscos 118 , essa
abordagem focalizaria a questão da proteção sob o ponto de vista das redes de segurança
(safety nets), que apresentaria um caráter mais residual e focalizado, o que configura um
retrocesso em relação às concepções norteadoras dos sistemas de bem estar social que
dominaram no século XX. O enfoque do manejo social de risco, segundo seus críticos,
limitaria o papel do Estado no campo da proteção social, via redes de proteção e políticas
focalizadas. A proteção social se reduziria à noção de redes de proteção (safety nets), um
conjunto flexível de programas desenvolvidos para atender padrões específicos de riscos.
Essa concepção não potencializaria a solidariedade social, uma vez que estaria centrada na
responsabilidade dos indivíduos de assegurar-se contra os riscos (Sojo, 2003, p. 122).
Além disso, essa concepção apontaria para a diluição do papel do ator governamental em
meio a uma pluralidade de stakeholders que entram em cena (Barrientos e Sheperd, 2003).
No documento oficial do Banco Mundial (Holzmann e Jorgesen, 2000), relativo ao
enfoque do manejo de riscos, contudo, a afirmação não é a de reduzir o papel do Estado,
mas de ir além do setor público e recuperar mecanismos de mercado e mecanismos
informais que possam atuar na promoção do desenvolvimento e do crescimento, afirmando
116
Fazendo uma conexão com o que foi visto na primeira parte do trabalho, a proteção social calcada no
enfoque do manejo de riscos está diretamente relacionada com a questão da vulnerabilidade. Esta lhe é
constitutiva. A proteção seria promovida ao se diminuir a vulnerabilidade, que é um elemento central e
determinante das condições de vida de grupos em situação de pobreza.
117
Quanto ao nível de formalidade, tem-se as estratégias informais, que incluem, dentre outras, migração (no
caso da prevenção), matrimônio, família e relações comunitárias (no caso da mitigação), venda de ativos (no
caso da superação). Além das estratégias informais, tem-se as estratégias de mercado, que incluem
capacitação (no caso da prevenção), seguros (no caso de mitigação) e venda de ativos ou empréstimos (no
caso da superação). E no campo governamental, tem-se as políticas de trabalho e de prevenção de doenças,
por exemplo (no caso da prevenção), de transferência de ativos (no caso da mitigação) e transferências
monetárias e subsídios (na superação) (Holzmann, Jorgensen, 2000).
118
Na ótica da sociedade de risco, “matizada pela perspectiva individualizante do self de Giddens, os
indivíduos seriam responsáveis por sua própria biografia, sendo que os excluídos – aqueles sem condições
de fazer valer suas escolhas, porque não as têm - poderão ser apoiados, quando necessário, por ações
tópicas, residuais e por prazo determinado, via redes de segurança” (Lavinas, 2004). Frase proferida por
ocasião do seminário promovido pela PBH/FJP/UFMG/PUC-MG, em dezembro de 2004.
119
ainda a expansão do conceito de proteção, e não seu esvaziamento, como foi interpretado
por Sojo (2003). Ao incorporar as questões de acesso aos serviços básicos, de participação
e vocalização dos pobres como dimensões centrais na concepção de manejo de riscos, esse
enfoque estaria ampliando e não restringindo, a concepção de proteção
(Holzmann,
Jorgesen, 2000, p. 4). A proteção social segundo o manejo de riscos seria, de acordo com
seus formuladores, uma abordagem realista, ao considerar os limites dos gastos públicos e
a diminuição da capacidade de financiamento dos países diante do crescimento da
demanda por proteção, e, além disso, seria mais adequada para fazer frente às condições
atuais, ao incorporar esforços do mercado e reconhecer os mecanismos e sistemas
informais 119 .
A concepção de manejo de riscos tem sido dominante, mas não é a única que orienta as
ações, as pesquisas, ou o discurso da proteção social atual, nos países desenvolvidos ou em
desenvolvimento. Bob Deacon (2005) sustenta que não existe uma linguagem única no
debate sobre política social, pautada pela noção de redes de proteção (safety nets). O
enfoque universal de bem estar e o tema das reformas no âmbito da governança capaz de
promovê-lo também estão em cena, ou, como diz o subtítulo do artigo (Deacon, 2005), a
maré está mudando. Se nas décadas de 80 e 90 o projeto político das reformas de cunho
liberal foi o dominante, existem sinais de mudança no discurso global em direção a
políticas de solidariedade social e universalismo (Deacon, 2005) 120 . Os arranjos e projetos
políticos dominantes dependerão, sobretudo, de legitimidade, como fica claro na citação
abaixo:
“Hoy en dia parece evidente que el futuro de la protección social y, por consiguiente,
de las políticas y de los programas que las desarrolan, dependerá fundamentalmente
del mantenimiento de su legitimación social. En la medida en que la expansión del
individualismo no sea capaz de hacer desaparecer los valores de la solidaridad, y que
éstos sigan existiendo en la conciencia colectiva y en la opinón pública, la actual crisis
no conducirá hacia la destrucción del sistema de bienestar, sino hacia um reajuste
cualitativo de la protección social” (UAB, 1998, p. 19).
3.3 - Políticas de combate à pobreza: diferentes estratégias, distintas implicações
Correndo o risco de exagerada simplificação, mas com a perspectiva de maior clareza
analítica, recorremos ao trabalho de Fanfani (1991) que distingue duas concepções básicas
sobre o fenômeno da pobreza que sustentam as estratégias de distintos modelos de
119
Na concepção do manejo de riscos, a proteção social “refers to the public actions taken in response to
levels of vulnerability, risk and deprivation which are deemed socially unacceptable within a given polity or
society” (Norton, Conway, Foster, 2001. p. 21).
120
Talvez a presença de representantes de países nórdicos entre os consultores e pesquisadores do Banco
Mundial esteja contribuindo para uma tensão positiva entre perspectivas residuais e abrangentes da proteção
social e do papel do Estado na provisão dos serviços públicos (Deacon, 2005).
120
proteção. Uma primeira visão de pobreza, presente nas primeiras fases do desenvolvimento
dos estados-nação, considerava a pobreza de um ponto de vista moral, marcada por forte
viés punitivo, presente na idéia de “pobres que merecem” e “pobres que não merecem”.
Isso significa um olhar centrado no exame das condutas e mentalidades dos pobres, e
sustentou sistemas de intervenção baseados em relações de tutela, benevolência. As
características desse modelo apontam para a centralidade da prática da caridade e da
beneficência pública no desenvolvimento de ações pontuais, descontínuas e desarticuladas,
“baseadas na vontade e no dever de quem dá e não no direito de quem recebe” (Fanfani,
1991, p. 97). A tradição assistencialista tem uma característica que se mantém, mais
ou menos evidente, nas práticas e discursos de determinadas estratégias de políticas
de enfrentamento da pobreza nas sociedades atuais: a perspectiva individualista
presente na concepção do problema. Isso quer dizer que não existe a pobreza como
fenômeno social, mas sim como algo que decorre de um conjunto de situações individuais;
não existe pobreza, mas sim pessoas pobres. Nas palavras de Fanfani,
“la pobreza solo es social cuando alcanza ciertos niveles críticos y genera problemas
que deben ser administrados por la sociedad, pero no es social en su génesis ni en su
significación, puesto que siempre remite al sujeto que la padece” (Fanfani, 1991, p.
98).
Nas políticas calcadas nessa visão, o beneficiário não tem um direito, mas ele se torna
elegível para um determinado bem ou serviço a partir da comprovação de sua miséria,
sendo visto permanentemente sob suspeita e com avaliação permanente dos requisitos que
o tornam apto a receber ajuda do Estado. Os benefícios são concedidos a grupos
específicos, que são tratados de forma isolada, como categorias separadas (idosos,
deficientes, desocupados, mães solteiras e outras tipificações), formando um mosaico de
iniciativas isoladas, fragmentadas e descontínuas.
Uma outra visão aponta para outro entendimento da questão da pobreza, sustentada por
uma perspectiva, pode-se dizer, coletivista, contrapondo-se ao individualismo que marca o
modelo assistencialista. A coletividade é o componente central, instaurando a primazia do
todo sobre as partes, marcando uma perspectiva afinada com os elementos salientados
pelas concepções de exclusão e vulnerabilidade. O direito à vida, o direito social, nessa
perspectiva, não é algo que remete exclusivamente ao indivíduo, mas fundamentalmente
diz respeito à sociedade que se torna responsável pela partilha dos custos, sob o princípio
da solidariedade social. O foco, nesse modelo, não são os indivíduos, mas suas interações e
relações. A abordagem que sustenta a ótica dos direitos é de natureza universalista,
121
sendo o beneficiário elegível por sua condição de cidadão. Nessa perspectiva, se a
pobreza é relativa ao todo social, a intervenção para superá-la deve se orientar para a
própria sociedade, para os meios e as causas estruturais e não para os pobres. As
políticas de luta contra a pobreza, dirigidas a públicos focalizados, estão presentes,
mas ocupam, nessa perspectiva analítica, um lugar marginal dentre as políticas de
corte universal.
Para os objetivos do presente trabalho é importante a análise de algumas estratégias
adotadas nas políticas de combate à pobreza, identificando os contornos e as características
gerais de distintas estratégias de ação, em que medida elas espelham as distintas visões
sobre a pobreza. As discussões apresentadas por Lo Vuolo (1999, 2004) e Fanfani (1991)
fornecem o caminho para avançarmos na compreensão dos dilemas envolvidos na
definição dessas estratégias e na relação delas com os diferentes modelos e tendências do
estado de bem-estar social nas sociedades contemporâneas dos países desenvolvidos e em
desenvolvimento. Elas situam o debate sobre a questão social, ou seja, sobre as
dificuldades das sociedades modernas em promover a inserção e a coesão social. Como
Castel 121 , os autores pautam-se pela idéia da metamorfose da questão social, na qual a
nova questão social, da mesma forma que a velha questão social, tem como eixo as
relações capital-trabalho. O trabalho segue sendo o suporte privilegiado de inserção social,
embora a organização social e econômica dominante não permita de forma plena esse tipo
de inserção. O termo inserção social é a base de um enfoque estratégico (por oposição a
um modo de regulação estática da pobreza), sendo usado preferencialmente ao de
exclusão 122 , para demarcar um “registro original de existência”, que tem a ver com a
participação das pessoas em uma relação social intermediada por instituições sociais
diferentes das instituições do mercado, ou do emprego remunerado 123 . Inserção social é
121
Lo Vuolo (1999) explicitamente compartilha da visão de Castel, utilizando o termo desafiliação para
descrever e explicar o processo dinâmico que determina dissociações entre indivíduos e sociedade. O
processo de desafiliação aponta para trajetórias descendentes, que levam à invalidação de alguns, sendo esse
um fato que concerne a toda a sociedade. Os autores utilizam ainda a noção de zonas de vulnerabilidade,
tal como Castel, que são demarcadas pela inserção dos indivíduos e grupos no trabalho e nas redes de
sociabilidade e de proteção social.
122
O conceito de exclusão remete a uma idéia de exclusão da sociedade e os autores pontuam que a
existência de excluídos inscreve-se na própria dinâmica social, sendo um produto da forma como se organiza
a sociedade em termos econômicos e sociais. Lo Vuolo enfatiza, contudo, que se trata de exclusão na
sociedade, para apontar as condições que permitem ou facilitam que certos membros da sociedade sejam
apartados, rechaçados ou simplesmente seja negada a eles a possibilidade de acesso aos “arranjos operativos
e aos rendimento das instituições sociais” (Lo Vuolo, 1999, p. 219).
123
A concepção de inserção ultrapassa, segundo Lo Vuolo (2004), a de exclusão, uma vez que aquela remete
ao conjunto da organização social e das formas de solidariedade que necessitam ser criadas para dar conta da
superação efetiva da pobreza e não apenas de sua administração, como vem sendo enfatizado no modo de
122
uma “figura institucional que pretende ocuparse de aquellos que son válidos, pero que son
temporalmente inválidos” (Lo Vuolo, 1999, p. 209). Ter-se-ia um outro patamar de
compreensão da interdependência social. Nas palavras de Lo Vuolo,
“se debe orientar la mirada hacia aquellos principios universales que integren las
partes saludables y enfermas, pobres y ricas, empleadas y desempleadas, de un modo
radicalmente diferente del que actualmente existe en nuestras sociedades” (Lo Vuolo,
2004, p. 18).
Ao apontar para a centralidade da idéia de coesão social e para um registro positivo
(inserção) e não negativo (exclusão), Lo Vuolo sustenta a existência e a necessidade de
uma outra forma para lidar com a questão da pobreza, um modo estratégico que se
contraporia ao modo de regulação estático da pobreza. O argumento central do autor (Lo
Vuolo, 1999 e 2004) refere-se à necessidade de ultrapassar o modo de regulação estática
da pobreza, que se caracteriza pela abordagem tecno-liberal ou caritativa do problema.
Para a abordagem tecno-liberal, a solução da pobreza estaria ligada ao crescimento
econômico, ao emprego e ao fortalecimento de micro-empreendimentos que valorizem os
ativos econômicos dos pobres.
Na visão caritativa da pobreza, valoriza-se a solidariedade moral como ética pessoal e
enfatiza-se a auto-organização dos pobres. De cunho assistencial repressivo, o modo de
regulação estática focaliza a pobreza como algo transitório, que pode ser explicada em
grande parte a partir das características pessoais dos pobres e não enfatiza a superação do
problema, mas tão somente sua administração.
Em termos operacionais, a perspectiva residual de proteção social e do combate à pobreza,
de forma particular, enfatiza focalização precisa da população alvo da intervenção. A idéia
básica dessa visão, conforme sustentado pelo autor, é que a ação do Estado não deve se
orientar para toda a população, mas concentrar-se em zonas espaciais, a partir do
conhecimento das necessidades básicas da população, com o uso de mapas com a máxima
desagregação territorial.
Ao adotar essa estratégia de forma prioritária, as políticas inspiradas pelo modelo residual
de proteção social fortalecem, em certa medida, a discriminação e a desigualdade, ao
adotarem um processo de identificação, de assignação de identidade, a partir de
regulação estático da pobreza. Entretanto, não fica totalmente clara em que se baseia essa distinção, uma vez
que exclusão refere-se a uma situação negativa, enquanto que inserção sinaliza uma dimensão positiva, mas
ambos os termos compartilham de um conjunto de pressupostos básicos, que se referem à centralidade da
perspectiva da coesão social e dos laços de solidariedade.
123
determinadas características dos indivíduos que os tornam passíveis de serem considerados
pobres e tratados socialmente como tais (Fanfani, 1991, pp. 128-130). Nas palavras de
Fanfani, para ser beneficiário, o indivíduo tem que marcar sua condição de indigente ou
cidadão NBI (necessidades básicas insatisfeitas) ou outra tipificação qualquer.
A
focalização envolve sempre identificação e seleção dos demandatários das políticas, com
todos os custos sociais advindos dessa discriminação. O mercado fica com o atendimento
dos não pobres, o que, aliado à pobreza dos recursos do Estado destinados aos sistemas de
prestação de serviços para os pobres, configura um modelo dual de proteção,
institucionalizando e cristalizando as desigualdades (Fanfani, 1991).
A institucionalização dos fundos de combate à pobreza, que proliferaram na América
Latina nas últimas décadas, pode ser vista como uma expressão, ainda que apenas indireta,
de um modelo residual de proteção. A estratégia em curso na América Latina a partir de
meados de 80, foi induzida externamente por importantes agências e bancos multilaterais,
para fazer frente aos efeitos negativos das políticas de ajuste estrutural, e enfatizou a
criação de fundos de inversão social, concebidos como elementos centrais para a
implementação da “reforma social” 124 . Dada a capacidade institucional débil dos
organismos governamentais da área social na maioria dos países, a criação dos fundos é
entendida como saída possível para oferecer uma resposta rápida e temporária ao
recrudescimento da pobreza na região 125 .
Os fundos oferecem um cardápio de projetos passíveis de serem financiados, a partir do
qual as entidades, associações e demais agentes podem apresentar propostas. Os fundos,
124
Por esse termo, reforma social, estamos designando um conjunto de prescrições sobre os passos e medidas
para a reforma das políticas sociais na América Latina a partir do fim dos anos oitenta e noventa. As
respostas à crise econômica mundial de fins dos anos setenta na América Latina focalizaram, em um primeiro
momento, políticas de ajuste estritamente monetário, com forte impacto recessivo, principalmente sobre a
parcela mais pobre da população. As diretrizes pautavam-se pela austeridade fiscal, com ênfase em políticas
e processos de ajuste ortodoxo. A não execução de reformas tributárias efetivas, o elevado déficit fiscal e a
inflação marcaram a cena na América Latina nos anos oitenta. Até fins dos anos oitenta, os países
latinoamericanos começam a transcender políticas de ajuste (de caráter recessivo) e a encarar programas de
estabilização e reformas estruturais, orientadas para criar as bases do crescimento econômico (liberalização
de mercados, privatização de estatais e de certos serviços sociais, abertura ao comércio internacional e fluxos
privados de capital). Como lições da década perdida, tem-se uma “transformação silenciosa” na América
Latina, na qual os processos de redemocratização, a ênfase na estabilidade econômica como condição
necessária para o desenvolvimento; abertura externa (redução de tarifas, promoção exportações); revisão do
papel e reestruturação do Estado constituem eixos centrais (Iglesias, 1992, pp. 83-88; Glaessner et alli, 1995,
p. 1).
125
Além de serem potencialmente mais eficazes e eficientes, os fundos também contribuíram para recuperar
a credibilidade do governo frente à sociedade, atuando, em muitos lugares, no fortalecimento da coesão
social e política, desmoronada após a recessão econômica, crises políticas e os conflitos civis (Glaessner et
alli, 1995, p. 3 e 44- 48).Até 1995, existiam doze fundos em onze países: Bolívia (2), Chile, Equador, El
Salvador,Guatemala, Guyana, Haiti, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru.
124
criados para serem provisórios, para durarem até que os efeitos positivos do ajuste
econômico começassem a aparecer, acabaram por se tornar o instrumento privilegiado para
a mitigação da pobreza no continente. Em sua maioria, os projetos financiados via fundos
são de infra-estrutura social e econômica (75 a 90% dos fundos para financiamento),
serviços sociais (distribuição de cupons alimentação, por exemplo), programas de microcrédito, cooperativas, dentre outros. Entretanto, em alguns lugares, os fundos melhor
administrados podem desenvolver programas massivos com rapidez e agilidade,
imprimindo inclusive mudanças na organização e nas formas de gestão dos ministérios
sociais 126 . De forma geral, os custos administrativos são baixos (8 a 13% dos orçamentos
anuais) (Glaessner et alli, 1995, p. xi). A participação por parte dos beneficiários nos
custos dos projetos ou a exigência de contrapartidas são importantes características dos
fundos na região. A capacidade de mobilização de entidades não-governamentais,
religiosas, comunitárias e privadas na gestão dos fundos também é ressaltada (Glaessner et
alli, 1995, p. xi).
Dentre os resultados, tem-se o fortalecimento da participação
comunitária e o reforço da descentralização, favorecendo uma maior participação dos
governos municipais na provisão de serviços sociais básicos (Glaessner et alli, 1995, p. x).
Quanto aos desafios, permanece o da sustentabilidade dos projetos, com a ameaça sempre
presente de não continuidade.
O que interessa aqui são os contornos gerais das estratégias implementadas através dos
fundos, pautadas pela focalização e pelo desenvolvimento de pequenos projetos de cunho
comunitário, participativo, voltados para melhorias das condições de vida de populações
urbanas e rurais da América Latina e Caribe. Não se trata de julgar o valor ou o impacto
que essas institucionalidades estão imprimindo nas condições de vida do conjunto de
famílias e comunidades por elas atendidas; mas de ressaltar a concepção que as sustenta.
Primeiro os fundos foram criados na suposição de que tanto o crescimento econômico
quanto o fortalecimento do aparato governamental seriam condições que se efetivariam no
curto prazo, o que não se verificou. Além disso, nesse tipo de estratégia, tem-se uma
atuação focalizada no problema da pobreza, com projetos em pequena escala, o que de
certa forma mantém esse problema periférico em relação às estruturas centrais dos
governos, sob permanente ameaça de descontinuidade. Os fundos, em síntese, parecem
126
Um exemplo de um fundo com essas características é o FOSIS (Fondo de Solidaridad e Inversion Social),
do Chile.
125
caber melhor em uma matriz residual de proteção do que em uma matriz de corte
universal 127 .
A perspectiva alternativa em termos de estratégias e instrumentos de enfrentamento da
pobreza parte de um ponto diverso. Ao se assumir o problema da pobreza do ponto de vista
da questão social, tem-se que essa se relaciona com o conjunto de princípios da
organização social, sendo entendida (seguindo Castel) como relativa às dificuldades das
sociedades modernas para sustentar a inserção de todos os cidadãos e viabilizar a coesão
social. A questão da pobreza liga-se, nessa perspectiva, à questão do trabalho, entendido
como principal suporte de inserção das pessoas na estrutura social. Assumir a pobreza
como sendo um problema emergente da questão social implica afirmar que uma política
efetiva de combate à pobreza leva a uma visão da pobreza como matéria de interesse
público e generalizável (Lo Vuolo, 1999) 128 .
Ao focalizar as zonas de vulnerabilidade social, espaços sociais instáveis onde se
conjugam de forma perversa a precariedade do trabalho e a fragilidade das redes de
sociabilidade e de proteção social, tem-se a possibilidade de abordar a questão social
tal como ela se manifesta atualmente, quando não há empregos suficientes para
garantir o acesso à renda, elemento básico para evitar e reduzir a pobreza e a
vulnerabilidade. Contra um modo de regulação estática da pobreza, tem-se a
proposta e a efetiva construção de redes universais de seguridade que pautem novos
princípios de organização social. De acordo com essa visão, a pobreza não é matéria
para ficar a cargo de programas assistenciais, que são ineficazes para a inserção e se
justificam, nessa perspectiva, apenas como exceção, como complemento das redes
universais de garantia de recursos básicos. De forma mais concreta, Fanfani (1991)
aponta a necessidade de redefinir ação assistencial como intervenção excepcional,
127
Entretanto, é preciso enfatizar que existem fundos, como o Fosis/Chile, que desenvolvem ações de ampla
cobertura, mobilizando uma quantidade considerável de prestígio e protagonismo efetivo na formulação e
gestão de políticas sociais. O Fosis é o responsável, no Chile, pela execução do componente mais importante
do Sistema Chile Solidário, que constitui o sistema de proteção social naquele país voltado para o combate da
pobreza extrema e que atende a um volume considerável de famílias, mais de 220 mil em todas as regiões
(Fosis, 2002, p.12).
128
A aceitação dessa diretriz, feita de forma “verdadeira” e não meramente retórica ou normativa, tem
implicações para o desenho de estratégias de intervenção que, em decorrência da percepção coletiva do
problema da pobreza, precisam estar presentes de forma prioritária e efetiva na agenda pública e com
repercussões no plano institucional e organizacional, no âmbito da gestão das políticas, integrando políticas
sociais e econômicas, fortalecendo práticas de gestão intersetorial e políticas mais integradas, inclusive no
território.
126
delimitada e pontual, concentrada na atenção às necessidades urgentes dos grupos em
situação de pobreza extrema (alimentação, vestuário, abrigo etc.).
Na visão de Fanfani, é o fracasso das políticas sociais de educação, saúde, moradia, meio
ambiente, obras e serviços públicos para satisfazer as necessidades da maioria da
população o que alimenta e justifica a proliferação de administrações e políticas
assistenciais paralelas (educação não formal, moradia e promoção social, saúde assistencial
etc.). O ponto chave de sua argumentação é que não é desejável ter dois subsistemas
de prestação de bens e serviços sociais, um normal e outro assistencial, quer dizer,
para pobres. E que a chave para delinear um modelo capaz de cumprir ao mesmo tempo
com as promessas da igualdade e liberdade exige novas formas de ver, novos paradigmas.
O ponto central dos autores examinados (e aqui estamos nos referindo a Ruben Lo Vuolo
e Emilio Fanfani, principalmente, e em certa medida também a Fernando Filgueira), é
argumentar a favor de um novo modo de enfrentar a pobreza, baseado em profundas
mudanças políticas, econômicas e institucionais, e em outros princípios de organização
social.
“La necesidad de discutir nuevos conceptos que modifiquen los que prevalecen
actualmente en los modos de organización de nuestras sociedades no se limita a un
objetivo ni a una política en particular. El tema de la pobreza se inscribe en una
discusión mas amplia sobre la falta de racionalidad y la injusticia del tipo de sociedad
que se está imponiendo” (Lo Vuolo, 1999, p. 299).
No mesmo sentido, Fanfani afirma:
“Ninguna estrategia asistencial, que por definición es marginal y estrecha, podrá llevar
a superar las graves situaciones de pobreza absoluta que padecen grandes masas de
población en los países en vías de desarrollo” (Fanfani, 1991, p. 132).
Embora seja difícil não concordar com essas afirmações, é também inevitável, diante delas,
fazer a pergunta: se é assim, que alternativas temos? O que fazer? De forma sensata, o
autor alerta:
“Hay que evitar la tendencia al desarrollo de políticas asistenciales extremadamente
ambiciosas y masivas que siempre terminan con el fortalecimiento de las
administraciones (ministerios, secretarias, programas etc.) paralelas a las clásicas
instancias administrativas de formulación y ejecución de políticas sociales” (Fanfani,
1991, p. 133).
Como desenvolver políticas estratégicas e efetivas para superação da pobreza em um
contexto de pobreza de massa, grande desigualdade e situações de intensa precariedade e
pobreza extrema? A pobreza não é residual e nem se apresenta como excepcional no
127
contexto da maioria dos países da América Latina. Quando afirma a necessidade da
pobreza se constituir como interesse público e generalizável, Lo Vuolo segue Habermas,
ainda que apenas implicitamente, ao apontar para a necessidade de um outro tipo de
racionalidade, para além de uma racionalidade instrumental, e para a vigência de interesses
para além daqueles não generalizáveis (particulares). O que se tem no caso de interesses
não generalizáveis são discursos e ações estratégicas, pautadas em compromissos e
negociações entre as partes interessadas; sempre confrontadas por relações de força e
poder. O desafio é demonstrar que a inserção social não é uma questão que pode ser
equacionada dentro desse paradigma, tratada como uma questão de repressão ou
assistência, mas que exige colocar no centro o conteúdo distributivo do problema e
envolver não políticas isoladas mas sim o conjunto do sistema de políticas públicas,
outros atores e domínios para além do Estado (como o mercado e a sociedade civil).
Nessa perspectiva, a coletividade surge com primazia sobre as partes (os indivíduos),
afirmando que se a pobreza é algo relativo ao todo social, as intervenções devem ser
orientadas para meios e causas estruturais e não para os pobres. O objeto de intervenção
passa a ser a própria sociedade.
Em um outro registro, no campo institucional das políticas públicas, decorre dessa
perspectiva mais “coletivista” da pobreza que as estratégias para enfrentamento da pobreza
não são objetos exclusivos das políticas de assistência ou ainda das políticas sociais, mas
sim do conjunto das políticas públicas. Uma afirmação explicita o ponto: “La clave está tal
vez, en pedirle a las políticas sociales su parte en la construcción de ciudadanía social y
no toda la labor” (Filgueira, 1999, p. 104).
Como modelos de políticas que podem dar materialidade ou operacionalizar essa
perspectiva estratégica de enfrentamento da pobreza, a proposta defendida por um conjunto
expressivo de pesquisadores e agentes atuantes no campo de estudos e ação sobre a
pobreza consiste no estabelecimento de uma renda de cidadania, desenhada para ser
universal e incondicional. Essa renda permitiria o acesso aos bens sociais que definem
“la capacidade para funcionar en el sistema social en cuestión, en tanto lo que una
persona puede hacer depende de su control sobre ciertos bienes, de las características
de los bienes que controla. En economías monetarias como las sociedades modernas,
ese acceso y control depende en gran medida del ingreso del que disponen las personas
para demandar bienes” (Lo Vuolo, 2004, p. 16).
128
A renda de cidadania, por seu caráter universal, incondicional e sua ênfase na inserção,
inspirada por um sistema de conceitos e valores distintos dos que animam o modo de
regulação estática da pobreza, aparece como possibilidade para o enfrentamento da
pobreza, como um dos elementos importantes para promover a inserção e a coesão social
(Lo Vuolo, 1999). No debate sobre a renda mínima de inserção, não se pode desconsiderar
o que foi apresentado no primeiro capítulo sobre a insuficiência, embora se reconheça a
necessidade, da dimensão da renda para caracterizar a pobreza. Entretanto, em sociedades
monetarizadas, sem renda não é possível efetivar a inclusão social. Essa estratégia consiste
em uma efetiva garantia de renda que tem como características básicas ser universal e
incondicional, independente do emprego, que atua em uma perspectiva preventiva e com
níveis de cobertura mais amplos possíveis, pautada por princípios universalistas e pela
ótica dos direitos. Trata-se de um piso de cidadania e não de um teto ou medida única de
inserção social.
Essa estratégia aponta para novas bases de um acordo social, para a necessidade de
repensar os princípios de organização social, que compatibilizem eficiência econômica e
justiça social (Lo Vuolo, 2004, p. 18). De acordo com o autor, a concepção de renda de
cidadania ressalta o “título de direito” (entitlement) que garante o acesso à cidadania. E é
por essa razão a preferência pelo termo renda de cidadania em relação ao de renda básica,
na medida em que esse último se associa com idéias de necessidades básicas ou de pisos
mínimos de pobreza e indigência e a renda de cidadania vincula-se à idéia de
pertencimento, igualdade e ao papel fundamental do Estado na garantia de acesso das
pessoas a condições básicas de bem estar, que devem estar à disposição de todos fora do
mercado (Fanfani, 1991, p. 125).
As políticas de suporte de renda são comuns no conjunto de ações de proteção social 129 ,
embora estas não sejam homogêneas, apresentando distintos critérios de acesso, estando
voltadas para grupos diversos, condicionadas ao cumprimento de requisitos (obrigação de
ser) e comportamentos (obrigação de fazer) por parte dos beneficiários. A maioria dos
129
Em 1961, dispositivos de rendimento mínimo tiveram início na Dinamarca. No ano seguinte, na
Alemanha e em 1963 nos Países Baixos. No Reino Unido, um sistema criado na década de 40 apresenta
características de rendimento mínimo a partir dos anos 60. O rendimento mínimo (minimex) é criado na
Bélgica em 1974 e na França a RMI aparece em 1988, e na Espanha também no fim dos anos oitenta. As
políticas de rendimento mínimo na Europa apresentam uma diversidade de arranjos, critérios e
procedimentos que decorrem de distintas visões sobre pobreza (na forma de pobreza absoluta, pobreza
relativa e exclusão social) e também de distintos contextos e constrangimentos no âmbito das instituições
sociais e políticas. A diversidade entre os tipos de políticas de rendimento mínimo não existe apenas entre os
países, mas também no interior dos países, variando quanto ao público, quanto ao valor das prestações, aos
critérios de elegibilidade, tempo de duração, dentre outros fatores (Guibentif e Bouget, 1997).
129
programas exige verificação de carências, focaliza a complementação do que falta para o
alcance de determinado piso ou teto e exige o cumprimento de certas condicionalidades
para a manutenção do benefício. As políticas de rendimento mínimo na Europa, embora
diversificadas, distanciam-se das políticas de alocação universal pautadas pela
incondicionalidade. A incondicionalidade não é a tônica das experiências em curso, que
contam sempre com algum tipo de condição a cumprir por parte do beneficiário, inclusive
porque isso indicaria o envolvimento do beneficiário com o seu processo de inserção.
Os dispositivos de garantia de rendimentos ou de mínimos sociais, em que pese a
diversidade empírica, têm uma dimensão que extrapola a questão da renda e vincula-se
com a reorganização da proteção social. Nesse sentido, esses dispositivos de rendimento
mínimo têm como vocação
“responder a estas três dimensões da exclusão social (econômica, política e social): a
alocação diferencial garante um mínimo de recursos e de consumo; o facto de o
rendimento mínimo integrar-se na proteção social pretende evitar que possa ser
percepcionado (sic) como uma espécie de esmola, e garantir que seja aplicado
efectivamente como um direito entre outros direitos sociais; finalmente, o rendimento
mínimo opera ao nível do laço social, profissional e familiar, através quer dos
programas de inserção profissional, quer das acções mais localizadas ao nível da
célula familiar” (Guibentif e Bouget, 1997, pp. 54,55).
No debate sobre as políticas de rendimento mínimo, não se discute apenas a renda, mas
também a natureza e a intensidade das relações que se estabelecem com outros
componentes do sistema de proteção (políticas de seguro social e de assistência social),
configurando experiências distintas nos diversos países da Europa. Pode-se identificar,
segundo um importante estudo feito sobre o tema do rendimento mínimo na Europa130 , três
modelos de rendimento mínimo: rendimento mínimo garantido, imposto negativo e
alocação universal (Guibentif e
Bouget, 1997, pp. 55,56). O primeiro (guaranteed
minimum income) é uma alocação diferencial que impede que os rendimentos caiam abaixo
de um patamar considerado mínimo. Seria um dispositivo que, em tese, atuaria como um
desincentivo ao trabalho, pois qualquer ganho com o trabalho seria debitado do valor do
benefício. O imposto negativo (negative income tax) também é uma alocação diferencial,
mas que busca incentivar a procura pelo trabalho, na medida em que o rendimento aferido
130
Trata-se de um livro produzido por Pierre Guibentif e Denis Bouget, em 1997, a partir das análises feitas
para a produção do Seminário Europeu sobre o Rendimento Mínimo, também conhecido como Seminário de
Lisboa, promovido pela União das Mutualidades Portuguesas com o apoio da Comunidade Européia e do
Ministério da Solidariedade e Segurança Social, em 1996. Esse seminário buscou possibilitar o debate e a
reflexão entre agentes governamentais dos diversos países e acadêmicos em torno dos dispositivos de
rendimento mínimo nos países da Europa.
130
pelo trabalho implica um aumento no valor do beneficio recebido. A alocação universal
(basic income), por sua vez, consiste em um montante igual para todos, de forma
independente dos rendimentos do trabalho, sendo essa a proposta – parece que ainda não
implementada em nenhum lugar - defendida por Lo Vuolo.
Um elemento básico nos dispositivos de rendimento mínimo nos diferentes países é que se
trata de uma alocação diferencial, o que significa que o valor do beneficio é definido a
partir da diferença entre o rendimento familiar per capita e um montante considerado
mínimo e, em alguns casos, levando-se em conta também o patrimônio do requerente
(Guibentif e Bouget, 1997, p. 22). Em todas as legislações analisadas pelo estudo em
questão, o foco reside nas condições materiais do requerente, existindo variações entre os
países quanto ao grau de discricionaridade dos serviços competentes sobre a inclusão ou
não do requerente no rol dos beneficiários e de sua permanência. Os dispositivos de
rendimento mínimo são dirigidos para combater a pobreza e, como prestação subsidiária,
articulam-se diferentemente, nos diversos países, com outras prestações sociais e também
quanto ao peso dado aos mecanismos de solidariedade familiar (Guibentif e Bouget, 1997,
pp. 19-21) 131 .
Na análise das legislações sobre as políticas de rendimento mínimo na Europa, os autores
(Guibentif e Bouget, 1997) identificam dois grandes grupos de países que enfatizam
dimensões distintas da problemática da pobreza: um salienta a relação da ausência de renda
com a ausência de emprego (como por exemplo a Alemanha, Luxemburgo, Áustria,
Espanha – algumas regiões, Irlanda, Holanda, Finlândia, Suécia, Reino Unido), e outro
grupo situa o problema da ausência de recursos com a exclusão social, em uma abordagem
mais ampla do que a ausência de emprego (França, Portugal, Bélgica e algumas regiões da
Espanha) (Guibentif e Bouget, 1997, pp. 14,15). No primeiro grupo, a disponibilidade para
aceitar emprego é uma das condições de acesso aos benefícios, o que é revelador dessa
preocupação. Quanto às legislações que se sustentam na perspectiva da exclusão social,
dois elementos são básicos: a) as medidas de reinserção não se concentram unicamente na
dimensão do emprego e b) as medidas se baseiam em um contrato estabelecido entre o
131
Também as experiências variam quanto aos critérios de determinação do montante de base para o
rendimento e as modificações que podem ser feitas nesse valor em razão da composição da família (Guibentif
e Bouget, 1997, pp. 26,27) a duração da prestação (Guibentif e Bouget, 1997, pp. 31, 32) ou o papel de cada
nível federativo quanto ao financiamento das medidas de rendimento mínimo (Guibentif e Bouget,1997, pp.
37-39). Quanto à comparação em relação ao número de beneficiários dos rendimentos mínimos nos
diferentes países, bem como a evolução da despesa com esse dispositivo ao longo do tempo, os autores
apresentam uma série de constrangimentos e dificuldades estatísticas que tornam temerária uma comparação
dos países quanto a esses pontos (Guibentif e Bouget, 1997, pp. 45-49).
131
requerente/beneficiário e a coletividade e não é algo que remete exclusivamente ao
interessado, como no caso anterior (Guibentif e Bouget, 1997, p.p. 16,17).
Diferentemente dos rendimentos mínimos, a renda cidadã 132 , ou alocação universal, por
sua vez, não requer verificação de carências, porque é paga a todos. É garantida ex ante e
de forma preventiva, é um piso sobre o qual as pessoas podem acumular qualquer renda e
dessa forma evitam tanto a armadilha da pobreza como o estigma 133 . Essa renda
constituiria o meio mais direto para possibilitar a inserção social, em um contexto onde o
trabalho não opera mais como o elemento principal de vinculação e posicionamento social.
A suposição básica é de que os cidadãos desenvolvem ações socialmente úteis e que
merecem ser pagos com parte da riqueza criada socialmente, ainda que tais ações ocorram
fora do âmbito do mercado (Lo Vuolo, 2004, p. 27). Nas palavras do autor,
“no se requiere trabajar (como es el caso del salário), ser declarado incapaz
(jubilación por invalidez), haber contribuído com uma prima de seguro (jubilación
ordinária, obras sociales), demonstrar que se está desocupado (seguro de desempleo) o
ser pobre (programas asistenciales focalizados)” (Lo Vuolo, 2004, p. 21).
As alterações necessárias para implementar políticas efetivas de enfrentamento da pobreza
não se reduzem à escolha entre políticas de transferência de renda mais ou menos
universais, embora essa seja uma questão que tem monopolizado a discussão sobre
estratégias de intervenção, como pode ser visto pelo extenso debate sobre rendimento
mínimo de inserção e renda de cidadania na Europa. Ao se examinar essas alternativas
(renda mínima, renda de cidadania), está-se considerando apenas um elemento, necessário,
mas de toda forma não suficiente, para enfrentar de forma efetiva situações de pobreza
extrema. Essa quantia, calculada como suficiente para possibilitar um certo padrão mínimo
de consumo das famílias pode de fato fazer a diferença entre ter ou não ter a refeição para
o dia. Mas uma intervenção estratégica contra a pobreza requer outras ações, bem mais
complexas e articuladas.
No Brasil, o Bolsa Família é um programa de alocação diferencial de renda, pautado por
condicionalidades e orientado para atender ao conjunto das 11,2 milhões de famílias em
132
Também conhecida como renda básica (ingreso básico), salário do cidadão (citizen´s wage), dividendo
social (social dividend), subsídio universal, renda social (social income, revenu social) (Lo Vuolo, 2004, p.
21).
133
A armadilha da pobreza é decorrente do desincentivo dos beneficiários em buscar outras fontes de renda,
uma vez que isso implicaria o não acesso ao benefício. O estigma relaciona-se aos efeitos perversos advindos
da verificação de carência. Tanto o desincentivo ao trabalho quanto o estigma são elementos comuns em
alternativas de repasse de renda tradicionais (Lo Vuolo, 1999, p. 250). Para esse autor e para os defensores
de uma política de renda de cidadania, uma política que marca ou registra o pobre não é uma política de
combate à exclusão, mas a consolida, no final das contas.
132
situação de pobreza e indigência 134 . É um programa federal executado com a participação
dos municípios e que supõe o desenvolvimento de ações e programas complementares por
parte do poder municipal (Cohn, 2004, p. 10). A aposta do Programa é buscar
“uma articulação horizontalizada na área social entre as distintas esferas de governo,
buscando-se sempre ter como prioridade o público alvo dos programas de
transferência como foco prioritário de articulação dos programas que vêm sendo
implementados na área social, independentemente da origem da iniciativa por esfera
da federação” (Cohn, 2004, p. 10).
Não se trata de um programa que tenha a transferência de renda como um fim em si
mesmo, mas que supõe a inserção dessa estratégia em um conjunto mais amplo de ações
voltadas para um efetivo desenvolvimento social no país, conforme afirma Cohn (2004, p.
10). Trata-se de uma aposta e ainda de uma promessa, cuja viabilidade está condicionada,
dentre outros fatores, por uma coordenação mais articulada entre os diversos entes
federativos, por uma articulação maior entre políticas econômicas e sociais e por uma visão
mais estratégica, por parte dos diversos setores das políticas públicas, sobre a pobreza e a
questão social que ela manifesta (Cohn, 2004).
Conforme discutido no primeiro capítulo, a problemática da pobreza e, principalmente, da
pobreza crônica, exige uma atenção a outras dimensões que não a renda. Para a pobreza
crônica, sobretudo, políticas de transferência de renda são claramente insuficientes, embora
necessárias. Não é mais possível, dado o conteúdo e a abrangência do debate atual sobre o
tema da pobreza, principalmente crônica, insistir na renda como categoria suficiente para
caracterizar de forma apropriada situações de privações intensas, nas quais a ausência ou a
precariedade de renda é apenas um componente, ainda que seja um componente central.
Considerando a possibilidade de redução da pobreza crônica pela via da transferência de
renda algumas questões são pertinentes de serem avaliadas: qual é o impacto desses
programas, centrados na renda, na redução da pobreza crônica? Para medir esse impacto,
quais devem ser as dimensões, variáveis e indicadores escolhidos? Reconhecendo as
múltiplas formas pelas quais a pobreza se expressa, como a renda contribui para alterar
outras dimensões da vida? É suficiente transferir renda? Se sim, em que proporção e por
quanto tempo? Estudos sobre esses pontos ainda são incipientes, embora sejam necessários
134
As famílias com renda per capita de até R$ 50,00 recebem um valor fixo de R$ 50,00 além de R$15,00
por criança; famílias com renda per capita entre R$ 50,00 e R$ 100,00 recebem apenas o valor variável por
criança (Cohn, 2004, p. 9). De acordo com os dados do site, de agosto de 2005, o Ministério do
Desenvolvimento Social investe mais de R$ 474 milhões, por mês, no programa.
133
e mesmo centrais para nortear o desenvolvimento mais consistente de estratégias de
enfrentamento e superação.
3.4 Combinando universalismo e seletividade: os difíceis termos da equação
Entender as posições metateóricas, os substratos teóricos dos modelos, suas implicações e
limites constitui um exercício necessário para pensar alternativas de inclusão social.
Novamente aqui fica clara a distinção entre as duas grandes matrizes que organizam os
termos do debate sobre modelos e alternativas de proteção social. Por um lado, tem-se a
perspectiva da reforma do setor social pelo viés liberal, que enfatiza os efeitos benéficos da
focalização e descentralização, ao possibilitarem maior eficiência, equidade e participação
dos beneficiários na gestão dos programas 135 . A segunda perspectiva defende os princípios
de incorporação universalista e de forte institucionalização, passando muitas vezes ao largo
das dificuldades e problemas que tais modelos de corte mais universal enfrentam no
contexto atual (Filgueira, 1999, p. 78).
Como visto no início do capítulo, a tendência dominante na América Latina e Brasil
quanto à produção das políticas sociais alinha-se com um modelo residual de proteção
social, com as garantias universais estabelecidas no plano normativo e legal, mas ainda
pouco efetivas em seu processo de implementação. Os desenhos das políticas de proteção,
nesses contextos, conferem prioridade para estratégias de focalização e seletividade, ainda
que as determinações constitucionais apontem para maior universalismo na provisão dos
serviços. O argumento que justifica e legitima a focalização 136 nas políticas sociais advém
da possibilidade de maior eficiência do gasto social, que poderia chegar de forma mais
efetiva aos setores mais pobres e necessitados de proteção social.
Entretanto, essa estratégia apresenta muitos efeitos perversos que não são irrelevantes,
principalmente se levarmos em conta as dimensões relacionais e o papel das dimensões
135
Ao lançar luz sobre os pontos potencialmente positivos pode-se deixar na sombra também os efeitos
negativos e perversos das mudanças em curso. Dentre elas, a apropriação clientelista de programas
focalizados, por exemplo, a depender das configurações políticas e da organização social local. Programas
focalizados limitam também a interação entre classes e grupos sociais, alimentando o estigma e diminuindo o
capital político, ao destruir as coalizões entre as classes que sustentavam a existência dos bens coletivos.
Basicamente os modelos de cunho liberal se apóiam fortemente no mercado e na sua capacidade de atuar
como elemento de incorporação social (Filgueira, 1999, p. 78).
136
Nas políticas focalizadas, segundo Raczynski (1999), as categorias para as quais se destinam as ações são
definidas a partir de critérios de necessidades, pobreza ou risco. Como mecanismos operacionais nos quais a
focalização apóia-se tem-se: a) focalização por demanda, na qual se parte da identificação de indivíduos e
domicílios pobres; b) focalização por oferta, que parte de estabelecimentos que já desenvolvem serviços de
natureza focalizada e c) focalização geográfica, que delimita territórios onde se supõe ter uma alta
concentração de pessoas que cumprem os critérios de acesso (Raczynski, 1999).
134
psico-sociais envolvidas na produção e reprodução da pobreza. Discriminar pobres e não
pobres pela renda pode ter como conseqüências perversas o crescimento do estigma, a
dependência, a diluição do protagonismo e da criatividade dos usuários.
Um ponto central da caracterização dos modelos mais ou menos residuais de proteção
social é, portanto, o da focalização. Ao priorizar políticas de transferência de renda
extremamente focalizadas e baseadas na verificação de carências, tem-se a presença da
velha instituição do certificado da pobreza, como lembra Fanfani, com todas as
conseqüências que essa perspectiva acarreta, de gerar uma discriminação explícita e
formal. Outro efeito perverso correlato refere-se ao fato de que, ao se adotar políticas
muito focalizadas, estas minam as chances de sustentabilidade e de garantia de qualidade
dos serviços. Isso porque ao focalizarem exclusivamente os mais pobres, excluem setores
não-pobres, camadas médias, que possuem maior poder político e voz, o que reduz a base
de sustentação, pois as políticas se apoiariam em grupos com pouca capacidade de
mobilização e de pressão. Com essa estratégia, não existem pontes de comunicação ou de
construção coletiva entre os dois grupos, o que gera segmentação e dualidade social e
indisposição para o financiamento do sistema por parte dos não pobres (Molina, 2003, p.
14). A crítica central à focalização reside precisamente no potencial intrínseco de
estigmatização que essa estratégia espelha, minando as possibilidades reais de construção
de cidadania a partir de uma relação de estigma, dependência e identidade negativa. Esse
ponto, por si só, favorece a adoção de uma perspectiva orientada para diminuir a
“segmentação institucional” do programa em relação a outros de corte universal e enfatizar
a ótica da solidariedade e do direito e não da caridade, filantropia ou tutela (Filgueira,
1999, p. 102). O ponto aqui é que não são irrisórios os efeitos estigmatizantes e de
“etiquetamento” que essas estratégias acarretam, produzindo “cidadãos de segunda classe”,
que se encontram permanentemente ameaçados em sua dignidade (Fanfani, 1991, p. 125).
O modelo de proteção para pobres não favorece a participação, a autonomia e o
empoderamento, e dessa forma fortalece a cidadania invertida, que não gera deveres e
responsabilidades, mas dependência (Fleury, apud Molina, 2003, p. 15; Filgueira, 1999, p.
102).
As políticas de corte universais, por sua vez, favorecem as bases de solidariedade
inter classes e esse é um ponto relevante e com conseqüências importantes para o
desenho de estratégias de intervenção.
135
Outro ponto permite reforçar a justificativa para a adoção de modelos mais amplos de
proteção. Existem evidências (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005) 137 de que os
modelos mais universalistas de proteção social podem estar mais fortemente associados
com menor pobreza e desigualdade e essa constatação pode servir para orientar o caminho
que se pretende seguir na América Latina, que sofre os constrangimentos dos processos de
globalização e apresenta condições mais débeis para enfrentá-los. Embora seja difícil
estabelecer, sem ambigüidades, relações de causa e efeito, os autores sustentam a
correlação entre sistemas de proteção mais universalistas e a existência de menor nível de
pobreza nos países que os adotam. Para além das disputas programáticas, valorativas e
meta-teóricas, têm-se evidências de que os sistemas de proteção social da Europa
Continental, com investimentos altos, estão associados a menos pobreza, absoluta e
relativa, e a menor desigualdade. As evidências apontam que o gasto social nesses
países reduz a proporção de pessoas na pobreza, seja esta medida em termos relativos
ou absolutos. Os sistemas mais universalistas de proteção social são claramente
exitosos na redução da pobreza, principalmente se comparados com sistemas de
matriz liberal ou residual 138 .
Embora as evidências do impacto positivo dos sistemas de proteção mais amplos sobre a
pobreza estejam presentes no debate, a decisão de se adotar modelos de proteção social
mais universalistas ou residuais é prisioneira de interesses e condições que extrapolam o
reconhecimento de sua eficácia. A magnitude do problema, os recursos existentes, os
137
Não se trata aqui de recuperar essas evidências ou avaliar a sua consistência de forma a permitir confirmar
ou não a existência de um nexo causal entre políticas universais e maior redução da pobreza e desigualdade,
mas de apontar que essa é uma afirmação que supostamente se mantém, segundo os autores examinados
(Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005).
138
Os Estados Unidos encontram-se na posição de maior pobreza e menor gasto social, ao contrário de países
como Dinamarca ou Suécia. Evidências também demonstram que, além de mais pessoas serem pobres nos
Estados Unidos e no Reino Unido, quando comparados com países da Europa Continental, a duração da
situação de pobreza para os americanos é maior. Quando se observa a pobreza por faixa etária nos diferentes
países, essas distinções ficam ainda mais evidentes. Na Suécia e na Bélgica, por exemplo, menos de 5% das
crianças vivem na pobreza. Esse número sobe para 10% na França e Alemanha e chega a 20% na Itália,
Estados Unidos ou Reino Unido (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p.5). Do ponto de vista da estrutura
de desigualdade, Suécia, Bélgica, França, Alemanha e Holanda apresentam uma desigualdade menor do que
a existente nos países anglo-saxões. Os autores chamam atenção para um aspecto interessante na análise de
taxas de pobreza entre países. Buscando captar o impacto do gasto na redução da pobreza, as simulações
apontam que, embora Suécia seja um dos países de menor pobreza e desigualdade após as transferências,
encontra-se em uma situação de “alta” taxa de pobreza antes das transferências; ao contrário dos Estados
Unidos, por exemplo, cuja porcentagem de pobres antes das transferências é mais baixa do que em qualquer
país europeu. A proteção social de caráter universalista dos países da Europa Continental contribui para
alterar, a partir dos impostos e benefícios, situações de grande desigualdade antes das transferências:“Em
realidade, ao comparar as taxas de pobreza antes e depois dos impostos e transferências, fica claro que os
impostos diretos e as transferências sociais contribuem bastante para o alívio da pobreza em todos os
países, mas nos Estados Unidos menos que nos outros” (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p.8).
136
grupos e interesses em jogo condicionam essa escolha, que não se faz com base
exclusivamente nas virtudes ou na efetividade do modelo de intervenção.
A combinação virtuosa de políticas distintas, universais e focalizadas, desenhadas
estrategicamente, orientadas para o futuro e também para provocar profundas alterações no
tratamento da questão social, é o que decorre do exame da literatura sobre o tema das
políticas de combate à pobreza. Em outros termos, R. Carneiro (2005) aponta, de forma
incisiva, para o mesmo conjunto de preocupações:
“sem desconhecer ou negligenciar os ganhos potencializados por ações focalizadas,
iniciativas com tal configuração não são suficientes para lidar com as desigualdades, à
medida que não incidem sobre as causas estruturais do fenômeno e sua reprodução no
tempo. Indo direto ao ponto, não bastam medidas de cunho compensatório voltadas
para amenizar os efeitos perversos que acometem grupos marginalizados ou
perdedores na dinâmica competitiva de mercado. Por mais meritórios que sejam os
resultados obtidos, programas ou projetos focalizados que não estejam articulados a
políticas sociais de orientação universalista dificilmente potencializam transformações
substantivas na realidade com a qual interagem, prestando-se mais àquilo que, numa
linguagem coloquial, é tratado como ´enxugar gelo´” (R. Carneiro, 2005, p. 8)
Combater a pobreza é, contudo, uma meta antes de tudo política e demanda o compromisso
da sociedade como um todo. Esse é um dos pontos destacados por Raczynski, Lo Vuolo,
Fanfani, Filgueira. Sem essa alteração de fundo ou perspectiva no horizonte, que acena
para um ideário mais republicano que liberal, as formas de enfrentamento da pobreza
permanecerão pouco estratégicas, configurando uma administração da pobreza e não
efetivamente orientadas para sua superação.
Entretanto é importante salientar, como afirma de forma lúcida e bastante arguta R.
Carneiro, que as respostas ao problema da exclusão não apresentam o mesmo significado
em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Embora extenso, vale a pena citar a
passagem na qual o autor sintetiza seu argumento:
“Evitar a exclusão, prevenindo ou minimizando sua manifestação, é uma realidade que
tem mais a ver com os países capitalistas desenvolvidos, cujas políticas de bem estar
apresentam conteúdos abrangentes e orientações universalistas. Trata-se, mais
especificamente, de bloquear a retroação de direitos que se supunham consolidados e
de assegurar o efetivo direito a ter direitos, impedindo a emergência ou
aprofundamento de uma situação de dualidade no tocante às condições de acesso da
população à seguridade social e aos serviços provisionados pelo Estado, típica de
países periféricos, como o Brasil. Promover a inclusão, por sua vez, representa uma
realidade mais próxima dos países periféricos, com políticas de bem estar restritas em
termos de conteúdo e de cobertura. Em países como o Brasil, vale lembrar, os excluídos
não são residuais, mas parte importante da população, nem temporários, mas
estruturais, refletindo direitos que são instituídos e apenas parcial ou seletivamente
assegurados, bem como déficits expressivos no direito a ter direitos, num processo que
segrega e reifica a pobreza, para reproduzi-la de forma ampliada através do acúmulo
de precariedades....(nos países capitalistas avançados) .... o risco principal é o da
137
exclusão, com a segregação ou marginalização vindo de encontro aos princípios
estabelecidos de organização da solidariedade e da integração na sociedade, o que
abre, ou pode abrir, fraturas importantes no tecido social...(nos países em
desenvolvimento)... o risco principal é a ocorrência de uma segmentação ainda maior
num tecido social institucionalmente frágil” (R. Carneiro, 2005, p. 7).
Um ponto para o qual as considerações acima chamam a atenção refere-se à necessidade de
condições institucionais adequadas para a produção de políticas efetivas de enfrentamento
da pobreza, que sejam suficientemente amplas para garantir direitos de forma universal e,
ao mesmo tempo, suficientemente específicas para fornecer respostas a demandas
heterogêneas. A adoção do enfoque da exclusão tende a considerar com ênfase a
perspectiva dos direitos e da solidariedade. Mas direitos, sem condições de efetivação, são
como prescrições inócuas. Para viabilizar direitos, é necessário desenvolver capacidades
institucionais. As opções políticas no campo da proteção social devem ser, em uma
perspectiva mais normativa, porosas às necessidades e realidades dos indivíduos,
domicílios e comunidades. A implementação de estratégias de proteção social depende de
capacidade institucional e de governo, e recursos humanos, financeiros e físicos. Portanto,
essa condição traduz-se em institucionalidades com estruturas relativamente estáveis de
governança e implementação. O desafio de fortalecer a capacidade dos governos e das
políticas públicas para os pobres em situação de pobreza crônica, ou os mais pobres, requer
uma capacidade institucional mais sofisticada e meios mais robustos para identificar e
atender os que demandam uma atenção especial (Norton, Conway, Foster, 2001, pp.
15,16).
Ao conjunto de questões relativas aos conteúdos das políticas, como visto nesse capítulo,
somam-se outras, relativas a alterações no campo da gestão e das formas de
operacionalização da ação pública, das relações entre os níveis de governo e entre o
governo e sociedade. Mudanças na forma de produção das políticas combinam-se com as
alterações substantivas, relativas ao conteúdo das políticas de proteção social e,
principalmente, das políticas de combate à pobreza. O próximo capítulo mapeia os
principais pontos de ruptura e inflexão no âmbito da gestão pública, com foco nas
alterações que são mais significativas para o campo das estratégias de superação da
pobreza e exclusão.
138
CAPÍTULO 4 - MUDANÇAS
NO CAMPO DA PRODUÇÃO DAS POLÍTICAS DE
PROTEÇÃO SOCIAL
Ao longo das duas últimas décadas importantes redefinições têm sido feitas nos sistemas
de proteção sociais. Além das mudanças substantivas nas políticas setoriais, que envolvem
alterações na cobertura e nos critérios de acesso, nos tipos de políticas desenvolvidas,
discutidas no capítulo anterior, ocorrem mudanças no âmbito operativo das políticas, que
marcam a passagem de uma gestão pública tradicional para uma gestão pautada por outros
vetores, tais como flexibilidade, participação, pluralismo, integração. Além disso, observase alterações no âmbito territorial, com a perda do monopólio dos estados-nação no
desenho e provisão de políticas, o que remete à emergência dos planos de ação local e
transnacional (Brugué e Gomà, 1998, pp. 41-42). Tal movimento permite afirmar uma
dimensão local do bem estar social, com o fortalecimento dos governos locais, que
expandem sua agenda e são chamados a desempenhar papéis mais estratégicos.
As questões de fortalecimento do âmbito local relacionam-se com as mudanças no
contexto atual - “contexto da segunda modernidade” 139 – que envolvem alterações na
ordem social, econômica, política, cultural e institucional e que afetam, inclusive, a forma
de organização da produção de políticas sociais. Os desafios de construção de uma
institucionalidade de proteção social adequada para o enfrentamento estratégico da pobreza
não se processam em um vazio histórico ou social.
Ricard Gomà (2004) identifica três eixos de alterações, que envolvem mudanças
socioeconômicas e sócio-culturais, exigindo, mas ao mesmo tempo impondo
constrangimentos à ação do Estado e do setor público. Os vetores são: a) o vetor da
complexidade, que sinaliza a passagem de uma sociedade fortemente estruturada em
classes para uma sociedade cruzada por outros tipos de desigualdade (etnia, religião,
gênero etc.); b) o vetor da subjetivação, que marca a alteração de uma sociedade
estruturada, de caráter mais previsível e conformada por amplos coletivos com interesses e
valores padronizados para uma sociedade de riscos e incertezas e na qual as
individualidades apresentam menos conexões com estruturas coletivas e c) o vetor da
139
Este termo – segunda modernidade – é usado na literatura para designar processos contemporâneos que
são abordados via o tema da globalização, para designar um momento histórico com diferenças substantivas e
radicais em relação ao contexto da primeira modernidade, que instituiu o modo de produção industrial,
capitalista. Alguns autores – Anthony Giddens, Ulrich Beck – usam outros termos (como modernidade
reflexiva) para identificar também essa transição; enquanto outros remetem ao tema da pós-modernidade. De
toda forma, tem-se marcado aí o caráter específico do contexto atual em relação ao momento anterior, da
modernidade tal como a conhecemos.
139
exclusão, que expressa a passagem de uma sociedade de relações verticalizadas e de
subordinação para uma sociedade polarizada segundo uma outra lógica, em termos de
dentro e fora (Gomà, 2004, p. 15). Tais vetores implicam mudanças no campo das políticas
e da conformação de estruturas de bem estar, conforme sintetizado no quadro abaixo.
Quadro 8 - Vetores e diretrizes de políticas no contexto da segunda modernidade,
segundo R. Gomà
Vetores
Implicações
Diretrizes e Políticas
Complexidade
Redefinição conceitual e
operativa das políticas
sociais
Integralidade na formulação e transversalidade como lógica de
implementação das políticas: políticas transversais (capazes de
integrar a complexidade)
Subjetivação
Redefinição dos aspectos
relacionais das políticas de
bem estar
Oportunidades de participação e ampliação da dimensão
deliberativa e comunitária (rede de compromissos pessoais).
Políticas participativas (capazes de assumir processos de
subjetivação)
Exclusão
Redefinição da dimensão
substantiva das políticas
Nova agenda de inclusão orientada a debilitar fatores geradores
de marginalização e de inserção multidimensional. Políticas de
inclusão (capazes de promover novas lógicas de coesão e
redistribuição)
Fonte: Elaboração própria a partir do texto de Gomà, 2004, p. 15.
Transversalidade, participação e o foco na inclusão são os elementos das políticas de bemestar que decorrem das mudanças no contexto da segunda modernidade, como formulado
por Gomà (2004). Na fase de profundas alterações dos sistemas de bem estar, ganha
evidência o papel dos governos locais, entendidos como sendo mais capazes de
desenvolver políticas flexíveis, territorializadas, com componentes que enfatizam a
dimensão pessoal e comunitária das políticas de proteção social, requeridas para responder
às transformações em curso (UAB, 1998, p. 21). A maior capacidade do nível local para
identificar necessidades e fornecer respostas mais moldadas a elas constitui, a nosso ver, o
principal argumento em direção a políticas com ênfase na dimensão local, em uma
perspectiva de governo de proximidade, no sentido mais direto de ser mais próximo e mais
sensível às necessidades identificadas, para formular respostas flexíveis e adaptáveis a
situações heterogêneas e a demandas mais específicas.
Na primeira parte do capítulo são mapeados elementos da perspectiva emergente no campo
da gestão de políticas públicas, que enfatizam a politização da gestão, o fortalecimento dos
governos locais, a concepção de redes e governança, centrais no marco das políticas locais
de inclusão social. As políticas locais de inclusão social constituem o objeto da segunda
seção, examinadas a partir da modelagem das políticas de serviços pessoais, uma
formulação que busca exprimir a nova conformação das políticas de bem estar com base no
140
âmbito local 140 . Na terceira parte, tem-se um exemplo de estratégia em curso no Chile que
utiliza uma perspectiva centrada em aspectos e dimensões também presentes nas políticas
de inclusão em curso na Europa, voltadas para um público em situação de maior
vulnerabilidade social.
4.1 Poder local e governança: elementos de inovação na gestão
Desde o pós-guerra, a autonomia local entra na agenda como forma de melhor realizar os
objetivos das políticas de proteção social. Dois argumentos são mobilizados para justificar
a valorização do âmbito local: um que se pauta pela perspectiva alocativa, e outro que
enfatiza a dimensão da accountability e controle público, em uma perspectiva que valoriza
a participação e ampliação e adensamento da prática democrática (Brasil, 2004). A noção
de governança local apresenta uma dimensão normativa, que agrega eficiência alocativa
com accountability, e delimita os contornos e as características centrais dos modelos de
cidades e de gestão local, que servem de referência e pautam a ação de governos locais
(Brasil, 2004), também no âmbito da proteção social.
Para dimensionar o alcance e a natureza das mudanças em curso na conformação de
sistemas de proteção social, Brugué e Gomà reconhecem dois modelos básicos em torno
dos quais se organiza, na Europa entre os anos 50 e 80, o papel dos municípios no sistema
de proteção 141 . Por um lado tem-se o modelo anglo-saxão e escandinavo, no qual os
140
Até onde pode-se perceber, a formulação de políticas de serviços pessoais é fruto de pesquisas e
elaborações analíticas dos pesquisadores ligados à Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) e do Centre
d´Investigació, Formació i Assessorament (CIFA). O marco inicial dessa abordagem parece ter sido a
publicação do Mapa de los Servicios Personales Locales: hacia um modelo integral, estratégico,
comunitário y participativo, publicado por essas instituições e pela Diputació de Barcelona/Patronat Flor de
Maig, em 1998. Trata-se de uma forma de organizar os serviços locais de proteção social que foi implantada
em Barcelona e também em outras regiões da Espanha.
141
Analisando a questão do ponto de vista dos governos locais e não especificamente dos governos locais nas
políticas de proteção social, Brugé e Gomà consideram a questão sob dois eixos: o localismo, contraposto à
nacionalização; e a politização, contraposta ao gerencialismo. Por meio dessas categorias, os autores
consideram duas tradições. A primeira é a tradição francesa e de outros países da Europa, nas quais os
municípios contam com grande autonomia, segundo o princípio das competências gerais, “que se aplica a
estos municípios proclama su potestad para desarrrollar todas aquellas actividades que, sin ir en contra de
la ley, se destinen a la mejora o la promoción de su comunidad” (Brugué e Gomà, 1998, p. 16). A esse
modelo se contrapõe o anglo-saxão, nos quais os municipios não têm autonomia, e aos quais não se delega
poder, mas sim funções, conforme afirmam os autores. Esse último modelo foi adequado para a fase de
vigência do estado de bem estar, que requeria grande capacidade executora dos municípios para provisão de
bens e serviços; capacidade de ação e não de formulação. A tese que os autores desenvolvem apontam para
uma substituição, por um lado, da tese da nacionalização pela do localismo e, por outro, pela substituição da
tese da gerencialização pela tese da repolitização do nível local, analisando essa alteração substancial em três
campos ou setores: no âmbito das políticas de proteção social, no campo da promoção econômica e na área
de urbanismo. De acordo com a tese da nacionalização, o governo local seria irrelevante pelo fato de não
apresentar autonomia decisória, recursos ou capacidades de atuação. De acordo com a tese da
gerencialização, o governo local é irrelevante porque concentra-se em desenvolver tarefas gerenciais ou
administrativas que o justificam (Brugué e Gomà, 1998, p. 17).
141
municípios apresentam uma alta capacidade gerencial, grandes burocracias, sendo os
“braços executores” das políticas universais; contudo, eles têm baixa autonomia e
capacidade política, sendo concebidos como “agências territoriais do estado” central. Esse
modelo, denominado administração municipal de bem estar, contrapõe-se ao modelo de
governo local residual, próprio dos países continentais, que apresenta alta capacidade
política para formular intervenções comunitárias e redes de assistência social mas que fica,
segundo os autores, à margem dos grandes serviços do estado de bem estar social. Os
governos locais, no segundo modelo, apresentam baixa capacidade de gestão e alta
capacidade política, sendo que a definição e a gestão do que é significativo em termos de
proteção (transferências no âmbito da seguridade social) são implementadas nos níveis
acima do nível local. Modelos de governo local residual (baixa capacidade gerencial e alta
capacidade política) se contrapõem a modelos de administração local de bem-estar (alta
capacidade gerencial e baixa capacidade política) e é a partir dessa distinção que os autores
analisam as tendências de mudanças na provisão local de bem estar social (Brugué e
Gomà, 1998, pp. 40,41).
Os movimentos dos diversos países da Europa sinalizam uma maior ou menor proximidade
com cada um desses tipos ideais de relações entre nível local e o nível central da decisão
política e da ação pública. No Brasil, as competências do Estado federativo impõem
condições e limites de atuação aos municípios, que envolvem aspectos como o
financiamento e a arquitetura legal e institucional das políticas, apesar de os municiípios
gozarem de autonomia como entes federados. Independente das diferenças registradas, é
importante destacar o papel crescente dos municípios na provisão dos serviços sociais,
sendo que esses municípios enfrentam sérias dificuldades de manter políticas estruturadas,
de corte universal, com a cobertura e com o escopo necessário para conter processos de
pobreza e exclusão.
Uma primeira aproximação desse tema é pela via da concepção de governança. O termo,
embora não seja específico à literatura de políticas de combate à pobreza, introduz um
componente institucional importante para a discussão das políticas de inclusão. A
concepção de governança é entendida aqui sob a dupla perspectiva da repolitização do
nível local e da constituição de redes horizontais e multiníveis (Blanco e Gomà, 2003).
O reconhecimento da complexidade, da participação e de redes plurais e a emergência de
novos papéis, relações e instrumentos do poder público constituem a base do termo
142
governança, que diz respeito, de forma geral, à “capacidade para afrontar nuevas
temáticas y satisfacer nuevas expectativas”. Essa noção remete à “profundización
democrática en clave más ciudadana y participativa” (Blanco e Gomà, 2003, p. 22).
Governança refere-se tanto à existência de “espaços locais politizados” quanto à gestão de
“redes participativas”, horizontais e com múltiplos níveis (Brugué, Gomà, Subirats,
2002) 142 .
Para Blanco e Gomá (2003), flexibilidade, coordenação e transversalidade constituem os
elementos enfatizados nesse modelo de gestão, com conseqüências na forma do Estado
atuar também no campo da proteção social. Nesse contexto de mudanças 143 , a valorização
da proximidade, entendida no mesmo registro do fortalecimento do âmbito local, pode
corresponder a uma gestão pública mais próxima dos cidadãos e emerge como locus mais
adequado para lidar com a diversidade de situações e onde é possível desenvolver novas
dinâmicas de participação nos processos de governo.
O espaço local tem sido apontado como locus no qual a inovação nas políticas pode surgir,
a partir da interação de esforços entre um amplo conjunto de atores da sociedade civil e do
142
Em uma abordagem menos “pós-moderna”, tem-se uma visão de governança entendida como capacidade
de gestão, um atributo do Estado. Genericamente definido como “capacidade de ação do Estado na
implementação das políticas públicas e na consecução das metas coletivas” (Diniz,1998, p.13), o conceito de
governança apresentaria três dimensões fundamentais. A primeira diz respeito à capacidade de comando e
direção do Estado, tanto interna quanto externamente, o que significa não só este assumir a direção efetiva do
processo de produção de políticas como também a definição e ordenamento de prioridades, garantindo a
continuidade das políticas ao longo do tempo. A segunda dimensão, complementar à primeira, diz respeito à
capacidade de coordenação do Estado, que se refere à integração necessária entre as diferentes áreas do
governo, visando garantir a coerência e a consistência da política governamental e também o equilíbrio entre
políticas de maior alcance e abrangência e políticas mais setorializadas e focalizadas. Uma dimensão distinta
da capacidade de coordenação envolveria também a capacidade de agregar politicamente os diversos
interesses, incluindo a administração dos conflitos e a organização das formas de cooperação entre interesses
e visões diversos. A última dimensão é a capacidade de implementação. Esta se refere à capacidade de
mobilizar os recursos organizacionais, financeiros e políticos necessários à execução das decisões
governamentais, referindo-se à disposição e à capacidade de criação de instrumentos e de condições
operacionais satisfatórias para a viabilização das ações (Diniz,1995, pp. 401-403; Diniz,1996, p.17;
Diniz,1998, p.16). Portanto, o aumento da eficácia da ação estatal não depende apenas de aspectos técnicos e
administrativos, mas também envolve a dimensão política das atividades governamentais. O sucesso das
políticas governamentais demanda algo mais que recursos institucionais e financeiros: requer a mobilização
dos meios políticos de execução. Isso envolve a preocupação com a sustentação política das ações
governamentais, a adesão de atores diversos na implementação das políticas; requer a ruptura com o
insulamento burocrático dominante no estilo tecnocrático e a adoção de práticas cooperativas de gestão. Os
requisitos contemplados pelo conceito de governança envolvem, necessariamente, a adoção de mecanismos e
procedimentos que favoreçam não apenas a participação e a incorporação política e uma maior articulação
entre Estado e sociedade, mas também que viabilizem o controle público da ação governamental (Clad,2000).
143
Nesse momento de transição, os limites entre as distintas perspectivas não são tão nítidos e não existe um
solapamento total do governo tradicional para dar vazão a uma governança participativa e de proximidade.
Tais perspectivas se sobrepõem na forma concreta dos governos atuarem, mas é importante aqui sinalizar
uma tendência em curso, que enfatiza novas lógicas participativas e novas dinâmicas e modelos de gestão
pautados pela transversalidade. Trata-se, como alguns autores assinalam, de um processo de mudança não
apenas instrumental, formal ou organizativo, mas principalmente ético e cultural (Blanco e Gomà, 2003, p.
32).
143
mercado, configurando novas ambiências favoráveis a modelos e práticas de governos
relacionais, de proximidade, pautados pelas diretrizes da participação, governança e
intersetorialidade, que ganham materialidade nas políticas de serviços pessoais e nas
metodologias de inserção ou incorporação social, em curso em algumas cidades da Europa
e América Latina. A idéia de “governo de proximidade” (Blanco e Gomà, 2003) acentua o
peso dos governos locais na formulação e provisão de bens e serviços sociais, e aponta
para a centralidade de processos participativos, tendência na Europa que encontra paralelo
nos movimentos recentes na América Latina e Brasil (Raczynski, 1999), também marcados
pelos processos de descentralização e de fortalecimento dos governos locais.
O ponto a ser ressaltado sobre o papel do âmbito local é que, no campo da produção
das políticas de inclusão, os governos locais apresentam tanto uma maior capacidade
de diagnosticar e captar as demandas e necessidades que se encontram cada vez mais
heterogêneas, múltiplas e fragmentadas quanto uma maior capacidade de fornecer
respostas mais adequadas a elas, a partir da flexibilização na provisão dos bens e
serviços (Brugué e Gomà, 1998, pp. 43, 44). Trata-se, sobretudo, de uma aposta e de uma
expectativa de que os governos locais possam de fato desempenhar esse papel estratégico,
dada a centralidade que têm para um adequado diagnóstico dos problemas, de sua
legitimação e para a proposição de ações mais adequadas às realidades e demandas locais.
No âmbito local é mais factível a atuação integral sobre os problemas identificados e tornase mais viável a criação de vínculos e uma participação efetiva dos cidadãos no
desenvolvimento das políticas. O descolamento entre as políticas de bem estar
desenvolvidas desde o âmbito central em relação às demandas efetivamente existentes no
nível local, diagnóstico comum nas análises sobre a crise do Estado de Bem Estar, trouxe a
necessidade de um contato mais direto com a realidade cotidiana (UAB, 1998, p. 26). Não
se trata, ao afirmar a centralidade do nível local, de afirmar a irrelevância do nível central
na provisão de bens e serviços de proteção social, mas de salientar que cabe a cada nível de
governo um aporte específico na produção das políticas de bem estar e que essa definição,
que envolve atribuição de competências e recursos, é sempre uma escolha política, o que
coloca a centralidade da politização da gestão como um dos atributos da perspectiva da
governança local.
Um segundo componente que, na visão de Blanco e Gomà, juntamente com a politização
dos espaços locais marca a idéia de governança, é o das redes participativas horizontais e
multiníveis (Blanco e Gomà, 2003, p. 26). A idéia de rede tem se tornado um referente
144
central nas discussões em diversos campos, para sinalizar a interconexão, a
interdependência, a conformação necessária para dar conta da complexidade dos processos
e da realidade social (Blanco e Gomà, 2003, p. 26) 144 .
Programas sociais voltados para públicos em situação de risco, pobreza e vulnerabilidade
social exigem ou dependem, para sua execução, de uma multiplicidade de atores
(organizações governamentais, ONGs com perfis diversos, conselhos, associações,
entidades filantrópicas e religiosas etc.) que apresentam visões diferentes sobre o problema
e sobre os meios para enfrentá-lo. omam decisões em relação a projetos compartilhados
A noção de redes multinível amplia a perspectiva de redes horizontais e remete não apenas
à articulação entre atores de um mesmo nível, mas à interdependência entre níveis de
governo. Na concepção de redes multiníveis, os municípios desenvolvem um papel
estratégico, de forma compartilhada e na perspectiva de interdependência com os diversos
níveis de governo (Blanco e Gomà, 2003, p. 29). Esse ponto remete, novamente, ao tema
do federalismo e das relações entre governo central e subnacionais e não será aprofundado
aqui, mas vale destacar a sua centralidade para a produção de políticas de proteção social
mais efetivas, que combinem, necessariamente, políticas de corte universal, tendo como
base demandas e necessidades mais homogêneas (UAB, 1998, p. 28) e políticas seletivas,
que adotam modelos de produção mais flexíveis, que respondem a demandas e
necessidades heterogêneas. Um e outro tipo de política se adequam de forma mais clara a
distintos níveis de governo, mantendo-se, de forma geral, uma perspectiva mais universal
para o âmbito nacional e políticas mais seletivas e focalizadas no âmbito dos governos
locais, sob a perspectiva do governo de proximidade.
144
A idéia de rede sustenta-se em alguns elementos centrais, dentre os quais os autores apontam três: a)
ausência de um centro hierárquico que define de forma monopolista os processos de governo, b) a
interdependência entre os diversos elementos da rede, que vai além do pluralismo de atores e sinaliza a
existência de “heterarquias” (dependências mútuas) entre os atores ao definir problemas e buscar o alcance
dos resultados e c) uma certa institucionalização das relações e processos. Partindo de quatro dimensões
básicas, os autores constroem uma tipologia de redes, em função da sua configuração básica (número, tipos
de atores e de interações); das relações internas de poder (assimetrias e recursos que os atores manejam); dos
valores e interesses em jogo e disposição para negociação, e das relações com o entorno. Da combinação
dessas dimensões, tem-se fenômenos empíricos distintos, que fazem com que existam distinções entre as
configurações de governo local em redes. Essas podem ser mais ou menos heterogêneas, mais ou menos
assimétricas, mais ou menos abertas ou permeáveis ao entorno, mais ou menos participativas (Blanco e
Gomà, 2003, p. 27). No campo da gestão social, a perda do monopólio da gestão pelo Estado significou a
ampliação das parcerias público-privado e a presença mais direta de organizações não governamentais na
provisão dos serviços, o que aponta para a centralidade da perspectiva das redes e do governo relacional no
debate sobre o desenvolvimento de políticas locais de inclusão social.
145
4.2. Modelos locais de proteção social: construindo o caminho de saída
Algumas análises (UAB,1998; Brugué e Gomà, 1998) propõem o modelo de serviços
pessoais locais para traduzir o conjunto de mudanças na forma e conteúdo das políticas de
bem estar na Europa e particularmente na Espanha. A categoria de serviços pessoais
constitui o aporte específico dos governos locais de bem estar no fim dos anos 90 e, nas
palavras dos autores,
“las politicas de servicios personales adquiren pues, um significado sustantivo y
diferenciado respecto a las políticas sociales porque incluyen elementos de
territorialización que aquellas no prevén y que hacen de la identidad territorial y su
desarrollo un elemento implícito y central de su conceptualización” (UAB, 1998, p.
29).
Brugué e Gomà (1998) ressaltam que as idéias-força da concepção ou modelo de serviços
locais de bem estar social, ou serviços pessoais 145 seriam: repolitização, estratégia e
participação.
A primeira idéia, repolitização, diz respeito aos valores e paradigmas que guiam a
intervenção. Trata-se, sobretudo, da atuação dirigida e coordenada do governo local para
implementar o modelo social de cidade, a partir da formação de consensos, de construção
de espaços de negociação e deliberação e da busca pela legitimação da ação pública
governamental. Uma questão prévia é a definição de um modelo de cidade, que
“parte del conocimiento detallado de las capacidades y de la carencias que ya existen
en el próprio territorio y se articula a través de la transformación de sus elementos
para configurar una nueva realidade social y territorial” (UAB, 1998, p. 25).
A segunda idéia-força, estratégia, remete ao tema do planejamento, à definição de
objetivos e metas, à implementação de uma ação coordenada e robusta no campo das
políticas de proteção. Trata-se, nas palavras dos autores, de “reubicar el diseño de
políticas de bien estar en una perspectiva estratégica de funcionamiento, asumiendo todas
sus implicaciones” (Brugué e Gomà, 1998, p. 47).
Participação, por fim, aponta para o adensamento de práticas democráticas e para o
fortalecimento da dimensão cívica da cidadania. A questão, também segundo os autores,
articula-se diretamente com a noção de empowerment, de transferência de poder às pessoas
e comunidades, da participação dos beneficiários e de diversos atores não-governamentais
na produção das políticas e programas sociais. As políticas de serviços pessoais, ao
145
A referência para a construção desse modelo, embora não seja explícito pelos autores, é a Espanha. Não
fica de todo evidente, pela leitura do artigo, se o modelo é algo efetivamente em curso nos governos locais da
Espanha ou se consiste em uma proposta analítica.
146
incorporarem os elementos de repolitização, participação e estratégia, se traduziriam em
“una nueva dimensión político-cultural del bienestar: el desarrollo comunitario a partir de
la promocion de relaciones sociales participativas, integradoras y solidarias en el ambito
territorial” (UAB, 1998, p. 29) ou , em uma tradução livre, como o “conjunto de ações
públicas locais articuladas em torno das pessoas, grupos e comunidades, sobre a base de
relações integradoras e participativas” (Brugué e Gomà, 1998, p. 44). O modelo local de
serviços pessoais, delineado pelos autores, configura-se como um modelo integral,
estratégico, participativo e comunitário de bem estar local, nos termos colocados por
Brugué e Gomà (1998, p. 45), que inclui tanto intervenções específicas, como respostas a
situações conjunturais, quanto intervenções de caráter mais geral que remetem a situações
estruturais (UAB, 1998, p. 29). Os serviços pessoais não se referem a uma política ou setor
específico das políticas, mas envolvem distintos setores das políticas municipais que
tenham como eixo articulador das ações a atenção direta às pessoas, grupos e comunidades
(UAB, 1998, p. 30). Os serviços pessoais incluem o conjunto de âmbitos de atuação
setorial de competências e distintos níveis de governo, relacionado à assistência social,
políticas de ocupação, habitação, saúde, educação, cultura (UAB, 1998, p. 63) 146 . Em
termos operativos o modelo demanda um “marco organizativo integrado, intersectorial,
con predomínio de estructuras transversales y descentralizado” (UAB, 1998, p. 36).
O modelo local de bem estar social é, por um lado, um modelo integral, estratégico e
participativo, mas é também e fortemente marcado, segundo Brugué e Gomà, pela
dimensão comunitária. Ultrapassando uma visão tradicional de enfrentamento da pobreza de caráter reativo e de base individualista -, o modelo promocional, comunitário e
estratégico de serviços pessoais emerge como alternativa para as políticas locais de
proteção social.
O desenho das políticas de serviços pessoais a partir da definição de necessidades segundo
critérios político-normativos, como é o caso do modelo de serviços pessoais, que identifica
as necessidades a partir da definição de um padrão desejável de provisão e acesso a
determiandos bens e serviços definidos como direito. Esse suposto implica que o volume
da oferta de serviços decorrerá de uma decisão tomada com base em diagnósticos e como
fruto de decisão política e programática, e não realizada de forma errática e altamente
146
Um ponto interessante dessa discussão é a distinção, no âmbito dos serviços pessoais, entre “direitos
subjetivos fortes” e “direitos subjetivos débeis”. Os primeiros estão consolidados e garantidos nas leis, como
direito à educação e saúde; e os segundos não têm explicitação jurídica suficiente, ou quando têm, essa é
abstrata e pouco concreta quanto aos critérios de elegibilidade. Como exemplo desses, têm-se os direitos à
cultura, moradia, serviços sociais e trabalho (UAB, 1998, p. 65).
147
dependente das modificações do entorno. Brugué e Gomà utilizam duas variáveis,
intensidade da ação (intensidade protetora) e cobertura para elaborar uma tipologia de
serviços pessoais (1998, p. 51).
O eixo da cobertura refere-se à combinação de seletividade e universalismo, articulando
ação afirmativa com aumento qualitativo e quantitativo de cobertura. O segundo eixo,
intensidade protetora, refere-se ao desafio para superar o assistencialismo e residualismo
nos serviços pessoais. Trata-se, nesse sentido, de ultrapassar um nível de intensidade
protetora baixa, de “adoptar un posicionamiento municipal por unos servicios personales
de calidad, blindados en su dimenión cuantitativa, no vulnerables a consideraciones
economicistas y competitivos con los estándares que puedan ofrecer los mercados
privados de bienestar” (UAB, 1998, p. 37).
As políticas de serviços pessoais integrais decorrem de mudanças em dois eixos e a aposta
é por um modelo de extensão e intensidade elevada, combinando “dinamização
comunitária” e “ação contra a exclusão” (Brugué e Gomà, 1998, p. 55). O modelo de
serviços pessoais integrais supõe o universalismo no atendimento e ao mesmo tempo a
intensidade da intervenção. Ao contrário da perspectiva assistencialista, que estigmatiza e
fortalece a dualização da sociedade, a perspectiva dos serviços pessoais, tal como
formulada pelos autores, contempla o elemento de integração e coesão social. Nas palavras
dos autores,
“situar los servicios personales en la línea de la simple garantía de mínimos tiene un efecto
dualizador y de estigmatización de colectivos sociales. En cambio, situar los servicios personales
como un componente central de los itinerários de inserción social de base comunitaria tiene um
impacto integrador y cohesionador” (Brugué e Goma, 1998, p. 52).
148
Figura 3 – Tipologia dos modelos de serviços pessoais, segundo Brugué e Gomà
Alta
Intensidade de
atuação(gasto
per capita)
Serviços pessoais
integrais (políticas de
desenvolvimento
comunitário e políticas
contra exclusão)
Serviços
pessoais
intensivos
seletivos
Serviços
pessoais
assistenciais
Serviços
pessoais
residuais
Baixa
Mínimo
Máximo
Nível cobertura
Fonte: Elaborado por Bruguè e Gomà, 1998, p. 51.
Ultrapassando a visão tradicional de enfrentamento da pobreza - de caráter reativo e de
base individualista, que não considera a dimensão das relações e sem capacidade de
antecipar situações e de desenvolver respostas adequadas aos problemas colocados - o
modelo promocional, comunitário e estratégico de serviços pessoais instaura uma nova
perspectiva no plano da proteção social. Esse modelo requer, para sua operacionalização,
uma
“gestión que supere la segmentación y el centralismo tecnoburocrático y los sustituya
por un modelo de producción de servicios integrado, descentralizado, participativo y
pluralista. Es decir, un modelo con participación transversal del conjunto de las áreas,
con plena responsabilización de la base y con combinación entre la provisión directa y
la habilitación de agentes asociativos” (Brugué e Gomà, 1998, p. 50).
Os serviços pessoais locais têm uma tarefa central. Nas palavras dos autores,
“tienen que hacer posible que, a pesar de la diversidad de redes de servicios de
organización verticales que hay, como ensenanza, sanidad o trabajo, su acción como
conjunto sea coherente mediante la definición de objetivos y estratégias de tipo
horizontal”.
O modo de se alcançar essa articulação, segundo os autores, seria através de mecanismos e
processos de participação que permitam a definição de estratégias de ação conjuntas dos
diversos atores envolvidos (UAB, 1998, p. 66). Ao contrário dos efeitos estigmatizantes e
149
dualizadores da visão que focaliza a garantia dos mínimos sociais, a perspectiva dos
itinerários aponta para a idéia de coesão e inclusão social (Brugué e Gomà, 1998, p. 52).
4.3 - Incorporação e inserção social: metodologias de intervenção
Um processo de incorporação social (ou inserção, em outros termos), é composto por um
mix de dimensões e elementos que são centrais em distintas visões sobre a pobreza, de
forma combinada e não excludente. De acordo com Corera, um processo de incorporação
social envolve: a) ter condições de vida mínimas em termos de moradia, saúde, educação;
b) ter recursos econômicos que possibilitem ao cidadão ser um consumidor; c) ter uma
atividade que possibilite a ele ou ela o reconhecimento social; d) participar de espaços de
cultura, lazer, de sociabilidade; e) “tener un lugar en el mundo, pintar algo” (Corera,
2002, p. 352). O desenvolvimento de relações comunitárias locais e o fortalecimento de
redes sociais que possam acolher e responder as demandas são básicos aí. Além da
perspectiva de atuar via redes, têm-se os princípios de organização que incluem a
cooperação entre instituições e departamentos de setores diversos; articulação de
iniciativas governamentais, comunitárias, filantrópicas e privadas e a complementaridade
estrutural entre os âmbitos econômicos e sociais (Corera, 2002, p. 373). A terminologia
varia - itinerários de inserção, incorporação social, intervenção integral –, mas aborda um
conjunto de questões similares.
Na Europa, principalmente Espanha, o modelo dos serviços pessoais articula-se
diretamente com a proposta de itinerários de inserção. Os “itinerários personalizados de
incorporación social” (Corera, 2002, p. 366) configuram os caminhos a serem percorridos
pelos indivíduos ou “unidades de convivência” no sentido de saída da condição de
exclusão. O itinerário personalizado parte da adesão voluntária dos participantes e não
representa uma contrapartida obrigatória ao recebimento de uma renda básica. O
conhecimento da diversidade de situações de exclusão e o mapeamento das possibilidades
e limites são elementos fundamentais para uma intervenção de inserção diferenciada e
flexível. O reconhecimento da diversidade de situações de exclusão implica, como visto
antes, a flexibilidade na oferta de bens e serviços, o que exige uma gestão com ritmos,
modelos, níveis e graus distintos de incorporação (Corera, 2002, p. 351).
“los itinerários de exclusión son personales, familiares, pero su origen es estructural y
está causada tanto por los mecanismos de funcionamiento general de la sociedad como
por el funcionamiento de las instituciones. La exclusión es generada socialmente, pero
la posición de los colectivos afectados también confluye y, por tanto, es necesario que a
la par que se transforman aspectos estructurales se intervenga de manera
personalizada” (Corera, 2002, p. 349).
150
Esse tipo de metodologia é muito sensível às turbulências do ambiente e é necessário
contar com um forte compromisso, de longo prazo, de ambos os lados: do público e dos
agentes governamentais. O trabalho de acompanhamento do processo de inserção envolve,
além da aplicação de recursos, um trabalho de intensa relação pessoal, continuada e
duradoura, sustentada pela confiança recíproca entre agentes públicos e pessoas
acompanhadas e fortalecida pela motivação e desejo dos “assistidos” de procurarem saídas
sustentáveis das situações de exclusão.
Chega-se aqui ao mesmo ponto, por outras vias: o papel do componente relacional nas
estratégias de proteção. Um modelo de intervenção pautado pela incorporação exige, do
ponto de vista da capacidade governamental, a existência de recursos, bens e serviços que
possam ser repassados à população, em quantidade e na forma adequada às necessidades
personalizadas. Pelo lado dos indivíduos em processo de incorporação, tem-se que ter a
adesão, o protagonismo e o compromisso efetivo das pessoas com seu projeto de
incorporação. A combinação de ambos requer o trabalho de acompanhamento, atividade
que gera vínculos, que se realiza a partir da confiança, forte expressão de uma das
dimensões do componente relacional.
O desafio, mais uma vez, refere-se a como implementar de fato tais diretrizes, identificar
os fatores e mecanismos que favorecem esse componente central nas políticas de inclusão.
Um modelo de intervenção tão próximo, intenso e integral dificilmente poderá ser
viabilizado em contextos com alto grau de pobreza. A implementação de estratégias de
intervenção focadas em itinerários personalizados de inserção social não é viável quando
se tem cerca de 20 milhões de pessoas em condição de extrema pobreza, como é o caso da
indigência no Brasil, que não contam sequer com as condições mínimas para alimentar-se
de forma adequada. Não é nada trivial desenhar estratégias que dêem conta, efetivamente,
de lidar estrategicamente com a pobreza, visando a incorporação sustentável da população
em condição de pobreza crônica, em um movimento de saída da exclusão 147 .
A possibilidade de financiamento de uma política com esse desenho de intensa atuação e
ampla cobertura não é uma questão irrelevante e sem dúvida esse é um limitador para
qualificar ou apontar os limites empíricos de determinados modelos de intervenção. A
147
Além disso, tem-se que garantir a não deterioração das condições de vida e trabalho da sociedade como
um todo, ou seja, a manutenção de um nível de desenvolvimento econômico e social que não seja excludente
e produtor de novos indigentes, atuando no nível da prevenção e mitigação da entrada em situações de
exclusão.
151
existência e disponibilidade de redes de serviços para atender demandas de inserção é
outro constrangimento e ambos exigem, como elemento fundamental, um amplo e forte
consenso político em torno da adoção de determinadas estratégias de intervenção e
políticas consistentes e duradouras nas redes de serviços públicos. É totalmente diferente
desenhar uma política de serviços pessoais para uma cidade da Europa que conheceu um
passado de bem estar social e conta com uma estrutura de proteção ampla e efetiva – na
qual somente algumas centenas de pessoas dependeriam dos serviços personalizados de
inserção – de desenhar uma política para uma cidade ou centro urbano na maioria dos
países da América Latina, nos quais existe uma pobreza de massa e grande contingente de
indigentes, para os quais as privações são múltiplas e superpostas, em um contexto de
capacidade de financiamento baixa 148 . A magnitude dos problemas ou a escala do
fenômeno, as condições prévias das políticas (o nível e a cobertura dos programas e ações
de proteção social existentes em um e outro contexto), as condições de financiamento e
implementação fazem toda a diferença entre um e outro contexto. Essa metodologia de
intervenção se aplica somente com muitos ajustes à realidade de pobreza e exclusão em
massa, que envolve dezenas de milhares de pessoas nas metrópoles brasileiras e na maioria
das cidades latino-americanas. Como financiar e operacionalizar uma metodologia com
estas características em municípios de grande porte com alta incidência de pobreza e
indigência?
Abordar adequadamente os constrangimentos para implementação de políticas estratégicas
de proteção social
exigiria a análise cuidadosa das condições financeiras, técnicas e
políticas que as viabilizem, mas não é esse o objetivo principal aqui. O objetivo da tese é
explorar a natureza mais metodológica da proposta, seus supostos e componentes. Como
ilustração, é apresentada a seguir uma estratégia de inclusão social para famílias em
situação de pobreza crônica, calcada na perspectiva dos itinerários de inserção. O exame
dessa estratégia permite descrever como a proposta dos itinerários pode ser traduzida em
uma situação concreta. Mas não se tem a pretensão de analisar resultados ou impactos,
inclusive pelo fato de que, somente em 2005, a experiência começou a ser objeto de
avaliação externa naquele país.
148
Na pesquisa realizada via projeto Urbal os itinerários estavam sendo aplicados em centenas e não em
milhões de pessoas.
152
4.4 - A experiência do Programa Puente/Chile, como estratégia de inclusão
Na América Latina, o Programa Puente constitui uma experiência que se pauta pela
perspectiva dos itinerários de inserção, ainda que não assuma essa terminologia de forma
explícita. Não é, certamente, a única experiência existente e será aqui recuperada como
exemplo de uma estratégia de inclusão social que incorpora dimensões trabalhadas nos
capítulos anteriores. A experiência do Programa Puente, que se iniciou em 2002 no Chile,
pode ser um exemplo para examinar parte dos desafios de políticas de inclusão social em
cidades onde a incidência da pobreza é grande. Trata-se de um programa do nível central,
voltado para a melhoria das condições de vida das famílias em extrema pobreza, sendo o
principal componente de uma estratégia de inclusão social - Chile Solidário, que constitui o
sistema de proteção social para os mais pobres no Chile. O Chile Solidário e o Programa
Puente constituíam duas iniciativas paralelas que surgiram no período 2001-2002
(Winchester, 2005), mas que foram posteriormente integradas. Nesse período o FOSIS
(Fondo de Solidarid e Inversión Social), demandado pelo Mideplan (Ministério de
Planificación y Cooperación), desenha um programa voltado para atendimento psicosocial para o conjunto da população indigente no país (225 mil famílias no Chile). A
Dirección de Presupuesto del Ministério de Hacienda, por sua vez, orientou-se para a
construção e implementação de um sistema de proteção social, que operasse a prestação de
benefícios e programas para população mais pobre, na tentativa de aumentar a eficiência
do gasto social (Winchester, 2005, p. 5).
O Sistema Chile Solidário 149 tem como público o universo de 225 mil famílias mais pobres
do país, sendo executado com a participação dos governos locais 150 . São 209.398 famílias
atendidas e outras 15.675 são famílias compostas com uma pessoa com idade acima de 65
anos, o que totaliza 225.073 famílias assistidas pelo Chile Solidário – e também pelo
Puente - entre 2002 e 2005 (Cohen e Gómez, 2005, p. 25).
149
O Sistema Chile Solidário está sob a responsabilidade do Ministério do Planejamento e Cooperação
(Mideplan) e é operacionalizado por uma secretaria executiva central e regionais; por comitês técnicos,
formados pelas instituições que oferecem serviços e programas para as famílias; por comitê executivo e
comitê técnico regional, que se ocupam de aspectos políticos e técnicos do programa, respectivamente; e
comitê consultivo regional da sociedade civil, que constitui uma instância de apoio (Fosis, 2002, pp. 9 e
10).
150
O Programa Puente é o componente principal do Chile Solidário. Segundo informações da Casen, em
2000 existiam 4,6% dos domicílios abaixo da linha de indigência, o que totaliza aproximadamente 850 mil
pessoas que não satisfazem necessidades básicas de alimentação (Fosis, 2002, p. 13). A incorporação do total
de 225 mil famílias, selecionadas a partir da ficha CAS, se processou de forma gradual entre 2002 e 2005:
56.055 famílias em 2002; 60.318 famílias em 2003; 15.675 famílias de uma pessoa com idade acima de 65
anos em 2003; 59.806 famílias em 2004 e 33.219 famílias em 2005 (Fosis, 2002, p. 6)
153
A concepção do Chile Solidário enfatiza o reconhecimento das múltiplas causas associadas
com a produção e reprodução da pobreza extrema e consideram que a superação exige
mais do que a transferência de renda. Sustentado fortemente pelo enfoque das capacidades,
o programa é orientado para ampliar as oportunidades e os recursos das famílias
indigentes, na perspectiva de ampliação da autonomia das famílias e redução das
vulnerabilidades e dos riscos. Combina ações de assistência e promoção, buscando a
operação de um sistema articulado de transferência de benefícios para os mais pobres, uma
“ventanilla única”, nas palavras de Lucy Winchester (2005). As dificuldades de inserção
dos mais pobres nas redes de serviços existentes são enfatizadas no diagnóstico e orientam
as estratégias de intervenção. A desinformação, o isolamento e as características psicosociais que marcam situações de extrema pobreza dificultariam o acesso aos bens, serviços
e programas existentes e um dos pressupostos do Sistema Chile Solidário é atuar também
sobre essa dimensão. Com o objetivo de incorporar as famílias em situação de pobreza
crônica à rede de proteção do Estado, “el sistema busca organizar la oferta programáticoinstitucional, asistencial y promocional otorgando prestaciones asistenciales garantizadas
a las famílias (bonus de protección y prestaciones monetárias tradicionales)”
(Winchester, 2005, p. 5).
A operação do Sistema supõe a articulação das estruturas setoriais e entre níveis de
governo e, por isso mesmo, o programa também exemplifica arranjos baseados na
intersetorialidade e na gestão em redes e multinível, embora esses não sejam termos
utilizados explicitamente pelo Chile Solidário ou pelo Puente. A articulação entre setores é
orientada pelos 53 indicadores de inclusão definidos pelo Programa Puente, condições que
dependem da ação de setores diversos, que garantam os sete pilares da “puente”, como será
visto na seqüência. Mas a articulação da rede pode se ampliar para além do atendimento
dessas condições mínimas, a depender da capacidade de coordenação e liderança dos
gestores nos distintos níveis do Sistema (local, regional, central) (Winchester, 2005, p. 5).
Além da transferência de renda, cujo valor decresce à medida do tempo de permanência no
programa, tem-se uma metodologia de acompanhamento às famílias, para fornecer-lhes
apoio psico-social e facilitar o acesso à rede de serviços. A metodologia de intervenção
consiste em uma “estratégia de intervención integral” sobre as famílias em extrema
pobreza (Cohen e Gómez, 2005, p. 25), que define a atuação do Puente como um dos
componentes do Sistema Chile Solidário. Os componentes do Sistema Chile Solidário,
154
conforme descrito no documento oficial do programa (Fosis, 2002, pp. 7,8), são os
seguintes:
•
O Programa Puente (executado pelo Fosis), o componente do sistema voltado para
elementos de natureza psico-social envolvidos na pobreza e estabelecer pontes e conexões
das famílias com as redes de serviços e a ampliação das relações sociais, formais e
informais.
•
Um bônus de proteção, um valor monetário repassado mensalmente de forma
decrescente durante o tempo de 24 meses de permanência das famílias no Programa,
começando com um valor três vezes maior nos primeiros seis meses em comparação aos
últimos seis meses de participação 151 . As famílias - que ao fim desse prazo tiverem
cumprido as metas estabelecidas no contrato familiar, superando a condição de extrema
pobreza - serão beneficiadas, de forma automática e por um período de três anos, por um
beneficio de proteção (asignación de protección) equivalente a um subsídio familiar 152 . As
famílias que chegam ao fim do período de um ano sem cumprir as metas estabelecidas no
acordo, deixam de receber o bônus de proteção e deixam de ser acompanhadas pelo
Puente, permanecendo, contudo, com um beneficio (asignación de protección) equivalente
a um subsídio único familiar (U$ 5,4).
•
Todas as famílias do Sistema têm garantido o recebimento de benefícios
tradicionais aos quais têm direito em razão de suas condições familiares, que incluem
subsídios identificados por faixa etária (menor que 18 anos, mais de 65 anos), por
condições específicas (invalidez, deficiências) e por carências específicas (subsídio para
água potável, por exemplo).
•
Também o acesso à rede de serviços e a programas existentes constitui um
componente do Sistema. Esses envolvem programas voltados para melhoria dos níveis
educacionais, serviços de prevenção e enfrentamento de situações de risco (violência
151
Começa com o beneficio mensal familiar equivalente a 15 dólares mensais (10.500 pesos) durante os seis
primeiros meses, passa para 11 dólares mensais (8 mil pesos) entre o sétimo mês e um ano, depois para 7,8
dólares mensais (5.500 pesos) nos seis meses seguintes e para 5 dólares por mês (3.500 pesos) nos últimos
seis meses (Fosis, 2002, p. 7)
152
O valor do subsídio único familiar (SUF) é de 3.930 pesos. Como valores de referência para comparação,
o valor da pensão para idosos e inválidos (PASIS) é de 37.849 pesos, o valor da canastra familiar nas áreas
urbanas é de 21.856 e na área rural de 16.842 pesos. A referência do salário mínimo (“para fins não
remuneracionais”) é de 78.050 pesos (Site Mideplan www.mideplan.org.cl , acesso em novembro de 2005).
No documento do Fosis (2002) tem-se uma referência em dólar para o valor do bônus de proteção à família
repassado às famílias beneficiárias do Puente, como visto na nota acima, o que permite dimensionar o que
esses benefícios representam em relação aos demais benefícios do Chile Solidário.
155
familiar, crianças em situação de risco, drogas), programas de cotização para chefes de
família, dentre outros (Fosis, 2002, p. 8).
O Programa Puente promove e apóia a instalação, em cada comuna do país onde residem
as famílias alvo do programa, de uma unidade de intervenção familiar (UIF), que é
coordenada pela municipalidade (Winchester, 2005, p. 6) e que conta com um número de
profissionais e técnicos de apoio familiar condizente com a cobertura do programa na
região. A unidade de intervenção familiar é apoiada por uma rede local de intervenção, na
qual participam instituições e organizações públicas e privadas que oferecem serviços ou
bens para a população pobre e indigente. Nas palavras de Winchester, “la coordinación
del programa opera a nivel local y la articulación de servicios públicos a nivel provincial
y regional debe ser subsidiaria y estar a disposición de las redes locales” (Winchester,
2005, p. 6).
O Programa Puente tem como objetivo fornecer apoio psico-social às famílias e viabilizar
o acesso dessas famílias à rede de benefícios e serviços. O adjetivo “puente” é adequado
para expressar o objetivo básico do Programa: estabelecer a ponte entre as famílias e seus
direitos. A ponte é a passagem para uma condição de cidadania e fundamenta-se na
perspectiva do empoderamento e de uma visão da pobreza como fenômeno amplo e
complexo, reversível e que envolve aspectos objetivos e subjetivos. O programa busca a
participação ativa das famílias e pessoas para a identificação de potencialidades e de
formas de desenvolvê-las e viabiliza o acesso das famílias em situação de pobreza crônica
aos serviços e benefícios sociais. Explicitamente o Puente incorpora o marco conceitual do
manejo de risco, tal como formulado pelo Banco Mundial, buscando com esse enfoque
proteger a sobrevivência básica das pessoas e promover uma maior disposição para
assumir riscos.
O Programa depende fortemente da adesão das municipalidades, que podem ou não aceitar
o programa, se comprometer com sua gestão e aportar recursos humanos e físicos para sua
implementação. No nível municipal, o Programa encontra-se sob a responsabilidade da
Divisão
de
Desenvolvimento
Comunitário,
vinculado
ao
Departamento
de
Desenvolvimento Social. Estudada e definida a cobertura prevista para o período e
examinada a disponibilidade existente nas redes locais para fornecer Apoios Familiares, é
estabelecido o aporte de financiamento do governo chileno naquele município, para
viabilizar os técnicos e profissionais para atuarem como apoio familiar. As unidades de
intervenção familiar (UIF) são criadas pelo FOSIS, que selecionam as famílias, formam os
156
técnicos para atuarem como apoios familiares, geram sistemas de informações
(Winchester, 2005, p. 6). O Programa Puente estabelece convênios com os municípios para
o aporte de recursos para contratação de técnicos adicionais. Na metodologia do Programa,
cada técnico (apoio familiar) trabalha com 64 famílias (Fosis, 2002).
Os supostos da estratégia de intervenção integral a favor de famílias em extrema pobreza
do Puente salientam, dentre outros, a importância de um enfoque qualitativo; reconhecem a
dimensão material e subjetiva da pobreza; conferem atenção às causas econômicas e sócioculturais da pobreza; consideram que a pobreza crônica é um fenômeno reversível;
enfatizam o papel do capital social na geração e ampliação de redes sociais e na reversão
da pobreza; salientam o papel estratégico dos operadores que trabalham diretamente com
as famílias, em uma intervenção que requer um período extenso de tempo e de forma
constante e intensiva (Fosis, 2002, p. 17).
Em seus próprios termos, o objetivo geral da estratégia de intervenção integral
“es mejorar las condiciones de vida de familias en extrema pobreza, generando las
oportunidades y proveyendo los recursos que permitan a estas familias recuperar o
disponer de uma capacidad funcional y resolutiva eficaz en el entorno personal,
familiar, comunitário e institucional” (Fosis, 2002, p. 15).
Para alcançar esses objetivos, são requeridos novos modelos de intervenção, que
consideren el trabajo com grupos antes que con sujetos particulares (Fosis, 2002, p. 14), o
que leva a identificar as famílias como unidade de intervenção.
De acordo com as diretrizes do Programa, a estratégia de intervenção integral enfatiza a
dimensão territorial. Os fundamentos são vários: por um lado, o sentido de pertencimento
a um lugar representa um recurso que pode contribuir com a intervenção; por outro, é no
território que se localizam as redes que podem ser mobilizadas. A partir de um operador e
de uma intervenção personalizada, busca se estabelecer a ponte entre as famílias e as redes
e oportunidades disponíveis em seus territórios.
O marco teórico da estratégia de intervenção integral é composto, segundo o documento do
FOSIS, por três enfoques (Fosis, 2002, p. 16): capital social, redes e intervenção em crise.
A perspectiva do capital social orienta a atuação do programa para o desenvolvimento de
ações que visam melhorar a capacidade das pessoas de se envolverem com o mapeamento
das potencialidades e com a busca de soluções de seus problemas. Além disso, salienta-se
o papel das redes e formas articuladas de provisão de bens e serviços e a importância da
expansão da quantidade e da qualidade das relações sociais das famílias. A perspectiva das
157
redes sociais constitui outro elemento das diretrizes do Programa e refere-se à combinação
de ações que produzem efeitos sinérgicos no enfrentamento da pobreza, que articulam e
complementam recursos em uma atuação integrada (Fosis, 2002, p. 16). A intervenção em
crise, por sua vez, consiste em uma intervenção terapêutica, de curta duração e destinada a
intervir nas situações de crise que podem ter alto impacto em pessoas e famílias
vulneráveis, impedindo sua “capacidade de funcionamento”. Essas intervenções buscam o
empoderamento das pessoas, no sentido de propiciar a elas um maior controle sobre suas
vidas, inclusive sobre suas emoções, comportamentos, aumentando as capacidades de
respostas e fortalecendo a resiliência das famílias que vivem sob condições de pobreza
extrema (Fosis, 2002, p. 16).
O Programa Puente utiliza-se de um material pedagógico para o trabalho psico-social com
as famílias, desenvolvido sob uma forma lúdica e que funciona como uma caixa de
ferramentas metodológicas que pretende trabalhar a geração de confiança e de cooperação
entre o apoio familiar e a família participante. Esse material é repassado para cada família
logo após a assinatura do acordo e confere materialidade - através do uso de figuras,
tabuleiro de jogo etc. - à identificação do potencial da família, em termos do capital e
recursos que ela possui ou que possa utilizar, e os avanços de cada membro da família no
sentido de se cumprirem as metas estabelecidas. A intervenção reconhece algumas etapas
progressivas que consistem no acompanhamento, na qual se geram as condições mínimas
para que as famílias possam melhorar sua condição; na inserção social, orientada para o
fortalecimento da institucionalidade local e da rede institucional, criando e fortalecendo
vínculos sociais e no desenvolvimento, etapa de conclusão que busca gerar condições para
a auto gestão das famílias (Cohen e Gómez, 2005, p. 26).
De forma semelhante aos itinerários de inserção ou incorporação social da Europa, o
Programa baseia-se em um contrato 153 entre as famílias e o programa, definidos os
compromissos mútuos entre as famílias e o programa, por um prazo de 24 meses, no
decorrer do qual as famílias são apoiadas para atender a 53 condições mínimas de
qualidade de vida, agrupadas em sete dimensões (identificação, saúde, educação, dinâmica
familiar, habitabilidade, trabalho e renda), denominadas de pilares do programa Puente.
Para cada dimensão, foram fixadas condições mínimas a serem atendidas pelas famílias ao
153
Não existe consenso sobre a utilização do termo contrato para designar a relação que se cria entre público
e o programa de inclusão. Para alguns, o termo apropriado seria compromisso, convencimento, adesão. De
toda forma, no Chile o termo contrato é utilizado para firmar o compromisso entre a família e o programa.
158
longo do programa 154 . As famílias egressam do programa quando alcançam todas as
condições mínimas que correspondam a suas características próprias, em cada uma das sete
dimensões. A fase inicial de intervenção, com seis meses de duração (com
aproximadamente 14 encontros) é mais intensa; segue-se a fase de acompanhamento e
avaliação nos outros 18 meses seguintes, com sete sessões de acompanhamento (Fosis,
2002, pp. 22,23). Além do apoio psicosocial, o programa conta com um componente de
formação, capacitação e acompanhamento das unidades de intervenção familiar (UIF), com
o objetivo de formar e capacitar os técnicos que atuam como apoios familiares. Como
terceiro componente, tem-se um fundo regional de iniciativas em cada região do país, que
financia projetos ou serviços para atender as famílias do Programa e que não estão
previstos na oferta vigente na região. O monitoramento e avaliação de cada família é o
quarto componente do programa. As informações de cada família são fornecidas por meio
eletrônico e de forma confidencial por parte dos técnicos, de maneira a permitir o
acompanhamento do programa em cada região e localidade. Os desenhos de políticas
inspiradas pelas perspectiva dos itinerários de inserção apresentam variações quanto à
metodologia, número de encontros, componentes ou fases. Não parece existir um modelo
único, mas diversas adaptações de um mesmo conjunto de preocupações, centradas em
ações mais intensas e articuladas para um mesmo conjunto de famílias em situação de
pobreza crônica, que se baseiam em um pacto ou acordo entre famílias e governo, em
estratégias marcadas pela elevada interação e alta flexibilidade na oferta de serviços.
O Programa Puente foi aqui apresentado com o objetivo de explicitar, na empiria, alguns
pontos discutidos nesse capítulo, para identificar como se dá na prática o desenho de
estratégias de combate à pobreza que consideram as dimensões relacionais presentes no
processo de inclusão, e que buscam uma combinação entre as dimensões monetária,
154
Como exemplo dos tipos de condições mínimas de inclusão elencadas tem-se: no eixo da identificação:
todos os membros das famílias com registro civil, carteira de identidade, situação militar regularizada; no
eixo da saúde: família inscrita no serviço de atenção primária, com vacinação das crainças em dia, com
acompanhamento pré-natal, com exames em dia; educação: inserção das crianças e jovens na escola,
crianças e adultos alfabetizados, inserção de crianças com deficiência nas escolas; dinâmica familiar:
existência de práticas de conversas na família, normas claras de convivência, mecanismos adequados para
enfrentar conflitos, reconhecimento da rede comunitária e programas disponíveis, existência de distribuição
mais eqüitativa das tarefas domésticas; habitabilidade: regularização da moradia, sistemas adequados de
água e saneamento, condições adequadas de habitabilidade, com equipamentos básicos para alimentação;
trabalho: trabalho regular com remuneração estável para pelo menos um adulto na família, inscrição dos
desempregados nos serviços disponíveis, não abandono dos estudos dos jovens para inserção no trabalho;
renda: acessos aos subsídios a que tenham direito,com renda acima da linha da indigência, com orçamento
organizado em termos de recursos e necessidades. A lista é mais extensa e bem mais detalhada do que foi
aqui apresentado, mas a idéia é oferecer alguns exemplos do que constitui a lista de 53 condições mínimas
que devem ser cumpridas em cada um dos sete pilares do programa.
159
material e subjetiva da pobreza e exclusão. O Puente supõe ainda uma articulação em rede
e a provisão coordenada de bens e serviços públicos, com ativa presença de organizações
não-governamentais e agentes da sociedade civil, além de enfatizar a dimensão da
heterogeneidade da oferta e o papel da confiança nesse processo de provisão de bens e
serviços e de conversão de intenções políticas em consequências práticas sobre a realidade
(Martinez Nogueira, 1998).
No entanto é importante ressaltar que, embora não se trate aqui de fazer avaliações quanto
aos resultados e impactos do Chile Solidário ou do Puente é importante pontuar algumas
questões de natureza avaliativa salientada na análise de Winchester (2005). De acordo
com a autora, avaliações preliminares indicam um certo descompasso entre o discurso e a
prática, na medida em que predomina uma atitude assistencialista mais centrada na
distribuição eficiente da oferta, do que na expansão das capacidades. Além disso,
predomina a visão centrada no âmbito da família, sem maiores consequências quanto ao
desenvolvimento de redes comunitárias ou para o desenvolvimento do associativismo ou,
em outros termos, de capital social (Winchester, 2005, p. 10). É apontado que o Programa
encontra dificuldades, em muitos casos, para sustentar uma oferta adequada para o
cumprimento das metas previstas quanto a certos mínimos, principalmente aqueles que se
referem à habitação, uma vez que as municipalidades não contam com recursos suficientes
para responder à demanda e nem apresentam as competências para o desenvolvimento
desse tipo de política (Winchester, 2005, p. 13). Os resultados do Programa Puente
parecem ainda fortemente dependentes de como as equipes, nos níveis locais, conseguem
traduzir as diretrizes em ações 155 .
Dentre os resultados positivos - que também como os negativos são diferenciados entre os
municípios (comunas) - pode-se verificar alterações significativas nas redes locais de
155
Em um das municipalidades pesquisadas no âmbito do Projeto Rede Urbal, El Bosque, o Programa tem
sido bastante bem sucedido, inclusive para promover o desenvolvimento comunitário e ampliar a
interlocução entre técnicos e a população. A população da Comuna de El Bosque era, em 2002, de
aproximadamente 190 mil habitantes. Em El Bosque funcionam 53 “mesas barriales”, que se configuram
como espaços nos quais pode-se efetivar a participação e a mobilização da população para o enfrentamento
dos problemas identificados nas distintas regiões. As mesas de trabalho são espaços voltados para a
concertação de atores locais para o planejamento localizadas nos bairros. As “mesas barriales” são compostas
por representantes de cada departamento da municipalidade, além de outros atores relevantes nos territórios.
O Modelo de Desenvolvimento Integral Sócio Comunitário constitui uma estratégia de envolvimento de
diversos atores sociais e comunitários na melhoria da qualidade de vida, no desenvolvimento humano das
pessoas e famílias e no fortalecimento dos vínculos sociais, comunitários, familiares, institucionais. Esse
modelo tem como base o território, cada um dos bairros/localidades da Comuna. O sucesso do Programa em
El Bosque foi inclusive reconhecido por Gonzalo Delamaza Escobar, Diretor da Fundacción para la
Superación de la Pobreza, em debate da reunião do CLAD, em outubro de 2005.
160
intervenção antes e depois da existência do Programa Puente, uma vez que, de acordo com
as avaliações realizadas, a partir do Programa tem-se maior rapidez e qualidade de
atendimento por parte das diversas instituições e maior atenção destas em relação às
famílias em situação de pobreza extrema, mudando a forma anterior de a rede existente
atuar com as famílias.
Outros estudos apontam também os resultados positivos do Programa:
“In summary, and on the basis of available information, the programme has made real
progress in terms of reaching the families in extreme poverty throughout Chile, and
achieved low levels of rejection and interruption. There has been much less progress,
however, in terms of a successful exit rate from the programme. Compliance with the
minimum conditions is generally high, with slight variations responding to the differing
degrees of difficulty both for the families and the State” (Palma e Urzúa, 2005).
Entretanto, não se pode deixar de ressaltar que as redes locais de intervenção se apóiam
fundamentalmente no poder municipal, que coordena a oferta de serviços, vincula
beneficiários com projetos, programas, transferências e com demais ações sociais
existentes (Winchester, 2005, p. 11). A existência de Unidade de Intervenção Familiar
funciona com um importante elemento para impulsionar o poder municipal e a rede de
intervenção local, ao fornecer informações, identificar demandas (na forma de
requerimentos estáveis no tempo e sustentadas pelo traballho dos técnicos do apoio social)
(Winchester, 2005, p. 11). O êxito de Programa é dependente, sobremaneira, do
compromisso do executivo municipal e da priorização do mesmo na agenda municipal. O
Puente só funciona adequadamente se essa articulação setorial existe e ela depende da
capacidade de coordenação e da legitimidade e prioridade que são dadas a essa iniciativa
por parte dos dirigentes municipais. Esse é um ponto destacado por Winchester:
“parece ser que factores relacionados particularmente al liderazgo (tanto a nivel de
Alcadía como de los professionales a cargo del Programa) inciden altamente en su
implementación e incorporación a la lógica municipal, como también su efectividade
como Programa” (Winchester, 2002, p. 13).
Algumas dificuldades para viabilizar a implementação da lógica e das diretrizes do
Programa foram explicitadas pela coordenadora do Programa Puente em uma
municipalidade no Chile 156 :
156
Trata-se da municipalidade de El Bosque, participante do Projeto Rede Urbal 10, junto à qua foi realizada
uma pesquisa, no qual participei como consultora, sob a coordenação de Laura da Veiga. No âmbito desse
projeto foram produzidas informações, através de questionários e roteiros preenchidos pelos responsáveis
pelos programas. Essa resposta foi retirada de um questionário no qual se buscou, dentre outros pontos,
verificar os conflitos e as dificuldades para a implementação das ações intersetoriais, tal como previsto nas
161
“Para implementar el programa ha sido imprescindible trabajar en red, y esto provoca
que algunos sectores se sientan obligados a incorporar bajo el concepto de prioridad
esta nueva focalización ( familias indigentes adheridas a un sistema de protección
social). No se produce un conflicto más bien se tensan las relaciones con los
ministerios a nivel de gobierno y en lo local también, ya que se busca obtener una
respuesta positiva en virtud de la atención preferencial de las familias adscritas al
programa. Con el apoyo político y presidencial, de los alcaldes respectivos, se
sensibiliza acerca de la importancia de este programa y el desafío que significa
abordar la temática de la pobreza en estos términos metodológicos donde se abordan
familias más que individuos solos”(Coordenação local do Programa Puente, em El
Bosque, Chile)
Como fica evidente, a adoção de uma estratégia como a proposta pelo Puente provoca
resistências de alguns setores, que se vêem obrigados a incorporar a prioridade de
atendimento das famílias em situação de pobreza extrema. Aceitar essa prioridade de
focalização dada pelo Programa significa alterar rotinas e critérios próprios dos setores, o
que nem sempre é um processo que ocorre sem conflitos ou resistências. Entretanto, foi
apontada a importância do apoio político do prefeito e da adesão de parte da administração
local para sensibilizar os diversos setores quanto à necessidade de incorporar esse público
de forma prioritária 157 .
Além dessas dificuldades, os coordenadores do Programa Puente na comuna de El Bosque
destacaram outro problema: a existência de conflitos e tensões entre a equipe do governo
central e as equipes encarregadas da execução do programa no município. As últimas, por
estarem situadas na ponta, na interação constante com as famílias, têm o conhecimento
específico das demandas e das problemáticas do público atendido; já a equipe central, pela
distância que se encontra do processo de implementação, tem dificuldades de compreender
determinadas problemáticas ou encaminhamentos. Freqüentemente o conhecimento e o
saber das equipes locais não são reconhecidos ou legitimados, gerando situações que
diminuem o empenho da equipe, contribuem para o aumento dos conflitos e geram
diretrizes do Programa. A equipe do Programa em El Bosque é formada por: um profissional de serviço
social, responsável pela coordenação e pela implementação do programa na Comuna; trinta e quatro técnicos
que atuam como apoios familiares, sendo quatorze do FOSIS e vinte funcionários do município,
encarregados do trabalho de intervenção familiar; uma secretária administrativa. No questionário aplicado
aos coordenadores, foi destacada a necessidade de contratação de mais técnicos para apoio familiar, uma vez
que, com o número atual, cada técnico tem que acompanhar, em média, 120 famílias. De outubro de 2002 a
março de 2005, foram atendidas pelo Programa em El Bosque 1.200 famílias.
157
Avaliações realizadas sobre o Programa Puente apontam problemas no funcionamento das unidades de
intervenção familiar, dentre os quais se destacam número reduzido de técnicos que atuam como apoio
familiar, falta de equipamentos (computadores com acesso a internet, por exemplo), veículos (que possam
facilitar o acesso a áreas isoladas onde moram as famílias) e espaços adequados para o trabalho dos técnicos
de apoio familiar, inconsistência entre remuneração dos técnicos que atuam como apoio e o número de
famílias que cada um atende, dentre outros pontos negativos levantados (Winchester, 2005, p. 12).
162
intervenções menos efetivas. Trata-se de uma questão central para o desenvolvimento de
estratégias mais exitosas de superação da pobreza extrema.
O exemplo específico indica que a implementação envolve um conjunto de outras questões
que mostram que o estabelecimento de diretrizes ou a identificação de modelos de ação são
importantes, mas não necessariamente produzem os resultados esperados. A literatura
sobre implementação de políticas destaca que no nível da micro-implementação ocorrem
decisões que podem alterar substancialmente os objetivos traduzidos em ações concretas
(Costa, 2004). Mas este não é o tema dessa tese e a apresentação da experiência chilena
tem o objetivo de indicar, de forma exploratória, como a concepção de itinerários de
inserção encontra correspondência em intervenções em curso na América Latina, para
situar algumas das questões presentes na produção das políticas de proteção social com
esse recorte.
No Chile, a metodologia dos itinerários de inserção ganha materialidade a partir do
Programa Puente e, de forma mais geral, pelo Chile Solidário, que explicitamente orientase para a incorporação social das famílias em extrema pobreza. O Programa é focalizado
a partir do recorte da renda, e tem definidas as metas de cobertura, as rotinas e
procedimentos mais formalizados, com cobertura ampla e alimentada pela visão de que a
pobreza é multidimensional e de que existem elementos psico-sociais em sua produção e
reprodução. A estratégia do Puente (e do Chile Solidário) combina enfoques distintos, ao
adotar ao mesmo tempo e explicitamente a perspectiva de manejo de riscos e a perspectiva
da incorporação, demonstrando que essas perspectivas podem se combinar em desenhos
concretos de políticas de enfrentamento da pobreza e exclusão social 158 .
O capítulo seguinte organiza os elementos e categorias que emergem da pesquisa realizada
na literatura de forma mais sistemática, para configurar o quadro analítico, que possa
funcionar para identificar o desenho de estratégias locais de inclusão social em metrópoles
brasileiras.
158
Apesar das críticas ao modelo chileno por adeptos de modelos mais compreensivos de proteção social, não
se trata de analisar aqui se as políticas sociais no Chile, nas últimas duas décadas, se alinham com tendências
e perspectivas liberais de proteção social, mas simplesmente de ressaltar que é clara e explícita a utilização
do enfoque do manejo de riscos, apontado pela literatura, como visto nos capítulos anteriores, como
apresentando uma forte orientação de caráter liberal e uma forma residual de enfrentamento da questão
social. Embora interessante, a questão das diretrizes que inspiraram a reforma social no Chile seria um desvio
do problema perseguido ao longo do trabalho, mais especificamente orientado para as políticas locais de
proteção social.
163
CAPÍTULO 5 - DAS CONCEPÇÕES À AÇÃO OU ELEMENTOS DE ESTRATÉGIAS DE
INTERVENÇÃO
O objetivo deste capítulo, central para a tese, é apresentar as categorias analíticas que
emergem das considerações feitas nos capítulos anteriores. É grande o desafio de buscar
articular concepções teóricas que partem de tradições intelectuais diferentes, não
compartilham a mesma definição de problemas e se situam em níveis distintos de
abstração. Mas o exercício de construir essas conexões é necessário para avançar na
compreensão dos desafios das políticas de inclusão. As diferenças nas concepções sobre
pobreza (capítulos um e dois) são importantes de serem destacadas não só sob o ponto de
vista analítico ou metodológico, mas também, e principalmente, pelas implicações para os
modelos de ação. Os capítulos três e quatro fornecem outro conjunto de elementos ligados
às políticas públicas e sociais e a combinação desses dois conjuntos de elementos conflui
para o quadro analítico, objeto desse capítulo. Esse arcabouço analítico será contrastado,
no último capítulo, com duas experiências locais de inclusão social recentes de dois
municípios brasileiros, Belo Horizonte e São Paulo.
Partindo do exame das diferentes concepções sobre pobreza, tem-se dois pontos de
chegada distintos. Um decorre da pobreza tratada enquanto problema do conhecimento,
que direcionou a discussão para o exame conceitual e para a operacionalização, dimensão
central para o desenho de políticas e programas sociais. O outro ponto decorre das visões
também distintas sobre as alternativas de intervenção possíveis, o que remete ao tema da
pobreza como problema da ação, situado no campo das políticas públicas.
Trata-se aqui de estruturar um arcabouço analítico que incorpore as principais
contribuições destacadas nos capítulos anteriores. Se a pobreza é entendida como
multidimensional e multideterminada, heterogênea e permeada por elementos psicosociais, a decorrência é priorizar estratégias integrais, baseadas em procedimentos flexíveis
e que incorporem dimensões tangíveis e não tangíveis. Busca-se, portanto, construir uma
moldura analítica (componentes conceituais e tradução em dimensões operacionais
consistentes) a partir dos elementos que são decorrentes dos enfoques das capacidades, da
exclusão e da vulnerabilidade. Esses enfoques foram priorizados, pois são eles que
permitem considerar a pertinência da renda para identificar a pobreza, mas ao mesmo
tempo expandir a compreensão da pobreza para além da sua dimensão econômica. As
164
perguntas orientadoras do esforço de construção do modelo analítico são: que tipo de
limitações determinadas concepções sobre pobreza colocam para o desenho e gestão de
políticas? Que tipos de intervenções são necessárias, e ao mesmo tempo suficientes, para
fazer frente às problemáticas contemporâneas de destituição? Como foi argumentado
anteriormente, o objetivo maior de construção do modelo analítico é explorar as
decorrências para um modelo de ação. Trata-se assim de responder a pergunta: que
conseqüências e implicações para o desenho de programas e estruturação de sistemas
locais de proteção social advêm quando se parte da perspectiva da exclusão social e
da vulnerabilidade e não de uma visão da pobreza como ausência ou insuficiência de
renda?
Uma hipótese aqui considerada é que, do ponto de vista das políticas públicas, tornase necessário utilizar outros parâmetros para enfrentar a pobreza além da renda, pois
essa dimensão não retrata adequadamente a sobreposição de vetores de destituição
identificáveis nas situações de pobreza crônica ou de exclusão. Mesmo supondo que
seja suficiente considerar a pobreza sob a perspectiva monetária, para a renda converter-se
de fato em um elemento de incorporação ou inclusão social é necessário considerar, pelo
menos, a dimensão do tempo. O tempo é importante não apenas para mensurar a pobreza
crônica (e nesse sentido o tempo é considerado no passado), mas também como horizonte
de possibilidades (o tempo para o futuro): não só o volume da renda em um determinado
momento é importante, mas também sua continuidade, o que possibilita um horizonte para
que os indivíduos e famílias estabeleçam uma trajetória de inserção, façam planos,
escalonem prioridades e demandas. Se a renda não é suficiente como estratégia para o
enfrentamento da pobreza, que outros elementos são necessários?
5.1 – Pobreza crônica: a complexidade da intervenção
Uma primeira aproximação para a elaboração do arcabouço analítico retoma a
problemática específica da pobreza crônica, e afirma como suas especificidades limitam o
uso de um enfoque da vulnerabilidade e riscos em sua vertente de corte mais residual,
trabalhada no primeiro capítulo como assets based (e contraposta ao enfoque dos modos de
vida e do portfólio de ativos).
Essa concepção ganha evidência no campo da proteção a partir do enfoque do manejo de
risco, tal como formulada pelo Departamento de Protección Social, Red de Desarrollo
Humano, do Banco Mundial e operacionaliza a proteção a partir de três estratégias de
165
políticas: prevenção, mitigação e superação. Na prevenção, tem-se a finalidade de reduzir
a probabilidade de produção de riscos adversos, e deveria ocorrer, portanto, antes que se
produzam os eventos ou choques. As estratégias de prevenção contemplam políticas
macroeconômicas, de regulação, meio ambiente, educação, de prevenção de epidemias,
dentre outras. Na perspectiva preventiva da proteção social, as medidas contemplam a
redução dos riscos de desemprego, subemprego e baixos salários, por exemplo. Na
mitigação, as intervenções voltam-se para a redução dos efeitos de riscos futuros e,
portanto, as estratégias situam-se antes da produção dos riscos, na medida em que buscam
reduzir a repercussão dos riscos, caso esses ocorram. São medidas ex-ante que buscam
reduzir o impacto do choque, e envolvem, entre outras ações, a diversificação da renda, o
que significa o acesso a uma gama mais ampla de ativos e mecanismos formais e informais
de seguros. Na superação, as iniciativas estão desenhadas para aliviar os efeitos dos riscos
já ocorridos, estando dirigidas para enfrentar os choques (Mideplan, 2002, p. 36; Sojo,
2003, p. 137; Holzman, Jorgesen, 2000, pp. 16, 17).
Um ponto importante para a discussão aqui consiste em afirmar que, para alguns autores
(Barrientos e Sheperd, 2003, por exemplo), o tipo de pobreza que parece nortear a
concepção de manejo de risco é a pobreza transitória, sendo a proteção estruturada para
populações que se situam nos limites das linhas de pobreza, sendo mais vulneráveis aos
riscos e às flutuações do mercado de trabalho e às variações bruscas em sua renda. De
acordo com esses autores, críticos do modelo de manejo de riscos, nesse enfoque a pobreza
crônica ficaria ainda fora do radar. O que se afirma é que as noções de vulnerabilidade e
riscos são úteis para entender como se chega a uma condição de pobreza crônica – e, nesse
sentido, vulnerabilidade e risco são os condutores (drivers) para a pobreza -, mas não é
muito claro como eles contribuem para manter as pessoas na pobreza e para transmitir a
pobreza de uma geração a outra (Barrientos e Sheperd, 2003, p. 7). Se focalizarmos os
pobres crônicos, isto é, aqueles que estão há muito tempo abaixo da linha de pobreza e
consumo, e que se encontram em situação de múltiplas privações, a perspectiva exclusiva
dos riscos e da vulnerabilidade não permitiria um entendimento amplo da questão, segundo
o argumento desenvolvido por Barrientos e Sheperd. O foco no risco, nas respostas
comportamentais dos pobres aos eventos de risco (como cálculos aos riscos), não
abarcaria as dimensões estruturais subjacentes à pobreza crônica e que confluem
para sua reprodução. Isso quer dizer que as estratégias de manejo de risco podem ser
úteis para impedir o crescimento da pobreza crônica, mas seriam insuficientes para
166
interromper o processo para os que já estão nela mergulhados (Barrientos e Sheperd, 2003,
p. 2).
Uma perspectiva importante de ressaltar aqui é que se o enfoque de vulnerabilidade, nessa
vertente específica, não contempla adequadamente as dimensões estruturais de produção e
reprodução da pobreza crônica, por outro lado permite avançar no desenvolvimento de
tipologias de políticas consistentes com as possíveis posições dos indivíduos na cadeia de
riscos (os eventos de risco, as respostas a eles, os resultados em termos de bem estar), sob a
forma de políticas de prevenção, mitigação e superação, conforme a estruturação do
sistema de proteção sob a égide do manejo de riscos.
Outras tipologias são construídas para organizar a diversidade de tipos de intervenções,
segundo as concepções de base. Por exemplo, tendo como referência a noção de exclusão
(e não mais a de vulnerabilidade), John Hills (2000) fornece parâmetros úteis para
identificar alternativas distintas para o atendimento de pessoas, famílias e grupos,
formuladas a partir de dois momentos distintos: entrada ou saída de uma situação de
adversidade. Um conjunto de intervenções deve ter como foco a prevenção ou redução do
risco da entrada em uma situação de exclusão, por exemplo, através do apoio à educação
ou ao aperfeiçoamento profissional. Como estratégia de saída, a intervenção focaliza a
promoção da saída ou da transição da exclusão para uma situação mais inclusiva, como os
projetos de bolsa trabalho ou de trabalho protegido. Um terceiro conjunto de ações salienta
a proteção diante da ocorrência de determinados eventos, evitando que uma situação
transitória se deteriore em uma situação mais consolidada de exclusão, por exemplo,
através do pagamento de seguro-desemprego. Finalmente têm-se os programas de
propulsão no percurso de saída da exclusão, favorecendo que as trajetórias sejam em
direção a situações mais inclusivas e não de retorno à exclusão, como é o caso do
desenvolvimento de iniciativas de apoio ao desempenho escolar de crianças que tenham
deixado o trabalho infantil (Hills, 2000, pp. 232, 233; Carneiro e Costa, 2003).
167
Quadro 9 - Tipologia de estratégias de enfrentamento, segundo John Hills
Situação de entrada em Prevenção
situação de exclusão
Situação
exclusão
de
saída
(do
risco
entrada)
da Promoção
de Proteção (diante da ocorrência
de determinados eventos)
da
saída Propulsão (saída sustentável
(transição para uma situação da situação de exclusão)
de não exclusão)
Fonte: elaboração própria a partir de Hills, 2000, pp. 232, 233.
Algumas evidências são instigantes, como as que mostram que os indivíduos mais pobres,
que conseguem sair da pobreza, têm muito mais chance de voltar a cair nela do que os
indivíduos menos pobres, numa proporção de 25% para 7% (Hills, 2000). Tais
considerações podem condicionar o desenho de estratégias de bem estar social, ao decidir
pela priorização do público em situação de pobreza extrema, construindo alternativas e
“escoras” suficientemente fortes para dar conta do movimento de saída da pobreza e da
sustentabilidade dessa situação.
Do ponto de vista restrito do marco conceitual das políticas de proteção pode-se afirmar
que a pobreza crônica demanda estratégias de promoção, propulsão e proteção, em
intervenções articuladas, intensas e complexas. Para interromper a perpetuação da pobreza,
seria necessário um conjunto amplo de intervenções personalizadas para um público
focalizado. Isso requer desenvolver uma outra lógica de provisão de serviços públicos, que
combine várias políticas dirigidas para enfrentar as privações múltiplas experimentadas
pelos cronicamente pobres, em uma modelagem bastante diferente das intervenções
voltadas para o enfrentamento da pobreza transitória, que podem se concentrar em
expandir o acesso ao mercado e aos mecanismos de seguros, por exemplo.
A distinção entre pobreza crônica e transitória, com o conseqüente exame dos conteúdos e
metodologias de intervenção para uma e outra situação, expande a discussão sobre os
modelos de proteção social, e abre caminho para a análise dos elementos relevantes para o
desenho de estratégias de proteção social.
Vale destacar assim que as problemáticas trazidas pelas concepções de exclusão,
vulnerabilidade e pobreza crônica têm conseqüências para o desenho de políticas.
Para superar a pobreza crônica, tem-se – também do ponto de vista conceitual - que as
políticas de proteção desenvolvidas devem responder ao conjunto de fatores que estão na
sua base, atuando sobre os elementos estruturais que a perpetuam e a reproduzem. O
168
principal argumento é que para os que se encontram em uma determinada situação de
destituição, os riscos aos quais estão submetidos e as capacidades de que dispõem para
enfrentá-los os levam a adotar estratégias que acabam por aprisioná-los em um círculo
perverso, ou “poverty trap” (Barrientos e Sheperd, 2003, p. 15). E no que se refere aos
sistemas de proteção, trata-se de indagar, seguindo os autores,
“whether and to what extent or in what way a narrow approach to social protection
developed in the 1990s and designed predominantly to prevent the poor from becoming
destitute can also play a role in creating conditions for persistently poor people to
emerge from poverty, and can even interrupt some of the structural patterns which
maintain people in poverty” (Barrientos and Shepherd, 2003, p.3).
Intervenções para redução da pobreza crônica são mais dispendiosas e demoradas do que
as intervenções voltadas para redução da vulnerabilidade (Barrientos e Sheperd, 2003, p.
12). O tempo de maturação exigido das intervenções para produzir mudanças nos padrões
de pobreza crônica é muito amplo. Em regimes políticos democráticos, com processos
eleitorais regulares, o tempo é uma variável política importante. Além dos custos e do
tempo, o suporte político necessário para legitimar políticas de combate à pobreza crônica
é mais difícil de se alcançar, dada a complexidade e os resultados mais incertos das
políticas.
O enfrentamento da pobreza crônica exige políticas intensas e prolongadas no tempo,
envolvendo um conjunto mais amplo de ações e setores. O desafio é encontrar
resposta para a seguinte indagação: que políticas (conteúdos e abrangência) são mais
promissoras para interromper e reverter processos de pobreza crônica? A superação
da pobreza crônica requer a combinação de elementos que considerem a
multidimensionalidade das privações, a presença de dimensões menos tangíveis e a
heterogeneidade que advém das interações e das combinações específicas entre os
diversos vetores de destituição.
Esses são os temas tratados nos itens abaixos. Desses temas decorrem as questões da
intersetorialidade e da integração no território, da flexibilização na oferta de serviços
e o foco na autonomia e empoderamento de pessoas, famílias e regiões, que são os
ingredientes de uma agenda renovada para a proteção social e combate à pobreza no
âmbito local.
169
5.2 Multidimensionalidade e intersetorialidade
Quando se adota uma concepção ampliada de pobreza, expandida pela perspectiva da
exclusão e da vulnerabilidade, tem-se uma realidade multifacetada de carências e privações
em interação, sustentando-se reciprocamente, gerando círculos perversos de exclusão.
Como discutido no primeiro capítulo, a pobreza é multifacetada, o que significa que para
sua produção e reprodução convergem fatores de natureza diversa, o que remete,
invariavelmente, a diferentes setores das políticas públicas. O enfoque da exclusão, o dos
modos de vida e as análises sobre pobreza crônica, principalmente, salientam o mesmo
ponto: pobreza envolve uma multiplicidade de dimensões, fatores ou vetores de
destituição. Nas situações de pobreza convergem fatores de natureza socioeconômica,
culturais, familiares, individuais e institucionais, conformando trajetórias distintas e
demandando ações públicas de conteúdos, abrangência e objetivos diversos.
Para os que se encontram muito abaixo da linha da pobreza por um tempo longo são
necessários “interruptores” (na terminologia de Alwang, Siegel e Jorgesen, 2001) variados
para possibilitar uma saída da condição de pobreza. A severidade não se expressa apenas a
partir do hiato de renda, mas sim pelas várias dimensões nas quais as privações são
experimentadas. A multiplicidade das privações teria relação direta com a cronicidade da
pobreza e sua transmissão intergeracional.
A multidimensionalidade da pobreza e a interação complexa entre os diversos vetores de
destituição exigem políticas diversificadas, combinadas para propiciar prevenção,
mitigação e superação da pobreza, que possam funcionar como redes de barreira e de
impulso com as quais as famílias, nas diversidades de situações, possam contar.
Concretamente podem-se identificar algumas dimensões relevantes para analisar os
processos de exclusão social. Antes de tudo, a dimensão econômica, a ausência de renda.
Não tem como negar esse ponto básico e irrefutável, principalmente em se tratando de
sociedades monetarizadas. Além da renda, tem-se a dimensão dos bens e serviços aos
quais as pessoas e famílias têm acesso e que marcam situações de inserção ou de não
inserção no conjunto das políticas de proteção. A terceira seria a inserção no mundo do
trabalho, o que envolve não apenas acesso à renda, mas também a uma identidade e
dignidade social. A dimensão dos laços sociais e a vigência de mecanismos de
solidariedade e reciprocidade corresponde ao quarto grande conjunto relacionado aos
processos de exclusão. Além disso, tem-se o âmbito dos aspectos subjetivos, relativos a
valores e atitudes e, finalmente, a dimensão da territorialidade, pois os territórios, através
170
do estigma e da segregação, podem agregar outro componente aos processos de exclusão
(Corera, 2002, p. 335).
Para contemplar todas as dimensões, a conseqüência é desenhar estratégias de
intervenção capazes de abranger distintos setores das políticas públicas, remetendo à
atuação conjunta e necessária de vários programas e iniciativas sociais. Esta exigência
se traduz, no plano do desenho de políticas, em intervenções intersetoriais. A
intersetorialidade na gestão é a contraface da multidimensionalidade da pobreza.
Essa perspectiva é especialmente necessária no caso da pobreza crônica, extensa no tempo
e intensa nas várias dimensões da privação. Seja na prevenção, mitigação ou nas
estratégias de superação, são numerosos os condutores para a pobreza crônica
(desigualdade, dinâmicas mercado de trabalho, choques econômicos e políticos, áreas
remotas e estigmatizadas, vulnerabilidades múltiplas, baixo status de ativos), sendo
cronicamente pobres os que apresentam combinações de vetores diversos de
vulnerabilidades: dados pela faixa etária, pelos problemas relativos aos territórios e áreas,
condições de saúde, status social (grupos étnicos, religiosos, migrantes, refugiados etc.),
incorporação adversa no mercado de trabalho, características diversas (raça, gênero
deficiência etc), dentre outros.
“These drivers, maintainers and interrupters may be single, sequential and/or
combinations. The more chronic and intractable the poverty, the more likely it is that
we should be looking for sequences and combinations of factors to enable escape from,
or even further slide into poverty” (Hulme, Moore e Sheperd, 2001).
A operação de múltiplos condutores, mantenedores e interruptores (drivers, maintainers e
interrupters, nos termos de Hulme, Moore e Sheperd, 2001) da pobreza crônica impõe a
abordagem intersetorial, uma vez que requer a convergência, para um mesmo público, de
um conjunto de ações orientadas a reverter, prevenir ou mitigar os seus efeitos, dando
forma a um sistema de proteção que funcione como rede e também como mola de
propulsão para que indivíduos, domicílios, grupos e regiões consigam a saída sustentável
dessa condição.
Como viabilizar ações e políticas integradas, focadas no desenvolvimento integral das
pessoas em diversos âmbitos: educacionais, de saúde e bem-estar, trabalho e renda,
habitação, acesso à cultura, ao lazer, ao universo da cidadania? Para superar de forma
sustentável as situações de exclusão é necessário desenvolver um conjunto de ações
diferenciadas, intersetorialmente articuladas, o que exige mais do que uma simples
171
conexão ou agregação de setores. A demanda é por uma estratégia mais coletiva de
enfrentamento da pobreza. A intersetorialidade é uma decorrência lógica da concepção da
pobreza como fenômeno multidimensional. Esse é o primeiro registro sob o qual examinar
o tema da intersetorialidade.
O segundo ponto diz respeito a intersetorialidade como estratégia de gestão, de natureza
mais institucional e organizacional. A gestão segmentada e setorializada e a definição
setorial das políticas já não respondem de forma adequada aos desafios atuais. Nessa
perspectiva, os modelos de bem estar social emergentes valorizam a perspectiva da
integralidade da gestão. A intersetorialidade responderia assim não somente a um
requisito de natureza substantiva, relativo à natureza da pobreza mas estaria também
articulada a uma exigência no âmbito técnico e institucional, como estratégia
adequada para aumentar a eficácia das políticas e como resposta aos desafios
colocados para as políticas de proteção social, em especial as de combate à pobreza.
5.2.1 Transversalidade, intersetorialidade ou articulação: aspecto central da ação contra
a pobreza
Formular e implementar estratégias de intervenção que partam de uma visão
multidimensional da pobreza e do reconhecimento de sua heterogeneidade demandam
ações articuladas, coordenadas ou ainda desenvolvidas de forma intersetorial ou
transversal. A intersetorialidade como diretriz exige mais do que uma articulação ou uma
comunicação entre os diversos setores sociais. Ela pode apontar para uma visão integrada
do problema da exclusão, uma perspectiva que situa a pobreza como um problema
coletivo, que diz respeito ao conjunto da sociedade e que deve ser coletivamente
enfrentado 159 . Além dessa perspectiva, tem-se um uso mais comum e menos abstrato do
termo intersetorialidade, que remete à intersetorialidade como ferramenta de gestão, na
visão da questão do ponto de vista organizacional.
Transversalidade é um instrumento de gestão de uma “visão poliédrica da sociedade”, uma
adaptação necessária por parte das organizações públicas para enfrentar a multiplicidade
de dimensões presentes situações de pobreza.
159
Nas palavras de Serra, a abordagem
A relação entre esses pontos não é óbvia, mas pode-se sugerir que a perspectiva da intersetorialidade, no
caso das políticas de enfrentamento da pobreza, ao espelhar uma visão multifacetada do problema, encontra
correspondência, em outro nível de análise, com uma visão da pobreza como problema coletivo, que não se
refere a um único ator (governo) e nem a apenas determinados setores do governo. Aponta, portanto, para
uma visão mais compreensiva e coletiva do problema da pobreza, o que remete a uma tendência para o
desenvolvimento de políticas de caráter mais universal.
172
transversal “es una alternativa limitada de la que dispone la organización para hacer
frente a la multiplicidad de caras que tiene la realidad” (Serra, 2004, p 7). Programas e
ações centradas nas necessidades das famílias, indivíduos e grupos, aderentes às demandas,
supõem e requerem, para sua operacionalização, uma gestão que supere a fragmentação.
Para a operação dos serviços locais de proteção social existem especificidades não apenas
quanto ao conteúdo, mas também quanto às estruturas de organização e gestão. Um dos
pontos salientados na vasta literatura que trata do tema das mudanças nos modelos e
práticas de gestão pública e social é a tensão entre a necessidade de especialização (para
atender a demandas diferenciadas) e a integração (para possibilitar uma visão global sobre
as pessoas atendidas e seus problemas).
As mudanças no campo da gestão pública, conforme apontado no capítulo anterior em
relação aos serviços pessoais, manifestam-se a partir de uma nova cultura de gestão que se
contrapõe às
“tendências jeraquizantes, compartimentalizadoras, procedimentales y endogámicas de
la ortodoxia burocrática para acercarse a un modelo que pretende introducir
dinámicas participativas, integradoras, dirigidas a los resultados y en contacto directo
con el entorno” (UAB, 1998, pp. 40,41).
A organização pública tradicional, ou o modelo estável de gestão, como designado por
Brugué (ano, p.93) é o campo das especializações funcionais, do profissionalismo, com
estratégias de implementação centralizadoras e com ênfase na provisão e monopolização
da prestação dos serviços. Contrapõe-se a um modelo dinâmico, baseado na proximidade,
na participação, com ênfase na descentralização e na habilitação no campo da oferta de
serviços, o que remete ao papel estratégico e relacional dos agentes (Brugué, ano, p. 96).
Para uma gestão afinada com a perspectiva da integralidade tem-se, segundo Brugué, duas
vias. Uma, no âmbito da concepção dos problemas e da atuação dos gestores, como uma
forma de pensar integralmente a realidade, o que envolve mudanças no âmbito cultural e a
aceitação de outros princípios e estratégias de ação; e outra no âmbito das estruturas
organizativas, inovando em relação às segmentações existentes. Brugué identifica assim
gestão e organização como duas vias nas quais a intersetorialidade se situa. Em um caso,
como afirma Brugué, tem-se que a integralidade das políticas decorre de uma visão e uma
cultura de gestão “que incorpore la comprensión compleja de los problemas y que, de esse
modo, acepte la integralidad y la transversalidad como uma premisa de trabajo”. Em
outro, no nível da organização, o ponto refere-se à integralidade na provisão dos serviços,
173
bens e políticas e que “crucen las clásicas segmentaciones profesionales y que permitam
ubicar em los circuitos de trabajo problemas complejos y multidimensionales” (Brugué,
ano, p. 94) 160 .
Esse ponto remete ao tema da intersetorialidade ou da articulação mais ou menos intensa
entre os diversos setores governamentais na formulação e gestão de políticas públicas e
sociais. A intersetorialidade se diferencia, ainda que de maneira sutil, da articulação ou
coordenação das ações, uma vez que, em uma versão “forte”, envolveria alterações nas
dinâmicas e nos processos institucionais e no desenho e conteúdos das políticas setoriais.
Coordenação é um termo que sinaliza um processo de articulação institucional que não
pressupõe, necessariamente, alterações nas estruturas ou dinâmicas existentes nos diversos
setores. A questão, contudo, é controversa. Para alguns autores, como Fabian Repetto
(2004), a articulação intersetorial pode ser entendida como uma manifestação de
coordenação. Para Serra (2004) e Cunnil Grau (2005), vale a pena ressaltar as
especificidades da intersetorialidade em relação aos elementos da coordenação.
A emergência do tema da intersetorialidade na agenda pública vem mesclada com outros
termos – transversalidade, cross cutting, matricialidade - sendo difícil estabelecer, sem
ambigüidades, os limites e as distinções entre eles. Contudo, tais concepções acenam para
um conjunto de inovações no âmbito da gestão pública, em um contexto no qual os
sistemas técnicos especializados e as estruturas fortemente hierarquizadas e verticais são
confrontados com novos objetivos e demandas políticas e sociais, novas temáticas e novos
segmentos da população, que demandam uma remodelagem das velhas estruturas
organizacionais, exigindo novas respostas organizativas das quais a intersetorialidade é
apenas uma das alternativas possíveis.
A abertura para uma visão de trabalho horizontal é o ponto chave e que caracteriza, de
forma geral, tais formulações. De forma explícita, Serra distingue transversalidade da
cooperação inter-administrativa, da parceria público - privada, da participação cidadã, do
estabelecimento de alianças estratégicas, da estruturação e gestão de redes (Serra, 2004, p.
160
A estruturação da perspectiva da integralidade pode ser visualizada, no plano organizacional, nas
mudanças de organograma. Um organograma mais integrado compõe-se não de inúmeros “caixotinhos”
diversos e desconectados, como acontece nos modelos com excesso de especialização, mas de formação de
áreas de ação, que buscam reduzir a sobreposição e duplicidade de ações. Mas, de acordo com Brugué, as
experiências com estruturas integradas não resolveram os problemas, gerando outros, criando estruturas
intermediárias sem poder suficiente de direção, complicando e alargando ainda mais os organogramas
municipais. A matricialidade é uma outra inovação organizativa e que permite uma coordenação constante e
em todos os níveis, como afirma Brugué (ano, p. 97).
174
8). Todos esses seriam instrumentos de gestão organizativa, da mesma forma que a
transversalidade, que pode ser definida como “instrumento organizativo adecuado para
incorporar, en el trabajo del conjunto, o de una parte significativa de la organización, el
tratamiento de políticas, problemas, puntos de vista, segmentos de población, etc. que
reflejan la multidimensional de la realidad, sin eliminar ninguna de las dimensiones ya
incorporadas en su trabajo a través de la estructura orgánica básica“ (Serra, 2004, p. 8).
Questões relativas à
dimensão não-material da pobreza, igualdade de gênero 161 ,
sustentabilidade, por exemplo, não são enquadradas em nenhum dos setores
tradicionalmente existentes nas administrações públicas e demandam estruturas
organizativas novas.
Transversalidade e intersetorialidade, tratadas aqui de forma intercambiável, são
entendidas como meios de gestão, que podem se constituir a partir de critérios territoriais, a
partir de eixos temáticos (exclusão, imigração), de faixas de idade ou de determinados
coletivos (famílias monoparentais, deficientes, grupos étnicos etc.), sinalizando uma visão
mais global pautando
“estratégias que dan lugar a procesos de actuación multidimensionales, pero
enhebrados por um hilo conductor, por un eje que se proyecta sobre múltiples campos
específicos de políticas pública local” (Blanco e Gomà, 2003, p.24).
Um ponto de partida importante para localizar o debate sobre intersetorialidade do ponto
de vista da gestão adota a perspectiva de que tais arranjos, intersetoriais ou transversais,
constituem uma parte soft da organização, enquanto dimensão complementar à estrutura
organizativa básica ou hard (Serra, 2004, pp. 2,3). Isso quer dizer que a perspectiva da
intersetorialidade ou da transversalidade não pretende substituir as estruturas setoriais
existentes, embora pressuponha a introdução de novos pontos de vista, novas linhas de
trabalho e de objetivos em relação aos já existentes nos diversos setores (Serra, 2004, p. 4).
Albert Serra aponta como uma especificidade das estruturas transversais em relação às
verticais, é que as primeiras“no incluyen la gestión operativa ni la producción y si
incluyen el análisis y la relaciona con el entorno, de diseño de los objetivos y la
planificación estratégica y operativa, el seguimiento y la evaluación del resultado
operativo y social, y la evaluación estratégica” (Serra, 2004, p.9). A capacidade de gestão
e de produção pertence às estruturas verticais e setoriais. Isso quer dizer que os órgãos
161
De acordo com Albert Serra, o uso pioneiro do termo transversalidade ocorreu nos anos 90, por ocasião da
Quarta Conferência da Mulher da ONU, em Beijing, atrelada ao tema da igualdade de gênero, entendida
como instrumento de implementação de políticas públicas de promoção dessa igualdade (Serra, 2004, p. 5).
175
transversais são, nos termos de Serra, sistemas de relacionamento e de conhecimento
e que alimentam as organizações de visões específicas e objetivos estratégicos de
mudança social (Serra, 2004, p.9). Embora não participem da gestão operativa do dia a
dia, os órgãos transversais acompanham e monitoram o impacto da gestão transversal, o
que os mantém ligados ao processo operativo, ainda que não diretamente.
A transversalidade confere um foco à organização, dirigindo a atenção para aspectos e
temas considerados centrais e permitem intensificar a atuação sobre eles. O gestor da
transversalidade necessita operar com instrumentos de gestão estratégicos, com domínio
dos instrumentos de análise e desenho, de gestão relacional, gestão política e avaliação. As
atividades principais para o trabalho transversal, segundo Serra residem a) na produção,
análise e difusão de informação e conhecimento, com a criação, gestão e suporte de
expertise, experiências, técnicas e boas práticas para subsidiar a direção política e os
órgãos verticais; b) no desenho e formulação de objetivos estratégicos, concepção e
desenvolvimento de políticas e metodologias de trabalho e c) estruturação e gestão de
redes relacionais internas e externas de tipo multilateral (Serra, 2004, pp.12-13). O trabalho
transversal exige, sobretudo, recursos estruturados em torno de dois eixos: conhecimento
(capacidade de análise, de formulação de estratégias) e capacidade relacional, o que
limitaria, para esse tipo de gestão, o papel de recursos econômicos convencionais
(orçamento, pessoal ou infra-estrutura), que são centrais nas estruturas verticais de gestão.
A dimensão da capacidade relacional associa-se diretamente ao conceito de governança,
como visto aqui. A gestão transversal permite conferir uma visibilidade horizontal à
organização sem que se perca a qualidade técnica e a especialização, dimensões
importantes e que dão forma à estrutura organizativa mais “dura” da organização.
Pode-se pensar, como uma hipótese de trabalho, que a noção de intersetorialidade
situa-se em um contínuo que abrangeria desde a articulação e coordenação de
estruturas setoriais já existentes até uma gestão transversal, configurando formas
intermediárias e arranjos organizativos que expressam a intersetorialidade de baixa
ou de alta densidade. O posicionamento das iniciativas e arranjos nesse contínuo vai
depender do grau de legitimidade e da centralidade do tema na agenda pública e no
plano decisório; da magnitude dos arranjos e alterações institucionais necessárias
para viabilizar a gestão horizontal das políticas; das alterações nas rotinas, práticas
de trabalho e metodologias de entrega dos bens e serviços.
176
Não existem formatos pré-definidos de programas ou estratégias intersetoriais no campo
das políticas sociais 162 ou de políticas mais específicas para o enfrentamento da pobreza;
mas pode-se dizer que na origem de estratégias com esse formato existe sempre um
diagnóstico sobre o caráter multideterminado e multifacetado do fenômeno da pobreza ou
dos problemas sociais em geral.
A estratégia da intersetorialidade pode permitir maior eficiência e resultados mais
significativos quanto ao impacto e sustentabilidade das políticas, evitando sobreposições
de ações e garantindo maior organicidade às mesmas. Permite, sobretudo, uma resposta
integral e dessa forma mais adequada e pertinente aos problemas identificados. Para
viabilizar a horizontalidade, contudo, muitos são os limites. A lógica da setorialidade se
expressa não só na cultura organizacional, estruturada em secretarias e programas
especializados, como também nos mecanismos de destinação dos recursos e nos sistemas
de informação. A inexistência de sistemas de informação compartilhados constitui um
outro importante obstáculo para o desenvolvimento da gestão intersetorial. A maioria dos
repasses, principalmente nas áreas de saúde, educação e assistência social, é destinada para
fortalecer ações setorializadas. Conseguir esta articulação, inclusive do ponto de vista
financeiro, não é algo simples e demanda um longo prazo para sua efetivação, além de
forte adesão política e esforço de construção de estruturas e práticas institucionais
adequadas para a gestão coordenada e intersetorial de políticas. O orçamento por rubricas
constitui um nó central para o desenvolvimento da intersetorialidade. Como aponta Grau
(2005, p. 7), o orçamento pode atuar como um importante mecanismo produtor de
intersetorialidade, se e na medida em que as diretrizes conjuntas sejam materializadas em
planos e orçamentos. Não são triviais os desafios que se enfrentam na prática para a
implementação da intersetorialidade, ainda que essa seja uma diretriz e objeto de consenso
e conte com a adesão retórica de um conjunto expressivo de atores. Uma citação permite
elucidar o ponto:
“Muitas vezes, quando a intenção é otimizar os recursos públicos, as instituições
resistem, disputando as populações, e nessa atividade promovem uma espécie de
fragmentação da pobreza e, ainda, introduzem desigualdades entre os públicos das
políticas e dos programas. Essas disputas, entretanto, aparecem camufladas pelos
162
Alguns exemplos de programas intersetoriais são fornecidos por Fernandez e Castiella (1998), que
elencam algumas iniciativas que são desenvolvidas a partir dos anos 80 na Espanha, tais como o Projeto
Jovem, de Barcelona, que funcionou para dar consistência ao princípio de políticas integrais, ao articular as
diversas políticas setoriais em torno desse subconjunto da população. Posteriormente outras estratégias de
políticas são desenvolvidas, nesse mesmo formato (Plan para Gente Mayor, Plan Municipal de la Mujeres,
Plan de Infância, Plan de la Interculturalidad, voltado para integração de imigrantes e minorias étnicas, dentre
outros).
177
argumentos da focalização, da seletividade e por outros meios menos engenhosos”
(Ana Fonseca, apud Campos, 2004, p. 165 ).
Para que a incorporação da gestão transversal possa se efetivar, é necessário que existam
estruturas organizadas com legitimidade política e gerencial e capacidade e
reconhecimento técnico. Além de contar com tais atributos, os instrumentos de gestão
transversal podem ser diversos, como comissões interdepartamentais, unidade de
integração (que se referem às formas de contato com os usuários), mesas intersetoriais,
estruturas de processos intersetoriais, grupos de trabalho, atividades relacionais como
seminários, sessões de trabalho, dentre outros (Serra, 2004, pp.17-18). Esses se configuram
como
instrumentos
intraorganizacionais,
aos
quais
devem-se
somar
os
interorganizacionais, aqueles que vinculam a organização com seu entorno e que se
expressam em institucionalidades como órgãos de articulação social ou órgãos de
participação cidadã.
Além de estratégias de gestão integradas e de processos de reorganização
administrativa, que constituem as duas vias para desenvolver um enfoque intersetorial,
segundo Cunill Grau (2005), tem-se o desafio de criar viabilidade política ou uma
ambiência necessária para a emergência e o exercício da intersetorialidade. Não é razoável
supor que um processo que envolva partilha de recursos e poder não leve a conflitos e
disputas, mas o ponto é que estes podem ser neutralizados ou minimizados pela criação de
“comunidades de sentido”, nas palavras de Grau, que se refere a visões e objetivos
compartilhados (2005, p. 9). Criação de fóruns e espaços para deliberação e direções
colegiadas e a elaboração de planos elaborados de forma conjunta e participativa são
dispositivos que contribuem para a legitimação da perspectiva da intersetorialidade. Um
ponto importante, sustentado empiricamente e salientado por Grau, é que a
institucionalidade política dominante atua como condicionante da intersetorialidade. Em
alguns contextos políticos simplesmente a intersetorialidade não pode emergir e mesmo a
coordenação é difícil, o que indica o fundamento político da intersetorialidade e o papel do
agente catalisador da autoridade política, nas palavras de Grau, para viabilizar a
participação e o envolvimento efetivo (e não apenas retórico) dos diversos setores.
O desafio da intersetorialidade consiste, portanto, em como unir, em uma ação conjunta,
instituições com objetivos, dinâmicas e culturas organizacionais distintas. A resposta, mais
ou menos óbvia, está nos objetivos comuns que possam ser identificados, nos resultados
que se queira produzir conjuntamente. A elaboração de diagnósticos comuns ou pactuados
dos problemas pode ser um meio que possibilite a intersetorialidade. A perspectiva da co178
responsabilização ganha relevância, uma vez que as diversas instituições passam a ser
responsáveis pelo alcance dos resultados ou objetivos comuns acordados. O argumento
principal é que a intersetorialidade é um atributo necessário (embora necessário em graus
variados a depender das distintas situações) da gestão de políticas sociais adequadas para
fazer frente aos desafios da pobreza e da exclusão e de situações específicas de
vulnerabilidade. Esse ponto liga a questão da intersetorialidade de forma mais direta à
heterogeneidade da pobreza, que será visto na próxima seção.
5.3 Heterogeneidade da pobreza, flexibilidade na oferta dos serviços e território
Além da multidimensionalidade da pobreza e a conseqüente adoção da perspectiva
intersetorial na produção de políticas sociais, outro aspecto é a relação entre a focalização
no território e a possibilidade de uma visão mais global e integrada da realidade e das
políticas a serem desenvolvidas. A dimensão da territorialização surge a partir do
reconhecimento da heterogeneidade da pobreza e interdependência entre os diversos
vetores da exclusão, e também da combinação múltipla de vetores de inclusão ou inserção
social. Reconhecer a heterogeneidade da pobreza e a diversidade de formas de
manifestação demanda estratégias de ação moldadas a partir das necessidades das
pessoas e famílias, mais flexíveis e sensíveis para captar especificidades. Em
decorrência desse reconhecimento, três questões emergem como centrais para o
desenho de políticas de inclusão social: a) a centralidade do território para as
políticas sociais, seja como elemento para o diagnóstico e focalização como objeto da
intervenção; b) a noção de infra-estrutura social, que combina a noção de território
com a de comunidade e c) a atenção necessária à formas flexíveis de provisão dos
serviços.
5.3.1 Território: políticas territoriais e políticas territorializadas
A temática do território ganha relevância como um elemento que contribui para explicar a
permanência e a reprodução das condições de pobreza crônica. Se o território é parte do
problema, pode também ser parte da solução e nesse sentido a categoria de território
emerge como parâmetro para focalização da ação governamental nas políticas contra a
pobreza e como unidade de intervenção. Quando se diz que o território é uma unidade de
intervenção, afirma-se que é algo a ser gerido e transformado por meio da ação
governamental.
179
Uma distinção relativa à categoria de território, conforme salientada por Brasil (2004), é
importante de ser resgastada aqui. Trata-se da distinção entre políticas territoriais e
políticas territorializadas, o que permite entender as formas diferenciadas pelas quais a
categoria do território pode ser considerada nas estratégias de inclusão social. Na distinção
que Brasil recupera, nas políticas territoriais o território emerge como “espaço privilegiado
de formulação e gestão territorializada, implicando a mobilização dos recursos locais
para tratar os problemas sociais”. As políticas territorializadas, por sua vez,
“correspondem à aplicação local de uma política a um território, o que, em certa medida,
ocorre em face dos processos de descentralização. Constituem-se como alternativa aos
modelos tradicionais das políticas sociais, implicando a incorporação da
intersetorialidade nas lógicas de intervenção. Essas políticas remetem, portanto, à
redefinição do mecanismo de focalização a partir da dimensão do território” (Brasil, 2004,
p. 56).
Considerar a dimensão do território e a comunidade contribui para uma melhor
compreensão do problema, ou funciona como uma outra lente sob a qual ver os processos
de pobreza e exclusão, que acontecem em territórios, permeados por relações sociais e
laços de respeito, cooperação e conflito, reciprocidade, atuação de redes institucionais e
comunitárias. O foco na dimensão do território e das áreas contribui para compor o
arcabouço de análise dos processos de exclusão nos espaços urbanos modernos.
Richardson e Mumford (2002), Lupton e Power (2002) e Kleinman (1998) incorporam a
dimensão espacial, do território, da comunidade e da vizinhança como dimensões
estruturantes da própria concepção de pobreza. As comunidades e territórios constituem,
nesse sentido, as unidades privilegiadas de análise.
Os campos da economia, da sociologia urbana e da política social diferem quanto à
percepção do lugar e do papel do território na explicação da pobreza e quanto às estratégias
para enfrentá-la. Um debate intenso permanece, indagando sobre a pertinência, e mesmo a
legitimidade, do enfoque do território como estratégia de redução da pobreza, uma vez que
o foco nessa dimensão obscureceria as causas da desigualdade 163 . Embora existam críticas
e ceticismo quanto à pertinência do enfoque do território para o entendimento e o
enfrentamento da pobreza e da exclusão, o fato é que, apesar de que tais processos tenham
causas macro, nacionais e internacionais, a pobreza e a exclusão são geograficamente
163
No entanto, esse enfoque não é novo. Os pioneiros no estudo da pobreza, Rowntree e Booth, no final do
século XIX, realizaram o primeiro estudo focado em áreas sobre o tema da pobreza, considerando os
diferentes matizes da vida local, antecedendo os sociólogos posteriores da Escola de Chicago, no século
seguinte. Entretanto, embora os dois autores reconhecessem a dimensão central do território na compreensão
do fenômeno, não o consideravam como estratégia para ações anti-pobreza (Glennerster, Lupton, Noden,
Power, 1999).
180
concentradas e o crescimento e a prosperidade para a sociedade como um todo não
necessariamente contribuem para reverter processos nas áreas mais pobres 164 .
Mesmo que haja expansão, existe uma importante parcela que fica de fora: “growth and
prosperity for the whole society does not necessarily aid the poorest areas” (Glennerster,
Lupton, Noden, Power, 1999, p. 5). A maré cheia não levanta todos os barcos, para usar
uma expressão corrente no debate sobre o tema da pobreza.
A partir da categoria de espaço articulam-se os determinantes macro e micro de análise,
sendo que território e comunidade, termos distintos mas aqui interrelacionados, são
elementos para possíveis conexões entre o campo estrutural e o individual. Os chamados
“efeitos de vizinhança” exemplificam esse tipo de relação macro-micro e explicam porque
nem todas as áreas respondem da mesma forma às grandes mudanças que acontecem na
sociedade como um todo. Não se sabe ao certo quais seriam as relações de causalidade,
mas tem-se evidências empíricas de que nas áreas de extrema pobreza existem dificuldades
muito maiores para transpor as privações, uma provável decorrência da operação de
múltiplos vetores de destituição que se somam, interagem e se reforçam mutuamente.
Estudos estatísticos têm permitido evidências importantes acerca dos impactos da
concentração e da persistência da pobreza nas condições de vida e no bem estar de famílias
e crianças pobres (Glennerster, Lupton, Noden, Power, 1999, p. 7). A conclusão é que
incorporar a dimensão territorial importa, e muito, para explicar e combater a pobreza,
sendo necessário desenvolver estudos que busquem explicar como tais fatores interagem,
em determinados locais, para o recrudescimento e a permanência da pobreza 165 .
O ponto central de grande parte da produção sobre o tema da pobreza e território é que
existem áreas que, por conta também dos efeitos de estigmatização, podem exacerbar e
recriar a pobreza (Torres e Marques, 2004). Pessoas que moram em determinadas áreas
segregadas têm mais dificuldades de conseguir emprego, crédito, contam com serviços
164
Alguns dados podem permitir exemplificar tais questões: a pobreza em algumas áreas com grande
concentração de negros em Chicago cresceu de 30% para 50% entre os anos 70 e 90, enquanto que para a
cidade como um todo o crescimento da pobreza foi apenas de 7%. A tese defendida por alguns autores é de
que as mudanças no padrão de emprego urbano provocam efeitos de polarização que, uma vez postos em
movimento, se tornam auto motivados, ou “self reinforcing” (Wilson, 1997 in Glennerster, Lupton, Noden,
Power, 1999, p. 5).
165
Como interagem a política habitacional e a de educação? E as políticas de transporte e qualidade da
alimentação? Como educação e saúde se conectam, quais as relações entre a escolaridade da mãe e
mortalidade ou escolaridade futura dos filhos? Como se explicam as relações e interações entre processo de
estigma de áreas, declínio de serviços locais e perda de indústrias e pontos de comércio? Sob denominação
de efeitos de vizinhança, trata-se da necessidade de estudar como fatores diversos interagem para
permanência e recrudescimento da pobreza. Com perguntas como essas, Glennerster, Lupton, Noden, Power
(1999) apontam para a existência de um importante campo de estudos aberto e ainda relativamente pouco
explorado.
181
piores, os seguros são mais caros, o que faz com que as condições dos pobres em áreas
segregadas sejam piores do que se eles morassem em outras áreas. Quer dizer, mantendose sob controle as demais variáveis, dentre as pessoas que apresentam a mesma renda, as
que moram em áreas segregadas apresentam uma condição pior de vida e menos chances
de superação da condição de pobreza.
Uma abordagem interessante por sua clareza e pelo caráter de síntese que apresenta em
relação ao tema do território, comunidade e políticas públicas é a de Richardson e Munford
(2002), que a desenvolvem sob a concepção de infra-estrutura social. Esse é o tema da
próxima seção.
5.3.2 Infra-estrutura social: um enfoque pertinente sobre território e comunidade
As concepções de comunidade 166 e vizinhança remetem à dimensão do espaço. Uma
perspectiva sustentada por essas categorias e alinhada a uma visão sociológica considera a
dimensão da infra-estrutura social e focaliza os aspectos da organização social,
compreendidos como elementos centrais para a viabilidade de uma área ou vizinhança
(neighbourhood). Richardson e Mumford analisam as áreas e os processos de degradação e
regeneração que aí têm lugar tendo como base os conceitos de comunidade, vizinhança e
infra-estrutura social. As autoras utilizam o termo infra-estrutura social para definição de
comunidade, e nesse termo incorporam: a) os serviços e facilidades existentes, tais como
habitação, acesso a crédito, educação, saúde, assistência à infância, meio ambiente bem
cuidado e transporte, dentre outros; b) a organização social, identificada a partir da
existência e da qualidade das redes de amizade, da existência de pequenos grupos
informais e do desempenho dos mecanismos de controle social, como regras e normas
coletivamente partilhadas. Infra-estrutura social comportaria ambos aspectos presentes na
concepção de vizinhança: pessoas e lugares. Nesse sentido, a noção pressupõe tanto as
redes de serviços e bens existentes na comunidade quanto os aspectos da organização
social (Richardson e Mumford, 2002, p. 203). As autoras, sobretudo, estão interessadas
166
Território refere-se a espaços geograficamente limitados enquanto comunidade é um termo que pode se
distanciar da dimensão física e remeter a comunidades fundadas sobre outros princípios além da dimensão do
espaço. Comunidade pode se sustentar em idéias, valores, identidade, tradição; e território, em um nível mais
geral, está mais colado ao plano físico. Estaremos aqui nos referindo mais a território como categoria de base,
sendo que comunidade refere-se a processos de natureza social que podem ou não aí ter lugar. No caso de
Richardson e Mumford (2002), esses termos são sobrepostos.
182
em examinar o papel de grupos de residentes e da organização social, de forma mais geral,
na recuperação de áreas degradadas. 167
A importância da infra-estrutura social torna-se perceptível quando se analisam exemplos
de onde ela foi quebrada, como é o caso em áreas em declínio, em processo de
degeneração 168 . As autoras sustentam que a diferença entre tais comunidades degradadas e
as que têm uma infra-estrutura social saudável está na qualidade da organização social, na
capacidade da maioria fazer cumprir as regras 169 . Quando essa capacidade diminui,
aumentam atos de vandalismo, crimes e comportamentos anti-sociais, combinados com a
crescente perda de autoridade dos representantes do poder público, que se sentem
incapazes de fazer frente às novas demandas, contribuindo para o enfraquecimento do
controle social e para a má imagem da região, condenando seus moradores a uma espiral
negativa e comprometendo todos os aspectos da infra-estrutura social: instalações, serviços
e organização social. Nas palavras das autoras,
“as the impact of the minority became stronger, an alternative set of accepted
behaviors arose. A kind of negative social infrastructure made car-smashing by
children, openly injecting drugs in stairwells, disposing of dirty nappies by chucking
them out of the window, hostility toward your neighbors, seem like the norm, even when
many people in the neighborhood were still quietly rejecting those ways of behaving.
Negative social networks arose for the distribution for drugs and stolen goods, again
even when the majority took no part in them” (Richardson e Mumford, 2002, p. 208).
O processo de declínio das áreas ocorre a partir de uma série de acontecimentos
interligados e não é esse o ponto que interessa diretamente aqui. O fato é que se trata de
167
Grande parte do texto é dedicada ao exame da atuação de pequenos grupos de moradores na regeneração
das quatro áreas estudadas, examinando as famílias que ficaram nas regiões em processo de degeneração, se
comprometeram com ela e contribuíram, de forma crucial, para a mudança na condição de decadência na
qual tais áreas estavam inseridas, revertendo a espiral negativa e colocando em marcha processos de
regeneração. Seja a partir de ações diretas de atendimento a grupos vulnerabilizados ou a partir de ações de
advocacy e voice, tais grupos cumprem um papel central na recuperação de áreas degradadas (Richardson e
Mumford, 2002, pp. 208, 209), sendo tais ações identificadas sob a denominação da auto-ajuda (“self help”)
da comunidade.
168
As autoras basearam suas considerações em duas pesquisas realizadas pela London School of
Economics/LSE, entre os anos de 1996 e 1999. A primeira teve como foco quatro regiões do Reino Unido
que passavam por processos de declínio e a segunda pesquisa teve como foco processos de regeneração e
revitalização de áreas, a partir de um projeto desenvolvido pela LSE, denominado Projeto Gatsby. Esse
projeto envolve avaliação, pesquisa e intervenção, e tem como objetivo estimular os residentes de
comunidades a promover a “auto-ajuda” (self-help), como forma de enfrentamento de processos de exclusão
social (Richardson e Mumford, 2002, p. 202).
169
Na medida em que essa capacidade diminui, seja por conta da saída de grupos e famílias da comunidade
ou pelo crescimento do estigma da área, tem-se uma infra-estrutura social negativa, que se expressa pelo
comportamento agressivo das crianças e jovens, no uso abusivo e público de drogas, na hostilidade entre os
moradores e na emergência de todo tipo de comportamento disruptivo: “at the most extreme end of social
breakdown, people live in fear of leaving their homes. Nuisance and harassment, even by very young
children, is rife. People who can leave, do so, leaving behind increasingly deprived populations. Local
services find themselves trying to respond to one crisis after another” (Richardson e Mumford, 2002, p. 206).
183
processos encadeados que, por um lado, levam à deterioração das relações e dos padrões
de interação social 170 e, por outro, a uma crescente demanda para a rede de serviços
existente, sendo os serviços públicos pressionados para atenderem a um público cada vez
mais carente, provocando déficits na capacidade de planejamento, frente à urgência de
atender demandas de curto prazo. A saída nesses casos, segundo as autoras, vem de uma
combinação sui generis (diria Durkheim) entre aspectos informais da esfera dos controles e
das normas comunitárias e a ação dos serviços públicos.
A infra-estrutura formal (serviços e instalações) poderia atuar como suporte para a
reconstrução de redes sociais informais de controle e normas, ingrediente vital para uma
organização social “saudável”. Esse é um ponto central do argumento das autoras, que
sustentam, ao mesmo tempo, o papel estratégico do suporte e envolvimento dos moradores
para a melhoria das condições sociais das áreas.
Críticas à abordagem revelam ceticismo quanto à capacidade da auto-ajuda da comunidade
para promover a inclusão social em áreas com altos índices de privação social. Qual pode
ser o impacto de ações muito pequenas e limitadas para o alcance de resultados
sustentáveis no que se refere à inclusão social ou para a mudança de índices de
criminalidade ou desempenho educacional 171 ? Ao considerarem a importância estratégica
da infra-estrutura social e, principalmente, da organização social, para a viabilidade de uma
área, não se pode desconsiderar a relevância de ações pontuais, pequenas e específicas e os
efeitos que podem provocar nas dinâmicas locais. Um papel fundamental cabe, nesse
modelo, aos grupos comunitários, às associações e grupos de voluntários, que atuam como
articuladores da organização social, como elementos da malha social, importantes para
preservar os laços de cooperação e de controle social. Embora não se possa exagerar a
importância dessa dimensão de auto-ajuda (“self help”) ou ajuda recíproca, não é
pertinente desconsiderá-la, principalmente se se considera com prioridade a dimensão das
relações sociais na produção de situações de exclusão e também de inclusão social.
170
A saídas das famílias com condições de viver em um lugar melhor contribui ainda para o desmonte das
redes sociais, uma vez que as pessoas que ficam não mais conhecem seus vizinhos e experimentam poucas
interações sociais, com poucos parentes e amigos nas redondezas. Com isso, crescem a desconfiança, o medo
e a insegurança, e diminuem as possibilidades de ajuda mútua e de formação de redes de amizade locais.
171
O debate sobre o valor da ação comunitária para reverter processos de denegeração e privações de uma
área é extenso e foi exemplificado pelo problema do “fishing trips”, que refere-se a um dos primeiros
projetos estudados pelas autoras sobre a ação de uma dupla de pais que levaram um grupo de 10 crianças
para pescarem na Baía de Colwyn (Richardson e Mumford, 2002, p. 209). Certamente, tal ação tem muito
pouca incidência na alteração das condições de vida da região. Como dizem as autoras, “a fishing trip is just
a fishing trip”, mas ao reconhecer a centralidade da organização social para a viabilidade de uma área tornase central entender o valor de tal ação comunitária.
184
Grupos comunitários voluntários constituem um importante elemento para os processos de
regeneração das áreas degradadas. Mesmo desenvolvendo ações pequenas e pontuais, os
grupos atuariam no fortalecimento dos controles informais, das normas e padrões sociais,
no estreitamento dos laços e das interações entre os moradores, contribuindo para uma
organização social mais desejável (Richardson e Mumford, 2002, p. 221).
Mas para além do fortalecimento dessa dimensão específica da organização social, os
grupos comunitários podem fortalecer a infra-estrutura social formal, pressionando o
setor público e servindo de ponte ou conexão entre estes e os moradores, e para ampliar a
infra-estrutura a partir da oferta direta de serviços 172 .
Os pontos colocados aqui embasam a discussão dos programas locais de combate à
exclusão, fornecendo referências empíricas das variáveis e das interrelações entre as
diversas dimensões envolvidas na pobreza e degradação de áreas urbanas em grandes
metrópoles.
Se as situações de pobreza são diversas, específicas e heterogêneas, tem-se como
implicação a necessidade de se partir do exame de situações concretas, específicas e
particulares de pobreza, para a partir daí se desenhar alternativas de intervenção. O
reconhecimento da heterogeneidade das situações de pobreza não permite o desenho de
estratégias desvinculadas das realidades e demandas específicas locais. Disso decorre que o
território emerge como dimensão necessária para focalização das políticas e da ação
governamental, e para estruturar um conjunto de ações integrais pautadas pela perspectiva
de melhoria das condições de vida, de combate à pobreza ou de inclusão social e, portanto,
como elemento central tanto para um conhecimento mais adequado do problema da
pobreza quanto para as estratégias de ação. As tendências emergentes nas políticas sociais,
quando apoiadas nas diretrizes da descentralização, participação, flexibilidade na oferta,
172
De acordo com as autoras, o envolvimento dos moradores pode contribuir para definir agenda, desenhar o
plano de intervenção, alinhar os projetos e ações de agências diversas que atuam em uma mesma região,
tornando a oferta mais adequada às demandas, às necessidades e às características dos grupos e regiões. Além
disso, os grupos podem atuar na implementação das ações, viabilizando maior eficácia e eficiência na entrega
dos serviços sociais. Em regiões com grandes níveis de privação, a existência de uma multiplicidade de
pequenos projetos e grupos na área pode suprir, ainda que parcialmente, algumas dessas necessidades.
Embora seja difícil mensurar de forma precisa o impacto da participação da comunidade nos resultados
alcançados em um processo de regeneração de uma área, o fato é que, segundo as autoras, tal envolvimento
potencializa a satisfação dos moradores diante de tais processos.
185
aderência 173 às necessidades e demandas locais, sinalizam a relevância de tomar o
território como unidade de intervenção, uma vez que
“el lugar donde uno vive o trabaja determina la propia historia de pobreza y las
oportunidades; que una mayoria de los pobres viven en comunidades que concentran a
gente pobre y que para combatir la pobreza es importante abordar las características
de los lugares donde viven o trabajan los pobres, incluída la posición y las relaciones
de estos lugares con el contexto social más amplio.” (Raczynski, 1999, p. 197).
A diretriz da territorialidade sugere uma estratégia de intervenção sobre territórios e
manchas urbanas e sociais específicas, que possuam grau de homogeneidade suficiente
para permitir ações focalizadas nas problemáticas do público alvo. Essa perspectiva
articula-se diretamente com a centralidade do nível local para a elaboração e execução de
estratégias de inclusão social: ao reconhecer o território como unidade de intervenção, temse uma tendência a valorizar o âmbito local no processo de formulação e implementação de
políticas de inclusão.
5.3.3 “Personalização” do atendimento e oferta flexível de serviços
Outra implicação de se considerar a heterogeneidade da pobreza remete à noção de oferta
flexível e ajustada às necessidades, demandas e problemas identificados. As necessidades e
demandas das famílias, indivíduos ou grupos em situação de pobreza são várias e não é
possível antecipar ou criar estruturas muito rígidas ou metodologias de atendimento muito
padronizadas. Para que seja possível executar programas que sejam flexíveis e adaptados
às condições, capacidades e limitações locais, a existência de redes de serviços é
fundamental. A noção de rede pressupõe uma retaguarda de serviços e apoio, capaz de ser
mobilizada pelos agentes públicos e combinados diante de cada situação específica. Dar
respostas adequadas, oportunas e eficazes a essas demandas depende da disponibilidade de
serviços, programas e ações governamentais e não governamentais, que possam funcionar
como elementos de um “cardápio” a ser montado sob medida para atender às necessidades
das famílias, indivíduos e grupos, conforme afirma Corera (2002).
Essa mesma questão - implicações da heterogeneidade da pobreza para o desenho de
programas e serviços sociais, relacionadas com a oferta mais flexível e “personalizada” é considerada sob um outro aspecto a partir da análise de Martinez Nogueira (1998), que
constrói uma tipologia para mapear as características de políticas sociais tendo como
parâmetros o grau de padronização das tarefas e o grau de interação entre técnicos e
173
Esse termo será aqui utilizado para se referir a uma qualidade da provisão de serviços, capaz de se ajustar
e de ser moldável pelas demandas e, mais que isso, pelas necessidades e problemas identificados.
186
usuários dos programas. Essa questão articula-se ainda com a natureza da relação com o
público beneficiário das políticas e do tipo de mudança pretendido. O grau de
programabilidade diz respeito às possibilidades de rotinização e padronização de
procedimentos; e o nível de interação refere-se à intensidade das relações estabelecidas
entre o operador e os usuários da política e ao papel do operador e do programa na
modificação de atributos pessoais, comportamentos e atitudes dos grupos beneficiários.
Os programas sociais, e principalmente os voltados para grupos e condições de extrema
vulnerabilidade e destituição, pressupõem ações quase que individualizadas, aderentes às
demandas e especificidades dadas pela heterogeneidade das situações de pobreza. Em
intervenções nas quais se pretende produzir mudanças nas condições, capacidades, atitudes
e comportamentos do público-alvo - como é o caso de políticas voltadas para grupos
extremamente vulneráveis e dentro de uma concepção que reconhece dimensões materiais
e subjetivas no fenômeno da pobreza -, o nível de interação necessário com o usuário será
maior e o grau de padronização das tarefas será menor.
Quando o resultado pressupõe mudanças e alterações substanciais no público alvo, a
interação estratégica entre técnicos e gerentes “de linha” e os beneficiários dos projetos é
fundamental. Mudanças no plano das subjetividades, de forma geral, requerem
intervenções intensas, complexas e duradouras, para gerar a confiança e as condições
necessárias para se processarem as mudanças. A programabilidade das tarefas é decorrente
do grau de certeza da tecnologia e da complexidade do ambiente de implementação. Daí a
exigência de flexibilidade dos processos e atividades dos programas sociais para se
ajustarem às demandas da população e pode sinalizar, em uma visão mais abrangente, a
necessidade de se ter produtos, ações ou serviços não padronizados para lidar com a
heterogeneidade das situações de pobreza; para se adaptar às mudanças e alterações do
ciclo de vida e à diversidade de situações e condições de pobreza e múltiplas exclusões.
A afirmativa de Martinez Nogueira é que o tipo de projeto mais adequado para
processar mudanças da natureza e magnitude requerida para enfrentar a pobreza
crônica combina alta interação com o usuário com baixa programabilidade das
tarefas 174 , o que exige ou coloca constrangimentos no âmbito da organização e gestão.
174
Outras combinações: a) elevada programabilidade e baixa interação com os beneficiários, como os
programas de transferência de alimentos, ou de urbanização e saneamanto, por exemplo, que não demandam
uma alteração nos atributos pessoais dos indivíduos; b) elevada programabilidade e interação média ou
extensa com os beneficiários, como é o caso dos programas assistenciais de saúde; c) baixa programabilidade
e reduzida interação com os destinatários, como é o caso dos programas de entrega de transferências de
187
Nesse tipo de intervenção pretende-se introduzir alterações profundas nas condições
de vida da população, com alteração de comportamentos e atitudes, que se sustentam,
no final das contas, também em valores. O foco nas alterações de “atributos pessoais
dos beneficiários” impõe a necessidade de um tipo de ação específica ou um conjunto
de ações nas quais busca-se desenvolver novas capacidades e alterar situações e
crenças que funcionam como um obstáculo para a superação da condição negativa de
pobreza. Nesse tipo de projeto, segundo Nogueira, as ações
“están disenãdas en función de las necesidades o situaciones particulares del receptor,
sea una persona o grupo social. Se incluyen los llamados servicios sociales personales,
asi como las acciones de promoción social, de desarrollo de la organización
comunitaria, de ayuda mutua o de apoyo a microempreendimientos associativos. Por
su carácter particular de baja formalización se los denomina programas blandos.
Corresponden al plano de la racionalidade discursiva , con contextos técnicos
escasamente cristalizados y alta dependencia de las actividades de la legitimidade
acordada por sus destinatarios o por la sociedade” (Martinez Nogueira, 1998, pp. 18,
19).
Dentre as características desse tipo de projeto, tem-se a individualização ou personalização
do atendimento; a diversificação na entrega dos serviços, aderente às necessidades dos
beneficiários; com beneficios e serviços focalizados, com relativamente alta participação
dos operadores dos programas na seleção do público e nas ações dos projetos, com um alto
grau de discricionaridade (Martinez Nogueira, 1998, p. 19). Esse tipo de projeto exige um
modelo de gestão descentralizado, que considere como estratégica a participação dos
beneficiários em todas as etapas do projeto, com importância central para a construção e
manutenção da legitimidade da iniciativa, principalmente diante dos beneficiários e das
unidades operativas do programa.
Essas questões têm implicações sobre o desenho das estratégias de intervenção (processos
de gestão flexíveis, centralidade do pessoal de ponta, metodologias de intervenção
individualizadas e ao mesmo tempo de ampla cobertura, dentre outros).
5.4 Autonomia, capacidades e oportunidades
Como visto na seção anterior, o reconhecimento da heterogeneidade da pobreza implica,
por um lado, uma tendência a focalizar o território como locus no qual a heterogeneidade
se manifesta e se cristaliza e, por outro, a atenção a uma rede de serviços capaz de ser
acionada para atender às demandas e que seja adequada para responder às necessidades e
problemas identificados. Mas além dessas duas implicações, pode-se aproximar da questão
renda, que não exigem uma alta interação com os destinatários e também não são precisos quanto a quem são
os beneficiários e permeáveis a interesses clientelistas e arbitrários (Martinez Nogueira, 1998, pp. 17-20).
188
da heterogeneidade sob uma outra perspectiva, focalizando os distintos tipos de pobres. Na
tentativa de capturar essa heterogeneidade, Raczynski (1999), por exemplo, estabelece uma
distinção entre pobres “ativos”, pobres “passivos” e pobres “refratários”. Os primeiros têm
uma alta capacidade para resolver os problemas e são capazes de aproveitar as
oportunidades que aparecem, enquanto os “passivos” apresentam capacidades apenas
latentes, que devem ser desenvolvidas de forma articulada com a abertura de
oportunidades. Os pobres “refratários”, por sua vez, representam aqueles que não
desenvolveram suas capacidades ou perderam as habilidades. Programas de combate à
pobreza devem ter em mente esses três conjuntos de pessoas e situações, uma vez que essa
diferenciação implica conteúdos e metodologias de intervenção distintas (Raczynski, 1999,
p. 197). A pobreza crônica associa-se, como parece óbvio, com as categorias de pobres
passivos e refratários. A implicação para as políticas é que grupos refratários e de pobres
passivos não chegam aos serviços, o que demanda programas específicos para atrair esses
segmentos e mantê-los inseridos no sistema.
Ao considerar os distintos tipos de pobres, tem-se uma ampliação da perspectiva
dominante no campo da ação contra a pobreza. Considerar essa tipologia obriga a prestar
atenção nas necessidades diferenciadas que os pobres apresentam e concentrar os esforços
para fornecer respostas moldáveis a essas necessidades e às capacidades também
diferenciadas.
Uma perspectiva crítica e promissora nas análises sobre a pobreza consiste, de acordo com
Raczynski (1999), em considerar as oportunidades e capacidades, dimensões não
capturadas pelos enfoques da renda ou das necessidades básicas insatisfeitas. As diferenças
entre pobres e não pobres se explicam não apenas pelo nível de renda ou quantidade e
intensidade das necessidades básicas insatisfeitas, mas também em função das capacidades
dos indivíduos, domicílios e comunidades para aproveitar as oportunidades e as “marés
cheias” (Raczynski, 1999, p. 196). Uma conseqüência é que o combate da pobreza exige
soluções diferenciadas, que se concentrem na oferta de ferramentas e oportunidades
para o desenvolvimento de capacidade e habilidades dos pobres, para que esses
possam, também por seu esforço, comprometer-se com seu processo de
desenvolvimento e ter acesso aos sistemas e circuitos sociais e econômicos formais
(Raczynski, 1999, p. 200). As estratégias enfatizariam o uso das capacidades de
indivíduos, domicílios e comunidades, tendo como eixo a autonomia e a dignidade, a
recusa da dependência e do estigma.
189
Uma possibilidade nesse sentido seria desenvolver programas que atuem sobre o contexto
em que vivem os pobres, que sejam dirigidos para aumentar as oportunidades locais
(recursos produtivos, transporte, oferta de serviços, relações sociais) e as capacidades dos
indivíduos e domicílios (Raczynski, 1999, p. 195). O foco nas capacidades, agregado à
perspectiva dos ativos, permite ultrapassar concepções restritas à métrica da renda ou das
necessidades básicas insatisfeitas e amplia as possibilidades para capturar as
especificidades e heterogeneidade das situações de pobreza ou entre os diversos tipos de
pobres, segundo a tipologia de Raczynski.
Adotar a perspectiva das capacidades significa, por um outro registro, entender a pobreza
como fenômeno que envolve aspectos mais e menos tangíveis, dimensões objetivas de falta
de recursos e também dimensões subjetivas relativas a valores, comportamento,
autonomia. Tem-se como implicação dessa abordagem que qualquer estratégia que busque
a superação da pobreza passa necessariamente pelas pessoas, e que para desenvolver
estratégias sustentáveis e efetivas é necessário alterar tais condições limitadoras, investir
no empoderamento das pessoas, no desenvolvimento de sua autonomia, competências e
capacidade de auto-desenvolvimento, visando a ampliação de sua capacidade de ação.
Sem que se altere essa dimensão, não é suficiente alterar condições objetivas, prover bens
e serviços, investir em infra-estrutura ou alterar condições macroeconômicas, uma vez que
os resultados não serão efetivos ou sustentáveis no longo prazo (Raczynski, 2002, pp. 6-7).
É essa dupla condição da pobreza, entendida como um fenômeno que agrega dimensões
materiais e não materiais, que permite inferir que a sua superação exige algo como duas
rodas interdependentes uma da outra, com possibilidade de girar juntas para frente e para
trás (Raczynski, 2002, p.6; Mideplan, 2002, p.9). É necessário que haja sinergia entre os
dois movimentos, entre fatores exógenos e endógenos às pessoas.
Alterar o cenário de pobreza requer atenção à qualidade dos laços sociais, às condutas e
ações que grupos, indivíduos, famílias e comunidades realizam para lidar com sua situação
de pobreza e vulnerabilidade. Dois elementos são centrais aqui e estão interligados: a) as
relações que se estabelecem entre os pobres e os setores não pobres da sociedade (técnicos
e profissionais do setor público, representantes de organizações não-governamentais,
agentes do mercado e da sociedade civil etc.), pois são nessas relações que frequentemente
se reforçam atitudes psicossociais negativas; b) a ênfase nos processos de empoderamento,
que permitam fortalecimento da autonomia, expansão das capacidades, protagonismo.
190
a) O primeiro ponto para considerar na expansão das capacidades dos pobres refere-se às
relações que se criam entre estes e os não-pobres, como sendo constitutivas e
determinantes da autonomia ou da dependência que se estabelece entre os agentes públicos
e os destinatários das políticas de inclusão. Frequentemente as relações que se estabelecem
entre os setores pobres e os agentes governamentais e não-governamentais são relações
assimétricas, que favorecem a dependência e/ou a estigmatização, onde se reforçam as
atitudes de passividade e resignação. Freqüentemente, os pobres são vistos pelos setores
não pobres (e principalmente pelos agentes públicos encarregados da execução de
programas sociais) como aqueles “que não sabem”, “que não têm”, o que acaba por
fortalecer atitudes de passividade, baixa auto-estima, resignação, dependência. Quando o
resultado pretendido com a intervenção pressupõe mudanças e alterações substanciais no
público alvo, a interação estratégica entre técnicos e usuários das políticas torna-se mais
relevante.
A confiança mútua é um ingrediente fundamental, que pode ser ampliado ou minado a
partir da capacidade de resposta e da atuação do poder público junto às comunidades e
famílias. Estabilidade, consistência, adequação e transparência nas ações desenvolvidas
estão entre os elementos vitais para possibilitar processos de empoderamento, de
fortalecimento das capacidades individuais, familiares e comunitárias.
b) A segunda dimensão destacada para a expansão das capacidades de indivíduos diz
respeito ao tema do empoderamento, que se produz a partir também da participação e do
envolvimento das pessoas nos processos de intervenção. A ênfase em programas
participativos e nas capacidades latentes e ativas dos pobres constitui um eixo emergente
nas políticas sociais, instituindo novos padrões de relação entre Estado, mercado e
sociedade civil, novas dinâmicas do poder local e mecanismos diferenciados de
participação e controle público. Não se trata de participação residual, formal ou pontual,
mas de participação efetiva, que privilegie relações horizontais e que considere os
beneficiários como parceiros reais dos programas, que assumem compromissos,
responsabilidades, tarefas compartilhadas. Somente o genuíno envolvimento das pessoas
via processos participativos consistentes e continuados favorece esse ganho de autonomia e
capacidades. Fortalecer capacidades, mobilizar e
potencializar ativos, desenvolver
iniciativas que favoreçam o incremento do capital social são estratégias importantes que
devem ser levadas em conta para a superação de situações de pobreza.
191
A questão do capital social emerge acoplada ao debate da superação da pobreza sob a lente
macro das capacidades. É cada vez mais enfatizada a necessidade de se partir das pessoas e
de suas relações para se buscar estratégias efetivas de superação da pobreza. Isso significa
fortalecer os ativos existentes nas comunidades e nas famílias a partir do mapeamento dos
recursos existentes, que podem ser recursos materiais (recursos físicos e ambientais,
construções, equipamentos etc.), humanos (grupos, associações, pessoas etc.) ou recursos
imateriais (idéias, habilidades, saberes etc.). Essa perspectiva articula-se com a noção de
capital social, entendido, em um certo sentido, como o conteúdo de relações sociais que
combinam atitudes de confiança com condutas de reciprocidade e cooperação. A literatura
sobre capital social é extensa, e já foram produzidas inúmeras pesquisas internacionais que
focalizam a relação entre capital social e políticas de combate à pobreza 175 . Entretanto, se
existe um razoável consenso sobre sua pertinência como elemento central para compor o
desenho e as estratégias do programa, uma definição mais precisa sobre o que contém a
noção de capital social e o estabelecimento mais claro de parâmetros e formas de
mensuração ainda está por se fazer 176 . Não é o objetivo desse trabalho fazer o balanço da
literatura sobre capital social e pobreza, mas apenas ressaltar suas conexões com a questão
da expansão das capacidades e do fortalecimento da autonomia individual, familiar e
comunitária. Uma categoria síntese, que permite agregar os distintos elementos aqui
considerados e principalmente focalizar a expansão da autonomia e das capacidades de
forma mais evidente é a noção de empoderamento (empowerment).
A noção de empoderamento é geralmente empregada na literatura de forma pouco
parcimoniosa e sem que se tenha um conhecimento mais consensualmente compartilhado
sobre o seu significado. Novamente nos encontramos em terrenos movediços. Pode-se
partir, contudo, da própria palavra para captar seu sentido básico: empowerment envolve
175
Ver a esse respeito, dentre outros: CEPAL. Agenda social: capital social: sus potencialidades y
limitaciones para la puesta en marcha de políticas e programas sociales. In: Panorama social de América
Latina 2001-2002, Santiago de Chile, 2003; COLLIER, Paul. Social capital and poverty. 1998. Social
Capital Initiative Working Paper Series, n.4; STEIN, Rosa Helena. Capital social, desenvolvimento e
políticas públicas. Serviço Social e Sociedade, Brasil, ano 24, n. 73, 2003; YAMADA, Gustavo. Reducción
de la pobreza y fortalecimiento del capital social y la participación: la acción reciente del Banco
Interamericano de Desarrollo. In: CONFERENCIA REGIONAL CAPITAL SOCIAL Y POBREZA, 2001,
Santiago de Chile. Santiago de Chile: CEPAL, 2001.
176
A exemplo do conceito de exclusão, o de capital social emerge sob os mais variados matizes. Trata-se de
um conceito por demais abrangente, muito pouco preciso, amplo a ponto de abarcar tudo e por isso mesmo
perder especificidade analítica. Entretanto, embora padecendo desses males, grande parte da literatura atual,
notadamente a produzida pelos organismos internacionais, enfatiza a centralidade do capital social como
insumo, meio e resultado de políticas bem sucedidas de combate à exclusão social (Raczynski, 2000;
Mideplan, 2002). Não se trata de afirmar a concordância ou não com essas afirmações, mesmo porque não se
tem aqui o embasamento teórico e empírico necessário para tanto.
192
poder, implica alteração das relações de poder em favor daqueles que contavam com
pouco poder para manejar suas vidas, no sentido de ter maior controle sobre elas 177 (G.
Sen, 1997, p. 2). Na tentativa de esclarecer o sentido do termo, Gita Sen afirma que esse
termo relaciona-se, por um lado, com maior controle externo sobre recursos, entendidos de
forma ampla como recursos materiais, físicos, intelectuais, financeiros; e, por outro, como
controle no âmbito das crenças, valores e atitudes, de forma relacionada com a capacidade
de auto-expressão e auto-afirmação, processos sustentados pela autoconfiança e por
mudanças no âmbito da subjetividade, que ocorrem no interior, digamos assim, de cada
um. Os agentes externos, nesse processo de conversão, seriam os catalizadores essenciais,
nos termos de Gita Sen. Uma combinação de acesso a recursos externos e de mudanças no
âmbito da subjetividade é necessária para provocar alterações nas condições de pobreza,
afirma Gita Sen (1997, p. 3), de forma similar a Raczynski.
Esse é o ponto que deve ser enfatizado aqui. Ao se partir de um enfoque da pobreza sob o
prisma da vulnerabilidade, exclusão ou capacidades, decorre daí a necessidade “lógica” de
considerar a questão do empoderamento como fundamento de um modelo de ação ou como
conteúdo central das políticas de proteção. Qualquer estratégia efetiva de inclusão, para
ser coerente com as implicações de se partir de enfoques amplos sobre a pobreza,
deve combinar – sob formas e com intensidade variadas – ações voltadas para um e
outro campo de ações, ao mesmo tempo fortemente ancoradas nas necessidades
materiais e demandas básicas e também voltadas para alterações nas dinâmicas
psico-sociais, que se processam via interações e relações sociais, cujo peso significativo
cabe às relações institucionais, estabelecidas com os agentes públicos e de proteção
social.
Existem vários exemplos na literatura sobre experiências de criação e fortalecimento de
processos de empoderamento, principalmente relacionados com a temática do
desenvolvimento (G. Sen, 1997). São iniciativas implementadas seja por organizações não
governamentais, movimentos sociais, ou por uma ação combinada de associações da
sociedade civil e governo 178 . Os resultados, embora sejam localizados e específicos,
177
A crítica feminista questiona o enfoque do poder pela sua ênfase na dimensão de exercício de poder sobre
os outros e sustenta a necessidade de se pensar no poder como capacidade de ser e de se expressar, o que
remete à noção de capacidades.
178
Um dos exemplos de experiências pautadas pela perspectiva de empowerment é o de um grupo de
mulheres (SEWA, Self Employed Women´s Organization) na India, que conta com mais de 100 mil
membros. Os objetivos desse trabalho, iniciado ainda na década de 70, seriam o de fortalecer as mulheres,
econômica e socialmente, e também de forma subjetiva (self-reliant). O trabalho envolve um conjunto
distinto de ações de cooperativas, produção caseira e artesanal, produção de leite, agricultura, micro-crédito
193
permitem evidenciar a repercussão possível de pequenas ações que se encadeiam e
produzem mudanças significativas na vida das pessoas 179 . Os exemplos fornecidos pela
autora (G.Sen, 1997) a partir da perspectiva de empoderamento são genéricos e vagos
demais e não permitem encontrar evidências de como, por quais mecanismos e processos,
o empoderamento ocorre, o que permite identificá-lo, sob que formas este se apresenta.
Além disso, trata-se de exemplos de programas da África e Índia, em contextos nos quais a
pobreza crônica é mais generalizada e onde o nível de satisfação de necessidades básicas é
extremamente baixo em relação a outros países também em desenvolvimento. Guardadas
as devidas proporções, o centro da perspectiva de empoderamento permanece em ambos
contextos, sendo que a medida do empoderamento é dada a partir de cada contexto
histórico, cultural, social, político, econômico, institucional.
O empoderamento dos indivíduos e grupos permite alcançar resultados importantes na
quebra de barreiras sociais, tabus e na redução das desigualdades sociais. Os projetos
focados na dimensão do empoderamento seguem formatos distintos e não existem regras
ou esquemas sistematizados de ação. Podem ser programas e ações massivas, de larga
escala e limitados no tempo, como podem ser ações de pequena escala, mais lentas e mais
intensas (Sen, 1997, p. 16). Nesses casos, a metodologia de ação envolve a formação de
pequenos grupos, catalisados por agentes de mudanças, que viabilizam o acesso a serviços
e recursos e contribuem para a organização e gestão de serviços autônomos, cooperativos,
(banking), dentre outros (G. Sen, 1997, p. 10). Os contextos nos quais vivem essas mulheres são
comunidades pobres, em diversos lugares do país, no qual vivem populações com acesso precário a serviços
básicos e de infra-estrutura, com altas taxas de mortalidade infantil, analfabetismo e privações de todo tipo.
Trabalhos precários e pesados são os únicos disponíveis para essa população, e acresce-se a isso problemas
de alcoolismo e abuso de tabaco entre a população masculina, com evidentes prejuízos para a família
(violência doméstica e redução dos recursos para alimentos e cuidados com saúde). Preconceitos e
discriminação contra as mulheres refletem-se em atendimentos precários nas áreas de saúde e educação,
sendo que para essas mulheres “the problems of asset and income poverty are compounded by gender
oppression” (G. Sen, 1997, p. 11). Mulheres que antes estavam sujeitas a situações de intensa exploração,
preconceito e limitação, vivenciam processos de empowerment que se expressam no aumento da auto estima,
auto confiança, maior controle sobre recursos, ampliação da visão de mundo. Na África, outras experiências
do mesmo tipo são analisadas e todas ressaltam o ganho significativo de poder (entendido na dupla
perspectiva de maior controle sobre recursos e poder intrínseco, calcado no aumento das capacidades e autoestima). Nesse caso, trata-se da experiência de uma organização não governamental YUVA (Youth for Unity
and Voluntary Action) que atua no campo do direito à moradia, trabalho e educação junto aos pobres urbanos
em Bombai. A experiência, segundo avaliações, expressa a magnitude das mudanças que ocorrem no ambito
dos indivíduos, do reconhecimento que passam a ter de seus direitos e da motivação para lutar por eles e
resistir às injustiças e arbitrariedades (G. Sen, 1997, p. 13)
179
Por exemplo, como fruto das ações de uma campanha pela alfabetização total em Kerala, na Índia,
aprender a andar de bicicleta fez com que centenas de mulheres, jovens e velhas, pudessem ter, nesse
deslocamento físico, um deslocamento também de outra natureza. As falas dos diretamente afetados
expressam o ponto: “By learning to cycle, I have broken many barriers: the gender barriers, the age barrier,
the caste barrier and the class barrier. It was unheard for a woman from a poor schedules caste labourer´s
family like mine to even touch a cycle, let alone ride one through the streets of our village. Now I can talk on
equal terms with contractors and even past them on my bicycle” (G. Sen, 1997, p. 15).
194
para o aumento da escolarização e do nível de informação das populações pobres. São
processos de difícil mensuração, dada a complexidade da interação entre fatores
individuais e coletivos, da combinação sui generis das disposições internas de cada um e
dos níveis e tipos de ação dos agentes externos, dos fatores micro e macro que intervêm
com intensidades e configurações particulares para produzir resultados de mudanças nos
âmbitos materiais e nos não-materiais.
Os resultados das ações de empoderamento podem ser de diferentes tipos e magnitude, mas
todos espelham uma mesma ordem de questões, relativas ao aumento do protagonismo, da
autonomia, do senso de dignidade, do acréscimo de capacidades.
Embora as pessoas empoderem a si mesmas, governos e outros atores desempenham um
papel vital nesse processo, seja estabelecendo leis e regulamentos favoráveis ao
empoderamento das pessoas (leis anti-discriminação, mudanças legais, facilitando acesso
ao crédito etc.) ou alterando formas de provisão dos serviços públicos para torná-los mais
flexíveis e porosos às demandas e necessidades dos indivíduos e grupos, atuando sobre a
infra-estrutura social. O que está na base da noção de empoderamento é o reconhecimento
da multidimensionalidade das necessidades dos pobres e de seu protagonismo para autoajuda, uma vez dada a eles essa chance (G. Sen, 1997, p. 17).
A noção de empoderamento relaciona-se com a noção de agência 180 , por um lado, e por
outro com a dimensão da estrutura (Alsop, 2005), sendo algo contingente das relações
entre essas duas dimensões: a capacidade dos indivíduos fazerem escolhas depende das
estruturas de oportunidades existentes, que podem possibilitar ou não a efetivação dessas
escolhas 181 . O empoderamento é algo que se processa no meio dessa relação, como
produto emergente das relações entre os níveis micro e macro, no âmbito dos indivíduos e
domicílios e no plano das regras e instituições, que definem os aspectos do contexto que
interferem na capacidade de efetivar escolhas.
Empoderamento, como processo e
resultado das políticas de proteção social, pode ser uma categoria síntese para se referir à
ampliação da capacidade de escolhas dos indivíduos, que ocorre quando se tem acesso a
180
A noção de agência parece conter duas ênfases: uma salienta a capacidade de ação dos pobres, da
capacidade deles de fazerem escolhas, de agir e influir em alguns aspectos que afetam sua vida. Outra
concepção de agência aponta para a centralidade dos atos e decisões de agentes para a produção da pobreza,
incluindo aí os agentes públicos e agentes do mercado. Os dois sentidos são recuperados aqui: a
responsabilidade dos indivíduos de buscarem saídas da condição de pobreza, em uma perspectiva mais
afinada com a dimensão dos ativos e outra que aponta para a dimensão da responsabilidade coletiva pelo ato
da exclusão, que é a via pela qual a noção de exclusão se articula com a noção de empoderamento.
181
A escolha de inserir as crianças nas escolas não se efetiva de fato se não existem escolas que sejam
acessíveis. Da mesma forma, a escolha ou a decisão dos agentes pela inserção no mercado de trabalho não se
concretiza se não existem as condições objetivas para efetivá-la.
195
ativos que, em interação sinérgica entre si, permitem a incorporação de indivíduos e grupos
no universo da cidadania, com a garantia efetiva do exercício de direitos civis, políticos e
sociais.
Buscando conectar tradições e abordagens distintas, importa salientar os processos que
ocorrem entre o nível micro e macro, que fornecem o nexo entre a dimensão da agência, do
que ocorre no âmbito micro dos indivíduos, de suas motivações, comportamentos e
atitudes e o nível macro, das leis, normas, instituições, regras formais e informais que
atuam como estruturas de oportunidades abertas pelo Estado, mercado e sociedade que
constrangem, impulsionam ou impõem limites para o efetivo exercício da agência, do
protagonismo individual e em certa medida também coletivo.
Novamente aqui nos deparamos com a interação entre o plano individual e o coletivo, o
que remete à necessária articulação entre os aspectos que estão no âmbito de ação dos
indivíduos e no âmbito das estruturas (políticas e instituições, inclusive as do sistema de
proteção social).
Na perspectiva do empoderamento, a pobreza é entendida como privação no exercício da
escolha, sendo que “it moved anlysis from the technical, involving the measurement of
income, consumption or expenditure, to the relational, involving the measurement of the
relative capability of people” (Alsop, 2005, p. 27). Nesse sentido, o exame da produção de
políticas de proteção social ganha relevância, por se encontrar nessa passagem, como o
instrumento que traduz intenções políticas e programáticas em ações concretas sobre a
realidade, viabilizando, ou não, direitos, no caso, sociais.
5.5 Articulando as categorias em um quadro analítico
As diferentes abordagens salientam, como visto, dimensões e categorias distintas. O
enfoque monetário focaliza basicamente as dimensões materiais da privação, que são
consideradas a partir da métrica da renda. A mensuração se faz tendo como base essa
variável, pelo estabelecimento de uma linha de corte definida a partir de uma noção de
mínimos necessários para sobrevivência. O enfoque das necessidades básicas concentra-se,
em versões mais canônicas, também no plano das privações materiais, sendo orientadas,
contudo, para considerar o acesso das pessoas aos bens e serviços sociais, com prioridade
para mensuração da pobreza a partir de distintos indicadores sociais. O enfoque das
capacidades sinaliza uma efetiva abertura de fronteiras, considerando dimensões menos
tangíveis da pobreza, levando em conta aspectos até então negligenciados na abordagem
196
do tema, como dignidade, auto-estima e auto-respeito. Esse enfoque liga-se, de certa
forma, com o enfoque da exclusão, ainda que a literatura não estabeleça essa ponte de
forma explícita ou direta. Amartya Sen reivindica a inclusão do conceito de exclusão no
âmbito do enfoque das capacidades e reconhece o foco nas relações sociais como uma
dimensão importante a ser considerada na avaliação das condições de bem-estar. Sen
reconhece a privação material e a ausência de renda como elementos que privam os
indivíduos de suas capacidades e sinalizam a ausência de oportunidades para o
desenvolvimento de uma vida digna. Da mesma forma que o conceito de exclusão, a
concepção de capacidades expande a perspectiva, ultrapassando a visão unidimensional da
pobreza como ausência de renda. Exclusão remete, em sua concepção original,
ao
reconhecimento das diversas faces ou dimensões da pobreza, à afirmação da
heterogeneidade de suas manifestações e à consideração de dimensões menos tangíveis
presentes nessas condições. Rompe com uma visão estática da pobreza e incorpora a idéia
de processo e trajetória e situa-se claramente em uma dimensão coletiva da abordagem da
pobreza, entendida sob as lentes da questão social. A mudança de foco operada pela
concepção de exclusão implicaria alterações profundas na maneira de conceber a atuação
do Estado e no desenho de estratégias que possam ser mais adequadas para fazer frente
aos desafios específicos apontados pelo termo.
A concepção de pobreza crônica, como visto no primeiro capítulo, apresenta um caráter
sintético e pode estabelecer uma conexão bastante direta com o enfoque de vulnerabilidade
e riscos. Isso porque um elemento importante no debate sobre pobreza crônica refere-se às
concepções de condutores (“drivers”), mantenedores (“maintainers”) e interruptores
“interrupters”, tal como formulado por Hulme, Moore e Stepherd (2001), usados para
identificar fatores condutores de natureza individual, familiar e territorial que conduzem a
uma entrada nas situações de pobreza, os fatores de manutenção dessa condição que fazem
com que as pessoas continuem pobres e os elementos chave que funcionam como
interruptores e que possibilitam saídas sustentáveis da pobreza crônica e também da
transitória. De forma semelhante às categorizações anteriores do manejo de risco ou da
análise de modos de vida, as categorias utilizadas no âmbito de uma literatura sobre
pobreza crônica apontam para estratégias diferenciadas de políticas, que devem incidir
diferentemente na diversidade de situações e momentos nos quais a pobreza se instala, se
mantém ou é enfrentada no plano individual, familiar e comunitário.
197
O enfoque da vulnerabilidade e risco tem a vantagem de incorporar elementos das
abordagens anteriores, sob a categoria de ativos, que podem ser vistos de uma forma
restrita ou mais ampliada, como a que considera as relações sociais em sua composição.
Ao identificar mais diretamente as estratégias distintas (ex-ante e ex-post) de prevenção,
mitigação ou enfrentamento da pobreza, essa abordagem salienta os distintos níveis de
ação e também distintos níveis de análise, considerando tanto os aspectos micro quanto os
aspectos macro envolvidos na produção e na superação dessa condição. Essa abordagem
complementa e em certa medida incorpora as anteriores. As ênfases ou os aspectos mais
iluminados em cada abordagem não são excludentes e podem, em certa medida, ser
complementares, uma vez que implicam elementos comuns das estratégias de ação, ainda
que cada enfoque saliente mais um ou outro aspecto.
Reconhecer a pobreza como privação de renda orienta o olhar para estratégias de
intervenção centradas no aporte monetário, enquanto o foco nas capacidades considera
estratégias centradas nas pessoas, levando em conta a dimensão da agência como eixo de
ação. A concepção de exclusão marca uma visão coletiva do problema da pobreza e remete
à noção de direitos de cidadania; ao remeter ao conjunto da sociedade, a pobreza deixa de
ser vista unicamente como uma questão individual. O enfoque da vulnerabilidade e dos
ativos, principalmente na abordagem dos modos de vida e na concepção de portfólio de
ativos, acrescenta o elemento dos ativos e as categorias de sensitividade e resiliência, como
indicadores da condição das pessoas e famílias quanto às dimensões do risco e
da
vulnerabilidade. Esse enfoque ainda incorpora de forma mais sistemática os distintos níveis
de análise (individual, familiar e comunitário) como sendo dimensões nas quais os ativos
se situam e essa distinção contribui para formular estratégias de intervenção também
diferenciadas quanto ao nível (prevenção, mitigação, superação) e foco da ação (individual,
familiar, comunitário). Do ponto de vista das políticas públicas, a abordagem da
vulnerabilidade dos ativos, principalmente a perspectiva mais sociológica dessa
abordagem, e o conseqüente foco nas estratégias de manejo dos ativos, podem contribuir
para identificar o que pode ser feito, de forma flexível e diversificada, a partir da percepção
dos pobres e dos ativos que estes possuem e podem mobilizar.
O papel do Estado, das instituições e das leis também é enfatizado na abordagem dos
modos de vida de forma central, ao contrário da abordagem da vulnerabilidade via manejo
de riscos, que diluiria esse papel ao considerar a multiplicidade de agentes envolvidos,
minimizando o papel protagonista do Estado nesse processo, como afirmam os críticos
198
dessa abordagem (Sojo, 2003; Lavinas, 2003). Entretanto, a possibilidade de construção de
matrizes de riscos adequadas a cada contexto, contribuição principal do enfoque do manejo
de riscos, levando em conta essas dimensões de análise e os diferentes níveis de ação, pode
contribuir para o desenho de estratégias mais consistentes e possivelmente mais
articuladas, desde que garantida a não diluição da atuação e responsabilidade do Estado.
A perspectiva dos enfoques do modo de vida articula-se ainda de forma bastante direta à
concepção de infra-estrutura social. Embora usando termos distintos e partindo de campos
programáticos e conceituais diversos, eles remetem a um mesmo conjunto de questões: o
papel de elementos de natureza mais propriamente sociológica e também de natureza
psico-social - relacionados com as relações sociais, redes de sociabilidade, normas, valores
e comportamentos, dimensões menos tangíveis das condições de pobreza – na identificação
de instrumentos e mecanismos de inclusão e integração social.
A pobreza crônica é mais claramente identificada com condições psico-sociais negativas,
por privação intensa de ativos, por um complexo ou uma síndrome de carências e
necessidades de vários tipos. Para lidar com essas situações, as estratégias devem
contemplar a integralidade nas ações, ou pelo menos buscar estabelecer uma articulação
maior entre elas, o que remete ao tema da intersetorialidade. Além disso, tem-se a
necessidade de uma ação intensa e sistemática sobre elementos menos tangíveis da vida
das pessoas e de suas relações, o que remete ao conteúdo das políticas e ao tema do
empoderamento.
O conjunto de ativos considerados varia de acordo com a concepção ou enfoque adotado,
sendo mais ou menos amplo para abarcar, além dos ativos “tradicionais”. Como visto no
primeiro capítulo, no modelo da posse de ativos, estes se dividem em ativos humanos,
fisicos, financeiros e sociais; no enfoque dos modos de vida, são ativos humanos, físicos,
financeiros, sociais e naturais e no enfoque do portfólio de ativos, os ativos se dividem por
sua atuação nos planos do indivíduo (trabalho e capital humano), da família (ativos
produtivos principais, tais como moradia, terra e relações familiares) e no plano
comunitário (capital social). De toda forma, independente da amplitude dos ativos
considerados em cada modelo teórico, a perspectiva dos ativos articula-se com o enfoque
da vulnerabilidade e dos riscos e favorece o desenho de estratégias de intervenção mais
objetivas, pautadas pela identificação e uso de matrizes de riscos e de uma visão
estratégica para seu enfrentamento. A perspectiva dos ativos é consistente com a dimensão
da intersetorialidade, em outro nível de análise, o que confere a esse enfoque sua utilidade
199
como ponto de partida para organizar a produção de políticas de proteção social, de forma
estratégica. A perspectiva dos ativos permite ainda incorporar a questão do
empoderamento e da autonomia, ao incluir elementos de natureza material e não material e
fornecer parâmetros para atuar sobre eles.
O reconhecimento da diversidade das situações de pobreza demanda a flexibilização do
atendimento como diretriz da produção dos serviços e programas sociais e o uso do
território como marco de ação. Embora essa ligação não tenha sido explorada de forma
direta na literatura examinada, pode-se sugerir uma aproximação entre a noção de pobreza
crônica e território, entendendo território como categoria importante para capturar
processos de degradação e espirais de declínio de condições de vida de pessoas, famílias e
áreas. A noção de território é pertinente para entender processos e dinâmicas que
contribuem para a cronificação da pobreza: espaços urbanos degradados, com uma infraestrutura social negativa, estigmatizados e com carências variadas não constituem um
ambiente minimamente favorável para a expansão de capacidades, fortalecimento de
autonomia pessoal, familiar e comunitária, fatores cruciais para a superação da pobreza
crônica.
A noção de território articula-se ainda com a noção de redes – governamentais, locais, de
serviços – que também integram, embora não sob essa designação, a abordagem de infraestrutura social. Infra-estrutura social, entendida ao mesmo tempo como rede de serviços e
como organização social, pode ser útil para analisar estratégias de inclusão desenvolvidas
em contextos urbanos, nos quais a degradação de áreas ou a localização de populações nas
periferias urbanas manifesta a distribuição espacial da pobreza e da exclusão. A infraestrutura formal (serviços e instalações), combina-se com a organização social (valores,
normas, controle social, densidade associativa) para a produção de uma infra-estrutura
social que pode ser potencializadora ou atuar como barreira para os processos de superação
da pobreza. A eficácia das políticas de combate à pobreza está, em parte, condicionada à
consideração do território como categoria de intervenção. Ao afirmar a faceta territorial da
pobreza, o que se quer enfatizar é que parte da pobreza não é explicada por nenhuma outra
variável senão a partir da questão do espaço ou do território. A vulnerabilidade é
cumulativa territorialmente. Isso significa que grupos pobres localizados em áreas
segregadas têm condições piores do que outros grupos localizados em áreas não
segregadas. Os pobres que residem em áreas segregadas são mais pobres e apresentam
piores condições de vida e chances de superação da vulnerabilidade do que os pobres que
200
vivem em áreas não segregadas. A constatação desse ponto seria suficiente, por si só, para
pautar estratégias mais fortemente orientadas para o tema da coesão urbana e social.Se o
espaço é parte do problema, também pode ser parte da solução. A gestão ativa do território
significa que áreas segregadas precisam ser claramente identificadas e ser objeto de
políticas específicas. O ”planejamento integral” do território (UAB, 1998, p. 25), envolve,
por um lado, aspectos relativos ao desenvolvimento e crescimento urbano e, por outro,
aspectos relativos ao tema da adesão comunitária e da cidadania e é nesse sentido que essa
expressão encontra correspondência com a concepção de infra-estrutura social.
O poder público, via rede de programas, serviços e instalações, pode atuar como suporte
para a reconstrução de redes sociais informais de controle e normas, ingrediente vital para
uma organização social “saudável”. A existência de redes sociais informais e as alterações
na infra-estrutura formal são condições necessárias para se processar tais mudanças. Essa
perspectiva pode ser mais útil para focalizar processos e dinâmicas que ocorrem no nível
local e que sofrem o impacto, inclusive e de forma prioritária, da atuação do poder público
como catalisador de processos de regeneração urbana. Interessa explorar como as políticas
desenvolvidas, a partir do desenho das intervenções e da estrutura de gestão, podem
potencializar ou não dinâmicas virtuosas centradas na mobilização dos ativos, no
desenvolvimento da autonomia dos indivíduos, grupos ou famílias.
A partir do mapeamento dos ativos e do foco na infra-estrutura social e tendo como
substância a concepção de capacidades e de exclusão, têm-se os elementos necessários
para identificar grupos e situações de risco e assim atuar sobre elas. A intervenção pública,
recuperando a discussão mais especificamente orientada para as dimensões políticas e
institucionais da gestão pública, para ser consistente com os elementos identificados acima
(integralidade e flexibilidade das ações para fornecer respostas efetivas aos problemas,
sensibilidade aos elementos da autonomia e capacidades individuais e coletivas), demanda
uma gestão de proximidade, afinada com a perspectiva da governança e inspirada pela
conformação básica dos modelos locais de proteção, centrados no desenvolvimento de
políticas intersetoriais e no desenvolvimento de ações estratégicas, participativas e
comunitárias.
O esforço feito nesse capítulo, de natureza sintética, foi o de mapear um conjunto de
elementos e categorias analíticas, na perspectiva de articular, apontar as congruências
possíveis entre os enfoques, colocá-los em perspectiva, identificando algumas noções
básicas para orientar a estruturação de um quadro analítico que aproxime as duas partes do
201
trabalho: a pobreza como problema para o conhecimento e como problema para a ação,
para as políticas de proteção social.
As figuras 4,5 e 6 abaixo ilustram a tradução do conjunto de relações identificadas.
202
Figura 4 - Relações entre enfoques, categorias e elementos das estratégias de intervenção
ENFOQUES
Vulnerabilidade
e riscos
Exclusão social
ELEMENTOS DAS ESTRATÉGIAS DE
CATEGORIAS
Ativos, cadeia de riscos,
sensitividade e resiliência,
estrutura e processos
INTERVENÇÃO
Foco no território e
infra-estrutura social
Relações sociais,
multidimensionalidade,
heterogeneidade, trajetória
Empoderamento,
aumento das
capacidades
Autonomia, capacidades
Capacidades
Necessidades
Básicas
Insatisfeitas
Monetário
Privações múltiplas
Renda e consumo
203
Criação e
fortalecimento de
ativos materiais e não
materiais. Acesso a
bens e serviços sociais
Acesso à renda
Figura 5 - Relações entre elementos condutores e interruptores da pobreza crônica
CONDUTORES PARA POBREZA
INTERRUPTORES DA POBREZA
CRÔNICA (PROPULSORES DA
SAÍDA)
CRÔNICA
Fatores
indissioncráticos
Itinerários de
inserção/estratégias de
incorporação social
Fragilidade dos laços
familiares, comunitários
e precária proteção social
Ausência ou
precariedade de ativos.
Pobreza crônica:
severidade,
multidimensionalidade
das privações, longa
permanência na
pobreza, transmissão
intergeracional
Ações de fortalecimento
da infra-estrutura social
(estrutura formal e
organização social)
Acesso a ativos:
trabalho, capital
humano, moradia,
relações familiares,
capital social.
Territórios
estigmatizados, espaços
urbanos segregados
Acesso precário a
bens e serviços
públicos
Ausência ou precariedade
da inserção no mercado
de trabalho
Transferências de
renda, beneficios não
contributivos
204
Figura 6 - Relações entre mecanismos de superação da pobreza crônica e elementos de gestão
DIMENSÕES DA GESTÃO
PÚBLICA – ELEMENTOS
TÉCNICOS, POLÍTICOS E
INTERRUPTORES DA POBREZA
CRÔNICA (PROPULSORES DA
SAÍDA)
INSTITUCIONAIS
Itinerários de
inserção/estratégias de
incorporação social
Gestão em redes (redes
multiníveis e
horizontais)
Participação
Ações de fortalecimento
da infra-estrutura social
(estrutura formal e
organização social)
Flexibilidade na oferta e
adequação à
heterogeneidade da
demanda (menor
padronização)
Acesso a ativos:
trabalho, capital
humano, moradia,
relações familiares,
capital social.
Intersetorialidade/
transversalidade
Maior interação com
usuários (alteração
atributos pessoais,
dimensão psicosocial)
Transferências de
renda, beneficios não
contributivos
205
CAPÍTULO 6 – AS EXPERIÊNCIAS DE BELO HORIZONTE E SÃO PAULO: DAS
IDÉIAS ÀS AÇÕES
Como visto nos capítulos anteriores, a pobreza assume novas formas e as molduras
teóricas
para analisá-la se ampliam, incorporando outras dimensões além da
econômica, com implicações para a produção de políticas de inclusão social no âmbito
local. Buscar-se-á, nesse capítulo, identificar como as questões trabalhadas nos
capítulos anteriores encontram ressonância em estratégias efetivamente existentes;
como as categorias analíticas sintetizadas no capítulo anterior são abordadas em duas
iniciativas desenvolvidas em metrópoles brasileiras. A análise centra-se na concepção e
no conteúdo das políticas de inclusão social. A estratégia considerada em Belo
Horizonte é o BH Cidadania, implantado pelo governo municipal em 2002 e que tem
como público alvo na fase piloto cerca de 23 mil pessoas (aproximadamente seis mil
famílias) residentes em nove áreas especialmente vulneráveis da cidade. Em São Paulo,
tem-se o conjunto dos programas criados e implementados pela Secretaria do
Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (SDTS) na gestão municipal de 2001 a
2004, a política de inclusão social do governo de Marta Suplicy, que atendeu a cerca de
500 mil pessoas, sem dupla contagem, alterada radicalmente na gestão municipal que se
inicia em 2005, sob a direção de outra aliança partidária.
Como foi argumentado, ao se considerar pobreza crônica como um fenômeno
multideterminado e multidimensional, heterogêneo, espacialmente diferenciado,
marcado pela atuação de fatores estruturais e conjunturais; e
se as dimensões
relacionais e relativas a valores, crenças e comportamentos são reconhecidas como
centrais para prevenção, mitigação e superação da pobreza, existem conseqüências
sobre o desenho das políticas. A decorrência é que as políticas concebidas para o
enfrentamento da pobreza crônica deveriam contemplar a multiplicidade de dimensões e
processos em seu desenho e nos conteúdos das intervenções, como primeira condição
para, por um lado, serem consistentes com o diagnóstico e, por um outro, aumentarem
as possibilidades de serem efetivas, isto é, alcançar os objetivos pretendidos. A
perspectiva da intersetorialidade, do território e da autonomia são as categoriassíntese que traduzem as implicações de se considerar a pobreza a partir de
enfoques mais ampliados e serão os eixos em torno dos quais a análise será
desenvolvida.
206
Esses elementos compõem o quadro conceitual proposto que salienta determinadas
categorias e diretrizes como centrais para nortear os desenhos das políticas de proteção
social. Por um lado, esse quadro fornece os principais componentes (categorias e
processos) para contrastar as experiências/iniciativas selecionadas. Já a análise da
viabilidade e sustentabilidade política exige o exame dos constrangimentos políticos,
financeiros e institucionais que condicionam a implementação de qualquer política182 ,
questão que não será tratada aqui.
Novamente vale ressaltar que a análise procura responder questões colocadas para o
desenho e conteúdo das políticas, para colocar sob uma perspectiva empírica os
elementos analíticos depurados das discussões elaboradas anteriormente, nas duas partes
do trabalho. Buscar-se-á identificar, no desenho das experiências, qual a concepção de
pobreza e o marco conceitual que guia a intervenção; as estratégias de focalização e os
critérios de elegibilidade adotados; os componentes desenvolvidos ou conjunto de meios
mobilizados para o alcance dos objetivos pretendidos. Três temas orientam o exame das
experiências: a) a dimensão de natureza mais substantiva, voltada para as questões da
autonomia e do empoderamento; b) a intersetorialidade para situar novas formas de
gestão; c) a dimensão do território e da infra-estrutura social para apreender como esses
elementos são considerados em cada estratégia.
O quadro abaixo sintetiza o que será objeto de análise nesse capítulo.
Quadro 10 – Dimensões, conteúdo da análise e referenciais empíricos para a
consideração sobre as iniciativas de Belo Horizonte e São Paulo
Dimensões
análise
Dimensão
conceitual
de O que contém cada dimensão
Dimensão
substantiva
Conteúdo
da
estratégia.
Componentes da política. A
lógica da intervenção.
Dimensão
institucional
Implicações
no
plano
institucional e operativo
Concepção de pobreza
identificação do problema
e
O que será observado nas iniciativas em
foco
Diagnóstico da pobreza e formas de
mensuração.
Definição do público alvo. Focalização
Presença ou ausência da dimensão da
autonomia, empoderamento na concepção
do programa e seus componentes
Atuação estratégica sobre o território
Intersetorialidade
Fonte: elaboração própria
No exame dos casos, buscar-se-á identificar o marco conceitual que guia as
intervenções, ou seja, as concepções de pobreza que lhes servem de base, que se
182
Para um aprofundamento dessa questão, ver Costa, 2004.
207
combinam a ou implicam o uso de determinados indicadores e parâmetros de
mensuração. Esse ponto é fundamental, como visto no terceiro capítulo, não apenas para
mensurar a pobreza, mas também e principalmente na medida em que se articula com o
tema da focalização, da identificação da população ou regiões prioritárias para ação
governamental.
Em outro nível, importa analisar as estratégias desenvolvidas em BH e SP sob uma
dimensão substantiva, mapeando a presença ou não das categorias e dos elementos
levantandos na literatura, analisando não os resultados da implementação de uma
política, mas como o quadro conceitual dos programas incorpora e operacionaliza
determinadas diretrizes e categorias identificadas na análise como fundamentais para
compreender e atuar sobre as condições de pobreza, principalmente a pobreza crônica.
Ambas iniciativas se desenvolvem em contextos metropolitanos, onde a pobreza se
apresenta com mais intensidade, e configuram estratégias locais que partem de
visões abrangentes sobre pobreza, consideram o território como parâmetro para
focalização e as famílias como unidades de intervenção, elencando a
intersetorialidade e a participação como elementos centrais de uma estratégia de
inclusão social. Sendo assim, procura-se identificar como tais dimensões são traduzidas
na prática, situando as dificuldades para a efetivação de alternativas inovadoras em
situações concretas. Elementos de natureza econômica, política e institucional atuam
como constrangimentos que limitam ou conformam as estratégias efetivamente
implantadas em cada contexto e a análise específica dessas questões demandaria o
exame mais rigoroso dos processos de implementação. Esse ponto, embora central no
campo das políticas públicas, ocupa aqui um lugar secundário, e as razões para isso
residem nas limitações reais para incorporar mais questões e dimensões na análise no
presente trabalho.
As principais questões que orientam a análise das iniciativas são: Quais as concepções
que orientam os diagnósticos ou situação problema? Os desenhos das estratégias
contemplam
metodologias de intervenção que favoreçam o fortalecimento da
autonomia, da confiança, da responsabilidade dos atores envolvidos? Como essa
perspectiva é operacionalizada em ações concretas? È possível identificar alguns limites
para sua efetivação? Como as estratégias de ação dos dois programas pretendem atuar
para interromper e superar a pobreza, principalmente crônica? As estratégias de gestão
adotadas encontram ressonância nas perspectivas de governança, governo de
208
proximidade ou relacional? As diretrizes da intersetorialidade estão presentes de que
forma, sob quais mecanismos se expressam, como esta se materializa nas formas de
gestão? Que tipos de problemas podem ser encontrados na busca por uma gestão
intersetorial? Em que medida as políticas e estratégias em uso priorizam ações voltadas
para o fortalecimento da infra-estrutura social, entendida em seu duplo aspecto de infraestrutura formal e organização social?
Ao considerar iniciativas desenvolvidas por niveis locais de gestão busca-se verificar
como esses elementos e categorias analíticas, decantadas pela análise dos diferentes
enfoques sobre pobreza, se apresentam nas experiências em curso. Não se trata de
simplesmente ver na prática o que foi visto teoricamente, o que possivelmente seria em
si mesmo algo relevante. Mas de, além disso, explicitar algumas das dificuldades
concretas que experiências locais enfrentam para dar materialidade às diretrizes da
intersetorialidade e um enfoque estratégico de superação da pobreza, que considere o
território como unidade de análise importante para identificar a pobreza e também como
unidade de intervenção para seu efetivo enfrentamento e superação. Ambas cidades
apresentam um histórico de pobreza e desigualdade, alta incidência de pobreza crônica e
de situações de crescente vulnerabilidade. Alterações radicais nos padrões de emprego e
do mercado de trabalho provocaram, com maior nitidez em São Paulo, a emergência dos
novos pobres. A tabela abaixo permite identificar a magnitude do problema.
209
Tabela 3 - Pobreza, indigência e vulnerabilidade em Belo Horizonte, São Paulo, Minas Gerais, São Paulo e Brasil – 1991 e 2000
%
pobreza
%
indigência
Intensidade
da
pobreza*
Intensidade
da
indigência**
% renda
apropriada
pelos 10%
mais ricos
% renda
apropriada
pelos 40%
mais
pobres
% mulheres
chefes famílias
sem cônjuge e
com filhos
menores 15 anos
% mulheres de
15 a 17 anos
com filhos
% crianças de
5 e 6 anos fora
escola
%
adolescentes
de 15 a 17 anos
fora escola
1991
18,89
6,05
37,97
33,84
47,40
7,64
9,15
3,09
51,17
67,96
2000
14,17
4,92
40,64
55,92
48,58
7,14
6,14
5,61
19,67
13,22
1991
8,00
2,98
46,18
71,77
44,48
9,63
6,90
3,80
58,79
31,43
2000
12,06
5,60
51,19
74,59
49,21
7,38
5,14
5,94
24,8
15,73
1991
43,27
19,72
45,83
37,50
50,38
8,01
7,89
4,07
62,94
51,99
2000
29,77
12,57
43,78
48,54
50,56
7,96
5,86
6,12
28,10
23,96
Belo Horizonte
São Paulo
Minas Gerais
São Paulo (Estado)
1991
12,86
3,9
39,29
51,13
44,38
10,18
6,32
5,14
62,24
37,99
2000
14,37
5,94
46,18
67,00
47,61
8,67
4,92
6,87
26,06
17,54
1991
40,08
20,24
49,18
42,04
50,00
6,70
8,01
5,82
62,83
44,89
2000
32,75
16,32
49,68
53,87
52,36
6,36
5,83
8,45
28,55
22,29
Brasil
Fonte: elaborado pela autora a partir dados PNUD (Atlas Desenvolvimento Humano, 2004)
* Intensidade da pobreza: “distância que separa a renda domiciliar per capita média dos indivíduos pobres (definidos como indivíduos com renda domicilar per capita inferior a R$
75,50) do valor da linha de pobreza, medida em termos de percentual do valor dessa linha de pobreza”
** Intensidade da indigência: “distância que separa a renda domiciliar per capita média dos indivíduos indigentes (definidos como indivíduos com renda domicilar per capita
inferior a R$ 37,75) do valor da linha de pobreza, medida em termos de percentual do valor dessa linha de pobreza”
210
Os indicadores selecionados permitem uma visão das condições de pobreza, indigência,
desigualdade e vulnerabilidade das duas cidades. A incidência da pobreza e da
indigência diminuiu entre 1991 e 2000 em Belo Horizonte (de 18,89% para 14,17% no
caso da pobreza e de 6,05% para 4,92% no caso da indigência), Minas Gerais (de
43,27% para 29,77% e 19,72% para 12,57%, respectivamente no caso da pobreza e da
indigência) e Brasil (cuja pobreza passou de 40,08% para 32,75% e, no caso da
indigência, de 20,24% para 16,32%), mas aumentou tanto na cidade de São Paulo (de
8,00% para 12% e de 2,98% para 5,60% no caso da pobreza e da indigência,
respectivamente) quanto no Estado de São Paulo (de 12,86% para 14,37% para a
pobreza e 3,9% para 5,94% no caso da indigência).
Considerando apenas a indigência, ou a pobreza mais severa e crônica (com renda
abaixo de R$37,75 nos valores de 2000), os números são os seguintes: em Belo
Horizonte, 110 mil indivíduos; em São Paulo, cerca de 584 mil; 1,8 milhões em Minas e
de mais de 2 milhões no Estado de São Paulo e quase 28 milhões no Brasil 183 .
Mas se houve uma redução na incidência, a intensidade tanto da pobreza quanto da
indigência aumentou no período para todas as unidades, com exceção do Estado de MG,
no qual houve uma redução de menos de dois pontos percentuais. Isso quer dizer que a
pobreza pode ter diminuído em sua extensão, mas tornou-se mais aguda em sua
profundidade: alguns pobres ficaram mais pobres, aumentando a brecha da renda, ou a
distância entre a renda média dos pobres e as linhas de pobreza e indigência. Nas
cidades, nos Estados e no Brasil,
tem-se um aprofundamento da pobreza e,
principalmente, da indigência. Os valores são os seguintes: em Belo Horizonte, a
distância que separa a renda dos pobres e indigentes em relação às linhas de pobreza e
indigência aumentou de 37,97 para 40,64, no caso da pobreza; e de 33,84 para 55,92, no
caso da indigência. Em São Paulo, a intensidade da pobreza passou de 46,18 para 51,19
e de 71,77 para 74,59, no caso da indigência. Para Minas Gerais tem-se uma pequena
redução na intensidade da pobreza (que passa de 45,83 para 43,78), mas uma ampliação
da intensidade da indigência, que passa de 37,50 para 48,54. No Estado de São Paulo, a
intensidade passou de 39,29 para 46,18, no caso da pobreza e de 51,13 para 67,00, no
caso da indigência. Para o Brasil, a trajetória é a mesma: a pobreza se aprofunda (o
valor passa de 49,18 para 49,68) e a indigência também (de 42,04 para 53,87).
183
O cálculo foi feito a partir dos dados do Atlas de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2004), que
fornece a porcentagem, conforme tabela acima.
211
Outros indicadores selecionados (mulheres chefes de familia sem cônjuge e com filhos
menores de 15 anos, mulheres de 15 a 17 anos com filhos, crianças e jovens fora da
escola) dentre a variedade de indicadores disponíveis no Atlas de Desenvolvimento
Humano (IPEA/FJP, 2002),
buscam capturar alguns aspectos das condições de
vulnerabilidade e apontam para uma condição relativamente melhor nas cidades do que
nos Estados e no conjunto do país. A partir deles, percebe-se que houve uma redução
significativa das crianças e adolescentes fora da escola e também uma redução, ao longo
da década de 90, do percentual de mulheres chefes de família sem cônjuge e com filhos
menores de 15 anos, para todas as regiões selecionadas. Esses elementos apontam para
uma situação de menor vulnerabilidade, seja em função do capital humano que pode ser
fortalecido pelo aumento da escolaridade ou em função dos ativos financeiros e
familiares que ficam, em tese, mais protegidos quando não é apenas a mulher a
provedora do domicílio, principalmente no caso da presença de crianças na família.
Entretanto, e curiosamente de forma inversa, houve um aumento em todas as regiões, do
percentual de adolescentes (mulheres de 15 a 17 anos) com filhos, o que constitui uma
forte condição de vulnerabilidade e elemento condutor para situações de perpetuação da
pobreza, no caso de mães adolescentes pobres ou indigentes.
Os indicadores de desigualdade são expressivos da magnitude da apropriação desigual
de renda no país, nos Estados e nas cidades consideradas. A desigualdade aumentou ao
longo da década, com o incremento da renda apropriada pelos mais ricos e o decréscimo
da renda apropriada pelos mais pobres: em Belo Horizonte, o aumento da renda
apropriada pelos 10% mais ricos ao longo da década foi de 1,18%. Em São Paulo, foi de
4,73%; de 0,18% para Minas Gerais e de 3,23% para o Estado de São Paulo. Para o
Brasil, houve um aumento de 2,36 pontos percentuais no montante de renda apropriada
pelos 10% mais ricos. Em compensação, percebe-se o decréscimo do percentual de
renda apropriada pelos 40% mais pobres: para Belo Horizonte, o decréscimo foi de 0,5
ponto percentual; em São Paulo, foi de 2,25 pontos percentuais; para Minas Gerais
também houve uma redução, embora em menores proporções (de 8,01% para 7,96%);
para o Estado de São Paulo, a redução foi de 1,51 pontos percentuais e para o Brasil o
percentual de renda apropriada pelos 40% mais pobres passou de 6,70% para 6,36%.
Com esses dados têm-se as evidências para afirmar que a pobreza, a indigência e a
desigualdade ainda persistem como problemas que demandam ações consistentes e mais
efetivas em termos de políticas públicas.
212
6.1 Belo Horizonte: o BH Cidadania como estratégia de enfrentamento da exclusão
social 184
FPT
Vários indicadores poderiam ser elencados para dimensionar os tipos e a magnitude das
privações, mas não se trata de fazer um inventário detalhado das condições de vida da
população, mas de fornecer um quadro sintético de algumas dimensões que traduzem
aspectos da vulnerabilidade e exclusão. Em 2000, a população de Belo Horizonte era de
cerca de 2,2 milhões de habitantes, e contava como uma taxa de desemprego crescente,
passando de 11,7% da PEA em 1996 para 16,2% em 2001. O desemprego cresceu,
sobretudo, na faixa etária de jovens adultos (18 a 24 anos), subindo de 18,7% para
26,5% nesse período (PBH/Urbal, 2004). A década de 90 trouxe grandes mudanças na
estrutura econômica do município, com a queda na produção e na absorção de mão de
obra pela indústria e pelo setor de construção civil. A expansão dos empregos se deu,
praticamente, no setor de serviços, que abriu no período (1996-2001) mais de 43 mil
postos de trabalho, mas que constituem, em sua ampla maioria, trabalhos com baixa
remuneração (PBH/Urbal, 2004).
A cidade apresenta uma alta desigualdade em relação à renda média do chefe do
domicílio, com algumas regiões apresentando renda três vezes superior à média do
município e seis vezes superior à renda média de outras regiões (PBH/Urbal, 2004) 185 .
A população estimada de vilas, favelas e conjuntos habitacionais totalizava, em 2000,
483.075 habitantes, cerca de 22% da população urbana de Belo Horizonte, distribuída
em 175 vilas e favelas (sendo que algumas são aglomerados) e em 21 conjuntos
habitacionais precários (PBH/Urbal, 2004). Nessas regiões se tem um acesso restrito aos
184
Os dados apresentados nessa seção foram retirados de documentos fornecidos pelas equipes dos
Programas BH Cidadania e Bolsa Família, coordenados pela Secretaria Municipal de Políticas Sociais da
Prefeitura de Belo Horizonte, como resposta aos roteiros elaborados pela consultoria do Projeto Urbal –
Rede 10 de Luta contra a pobreza urbana. As informações de Belo Horizonte foram coletadas a partir da
minha participação nesse projeto, no qual atuei como consultora juntamente e sob a coordenação de Laura
da Veiga. Trata-se de um projeto, finalizado em outubro de 2005, coordenado pela Prefeitura de Belo
Horizonte com o suporte financeiro da União Européia, que consistiu na análise de programas de inclusão
social por meio de políticas intersetoriais, desenvolvidos em cidades européias (Aviles e Málaga, na
Espanha; Vila Real de Santo Antonio, em Portugal) e latinoamericanas (El Bosque, Chile; Azul,
Argentina; Belo Horizonte e São Paulo, Brasil). Os casos de Belo Horizonte e São Paulo, bem como o
caso de El Bosque, foram elaborados por mim. A experiência de São Paulo analisada no âmbito do
projeto Urbal não se refere, contudo, ao programa analisado na tese, .uma vez que os programas
considerados eram relativos à população de rua e o Programa de Renda Mínima, somente.
185
Por exemplo, a regional Centro Sul apresenta, de acordo com os dados do Censo de 2000, uma renda
média do chefe de R$3.150,00, enquanto que a regional Barreiro apresenta uma renda média do chefe de
R$ 550,00. Outras cinco regionais apresentam uma renda média do chefe inferior a hum mil reais, sendo
que, além da Centro Sul, apenas a regional Oeste e a Pampulha apresentam renda acima de hum mil reais
(R$1.413,00 e R$ 1.389,00, respectivamente) (PBH/Urbal, 2004).
213
serviços de infra-estrutura urbana (serviços sanitários) e a presença de riscos geológicos
graves. De acordo com os documentos consultados, registram-se ainda outros problemas
em várias regiões de vilas e favelas da cidade, com cerca de 20% dos domicílios sem
coleta de lixo; 10% das famílias sem acesso à água tratada; 30% sem acesso à rede de
coleta de esgoto; condições insalubres de existência; ausência de pavimentação das
ruas; baixa presença de equipamentos comunitários, sendo que o equipamento mais
comum é o telefone público (PBH/Urbal, 2004). De acordo com o diagnóstico de
situação de risco geológico, realizado em 2004, 10.153 moradias encontravam-se em
áreas de risco alto e muito alto, localizadas nas periferias, em áreas insalubres, morros e
vales sujeitos a deslizamentos, desmoronamentos e alagamentos (PBH/Urbal, 2004).
Embora tenha havido uma redução da incidência da pobreza e da indigência ao longo
dos anos noventa, a intensidade da pobreza e da pobreza extrema aumentou, como visto
a partir dos dados da tabela 3. Quer dizer, a pobreza se tornou mais profunda e a
desigualdade se ampliou. Nesse contexto de privações, a estratégia do BH Cidadania se
coloca como uma estratégia central para o enfrentamento da pobreza e da exclusão.
A seção seguinte centra-se na apresentação e análise da estratégia de intervenção
adotada pelo BH Cidadania, que configura-se como uma das principais estratégias de
inclusão social no município.
6.1.1 - A estratégia do BH Cidadania 186
Para uma análise do programa BH Cidadania 187 é necessário, antes de tudo, recuperar o
contexto no qual o Programa se desenvolve. Duas questões são centrais nesse sentido: a
reforma administrativa da Prefeitura de Belo Horizonte em 2000 - 2001 188 e a
reorganização dos serviços e programas da política de assistência social, que são
processos relativamente independentes, mas que têm implicações na formulação e
gestão do BH Cidadania. A reforma administrativa instituída pela PBH em dezembro de
2000 alterou a estrutura político-administrativa existente e as relações entre as
186
Os dados aqui apresentados foram coletados a partir de fontes diversas, acessadas principalmente a
partir do trabalho do qual participei no âmbito do Projeto Urbal. São basicamente fontes primárias documentos do programa (PBH/Urbal, 2004) – e alguns trabalhos de avaliação produzidos por
consultores (PBH,2004) por exigência do BIRD para a concessão do empréstimo para a expansão do
Programa a partir de 2005. Outros são artigos produzidos externamente ao Programa e à PBH (Filgueiras,
2005; Rocha, 2005).
187
O nome completo do Programa BH Cidadania é Programa de Desenvolvimento Integrado dos
Assentamenteos Subnormais do município de Belo Horizonte.
188
A reforma administrativa foi embasada pela Lei Municipal nº 8146, de 29/12/2000.
214
secretarias temáticas e as secretarias regionais, modificando atribuições e competências,
redefinindo papéis, fluxos, procedimentos e recursos. As secretarias temáticas referemse às secretariais setoriais, como educação, saúde, assistência social.
No primeiro momento do programa BH Cidadania, a responsabilidade pela formulação
e coordenação das ações cabia a SCOMPS (Secretaria de Coordenação Municipal das
Políticas Sociais), uma instância recém criada na estrutura da PBH, que ficara com a
incumbência de articular as ações da saúde, educação e assistência social. Tratava-se de
uma grande responsabilidade, mas sem contar com a legitimidade e os meios para
efetivar a tarefa árdua de colocar para operar juntos setores consolidados (educação e
saúde) com outros menos consolidados (assistência), pressupondo uma alteração nas
rotinas, prioridades e formas de organizações anteriores à reforma. Na nova reforma
administrativa, realizada em 2004, a SCOMPS muda de nome e de posição no
organograma da PBH. Ela passa a ser denominada Secretaria Municipal de Políticas
Sociais (SMPS) e coordena apenas a área de assistência social (secretaria adjunta), e as
áreas de cultura, esporte, lazer e abastecimento, estando no mesmo nível hierárquico das
secretarias de educação e saúde e não mais acima delas, como no desenho anterior.
O impacto dessas reformas foi diferente para cada secretaria e, no âmbito da assistência,
os efeitos foram profundos. Destaca-se aqui o campo da assistência por ser esse o setor
das políticas públicas mais orientado para o enfrentamento da pobreza e da exclusão e
também pelo fato de as interfaces desse setor com o BH Cidadania serem mais claras e
diretas, conforme será visto adiante especificamente a partir da atuação do Núcleo de
Apoio à Família, um equipamento da assistência e uma porta de entrada para o BH
Cidadania.
No campo específico das políticas de assistência social, o modelo de gestão e de política
que estava sendo delineado, também em 2000, era congruente com os princípios básicos
da reforma, embora não fosse decorrente diretamente dela, emergindo antes de um
esforço feito pela assistência de se organizar, como política pública, de forma similar ao
modelo adotado na área de saúde. Um elemento estruturante na organização dos
serviços de saúde e que encontra correspondência nas mudanças processadas na
assistência refere-se à concepção de sistema de atendimento. A noção de sistema
espelha, pelo menos idealmente, uma visão menos setorializada de cada serviço ou
programa e incorpora a concepção de redes, de ações desenvolvidas de forma integrada,
operadas convergente ou conjuntamente.
215
Os princípios que orientaram as mudanças no campo da assistência 189 (PBH/Urbal,
2004) foram: a) a descentralização dos serviços de assistência já era uma exigência
anterior à reforma
demandando uma reorganização dos serviços que fosse
descentralizada, mais próxima das demandas e do público alvo, e para responder de
forma adequada às necessidades e características locais; b) a unidade de intervenção
básica é a família, foco de atenção, destinatária prioritária das ações; c) o novo modelo
da assistência operando segundo a lógica territorial, tendo o território como base de
organização das ações, serviços, programas, projetos e benefícios, agrupados segundo as
funções - prevenção, promoção, proteção e inserção - e segundo a quantidade de
pessoas que deles necessitam.
De acordo com a complexidade e o volume do
atendimento, são estabelecidos três níveis de gestão: local, regional e central 190 ,
conforme pode ser visto no quadro abaixo. A Política Municipal de Assistência Social
é, então, definida de acordo com as funções que desempenha e com a base territorial de
atuação. A tipologia das funções identifica ações de promoção, prevenção, proteção e
inserção, que se combinam com o eixo do território para estabelecer os níveis locais,
regionais e central como as instâncias de gestão e de atendimento.
Quadro 11 - Organização dos serviços de assistência social segundo volume e
complexidade do atendimento
Volume atendimento
alto
Volume atendimento
médio
Complexidade alta
serviços de base
regional
Complexidade média
Complexidade baixa
Funções
Volume
atendimento
baixo
serviços de base
central
serviços de base local
prevenção/promoção
proteção
inserção
Fonte: elaborado pela autora
189
As informações sobre o processo de reorganização da assistência foram retiradas, basicamente, dos
documentos fornecidos pelo projeto Urbal, conforme descrito em nota anterior.
190
Para os serviços de base local, tem-se um volume maior de pessoas atendidas e um nível de
complexidade baixo. A perspectiva que orienta esse nível é a da prevenção de riscos e de promoção da
autonomia das famílias. Nesse nível estão localizadas as ações no âmbito da socialidade, da convivência
e fortalecimento dos vínculos familiares, sociais e comunitários. Os serviços de base regional e de base
municipal, por sua vez, apresentam um nível maior de complexidade e são desenvolvidos junto a
clientelas menores. Trata-se de serviços de volume de atendimento e complexidade médios e a
perspectiva que orienta a atuação nesse nível é a de proteção suplementar, que constitui a proteção frente
a situações de vulnerabilidade. Nesse nível estão programas e serviços como o Serviço de Orientação
Sócio Familiar (SOSF) e o Plantão Social. No nível central, estão as iniciativas que combinam alta
complexidade com volume baixo de atendimento, para públicos que exigem proteção integral, seja em
termos de moradia ou trabalho protegido. Nesse nível estão os programas para meninos de rua e
população de rua, para adolescentes autores de ato infracional .
216
Esse processo de reorganização da assistência social foi acompanhado, no âmbito
operativo, por alterações substanciais no papel e nas atribuições das esferas regionais.
Essas passaram a desempenhar um papel mais potente no território, ampliando sua
atuação e capacidade de intervenção; enquanto que o nível central ou secretaria
temática, por sua vez, livre da execução direta, passaria a responder pela formulação das
diretrizes gerais de atendimento ou do marco conceitual da intervenção, bem como pela
supervisão dos serviços para viabilizar maior homogeneidade da rede e padrões
mínimos quanto a qualidade do atendimento nas diferentes regiões e equipamentos
existentes. Nesse contexto, as funções de monitoramento e avaliação das ações tornamse estratégicas e absolutamente centrais para dar suporte ao processo de planejamento e
de gestão da política de assistência. Entretanto, se por um lado, a SCOMPS não
conseguia, em um primeiro momento da reforma, exercer de fato a coordenação das
ações setorializadas, por outro as SCOMGERs (Secretaria Municipal da Coordenação
de Gestão Regional) 191 , na ponta, seguiam o fluxo setorial anterior à reforma,
executando ações planejadas pelas temáticas 192 . Em outros casos, as temáticas
continuavam a executar diretamente as ações, uma vez que tinham a estrutura, pessoal e
know how para isso, em comparação às SCOMGERs, pouco preparadas para receber o
aumento das atribuições e ampliação do escopo de atuação dado pela reforma
(Magalhães e Correa, 2004).
Paralelamente a essa reorganização dos serviços de assistência e logo após a primeira
reforma, a Prefeitura inicia a implantação de um novo modelo de reorganização da
política social, baseado nas diretrizes que inspiraram a alteração da estrutura
administrativa
do
executivo
municipal:
intersetorialidade,
descentralização,
territorialidade e participação comunitária, tendo como foco a inclusão social
(Documento do Programa BH Cidadania, 2004). Em agosto de 2002 iniciou-se a
implantação do Programa nas áreas selecionadas, momento marcado pela inauguração
de um Núcleo de Apoio à Família/NAF em cada uma das nove áreas piloto.
As diretrizes da intersetorialidade, descentralização, territorialidade e participação
estão presentes tanto no desenho do programa BH Cidadania quanto no desenho da
reforma, sendo essa convergência potencialmente positiva, tanto para o avanço da
implementação da reforma quanto para a efetivação dos objetivos do BH Cidadania.
191
São secretarias regionais responsáveis pela coordenação dos serviços urbanos e sociais no nível das
nove regiões administrativas.
192
Em Belo Horizonte, denominam-se “temáticas” as secretarias setoriais.
217
O Programa é especialmente interessante aqui por quê à perspectiva da inclusão e
redução de vulnerabilidades, de natureza substantiva, soma-se a dimensão relacionada
ao modelo de gestão. Explicitamente, o Programa busca “implementar um modelo de
gestão baseado na descentralização, articulação e integração intersetorial, e inverter a
lógica setorial fragmentada de operação dos diversos programas da área social da
Prefeitura de Belo Horizonte” (PBH/Urbal, 2004). Em termos conceituais, o BH
Cidadania adota explicitamente as seguintes diretrizes que pautaram a formulação do
programa: o planejamento e a intervenção a partir do território, a participação da
comunidade em toda etapa de desenho e gestão do programa, o foco na unidade
familiar, a
lógica
da
integração
dos
recursos governamentais
e
não-
governamentais, a perspectiva da autonomia das famílias (Documento do Programa
v. 3/3, 2003, p. 6).
O BH Cidadania adota uma visão abrangente da pobreza. De forma explícita, o conceito
de base é o de exclusão social. Exclusão social é entendida como “o processo que
impossibilita parte da população, de partilhar dos bens e recursos oferecidos pela
sociedade, conduzindo à privação, ao abandono e à expulsão desta população dos
espaços sociais”(PBH/Urbal, 2004). O Programa parte de uma definição de inclusão
social entendida como “processo que possibilita à população vulnerabilizada
socialmente partilhar dos bens e serviços sociais conquistados pela sociedade”
(Documento do Programa, 3/3, 2003, p. 6).
Para implantar o projeto piloto do BH Cidadania, foram identificadas nove áreas piloto
que apresentavam os piores indicadores segundo um índice final que foi construído a
partir do Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) e do Mapa de Exclusão Social e
também segundo o Indice de Qualidade de Vida Urbana (IQVU) e o Índice de Risco à
Saúde (IRS) 193 , abrangendo um conjunto de 23.114 pessoas, ou 5.942 famílias. A
vulnerabilidade é abordada pelo vetor espacial, entendendo-se que certas áreas urbanas
193
O IVS foi construído a partir das “dimensões de cidadania” - ambiental, cultural, econômica, jurídica e
de sobrevivência – e busca, a partir de indicadores populacionais ou domiciliares, dimensionar a
qualidade de vida nas diversas regiões da cidade (ver anexo I). Como se trata de um atributo negativo –
vulnerabilidade - quanto maior o valor do índice, maior a condição de exclusão e vulnerabilidade. A partir
do IVS, tem-se o elemento central para a construção do Mapa da Exclusão Social de Belo Horizonte.
Associando-se o índice de vulnerabilidade social com algumas informações demográficas tais como faixa
etária, cor e sexo, e com situações claras de exclusão social, tais como analfabetismo e trabalho infantil,
tem-se o Mapa da Exclusão Social (PBH/Urbal, 2004). Além do IVS, tem-se também o Índice de
Qualidade de Vida Urbana (IQVU) e o Índice de Risco à Saúde (IRS). A partir desses índices, foi
elaborado um índice final (não disponível) que norteou a escolha das áreas piloto do BH Cidadania
(PBH/Urbal, 2004).
218
concentram dinâmicas e condições próprias que produzem e reproduzem a pobreza. Daí
adotar-se o território como eixo de atuação. Entretanto, esse tipo de focalização
apresenta limites e impõe desafios para a provisão de bens e serviços. Estudos
localizados indicam que os territórios do BH Cidadania, apesar de homogêneos quanto a
vários dos indicadores utilizados, apresentam heterogeneidade entre as famílias dentro
de cada área (Magalhães e Correa, 2004). Muitas famílias circunscritas ao território
podem não apresentar as mais intensas situações de privação, enquanto que outras que
se situam fora dos limites territoriais do BH Cidadania podem estar em piores condições
de vulnerabilidade e exclusão social. Mesmo com esse limite, a estratégia primeira de
focalização adotada é o território. Embora esse processo não seja explícito nos
documentos examinados, pode-se sugerir que existe no Programa uma espécie de
segunda focalização, com o atendimento de famílias, no território, que apresentam
maior vulnerabilidade. A pista para essa afirmação está na afirmação, essa sim explícita
nos documentos, de que o BH Cidadania tem como foco de intervenção a família. Nesse
sentido é definido o perfil das famílias-alvo do programa: estas devem residir em área
de elevado risco social, pertencerem ao grupo de pobreza 1 (o grupo mais pobre),
apresentarem casos de violação de direitos e violência doméstica, uso de drogas e
álcool, não acesso ao mercado formal de trabalho, “elevado grau de desagregação
social” (Documento do Programa, v. 3/3, 2003, p. 8). Tem como objetivo “promover a
inclusão social das famílias residentes em áreas socialmente críticas consolidando
modelos integrados de atuação na área social”.
O objetivo do Programa é promover a inclusão do conjunto de famílias residentes nos
territórios, utilizando um modelo de gestão intersetorial. Como objetivos específicos,
tem-se a melhoria do acesso a bens e serviços sociais, a redução dos fatores de
vulnerabilidade e risco e a promoção de relações de solidariedade entre os membros das
comunidades atendidas (Documento do Programa, v. 3/3, 2003, p. 8).
Os
componentes
traduzem
a
perspectiva
da
intersetorialidade
e
da
multidimensionalidade da pobreza, ao se centrarem no direito à educação, direito à
saúde, inclusão produtiva e socialidade. De acordo com o documento de síntese do
Programa, elaborado um ano após sua implementação, os “componentes finalísticos”
envolvem provisão de equipamentos (NAF, Casa de Brincar, Centros de Formação para
Juventude), programas e serviços (Programa BH mais saudável, BH Vida, Programa
Recrear, intermediação de trabalhadores autônomos, formação profissional, oficinas de
219
esportes, cultura, grupos de convivência e áreas de convivência) com participação de
várias secretarias, desenvolvimento de ações (organização de cooperativas, implantar
unidades de educação infantil). Além desses, o documento identifica componentes
complementares, relativos ao desenvolvimento institucional no campo da informação e
da gestão integrada das políticas sociais. Como se percebe, os elementos apontados são
de naturezas distintas e não parecem fazer parte de um mesmo conjunto, o que indicaria
já aí uma certa inconsistência entre o objetivo do Programa e as intervenções propostas.
Outro documento, mais recente (PBH/Urbal, 2004), afirma que dos quinze
componentes, apenas oito seriam exclusivos da área do BH Cidadania 194 .
Um ponto a ser salientado refere-se precisamente à qualidade das informações
fornecidas, o que impede a certeza sobre quais são de fato os componentes do programa,
uma vez que nos documentos examinados eles não são os mesmos 195 . Optamos aqui
por utilizar as informações que constam no documento mais recente (PBH/Urbal, 2004).
De acordo com ele, tem-se um conjunto de 15 componentes 196 e 33 programas, de oito
secretarias e subsecretarias, sendo que cinco desses programas são comuns para mais de
uma faixa etária, conforme se pode observar no quadro 12.
194
No caso da educação, um componente (educação de jovens e adultos) é considerado como serviço que,
embora não seja específico ou exclusivo do Programa, apresenta uma atenção especial em relações às
áreas do BH Cidadania. No caso da saúde, os dois componentes são elencados como sendo serviços
universais, sem sequer apontar para uma atenção especial em relação às áreas de maior vulnerabilidade
(PBH/Urbal, 2004).
195
As referências aqui são: o Documento do Programa, v.3/3, de novembro de 2003; o documento
PBH/Urbal, 2004; e o relatório de atividades do Programa BH Cidadania, 2002, mimeo.
196
Em alguns momentos, são identificados como componentes o Direito à Educação, Direito à Saúde,
Inclusão Produtiva, socialidade (Documento do Programa, v. 3/3, 2003). Em outro documento
(PBH/Urbal, 2004) os componentes são: a) enfrentamento de situações de risco familiar e social; b)
promoção de identidades pessoais e vínculos sociais; c) acesso a políticas sociais e urbanas do
município; d) reforço de vínculos familiares para crianças pequenas; e) desenvolvimento
comunitário; f) estímulo à leitura; g) socialização infanto-juvenil: 6 a 14 anos; h) socialização de
jovens: 15 a 18 anos; i) educação fundamental; j) educação de jovens e adultos; k) qualificação
profissional; l) incentivo à formação de cooperativas; m) atenção básica à saúde; n) programa de saúde
da família; o) transferência de renda. Novamente aqui registra-se a ambigüidade em relação aos termos
utilizados, o que contribui para dificultar a identificação do marco conceitual e da lógica da intervenção.
Os programas marcados em negrito são exclusivamente ou prioritariamente orientados para as áreas do
BH Cidadania.
220
Quadro 12 – Programas desenvolvidos no BH Cidadania: secretarias envolvidas e atendimento por faixa etária
PROGRAMAS
Educ.
Saúde
Assist.
SECRETARIAS ENVOLVIDAS
Abastec.
Cultura
Esporte
Dir. de
Cidada
GEDE
0a5
anos e
11
meses
Formação de Profissionais
Especializados em Educ. Infantil
Ampliação de Vagas para Ensino
Infantil - Construção de UMEI’s
SAUDE INFANTIL Estímulo ao
Desenvolvimento Infantil
(Prevenção / Combate à
Desnutrição)
Casa de Brincar
Se essa praça fosse minha
BH na Escola
x
x
x
x
Alimentação Escolar
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
Estímulo à Socialidade e
benefícios físicos através do lazer
e esporte / 2do. Tempo
Alfabetização
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x*
Saúde do Adulto
x
Saúde da Mulher
x
idosos
x
x
x
x
x
Educação de Jovens e Adultos –
EJA
Estímulo à Melhoria e Qualidade
de Vida (Saúde Adolescentes /
Jovens)
Socialização de Jovens (até 18
anos)
Formação Profissional
FAIXA ETÁRIA
adultos
15 a 21
anos
x
x
Estímulo à Socialidade e
benefícios físicos através do lazer
e esporte
Socialização Infanto – Juvenil
Desenvolvimento Comunitário
x
6 a 14
anos
x
x
x
x
x
x
x* Somente no caso de idosos tem-se a participação da sub secretaria de Direitos de Cidadania nesse programa
221
x
x
x
x
x
x
x
todas
faixas
etárias
Quadro 12 – Programas desenvolvidos no BH Cidadania: secretarias envolvidas e atendimento por faixa etária (cont.)
SECRETARIAS ENVOLVIDAS
Educ.
Educação para o Consumo
Plantio Alternativo
x
Saúde
Assist.
x
Abastec.
Cultura
FAIXA ETÁRIA
Esporte
x
x
Estímulo à Socialidade e
benefícios físicos através do
lazer e esporte – Recrear
x
Saúde do Idoso
x
Grupo de Convivência com o
Idoso
x
x
x
Assistência Alimentar
x
x
x
x
x
x
15 a 21
anos
adultos
idosos
x
x*
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
todas
faixas
etárias
x
Defesa do Consumidor,
Direitos da Mulher, Assuntos
da Comunidade Negra,
Direitos Humanos, Apoio à
Pessoa Portadora de
Deficiência
Estímulo à Socialidade e
benefícios físicos através do
lazer e esporte – Caminhar
6 a 14
anos
x
x
x
Atenção Domiciliar
0a5
anos e
11
meses
x
x
Estímulo à Socialidade e
benefícios físicos através do
lazer e esporte – Vida Ativa
GEDE
x
Direito à Cidadania (Pensão /
Violência)
Estímulo à leitura
Formação e Capacitação de
Mediadores da Leitura
Dir. de
Cidadan
x
x
x
x
x
Fonte: elaborado pela autora a partir dados fornecidos nos documentos PBH/Urbal, 2004
x* Quando se trata de todas as faixas etárias, a única subsecretaria que atua é a de Abastecimento.
* A célula sombreada é para identificar a secretaria responsável pelo desenvolvimento das ações dos programas, ainda que seja uma ação que conte com a adesão ou o envolvimento de outras
secretarias.
222
A partir dos vários programas, o BH Cidadania busca reduzir vulnerabilidades, estimular a
convivência familiar e comunitária e favorecer a autonomia das famílias. Para as famílias que
fazem parte do recorte territorial priorizado pelo BH Cidadania (famílias que moram nas áreas
de abrangência do Programa, no máximo 700 famílias em cada uma das 09 áreas), tem-se um
conjunto específico de ações: transferência de renda (Bolsa Escola Municipal/BEM); oficinas
de esporte, arte e cultura para crianças, adolescentes; educação infantil em tempo integral;
ações preventivas e atenção básica em saúde; cursos de capacitação de chefes de família e
jovens para ampliar as possibilidades de inserção produtiva; fortalecimento dos vínculos
familiares e comunitários; fortalecimento da rede local.
As famílias são identificadas, cadastradas e acompanhadas pelos técnicos e estagiários dos
NAFs, principais responsáveis pela articulação da rede de serviços e pelo encaminhamento das
demandas da população. O Núcleo de Apoio Familiar (NAF), localizado em cada regional,
também executa diretamente ações para as famílias, de caráter sócio-comunitário. Ao
propiciar encontros, espaços de interlocução e de troca de informações, o NAF tem um
importante papel de fomentar relações, estreitar laços, contribuindo para estimular a
cooperação e confiança, atuando sobre o espaço das relações sociais e familiares. Esse
equipamento e os programas e ações que são desenvolvidos a partir dele podem funcionar
como instrumento de mobilização e formação de capital social (Somarriba, 2004), o que
poderia ampliar as bases da infra-estrutura social.
Um elemento importante do processo de empoderamento refere-se à participação. A partir da
participação, os indivíduos e famílias atendidas teriam mais chances de atuarem como sujeitos
e protagonistas do processo de incorporação ou inclusão social. A estratégia do Programa,
como definido em seu desenho, destaca os elementos da participação e da mobilização da
comunidade: “a participação popular no Programa BHCidadania tem como principal diretriz
o envolvimento da população na formulação, gestão e avaliação do Programa” (PBH/Urbal,
2004). Para contextualizar melhor o lugar da participação no programa é necessário situar a
estrutura decisória e de gestão.
O programa apresenta uma engenharia institucional complexa, ao pressupor o envolvimento
de distintos setores das políticas e diversas instâncias de ação e decisão. A responsabilidade
pelo programa é da Secretaria Municipal de Política Social (incluindo as Secretarias Adjuntas
de Assistência Social, Abastecimento, Esportes, Direitos de Cidadania e Fundação Municipal
223
de Cultura), tendo como co-executoras as Secretarias Municipais de Educação e Saúde,
Secretaria Municipal de Política Urbana e Ambiental, Secretaria de Planejamento e as
Secretarias Municipais de Coordenação de Gestão Regional. No Nível Decisório tem-se a
Câmara Intersetorial de Políticas Sociais-CIPS coordenada pela Secretaria Municipal de
Políticas Sociais (SMPS) e com representantes de suas secretarias adjuntas, Secretaria
Municipal de Saúde (SMSA), Secretaria Municipal de Educação (SMED) e Gestão Regional
(SCOMGER). No Nível Gerencial tem-se o grupo de trabalho (GT) do BH Cidadania, com
coordenação da SMPS e representantes técnicos de todas as secretarias temáticas ligadas a ela;
SMSA e SMED e Gerentes de Políticas Sociais das nove regionais. No Nível Executivo temse dois colegiados de coordenação, um regional e outro local 197 . Ambos são coordenados
diretamente pelo Secretário Municipal Regional de Serviços Sociais, embora mudanças
recentes apontem que o Colegiado local passe a ser coordenado pelo NAF, sendo essa a
instância responsável pelo planejamento, implantação, monitoramento e avaliação das
atividades do programa no âmbito local. A participação da comunidade está prevista no
Colegiado Local e no Grupo de Referência, constituído por representantes eleitos para
representar a comunidade na interlocução com o poder público.
Duas instâncias são fundamentais para viabilizar a participação no âmbito do Programa: o
Grupo de Referência e o Plano de Ação Local. Este último consiste na elaboração conjunta
(por técnicos do NAF e grupo de referência) do diagnóstico e de propostas de ação. Conforme
consta nos documentos, “o objetivo geral deste grupo é o de construir coletivamente um
diagnóstico da realidade local para, a partir dele, apontar as ações necessárias para
resolução dos problemas identificados” (PBH/Urbal, 2004).
O documento descreve a participação comunitária ao longo do processo de implementação do
programa na comunidade.Esse processo teria várias fases: na fase de implantação, tem-se a
“sensibilização e pactuação institucional”, realizada a partir de seminários regionais, reuniões
com lideranças e treinamento das equipes, com o objetivo de partilhar informações com outros
agentes (órgãos e equipamentos governamentais) que atuam no território. Trata-se de afinar as
perspectivas sobre o programa, sobre o diagnóstico da região, sobre a metodologia, fluxos,
estruturas operacionais e gerenciais. Essa fase é marcada por uma baixa participação da
comunidade. A segunda fase consiste na “sensibilização e pactuação com a comunidade” e
197
Regional refere-se a divisão das nove regiões administrativas de Belo Horizonte; local refere-se às áreas de
implantação do BH Cidadania.
224
inicia-se com o lançamento do Programa na região, e também a partir das reuniões ampliadas
nas regionais, para escolha dos representantes dos “Grupos de Referência” 198 . A terceira etapa
da entrada do Programa no âmbito local é marcada pela elaboração do diagnóstico e de
propostas de ação, que ficam explícitas no Plano de Ação Local. A construção do Plano é
coletiva, sendo o grupo de referência e o NAF responsáveis por sua produção. O Plano de
Ação Local é um poderoso instrumento, se bem utilizado, para guiar a ação governamental,
articular governo e comunidade através do estabelecimento das prioridades de intervenção em
cada um dos eixos estratégicos do Programa (educação, saúde,
socialidade, inclusão
produtiva). Por fim tem-se, no âmbito de cada regional, reuniões para apresentação, discussão
e “pactuação” do Plano de Ação Local. O objetivo dessas reuniões ampliadas é conferir
legitimidade ao plano e à representação da comunidade no Colegiado de Coordenação Local
(PBH/Urbal, 2004). Contudo, avaliações preliminares 199 sobre o BH Cidadania indicam que o
grupo de referência e o Plano de Ação Local ainda são bastante incipientes.
Para dimensionar a magnitude do programa, uma breve medida de seus resultados, ainda que
sejam apenas resultados de produtos e não se refiram ao alcance dos objetivos, pode ser
importante. Em 2004, 4.365 famílias foram atendidas no BH Cidadania; 580 pessoas atendidas
em ações de formação e qualificação profissional entre 2003 a meados de 2005; 20.224
crianças participaram de atividades no contra-turno da escola, ocupando o total das vagas
oferecidas de 2002 a 2005; 5.814 famílias atendidas na modalidade de atendimento básico em
saúde (crianças, mulheres grávidas, idosos, deficientes, doentes crônicos) e também na
modalidade de atendimento sócio-assistencial para famílias em situação de risco e violação de
direitos. Além dessas atividades, são também elencadas como ações ligadas ao BH Cidadania,
embora sejam executadas direta e independentemente por outros setores: transferência de
renda do Bolsa Família e do Bolsa Escola Municipal: 1.333 famílias das 5.942 famílias que
residem nas áreas piloto foram assistidas com o Bolsa Escola Municipal em 2004 200 . Além
disso, tem-se o repasse de cestas de alimentos da Secretaria de Assistência e ações de inserção
198
O grupo de referência local pode ter no máximo 50 representantes por área-piloto, sendo o número
proporcional ao número de moradores dos territórios trabalhados. Os representantes e lideranças de cada área são
indicados em reuniões locais, e dentre suas tarefas cabe mobilizar a comunidade, contribuir na identificação dos
problemas e atuar como agentes de controle público da ação governamental, monitorando as ações desenvolvidas.
199
Trata-se aqui, sobretudo, de informações obtidas no documento preparado por consultores externos, como
requisito para o financiamento do BID, que nas referências aparece como PBH, 2004.
200
É preciso lembrar, contudo, que o Bolsa Família atende a milhares de pessoas além do público do BH
Cidadania. Em 2005 eram atendidas no Bolsa Família e no Bolsa Escola Municipal quase 78 mil famílias. O
universo de beneficiários – que se enquadram nos critérios – é de 110 mil famílias.
225
laboral, desenvolvidas pelo Sistema Nacional de Emprego (SINE) e Núcleo Integrado de
Apoio aos Trabalhadores (NIAT), embora não tenham sido fornecidos os números desse
atendimento (PBH/Urbal, 2004).
Na fase de expansão, a partir de 2005 com o empréstimo junto ao Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), a intervenção incorpora a dimensão urbano-social através da
definição de áreas de maior exposição a riscos e alta concentração de pobreza. A proposta é
articular as dimensões econômica, social e urbana ambiental. Serão quinze novas áreas, 127
setores censitários com risco muito elevado e 198 de risco elevado, com a previsão de atender
a 36 mil famílias e um universo aproximado de 150 mil pessoas.
Na expansão do BH Cidadania está prevista a construção de quinze Centros do BH Cidadania.
Cada centro ficará administrativamente subordinado à Secretaria Municipal de Políticas
Sociais, mas a definição das atividades será feita pelas comissões locais. Os Centros BH
Cidadania serão os
“equipamentos próprios do programa, que irão abrigar os Núcleos de Apoio à Família
(NAF), salas para atividades de cultura, reforço escolar e inclusão digital, além de espaços
para reuniões e capacitações comunitárias e para atividades de planejamento dos técnicos
do programa. Os Centros BH Cidadania também contarão com quadras poliesportivas e
serão construídos nos territórios de atuação do Programa” (Rocha, 2005).
Dentre as mudanças a serem inseridas a partir da expansão do Programa tem-se uma forma
mais integrada de atuação setorial no território, com a organização das atividades por faixa
etária (6 a 14 anos e 15 a 21 anos) sob a forma de jornada complementar, com ações diárias de
quatro horas nas quais são desenvolvidas atividades culturais, esportivas e de reforço escolar
(para a faixa etária de 6 a 14 anos) e inclusão digital (para a faixa etária de 15 a 21 anos).
Outro eixo de ações foi introduzido com a expansão do Programa, relativo ao “Fortalecimento
Institucional”, que busca atuar na ampliação das capacidades de gestão e na provisão de
instrumentos e sistemas de monitoramento e avaliação. Além das ações hoje desenvolvidas
pelo Programa (ver quadro 13), serão agregadas as seguintes ações a serem financiadas a partir
do empréstimo do BID: na área de educação, implantação de 24 Unidades de Educação
Infantil; na saúde, implantação de 29 equipes de saúde bucal; no eixo da socialidade,
implantação de 14 201 Centros BH Cidadania; no eixo de inclusão produtiva, previsão de
201
Nesse documento (Rocha, 2005) constam 14 Centros e nos demais documentos examinados são considerados
15 novos centros.
226
recursos para cursos de qualificação profissional; no eixo do fortalecimento institucional, a
elaboração do Sistema Único de Informação, capacitação de gestores e implantação de
sistemas de monitoramento e avaliação (Rocha, 2005, p. 14).
Uma vez descrito, em linhas gerais, o Programa BH Cidadania, a próxima seção é destinada a
examinar alguns de seus aspectos com um pouco mais de profundidade.
6.1.2 - Considerações sobre a experiência
Serão considerados, sobre o BH Cidadania, três pontos 202 : o primeiro articulado ao tema do
empoderamento ou fortalecimento da capacidade de resposta dos indivíduos, grupos e famílias
e, conseqüentemente, à redução da vulnerabilidade social; o segundo relacionado ao tema da
intersetorialidade e o terceiro relativo à questão do território e infra-estrutura social.
a) Autonomia, capacidades, empoderamento
Como visto anteriormente, os processos de empoderamento, de fortalecimento da autonomia e
das capacidades é um dos antídotos da pobreza crônica e da vulnerabilidade e, remetendo
tanto ao plano dos indivíduos quanto ao plano da estrutura, constitui um elemento central nas
intervenções voltadas para a inclusão social. Um primeiro ponto a salientar aqui é a fragilidade
com que a questão do empoderamento ou da ampliação das capacidades é tratada no
Programa. Embora essa questão seja implícita – na medida em que o Programa estabelece
como objetivos específicos “reduzir fatores de risco e vulnerabilidade social das famílias e
promover relações de solidariedade entre os membros da comunidade” – não fica claro quais
seriam os componentes necessários para alcançar esses objetivos. O Programa não apresenta
de forma explícita o marco conceitual da intervenção, os supostos de inclusão que poderiam
pautar o desenho dos componentes e a definição mais precisa de metas de resultados.
O que é necessário fazer para reduzir vulnerabilidade das famílias e aumentar solidariedade
comunitária? Os componentes do BH Cidadania (produtos e serviços que o programa entrega)
não são construídos a partir de uma identificação explícita dos riscos, sendo os mesmos
programas para todas as áreas, o que limita o desenvolvimento de ações diferenciadas e mais
específicas para áreas específicas ou para grupos de uma mesma área que se encontram em
202
Evidentemente esses pontos não cobrem toda a gama de questões passíveis de serem analisadas. Sobretudo,
todas aquelas relativas à avaliação de resultados e impactos não são aqui consideradas. Como afirmado desde o
início, trata-se aqui de um estudo exploratório e concentrado no exame do marco conceitual e substantivo do
Programa, visto como exemplo de iniciativas empíricas que colocam em movimento categorias e concepções de
natureza teórica trabalhadas nos capítulos anteriores.
227
situações distintas de vulnerabilidade. Por exemplo, uma área que apresente um problema
grave de violência e tráfico de drogas não encontra, nos componentes do Programa, uma ação
específica orientada para equacioná-lo. Questões que podem ser gerais para a população em
condição de pobreza crônica, mas que se apresentam de forma mais intensa em determinadas
regiões (gravidez na adolescência, uso de drogas, trabalho infantil, homicídio de jovens), não
encontram respostas diferenciadas quanto aos programas ou serviços disponíveis.
Os componentes do programa, com exceção dos que se referem à área de assistência social,
são iniciativas e programas que já existiam em sua maioria, condição que pode fragilizar a
construção de uma política consistente, capaz de guiar a intervenção e a definição mais precisa
de componentes e ações. Para viabilizar respostas adequadas, a perspectiva dos riscos e ativos
é central. Uma condição para viabilizar a construção de matrizes de riscos é a elaboração de
diagnósticos locais, qualitativos e participativos, de forma a capturar especificidades, seja das
vulnerabilidades ou das potencialidades locais. O desenvolvimento de instrumentos de gestão
mais adequados para captar problemas e embasar as intervenções é essencial. O uso de um
instrumental como o enfoque do marco lógico - com suas ferramentas de análise de cenários,
análise de interessados, de desenho de programas e projetos, dentre outras – pode ser uma
escolha adequada, ao permitir, sobretudo, a implementação de uma gestão afinada e conduzida
pelo compromisso com a efetiva mudança das condições de vida da população atendida pelos
programas, bens e serviços sociais 203 .
A ausência de identificação explícita dos tipos de riscos e dos ativos limita de partida o
desenvolvimento de estratégias mais efetivas de ampliação das capacidades e oportunidades,
enfraquecendo as possibilidades de empoderamento das pessoas e do fortalecimento da infraestrutura social.
Similarmente ao objetivo de redução da vulnerabilidade, que permanece vago ao não
incorporar uma definição mais clara dos riscos e dos elementos para enfrentá-los, o objetivo
de fortalecimento da solidariedade nas comunidades também é ambíguo, pois não há clareza
sobre quais seriam as respostas para indagações do tipo: como esse objetivo pode ser
alcançado? Que componentes do Programa são orientados para sua produção? A análise dos
203
O exemplo da matriz do manejo social de risco, utilizada inclusive para o Programa Puente e Sistema Chile
Solidário, pode ser uma ferramenta, utilizada como uma bússola para orientar linhas de ação para objetivos e
metas especificas, quantificáveis, mensuráveis, identificando grupos, fatores de risco e fatores protetores,
programas, indicadores de resultados e instituindo processos mais sistemáticos de monitoramento e avaliação e
foco efetivo nos resultados da intervenção.
228
documentos não possibilita estabelecer o nível de consistência desejável entre os objetivos
pretendidos e o que o BH Cidadania entrega em termos de programas, serviços e bens. Esse
fato pode ser explicado ao se considerar que as ações do Programa não partiram dos
problemas identificados e sim da oferta disponível de bens e serviços das diversas secretarias.
Mas o BH Cidadania possui, pelo menos em seu desenho, de instrumentos que poderiam
reverter essa situação: o grupo de referência e do Plano de Ação Local. Tanto o grupo de
referência quanto o Plano seriam os mecanismos de incorporação da perspectiva das famílias e
das comunidades, o que possibilitaria, pelo menos em tese, que as ações tivessem maior
aderência às necessidades dos interessados, a partir da identificação de situações específicas e
do desenho de alternativas flexíveis de respostas.
Além dos grupos de referência e do Plano de Ação Local tem-se, no desenho do BH
Cidadania, os NAFs (Núcleos de Apoio à Família), que podem ser os elementos centrais em
uma estratégia voltada para o desenvolvimento da autonomia e para a expansão de
capacidades pessoais e comunitárias. Como equipamento de referência do Programa, o NAF
pretende atuar como agente catalisador da articulação da rede de serviços governamentais e
não governamentais, de forma a responder aos problemas identificados no território.
Entretanto, embora o NAF seja necessário como estratégia de inclusão, principalmente quanto
à dimensão da sociabilidade, sua atuação depende e demanda uma rede de serviço de
qualidade, adequada e efetivamente acessível, capaz de responder flexivelmente às demandas
dos grupos em situação de vulnerabilidade.
Se por um lado o NAF desempenha, no desenho da estratégia, um importante papel de
articulação e coordenação, este não é acompanhado, por outro lado, de capacidade de
enforcement, no sentido de que não é dado a ele poder ou condições para fazer a rede
funcionar ou para fazê-la funcionar priorizando o público atendido pelo NAF. Para que o NAF
consiga de fato apresentar resolutividade quanto às demandas específicas de vulnerabilidade
das famílias, ele necessita da adesão das diversas secretarias e órgãos governamentais e não
governamentais. Essa adesão não é automática, nem está de antemão garantida, demandando
uma negociação permanente e calcada, sobretudo, nas relações pessoais e, portanto, informais
(PBH, 2004). A ausência de uma rede de apoio ao trabalho dos NAFs constitui, segundo os
técnicos envolvidos, um importante elemento desestabilizador das ações desenvolvidas. Nas
palavras dos técnicos, “os NAFs não dispõem de boa retaguarda” (PBH, 2004, p. 38) e sem
229
isso sua atuação permanece limitada e inadequada para responder às necessidades e problemas
identificados. Conforme um exemplo que consta no questionário204 respondido pela
coordenação do Programa, existem casos nos quais o NAF não consegue fazer com que os
encaminhamentos feitos à rede de serviços, mesmo se tratando da rede governamental, sejam
de fato acolhidos e processados 205 . A atuação da rede é contingente das características do
contexto, do entorno, limitada por variáveis políticas, partidárias, econômicas, sociais,
culturais. As regionais apresentam uma grande heterogeneidade quanto à capacidade técnica e
legitimidade política dos gerentes regionais e também quanto à extensão e qualidade da rede
de serviços disponível, o que limita o desempenho do Programa, que apresenta resultados
melhores ou piores, dependendo do envolvimento e estabilidade das equipes locais, da
capacidade denegociação, da adesão da comunidade local.
Os NAFs são equipamentos da Assistência Social, implementados a partir da re-organização
dos serviços de assistência. O NAF representa a dimensão da socialidade, sendo o locus da
assistência no BH Cidadania. Eles foram implantados simultaneamente ao BH Cidadania e,
por isso, ficaram com ele identificados.
O NAF é central na estratégia do Programa, mas existe uma ambiguidade quanto ao seu papel
ou suas funções no âmbito do BH Cidadania. Como um equipamento no âmbito da assistência
e coordenado,em sua origem, pela então Secretaria Municipal de Assistência Social, sua
função principal é a de prevenção, mas sua atuação, na prática, extrapola essa dimensão. A
“multifuncionalidade” (PBH, 2004) do NAF o leva a desempenhar papéis de natureza distinta:
o NAF responde a demandas de caráter sócio-educativo e de atendimento e orientação familiar
(equipamento de ação na ponta), mas ao mesmo tempo pretende atuar como instrumento de
articulação da rede de serviços e da mobilização comunitária no território, sendo essa uma
possibilidade a ser ainda viabilizada de forma mais plena e que, de certa forma, é uma função
a ser desempenhada pela coordenação do BH Cidadania. Conforme explicitado pelo
coordenador do Programa, “há conflitos entre a temática (Secretaria Municipal Adjunta de
Assistência Social/SMAAS), o NAF e a Secretaria Municipal de Políticas Sociais (SMPS)
204
Trata-se de um questionário que foi aplicado para todas as cidades e programas participantes da Rede Urbal,
no âmbito do projeto Urbal, conforme explicado em nota anterior.
205
Nesse exemplo apresentado, que não constitui de forma alguma um caso isolado, tem-se o encaminhamento
de um jovem atendido pelo NAF para serviços de saúde mental, encaminhamento que não foi acolhdio pelo órgão
responsável e que gerou a perda de contato com o usuário sem a finalização do atendimento. Esse é um exemplo
dos tipos de questões que estão sendo aqui consideradas como limitações para a atuação efetiva dos NAFs.
230
sobre a função do equipamento” 206 . A indefinição da natureza e, portanto, do papel,
atribuições e linhas de ação dos NAFs permanece ainda como um ponto de tensão entre as
secretarias responsáveis pela gestão dos NAFs (SMAAS e SMPS). Portanto, além de uma
indefinição quanto ao papel substantivo do NAF, tem-se uma certa indefinição de natureza
institucional. A criação dos Centros do BH Cidadania – o equipamento específico do
Programa a ser implantado a partir da expansão do Programa que se inicia em 2006 - vai
exigir uma readequação do papel dos NAFs no âmbito do Programa, uma vez que os centros
pretendem ser o equipamento de referência, papel hoje desempenhado pelos NAFs.
Os elementos que inspiram o NAF são consistentes com as categorias apontadas anteriormente
como centrais para uma compreensão mais clara da pobreza e das respostas em termos de
políticas públicas e de proteção social. O NAF é um equipamento de base local que, em tese,
atende demandas de baixa complexidade e grande cobertura. Mas suas ações extrapolam a
perspectiva preventiva. Dentre as ações desenvolvidas nesse equipamento tem-se: cadastro das
famílias da área de abrangência (que pode ser feito na sede do NAF ou a partir de visitas
domiciliares); visitas domiciliares e “busca ativa”, motivadas por indícios de violação de
direitos ou situação de especial vulnerabilidade; atendimento psico-social, marcado por escuta
personalizada na qual se identifica o histórico familiar, as situações de riscos e os
procedimentos a serem desenvolvidos junto às famílias, que podem se desdobrar em
orientação, encaminhamento para serviços sociais e oficinas inserção das famílias nas
atividades coletivas no eixo da socialidade (PBH,2004).
Uma análise feita por Sant´Ana (2004) permite identificar de forma mais concreta como se
processam as ações desenvolvidas pelos NAFs. Na avaliação de dois NAFS, Barreiro e Norte,
tem-se, segundo dados de 2003, que o primeiro atendia a 713 famílias e o segundo a 671
famílias (Sant´Ana, 2004, p. 44). Nas duas áreas onde se localizam os NAFs, não há espaços
de lazer, cultura, praças ou parques, o que revela uma grande precariedade em termos de infraestrutura social formal (Sant´Ana, 2004, p. 47). Enquanto que na área do NAF Norte existem
onze entidades não-governamentais que desenvolvem atividades diversas junto às famílias, no
Barreiro as atividades sócio-familiares só são desenvolvidas pelo NAF, tornando-o o único
equipamento voltado para esse atendimento.
206
Conforme consta no questionário respondido no âmbito do Projeto Urbal.
231
As atividades coletivas desenvolvidas no NAF Norte mobilizaram cerca de 356 moradores do
território, em atividades voltadas para juventude, reuniões de articulação comunitária, oficinas
de bijuteria e fuxico, atividades culturais, encontros de confraternização, palestras, num total
de 124 atividades coletivas no ano de 2003. No Barreiro, foram 121 atividades coletivas, com
participação de cerca de 740 pessoas. É interessante notar que no Barreiro as reuniões
identificadas como de articulação com a comunidade e rede totalizaram 33, enquanto que
foram identificadas apenas quatro atividades sob essa denominação no NAF Norte, no mesmo
ano. No Barreiro, 56 atividades foram de socialização, enquanto que no NAF Norte não se tem
nenhum registro de atividade de socialização. Isso pode se dever a uma diferenciação na forma
de registro das atividades, o que em si já é um problema 207 ; mas também pode espelhar uma
necessidade maior desse tipo de atividade no Barreiro, onde as entidades que desenvolvem
atividades de apoio sócio familiar são mais escassas. No Barreiro, o chá das mulheres iniciouse com a participação de 22 mulheres e chegou a ter mais de 60, instituindo um espaço para
conversas e discussão de temas relacionados ao cotidiano e a vida da casa, da comunidade
(Sant´ana, 2004, pp. 43-55). Espaços improvisados, inadequados para o atendimento e
recursos precários não impedem que as atividades aconteçam e que apresentem resultados, e
esses incluem mudanças de comportamento, fortalecimento dos laços de vizinhança,
estreitamento dos laços sociais, maior disposição e capacidade para ação, inclusive para
procurar pelos serviços e pelos direitos.
Esse ponto não é banal, pois o eixo de socialidade pode cumprir um papel central na inclusão
social de grupos vulneráveis. Considerando as categorias de infra-estrutura social e toda a
discussão sobre a dimensão psico-social e sobre o aspecto relacional da pobreza, fica evidente
a centralidade desse conjunto de estratégias desenvolvidas pelos NAFs para uma trajetória de
inserção social. Entretanto, o NAF, para atuar nessa ponta, no âmbito da interação e da
promoção de relações sociais mais “virtuosas”
208
necessita de retaguarda na outra, no campo
dos bens e serviços produzidos pelo setor público. A imagem aqui é a das duas rodas
interdependentes, que agregam dimensões materiais e não materiais da pobreza, que sinalizam
a centralidade dos fatores endógenos e exógenos às pessoas como centrais em uma estratégia
207
Em uma análise a partir de um número maior de NAFs (PBH, 2004), tem-se a afirmação de que não existe
uma compreensão que permita o preenchimento dos relatórios de atividades de forma padronizada..
208
Com esse termo nos referimos a relações familiares e comunitárias mais positivas, centradas no respeito,
tolerância, direitos, cooperação etc.
232
de enfrentamento da pobreza, segundo Raczynski (2002), conforme apontado no capítulo
anterior.
A linha de ação dos NAFs junto às famílias é importante para “reforçar a dinâmica
intrafamiliar”. Como visto nos capítulos anteriores, as relações familiares constituem um
importante ativo que pode ser fortalecido e funcionar como um elemento atenuante ou inibidor
de situações de risco e vulnerabilidade. Entretanto, parece não existir ainda uma concepção
suficientemente clara do que consiste esse objetivo e de como ele pode ser operacionalizado
(PBH, 2004). A falta de uma metodologia consistente e compartilhada tem sido reconhecida
como uma fragilidade e as equipes estão procurando desenvolver uma metodologia de
atendimento de famílias 209 .
A escassez de recursos humanos é um elemento que limita a atuação dos NAFs. São nove
técnicos em cada NAF, sendo um coordenador, dois técnicos que fazem acompanhamento às
famílias, cinco técnicos que atuam no apoio logístico e um estagiário 210 . Os poucos técnicos
dos NAFs fazem visitas às famílias, promovem atividades coletivas, elaboram planos de
intervenção, acionam a rede de serviços. Frente ao acúmulo de tarefas, o acompanhamento
direto das famílias, centro de uma estratégia de empoderamento, pode ficar fragilizado. As
relações que os técnicos estabelecem com os usuários são marcadas por uma intensa interação,
sendo altamente personalizada. Com a expressão “acolhida”, usada para identificar o tipo de
atendimento que se estabele entre técnicos e usuários, tem-se a tradução do que seria uma alta
interação, nos termos de Martinez Nogueira. Trata-se de um atendimento extenso no tempo,
baseado na confiança, que pressupõe a capacidade de resposta dos técnicos às demandas
objetivas e subjetivas. Para que os técnicos sejam de fato capazes de exercer esse papel e
atuarem como catalisadores das mudanças no âmbito da família e de suas relações, é
necessário que contem com formação e qualificação adequada, com supervisão sistemática,
com legitimidade e com recursos que possam ser acionados, de forma mais garantida, para
auxiliar o processo de empoderamento e de expansão das capacidades das pessoas e famílias.
Fica difícil, entretanto, afirmar como as ações do NAF produzem efeitos quanto ao
empoderamento das pessoas, fortalecendo a capacidade dos pobres em interferir e influenciar
naquilo que lhes diz respeito (em uma visão matizada pela dimensão do empoderamento como
209
Esse trabalho tem sido realizado pelos técnicos da Secretaria de Assistência Social e conta com a consultoria
de uma professora da área de psicologia social da UFMG.
210
Informação retirada do questionário desenvolvido no âmbito do projeto Urbal.
233
possibilidade de ser e de fazer) ou em ampliar a sua capacidade de resposta frente aos eventos
de riscos (em uma visão do ponto de vista da abordagem da vulnerabilidade e dos ativos).
Quando essas ações de empoderamento não são acompanhadas por outras intervenções mais
diretamente vinculadas ao fortalecimento de ativos como trabalho e qualificação profissional,
as possibilidades de inclusão efetiva ficam comprometidas. No BH Cidadania, o componente
relacionado à inclusão produtiva é muito limitado. Entretanto, as ações de geração de trabalho
e renda estão entre as mais complexas dentre o conjunto das políticas públicas, uma vez que
essas ações estão imbricadas de forma muito mais densa com processos no âmbito do mercado
que, pautando-se sobretudo pelo lucro, não incorporam de forma central a perspectiva da
equidade, própria da ação do Estado. Entretanto, pode-se afirmar, com base em avaliações
realizadas (Somarriba, 2004), que bons resultados podem ser produzidos a partir de ações de
informação e sensibilização do empresariado local, visando uma participação desses no eixo
da inclusão produtiva, como foi o caso do NAF da regional Nordeste, por exemplo.
Entretanto, embora possam ser identificados alguns resultados da atuação dos NAFs, não há
registros sistemáticos e confiáveis dos avanços feitos. A falta de parâmetros de
acompanhamento e de metas de resultados mais objetivas e compartilhadas parece ser um
elemento que contribui para a fragilidade do trabalho desenvolvido pelos NAFs, como de resto
acontece em quase todas as ações de proteção social no município. Essa ausência impõe
limites para uma clareza suficiente quanto ao que se quer com a intervenção ou quanto aos
resultados esperados para cada componente. Essa ausência ou fragilidade dificulta aferir se a
metodologia de inclusão em BH é efetiva. Como contraponto tem-se a metodologia do
Programa Puente, por exemplo, que organiza a intervenção de forma coerente desde o início, a
partir de um compromisso entre as diversas instâncias do governo de atender ao conjunto dos
53 indicadores mínimos de inclusão definidos. Sem isso, os possíveis resultados das ações
desenvolvidas pelos NAFs permanecem pouco tangíveis, pouco mensuráveis, pouco
manejáveis. Antes de tudo, não fica claro como o trabalho dos NAFs pode contribuir para o
empoderamento e aumento da autonomia das famílias, uma vez que não há clareza sobre o
objetivo e de como ele pode ser operacionalizado. Percebe-se uma certa precariedade na
construção dos fundamentos conceituais do Programa, que constituem a base para o desenho
da intervenção.
234
O segundo ponto que permite focalizar o BH Cidadania em relação à dimensão de
empoderamento refere-se ao tema da participação. Embora as diretrizes do programa
priorizem a participação, ela não tem sido efetivada da forma esperada. A evasão de grande
parte dos membros dos grupos de referência ao longo do processo de elaboração do Plano
(Somarriba, 2004) e a dificuldade de se estabelecerem as comissões ou colegiados locais que
atuem de fato como canais de conexão entre população e setor público são expressões dessas
dificuldades (PBH, 2004) 211 . A desinformação, a desconfiança, a falta de condições para
participar são elementos explicativos para as dificuldades de implementação da participação
(Somarriba, 2004). Entretanto, a participação é condição fundamental para o empoderamento,
na medida em que processos de participação mais autênticos (que não sejam apenas residuais
ou de fraca intensidade) ampliam as possibilidades para fortalecer o protagonismo das pessoas
e grupos e sua participação ativa nos processos e trajetórias de inclusão social.
Mas é importante salientar que não basta a existência, no papel, de espaços para participação,
materializados no caso do BH Cidadania pela Comissão Local e pelo Grupo de Referência. A
abertura de espaços, ainda que indispensável, não é condição suficiente para a efetivação da
participação de forma mais igualitária. Esta exige também a qualificação dos atores
envolvidos e a democratização das informações a respeito dos problemas, ações e
financiamento das políticas sociais. A questão dos recursos controlados pelos agentes - tempo,
informação, capacidade técnica - configura-se como elemento central nessa discussão.
Sem pretender esgotar o extenso debate sobre o tema da participação, importa recuperar aqui
uma abordagem (Verba et alli, 1995) que busca explicar porque as pessoas não participam e
identifica três ordens de motivos: ou elas não querem, não podem ou porque ninguém
perguntou se elas queriam ou não participar. A questão do “não posso” tem a ver com os
recursos – tempo, dinheiro, habilidades – e a do “não quero” é relativa ao engajamento
político, à motivação para participar. “Ninguém perguntou” relaciona-se com as redes de
recrutamento. Portanto, além das duas dimensões – engajamento político ligado à motivação
para tomar parte de forma ativa na vida política e capacidade para participar, o que tem a ver
diretamente com recursos e habilidades requeridas para a participação – os autores apontam
um terceiro fator, denominado “redes de recrutamento” (networks of recruitment), que consiste
211
Apenas duas regionais conseguiram finalizar o Plano de Ação Local e mesmo assim não se tem uma avaliação
de como foi o processo, o nível de participação, envolvimento ou mobilização por parte da comunidade ou do
grupo de referência (PBH,2004).
235
nas instituições, formais e informais, que operam dando vida ao “voluntarismo cívico” (nos
termos do autores), fornecendo “capacidades cívicas” (civic skills) e habilidades
organizacionais e comunicativas necessárias à participação política.
Nesse sentido, o foco volta-se para o exame de instituições sociais que jogam um importante
papel para cultivar a motivação para o engajamento político. Ao contrário de separar de forma
rígida a vida política e social, a perspectiva do voluntarismo cívico sustenta que a atividade
política tem lugar em uma rede de interações pessoais complexas. Instituições, como família,
igreja, associações diversas, favorecem a participação não apenas pela exposição à política e
aos temas da agenda, mas porque desenvolvem habilidades relevantes para a atividade
participativa. Essa abordagem enfatiza a dimensão da motivação individual, dos recursos e das
estruturas de oportunidade que o contexto institucional favorece, e nesse sentido fornece
alguns elementos que podem contribuir para uma análise sobre a participação no BH
Cidadania, que viabiliza espaços (e funciona dessa forma como uma rede de recrutamento),
mas não fornece recursos e nem consegue, de forma plena, vencer a desmotivação e a
desconfiança da comunidade em relação ao Programa (Somarriba, 2004), ainda que essa
afirmação não possa ser generalizada para todas as regiões.
b) Aspectos organizacionais: governança, intersetorialidade
A experiência de Belo Horizonte permite visualizar as dificuldades de se operacionalizar
diretrizes, transformar idéias em ações e resultados efetivos. No BH Cidadania a
implementação de um novo modelo de ação no campo das políticas sociais, e principalmente
nas ações de inclusão social, veio acoplada a um processo de mudanças na estrutura
administrativa do executivo municipal, deslocando, e posteriormente reacomodando nos
antigos lugares, as distintas secretarias de políticas sociais - educação, saúde e assistência
social. Alterações na estrutura administrativa sinalizam mudanças na concepção e na produção
de políticas sociais, afirmando as diretrizes da intersetorialidade e da descentralização,
entendida também a partir do enfoque territorial como orientação para a atuação
governamental.
Um ponto central no arcabouço analítico, delineado no capítulo anterior e que pode ser
considerado empiricamente a partir da experiência de Belo Horizonte, diz respeito às redes
horizontais, ao governo relacional, que pressupõe abertura para processos de gestão mais
flexíveis, capazes de responder às exigências postas pela heterogeneidade das condições de
236
pobreza. De acordo com o desenho do Programa, o BH Cidadania não tem “pernas próprias” e
funciona, de certa forma, a partir das “pernas” da saúde, educação, assistência social e das
demais secretarias e órgãos governamentais e não-governamentais. Isso quer dizer que, para
alcançar seus objetivos, depende da atuação e colaboração direta de outros setores da máquina
pública. Nas palavras da coordenação do BH Cidadania,“a atuação intersetorial no Programa
visa a potencialização das atividades desenvolvidas pelas temáticas (saúde, educação,
cultura, esporte, assistência social, direitos da cidadania e abastecimento )” 212 .
Esse modelo ou estratégia do desenho do Programa pressupõe a adesão dos diferentes setores
e grande capacidade de coordenação do nível central para articular redes horizontais (entre
setores) e multiníveis (municipal e local ou do nível central e regional). A interação necessária
entre o executivo municipal e outros níveis de governo no BH Cidadania é reduzida. Contudo,
a articulação entre as secretarias temáticas e regionais é fundamental 213 .
Por depender de outras secretarias para efetivar seus objetivos, o BH Cidadania demanda uma
coordenação mais forte para articular ações e orçamentos, diluir sobreposições, ajustar prazos,
metas e processos, estabelecer procedimentos mais homogêneos de cadastros, sistemas de
informação, processos de monitoramento e avaliação mais conjuntos ou minimamente
uniformes. O desempenho do programa exige alta capacidade de coordenação horizontal das
ações, e também capacidade de implementar as decisões tomadas nas instâncias superiores de
coordenação (Câmara e GT). Esforços têm sido feitos para efetivar essa perspectiva, embora
as dificuldades para operar mudanças dessa magnitude sejam evidentes. Alguns exemplos
permitem elucidar o ponto. Um refere-se ao papel da coordenação do programa e, mais
especificamente, ao papel do Grupo de Trabalho (GT).
O Programa funcionou, em seu início, somente sob a coordenação da SCOMPS, sendo que
apenas em meados de 2003 a estratégia de gestão do BH Cidadania é revista, com a criação do
grupo de trabalho, responsável pela definição e monitoramento das ações do programa,
viabilizando o planejamento coletivo das ações desenvolvidas por cada setor
e o
acompanhamento conjunto da execução do programa. Entretanto, inicialmente, de acordo com
212
Conforme resposta ao questionário desenvolvido no âmbito do Projeto Urbal.
As Secretarias da Coordenação de Gestão Regional, principalmente no que se refere às intervenções urbanas e
sociais, ampliaram, a partir da reforma, sua atuação e sua capacidade de intervenção em cada divisão regional do
município. Contudo, as áreas do BH Cidadania são manchas dentro do território sob a jurisdição de cada regional.
Daí decorrem as dificuldades para convencer as equipes das regionais a priorizar as famílias das áreas piloto, em
detrimento de outras famílias, em igual situação, mas que residem em outras áreas.
213
237
informações retiradas do questionário 214 , o GT funcionava segundo “diretrizes préestabelecidas pela coordenação central gerando, na prática, um projeto operacional
setorializado”. O que era para ser um instrumento para a intersetorialidade reproduzia a
setorialidade em si mesmo. A partir da percepção dessa distorção, houve uma reorganização
da composição e funcionamento do GT, com a inclusão de representantes das secretarias
regionais e o uso de técnicas e metodologias mais participativas.
O caso de Belo Horizonte permite verificar as dificuldades de uma estratégia de focalização
territorial que tem a tarefa de “fazer caber” políticas que são universais (como educação e
saúde) em uma orientação focalizada. A atuação da saúde no município segue orientação
universal, orienta-se por seus próprios critérios de focalização territorial e trabalha com
estruturas de gestão e procedimentos definidos, e que não se alteram de forma tão maleável em
função das diretrizes do BH Cidadania, o mesmo ocorrendo com a educação. Não se pode
sensatamente esperar que, dada a forma como os setores da educação e da saúde estão
organizados, que estes venham a incorporar, sem resistências, a necessidade de atuar para
atender a um público específico e de forma diferenciada. De forma inversa, a área de
assistência social reconhece no NAF a base de um sistema único de assistência social e
organiza sua oferta e estrutura de serviços tendo por base os princípios tanto da reforma
quanto do BH Cidadania. Pode-se dizer que a educação e a saúde parecem encontrar menos
“vantagens” em perderem sua autonomia para uma atuação intersetorial 215 . Para essas áreas,
que apresentam equipamentos e áreas de abrangência e organização de serviços bem mais
amplos do que os demarcados pelo Programa, os territórios e critérios do BH Cidadania não
têm sido considerados na reorientação de suas ações.
Esse é um ponto a ser destacado no exame de estratégias locais de inclusão social, que
envolvem alterações substantivas nas estruturas e arranjos institucionais e nas práticas e
rotinas organizacionais. As resistências e dificuldades para implementar ações desenvolvidas
de forma intersetorial ganham aí toda a evidência, bem como ganham centralidade as
diferentes posições e interesses dos diversos atores envolvidos na política. Dificilmente os
interesses e as posições das diferentes secretarias convergem da mesma forma e com a mesma
214
Questionário respondido pela coordenação do Programa, no âmbito do Projeto Urbal.
Confome aponta Filgueiras, essas duas secretarias concentram dois terços dos funcionários municipais e
metade do orçamento, o que revela o esforço que seria necessário para que a SCOMPS tivesse capacidade de
coordenar estruturas como essas (Filgueiras, 2005, p. 7)
215
238
intensidade para os mesmos objetivos. Mesmo que haja convergência em relação aos fins ou
objetivos buscados, pode-se supor que ocorram divergências quanto aos meios mais
adequados para realizá-los. O esforço para quebrar resistências de setores como educação e
saúde é muito grande (PBH,2004) e mesmo em outras áreas a perspectiva da intersetorialidade
é um desafio. De acordo com um outro exemplo fornecido pelo coordenador do Programa,
mesmo a área de cultura (supostamente mais aberta à perspectiva da intersetorialidade, por ser
um setor relativamente marginalizado na estrutura municipal, e que teria mais a ganhar
aliando-se a outras áreas) resistiu em
incorporar a perspectiva da intersetorialidade: as
“oficinas de cultura eram planejadas setorialmente, sem contribuição de outras temáticas e,
principalmente, das regionais”.
O papel do GT, enquanto coordenação, foi importante para corrigir as distorções: após a
discussão no GT e reavaliação do conteúdo, as oficinas foram oferecidas de acordo com as
decisões do Grupo de Trabalho. A gestão da intersetorialidade tem exigido um esforço nada
desprezível de criação de consensos, instâncias de deliberação, coordenação e execução das
ações de forma compartilhada. A análise dos processos de implementação permite ver as
dificuldades para implementar na prática as mudanças necessárias (PBH,2004). A transição de
um modelo de gestão setorializado para um modelo que enfatiza a intersetorialidade não é algo
simples e envolve mudanças em vários níveis, nos âmbitos operacional, metodológico,
organizacional, institucional 216 . É grande o desafio para transformar idéias e diretrizes em
políticas, estruturas e processos que dêem a elas materialidade.
A intersetorialidade alcançada no caso do BH Cidadania corresponde, no momento, à
justaposição de programas, serviços e equipamentos de setores distintos das políticas sociais
em um mesmo território para atender as famílias aí residentes.
O BH Cidadania adota uma modelagem que encontra inspiração nos modelos emergentes de
gestão, conforme visto anteriormente. Articula-se, pelo menos normativamente, com a idéia de
modelos de gestão flexíveis, de politização da gestão e do papel dos governos locais, de
adoção de ferramentas de gestão da intersetorialidade e transversalidade. A perspectiva de
atuação integrada, conforme denominação do próprio programa, potencializa o foco nos
216
Por âmbito operacional, estamos nos referindo as rotinas de trabalho e atividades desenvolvidas; metodológico
refere-se a um nível mais conceitual, que remete à concepção do trabalho e à formulação teórica que sustenta a
intervenção; organizacional é relativo aos arranjos entre os diversos setores e aspectos da organização e
institucional refere-se ao âmbito das relações entre instituições e níveis de governo.
239
resultados pretendidos. Uma ação integrada envolve um conjunto mais amplo de atores, o que
exige capacidade de coordenação e autoridade institucional, para articular atores diversos e
alterar a maneira dos programas sociais atuarem. Essa é a aposta e o grande desafio do
Programa. Nos termos de uma hipótese de trabalho sugerida no capítulo anterior, o desenho do
BH Cidadania o coloca como uma iniciativa de alta densidade intersetorial, ao pressupor o
envolvimento de diversos setores desde a formulação até a execução das ações, e alterações
nos processos, estruturas e metodologias de ação.
No momento de sua expansão, o Programa conta com algumas das condições necessárias para
a implementação da gestão intersetorial, como as instâncias de coordenação e execução que
contam com a participação dos diversos setores e níveis de decisão. Além disso, existe um
processo de liderança e de construção de autoridade no campo social, a partir da atuação da
SMPS e também, e principalmente, do Grupo de Trabalho, que tem funcionado efetivamente
como um espaço de construção e condução coletiva do Programa BH Cidadania. Conforme
aponta Filgueiras, um esforço considerável tem sido feito pelo Programa para consolidar uma
“autoridade social municipal”, para viabilizar uma coordenação maior das ações no campo
social e urbano (Filgueiras, 2005, p. 6). Como visto no capítulo anterior, o agente catalisador
desempenha um papel central na promoção da intersetorialidade, e demanda autoridade e
legitimidade para exercê-lo, com capacidade para convocar e garantir a participação dos
diversos setores e atores pertinentes (Raczynski, 2005). O esforço de consolidação das
instâncias de decisão colegiadas sinaliza essa preocupação no âmbito do Programa.
Mas embora necessária, essa condição pode não ser suficiente. Além de legitimidade e
pactuação no nível das diretrizes e princípios, a efetivação da intersetorialidade pressupõe, em
algum nível, uma mudança nos processos e nos instrumentos de gestão que permitam a ação
transversal do BH Cidadania. Uma condição para que tais alterações se processem consiste em
criar os pontos concretos de conexão entre as áreas, estabelecer, de fato na prática, os fluxos e
rotinas, desenhar e implementar instrumentos e ferramentas de gestão compartilhada. A
reestruturação administrativa, legal ou formal, não foi suficiente para alterar padrões, fluxos e
conteúdos das ações desenvolvidas. Além da via da reorganização administrativa, levada a
cabo em Belo Horizonte em dois momentos, tem-se ainda o uso de algumas estratégias e
mecanismos integradores, dentre os quais se situam a gestão em rede, o foco no território e na
família ou ainda nos problemas, canalizadores de uma abordagem intersetorial da ação
240
pública. O orçamento pode ser também um poderoso instrumento e atuar como mecanismo
integrador ou produtor de intersetorialidade, ou como um verdadeiro empecilho para a gestão
integrada das políticas, caso permaneça setorializado (Raczynski, 2005). Também a utilização
de estratégias de planejamento coletivo e de forma participativa, buscando o estabelecimento
de visões compartilhadas; bem como as direções colegiadas (como é o caso do GT) são
formas de se criar a viabilidade política e técnica da intersetorialidade (Raczynski, 2005). Esse
parece ser um elemento enfatizado na concepção do Programa que, segundo informações da
coordenação 217 , caracterizaria a dimensão intersetorial do Programa: “o modelo de gestão e os
fóruns de discussão instituídos”.
Os sistemas de informação, tal como o orçamento, podem atuar ou como potencializadores ou
como inibidores da intersetorialidade. Um ponto central ao se falar de gestão e,
principalmente, de gestão compartilhada, refere-se, portanto, ao tema da informação. Sem
sistemas e procedimentos de coleta, sistematização e uso das informações, não é possível
efetivar uma gestão por resultados. A definição conjunta de objetivos e metas de resultados e
sua materialização em ferramentas de planejamento como o marco lógico, por exemplo,
poderia contribuir para uma gestão mais integrada das políticas. E, de forma inversa, sistemas
de informação setorializados que não interagem entre si podem atuar como um mecanismo
inibidor da intersetorialidade 218 .
Embora a temática específica dos sistemas de informação e do planejamento orientado para
objetivos não seja o foco aqui, é importante apenas ressaltar sua pertinência e utilidade para a
construção do marco conceitual do Programa. No caso do BH Cidadania, essa questão
encontra-se ainda muito pouco desenvolvida, sendo mesmo quase inexistente o uso de
217
Retiradas do questionário elaborado para o Projeto Urbal.
São frágeis os mecanismos de monitoramento e avaliação do Programa. Informações retiradas do questionário
apontam que os dados são coletados a partir de fichas setoriais, definidas de acordo com a oferta de cada serviço,
e que são utilizadas de forma pontual e assistemática pela coordenação do Programa. Não existem, no âmbito do
Programa, indicadores de efeitos e impactos que sejam conhecidos e utilizados como guias para a ação, estando a
ênfase na quantificação de produtos (número de oficinas realizadas, famílias atendidas, crianças atendidas,
pessoas encaminhadas etc.) sem ter definido de forma clara as metas de resultados. No BH Cidadania existe um
monitoramento e acompanhamento das ações através das reuniões periódicas do GT, reuniões da comissão local e
encontros com as regionais, mas sem a existência de um plano formal de monitoramento e avaliação, sem metas
de produtos e resultados, prazos e atividades especificados, sem indicadores e fontes de verificação definidas.
Houve uma inicativa, realizada no âmbito da cooperação PBH/FJP/BNDES, sob a coordenação da então
Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) , em 2003 e 2004, de construção do marco lógico e de um
Plano de Monitoramento e Avaliação dos programas descentralizados da SMAS: Serviço de Orientação Sócio
Familiar (SOSF), Plantão e NAF.
218
241
ferramentas mais orientadas para resultados e a efetiva incorporação do enfoque avaliativo no
âmbito do Programa. Os sistemas de informação cumprem um papel central, como destacado
na literatura (Raczynski, 2005; Filgueiras, 2005), como instrumentos fundamentais para
agregar, de forma mais consistente, as ações dos diversos setores. Uma das formas pelas quais
setores diversos podem convergir ou atuar de forma mais integrada é a partir de objetivos
compartilhados, que podem ser conseguidos ao se manter o foco no problema (e não no setor
em si mesmo), algo que se viabiliza a partir do planejamento e do estabelecimento da
hierarquia de objetivos ou do marco conceitual da intervenção. Sem atenção a essa questão
faltam parâmetros claros para nortear a ação. Que efeitos concretos são buscados junto às
famílias? Que modificações são necessárias em cada uma para configurar uma condição de
inclusão? Para que o NAF possa atuar como um agente empoderador, é preciso contar com
uma rede para receber e encaminhar demandas, e uma metodologia mais diretiva para
trabalhar com as famílias, que seja sistematizada, acompanhada, avaliada, que busque
resultados mensuráveis (o que não quer dizer necessariamente “quantificáveis”) sobre o que se
quer alcançar com o programa em cada uma de suas dimensões. Não se tem clareza das metas
de cobertura do programa e nem dos resultados que se pretende alcançar; sabe-se que algum
impacto as ações terão na vida das pessoas e famílias do lugar, mas pode ser pouco saber
apenas isso. Não estabelecer essas metas de resultados, que possam inclusive ser
compartilhadas entre os setores, dificulta a coordenação das ações e sua execução conjunta.
A perspectiva de monitorar e avaliar ultrapassa a necessidade, também legítima e necessária,
de prestar contas sobre a ação pública realizada, mas é um imperativo de uma ação mais
efetiva e eficiente no campo da gestão social. Embora esteja sendo feito um esforço no
Programa, com a formulação de uma matriz de indicadores de produtos e resultados, essa não
se incorporou como guia para a ação ou para a construção de instrumentos articulados de
monitoramento, não tendo sido superada a sistematização setorial das informações. Permanece
ainda a ausência de um sistema que permita ter a visão do Programa em seu conjunto,
conforme informações coletadas junto à coordenação do BH Cidadania. A institucionalização
de processos coletivos de monitoramento contribui para ajustar os programas às necessidades
da população-alvo, permitindo que o foco se mantenha no problema e nos resultados a serem
obtidos com a intervenção.
242
Um outro ponto a ser salientado refere-se à ausência de um marco legal que busque aumentar
as chances para a continuidade do Programa para além de ciclos de governo ou das alterações
periódicas no executivo municipal. Embora não garanta, a existência de uma legislação sobre
o BH Cidadania poderia indicar uma preocupação mais central com a sustentabilidade das
ações 219 e um compromisso mais estruturado segundo a concepção de direitos sociais.
c) Território: unidade de focalização ou de intervenção?
O reconhecimento da heterogeneidade da pobreza, da diversidade de causas, fatores de
manutenção e formas de superação dessa condição apontam para uma maior centralidade do
tema do território, reconhecido como elemento central para a compreensão mais adequada da
produção e reprodução da pobreza. Trata-se do território como perspectiva que dirige o olhar
para as condições da infra-estrutura urbana e de bens e serviços em diversos “pedaços” da
cidade e também considera a dimensão das relações sociais que configuram o tipo de
organização social existente. A concepção que permite agregar essas duas dimensões é a da
infra-estrutura social, como visto no capítulo anterior. Uma atuação orientada para o
território passa a ser, ao se considerar a pertinência dessa noção, uma estratégia necessária
para a promoção da inclusão social. A gestão ativa dos territórios nas políticas emerge, a partir
da análise da literatura, como condição necessária em uma estratégia efetiva de enfrentamento
e superação da pobreza. Essa gestão ativa do território relaciona-se, entre outras coisas, com
maior adequação entre a oferta de serviços e as demandas e necessidades existentes, na
perspectiva de fortalecimento da infra-estrutura social. O problema se coloca aqui, portanto,
no âmbito da gestão, no qual a dimensão do território ganha centralidade como critério de
focalização e/ou como unidade de intervenção.
O território, segundo a literatura examinada, passa a ser um elemento central tanto para
explicar tanto a pobreza (o componente espacial da pobreza) quanto a sua reprodução. As
condições de habitação, saneamento, provisão de bens e serviços públicos são importantes
para estabelecer os patamares de inclusão social. Embora necessárias, não são, contudo,
suficientes. A eficácia da ação dos serviços públicos nestes territórios – reduzir
vulnerabilidades de famílias e pessoas – dependerá não só de disponibilizar serviços, mas
também da capacidade de uma atuação conjunta do setor público, ONGs e comunidade, para
219
Esse elemento contrasta fortemente com a iniciativa de São Paulo, que priorizou, de forma clara, a estratégia
de formalização legal dos programas desenvolvidos, o que, contudo, não os protegeu das mudanças realizadas na
transição para outra gestão municipal.
243
resolver os problemas enfrentados pelas famílias e pessoas que vivem nos territórios, o que
remete, novamente, ao tema da governança e da capacidade de criação e fortalecimento de
redes em múltiplos níveis.
A experiência do BH Cidadania aponta para um esforço de construção de redes de serviços e
para uma estrutura intersetorial no planejamento e gestão das ações, tendo como base os
territórios de alta vulnerabilidade e exclusão. Ao considerar a natureza multidimensional da
pobreza e adotar o foco da territorialidade, o BH Cidadania identifica áreas do município nas
quais se concentrariam famílias e pessoas com maior nível de exposição a riscos e com menos
capacidades para fazer frente a eles.
No programa BH Cidadania a dimensão do território é estruturante. A perspectiva da
construção e fortalecimento das redes locais, através da articulação de equipamentos,
programas e serviços constitui nesse programa o centro da estratégia, conforme sugere o
documento do Programa: “pode-se dizer que a inclusão social se desenha espacialmente,
sendo necessário localizar a vulnerabilidade no município e organizar a atuação a partir do
território, promovendo o acesso à oferta local e não-local de serviços, de modo a maximizar a
eficácia das ações” (Documento do Programa, 2003, p. 6). Existe ainda o reconhecimento de
que o princípio da territorialidade está relacionado diretamente à questão da diversidade, o que
implica que “a forma de intervenção em uma região pode ser bastante diferente da
intervenção em outra região, dependendo das necessidades de cada uma delas” (Documento
do Programa, 2003, p. 7).
Entretanto, embora seja afirmada a diversidade das formas de atuação a partir da
heterogeneidade dos territórios, não fica evidente como o território se constitui, de fato, como
unidade de intervenção. O território no BH Cidadania é um critério de focalização, sendo que
o Programa tem dois recortes básicos que orientam a identificação do público alvo da ação
governamental: os territórios e as famílias que neles habitam. De forma semelhante ao que
ocorre no campo da metodologia de trabalho do NAF - que carece de uma teoria em uso (ou
de um marco conceitual) mais consistente para orientar de forma mais precisa componentes e
resultados -, parece não haver, no caso do território, objetivos traduzidos em formas de
atuação que permitam transformar o território. Que tipo de mudança é esperado e por que
meios ela irá se processar? Como definir o que se espera e como avaliar se o projetado foi
alcançado? Sem definições básicas sobre esses pontos, a intervenção fica fraca, com menos
244
possibilidades para surtir efeitos, uma vez que não se tem um modelo mais claro do que deve
ser feito 220 . Existe uma preocupação de disponibilizar serviços e equipamentos para melhorar
os padrões de convivência comunitária e como suporte para as famílias, como demonstram as
ações voltadas para a criação de áreas de recreação e lazer e para a constituição dos NAFs, no
eixo socialidade, mas não existe no Programa um conjunto de ações explícitas e
consistentemente articuladas voltadas para a melhoria das condições dos territórios, nem metas
que levem em conta a melhoria da infra-estrutura social, em sua concepção mais ampla,
entendida como infra-estrutura material e organização social.
Um dos objetivos específicos do Programa refere-se à ampliação da oferta e acesso aos
serviços e instalações mantidos ou gerenciados pela administração pública e também ao
fortalecimento das dinâmicas comunitárias que demandam espaços de convivência
comunitária e criação de uma rede de serviços. Entretanto, os esforços ainda parecem ser
insuficientes para atender a demanda e, antes de mais nada, não se tem, de forma clara, o que
precisa ser implantado ou viabilizado em cada uma das áreas do BH Cidadania para responder
aos problemas existentes. Certamente a expansão do Programa, com a incorporação do eixo
urbano no conjunto das ações do BH Cidadania, tem a possibilidade de permitir uma atuação
mais consistente no âmbito da melhoria urbana e territorial.
A perspectiva de infra-estrutura social supõe, como visto anteriormente, o plano da infraestrutura material - entendida em um aspecto ampliado, envolvendo não apenas os aspectos
físicos do território, mas também a rede de serviços e programas existentes – e também os
aspectos menos tangíveis da organização social, que se refere, sobretudo, às redes sociais
informais de controle e normas, ingrediente necessário para uma infra-estrutura social
potencializadora dos processos de inclusão social. O BH Cidadania, caso reconheça o
220
O tema mais geral no qual essa discussão se situa refere-se à complexidade dos problemas sociais, dada a
multiplicidade de causas que interagem para a produção dos fenômenos e as dificuldades maiores para isolar
causas ou estabelecer relações de causalidade. Se por um lado tem-se uma complexidade inerente ao próprio
objeto da intervenção, por outro tem-se bases teóricas frágeis para sustentar as estratégias de ação. Isso quer
dizer que, geralmente nos programas sociais, não se tem um conhecimento adequado do problema, o que
impossibilita a formulação segura de alternativas para seu enfrentamento. Programas sociais utilizam tecnologias
com alto grau de incerteza, ou “tecnologias brandas”, tal como sugere Sulbrandt (1994, pp. 382 e 383). Não se
tem, além dessa precariedade teórica ou por isso mesmo, um conjunto de estudos sobre programas e experiências
no campo social, de forma a gerar um conhecimento maior dos processos e mecanismos que interferem para
produzir alterações nos públicos-alvo e alcançar os objetivos pretendidos das intervenções. Saber o que funciona
e como, por quais mecanismos, constitui uma necessidade urgente para se criar tecnologias mais duras e
institucionalidades adequadas para enfrentar os desafios da pobreza e exclusão.
245
território como unidade de intervenção, necessariamente terá que enfrentar a superação da
pobreza a partir dessas categorias e dimensões, simultaneamente material e não material,
urbano e social, de empoderamento individual, familiar e comunitário.
A atenção ao território como unidade de intervenção (e não apenas como estratégia de
focalização) implica ações em rede, estratégias de participação e de atuação simultânea no
plano da infra-estrutura formal (bens, equipamentos, serviços) e no plano da organização
social. Uma visão mais estratégica de enfrentamento da pobreza articula-se, como se buscou
deixar claro nos capítulos anteriores, a uma ação de redes multiníveis, com o envolvimento de
diversos níveis de governo em estratégias diferenciadas de enfrentamento e prevenção, e
também de redes horizontais fortes, que articulem setores governamentais, entidades da
sociedade civil e do mercado de forma mais ativa, em intervenções politizadas, estratégicas e
participativas. Esse constitui, segundo discussões anteriores, um modelo de ação típico ideal,
construído a partir da depuração dos elementos conceituais e analíticos presentes no debate
sobre políticas e gestão pública e modelos locais de bem estar social. A perspectiva da
construção e fortalecimento das redes locais, através da articulação de equipamentos,
programas e serviços é um elemento presente na estratégia do BH Cidadania, ainda que de
forma não totalmente explícita. Tampouco são estabelecidas ou operacionalizadas as
mudanças pretendidas no âmbito dos territórios. Entretanto, documentos de análise do
Programa mostram as dificuldades de articular essa rede de forma efetiva, de garantir os
fluxos e a capacidade de resposta da rede de serviços efetivamente existente nas regionais
(PBH, 2004). Novamente aqui cabe recuperar um ponto que foi anteriormente ressaltado
quanto aos NAFs. O fato de estes não disporem de “boa retaguarda”, conforme afirmado
reiteradamente pelos técnicos envolvidos com a gestão do Programa, constitui uma expressão
do tipo de questões que estão sendo aqui identificadas no que diz respeito à infra-estrutura
social.
Como na maioria dos centros urbanos no Brasil, as entidades não-governamentais que atuam
na prestação de serviços de assistência são muito heterogêneas, de caráter filantrópico,
religioso e assistencialista, caracterizam-se por níveis gerenciais e por capacidade técnica
reduzida, sustentadas por princípios, valores e diretrizes variados, o que conforma um quadro
desafiador para o estabelecimento de políticas em parceria, para estratégias de governo em
rede. Evidências da precariedade e da fragilidade da rede de serviços sociais no município
246
ficam mais claras em alguns casos, como o das crianças em situação de risco e que demandam
a assistência em abrigos (FJP, 2000), por exemplo, ou ainda quanto ao atendimento de
crianças pequenas em creches. Ainda que a cobertura desse tipo de serviço seja significativa –
são 748 estabelecimentos que atendem a 18.689 crianças – existe uma demanda não atendida
de mais de 12 mil crianças (PBH/Urbal, 2004). No caso da rede de atendimento a idosos
(instituições de longa permanência), tem-se também expressa essa precariedade, seja em
termos quantitativos ou quanto à qualidade do atendimento (Paula, 2004). A precariedade da
rede de serviços é salientada de forma unânime em todas as regiões, e aparece sob as mais
diversas interpretações: em alguns casos é ressaltada a ausência de espaços para atividades de
socialização, cultura e lazer (Norte, Barreiro), em outras se ressalta o baixo número de
entidades (Pampulha), enquanto que em outras áreas a questão aparece como infra-estrutura
precária e oferta inferior à demanda (Oeste, Nordeste, Leste, Venda Nova) 221 . A questão da
rede de serviços, tanto governamental quanto não governamental, se constitui, dessa forma,
como o calcanhar de Aquiles do Programa. Existe ainda, por parte do governo municipal, um
“controle precário sobre a oferta de vagas nos serviços executados por ONGs”, sem controle
“da porta de entrada para as vagas existentes”, o que limita a capacidade de o executivo local
atuar de forma mais efetiva na construção de uma boa retaguarda para as famílias atendidas
pelo Programa, conforme apontado por Pinheiro e Rocha (2004, p. 110). Adiciona-se a esse
controle precário a forma como atualmente essa rede está organizada no território e tem-se a
magnitude do problema a ser ainda equacionado. A rede existente e com a qual o executivo
tem que contar para atender às necessidades da população atendida não está sempre localizada
nos territórios de maior vulnerabilidade social e onde existe a prioridade do atendimento, o
que marca a existência de uma “territorialização da demanda e não da oferta”, o que implica
que o executivo fique “refém de uma rede instalada de maneira voluntária e sem
planejamento” (Pinheiro e Rocha, 2004, p. 110).
O desafio do programa parece ser o de estruturar uma rede de serviços, potencializando a que
existe, mas ampliando e reorientando a prestação de serviços para adequá-la às necessidades
do público alvo. A construção dos centros BH Cidadania pode contribuir para o fortalecimento
da infra-estrutura formal, mas pode ser ainda insuficiente diante da demanda. Uma vez que
221
Essas informações foram coletadas a partir de um encontro de capacitação (outubro de 2005), no âmbito do
Projeto Urbal, que contou com a presença de técnicos e gestores que atuam no BH Cidadania e Bolsa Família, a
partir do desenvolvimento de atividades em grupos voltada para o mapeamento dos problemas principais nas
regionais e a identificação da rede disponível em cada território.
247
não há clareza para identificar a magnitude da demanda ou o conhecimento sistemático e
compartilhado dos elementos capazes de qualificá-la, não é possível uma ação mais
consistente que esteja voltada para o fortalecimento da infra-estrutura social. Um plano
efetivamente consistente de enfrentamento da pobreza articula o urbano e o social,
compreendendo o território, e tudo que a ele se refere, como um importante conjunto de
ativos, condições favoráveis ou fatores protetores contra pobreza crônica e altos graus de
vulnerabilidade. Boas condições de infra-estrutura, moradias adequadas, acesso a bens e
serviços públicos de qualidade constituem pisos de cidadania, níveis básicos de proteção
social que devem ser garantidos a todo custo para todos. A ausência do setor urbano e das
políticas de habitação nas estratégias do Programa compromete um esforço efetivo de inclusão
social das famílias que moram nessas áreas degradadas, segregadas e com grande
superposição de vulnerabilidades de diversos tipos. Essa dimensão não parece ganhar a
evidência necessária no desenho do BH Cidadania até o momento. Para lidar adequadamente
com essa questão, são necessários níveis mais altos de investimentos no campo das políticas
sociais e urbanas como um todo.
A expansão do Programa constitui, nesse sentido, uma aposta e uma promessa. Não basta que
o território seja considerado como critério de focalização, usado para identificar áreas de
maior exclusão social de forma a priorizar a intervenção. A gestão ativa do território, como
estratégia de inclusão, demanda a construção de planos estratégicos e integrados; e na
consecução dos objetivos de melhoria das condições de vida das populações que vivem em
territórios degradados, um papel central cabe ao Estado, como agente catalisador para
promover a participação dos diversos atores atuantes no território e viabilizar uma adequada
estrutura da rede de serviços. Essa rede de serviços, por sua vez, pode atuar como elemento
que potencializa uma organização social mais virtuosa, como identificado na literatura sobre
infra-estrutura social.
248
6.2 São Paulo: os programas sociais prioritários para inclusão social 222
A experiência de São Paulo é significativamente mais complexa do que a de Belo Horizonte,
seja pelo tamanho da população atendida ou pelo escopo da intervenção. Em 2000, a cidade de
São Paulo tinha uma população de mais de 10,4 milhões de pessoas. Com um total de 96
distritos, a população da cidade encontra-se concentrada em algumas áreas (mais da metade da
população em pouco mais de um quarto dos distritos), sendo que existe uma clara
concentração de famílias mais jovens na periferia da cidade, onde a oferta de equipamentos
públicos é mais precária.
Os temas do desemprego e das alterações na estrutura do trabalho foram centrais no
diagnóstico e na estratégia de intervenção utilizada. Entre 1991 a 2000, na cidade de São
Paulo, houve uma redução de 11% do total de postos de trabalho 223 e elevação da taxa de
desemprego (10,8% para 16,1%), acompanhada pelo aumento do tempo de desemprego (que
passa de 13 semanas em 1989 para 48 semanas, ou um ano, em 2001). Especialistas afirmam o
surgimento de uma “nova pobreza” (composta por segmentos com maior escolaridade, menor
faixa etária, nascidos no município e brancos), que se soma à “velha pobreza” (migrantes,
negros, trabalhadores do setor informal, com baixa escolaridade) 224 .
222
A base de informações para a reconstituição da intervenção é constituída pelas três publicações sobre a
estratégia desenvolvida em São Paulo, todas organizadas por Márcio Pochman (2002, 2003, 2004), Secretário
Municipal da Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, responsável tanto pela formulação
quanto pela implementação do programa de inclusão que teve início no ano de 2001. O primeiro livro (2002) traz
um diagnóstico da pobreza e do desemprego e apresenta o desenho da estratégia de inclusão social. O segundo
livro (2003) detalha cada um dos nove programas e apresenta considerações sobre o processo de implementação.
E o de 2004 apresenta alguns resultados e elementos de avaliação da experiência. O estudo conduzido por
Oliveira (2004) também permite identificar alguns pontos para avaliação da estratégia. Buscamos com esse
último documento checar dados e perceber um olhar externo sobre o desempenho dos programas. Entretanto, o
documento é uma versão publicada da avaliação e talvez por isso, em muitos momentos, a análise fique bastante
superficial, o que não permite estabelecer considerações mais robustas sobre os resultados alcançados pela
estratégia de inclusão. Além dessas fontes, tem-se a tese de André Campos (2004), sobre a atuação da SDTS.
223
Esse percentual significa que se passou de 3,55 milhões para 3,16 milhões de vagas e a redução de quase 390
mil postos de trabalho na indústria, sendo que o total de emprego nesse setor passou de 29,4% para 20,8% do
total de emprego formal do município, enquanto houve um crescimento no setor de serviços (de 29,7% para 38%)
e comércio (de 11,3% para 15,2%) (Pochmann, 2002, p.37).
224
Para os trabalhadores com menores níveis de escolaridade (entre o fundamental completo e superior
incompleto), o crescimento do desemprego foi de 58,4%, enquanto que para os trabalhadores com maior
escolaridade (com ensino médio completo e superior incompleto) a elevação foi de 122,4% entre 1990 e 2000.
Para os trabalhadores com escolaridade alta (ensino superior completo) o desemprego aumentou quase 80%. De
acordo com a afirmação dos autores, a mudança na composição do desemprego na última década faz com que
atualmente existam mais desempregados com curso superior completo do que desempregados analfabetos
(Pochmann, 2002, p. 160). Isso permite aos autores afirmarem que “para cada 10 pobres no município
paulistano, seis originam-se das velhas condições de reprodução da pobreza enquanto quatro já podem ser
associados às novas formas de reprodução da pobreza” (Pochmann, 2002, p. 159).
249
Do total de mais de 800 mil desempregados na cidade de SP em 2000, quase um terço (cerca
de 237 mil) eram jovens de 16 a 20 anos, sendo que 70% pertenciam a famílias de baixa
renda. Desses jovens desempregados, quase 50% não tinham o ensino fundamental concluído
e 41% não freqüentavam a escola (Pochmann, 2002, p. 101). O desemprego tem um impacto
profundo nas condições de vida presente e futura dos jovens, pois para muitos a possibilidade
de continuidade dos estudos está condicionada à existência de um trabalho. Sem trabalho, são
reduzidas as chances de permanência na escola, o que compromete as chances para uma
inserção mais qualificada no futuro: “para o jovem oriundo das famílias pobres o acesso à
renda por meio do trabalho é condição para manutenção de vínculos com a rede escolar”
(Pochmann, 2002, p. 105).
Se o desemprego é alto para os jovens, para os que passaram dos 40 anos também a situação é
dramática. De acordo com os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego da Fundação
SEADE e do DIEESE, mais de 22% dos desempregados possuem 40 anos ou mais de idade.
Mais de 60% desse universo é formado por chefes de família e 56% do total de
desempregados nessa faixa de idade não exercem qualquer outra atividade, mesmo que
eventual, de geração de renda, estando na condição de desemprego aberto. Desses
desempregados, 60% não possuem o ensino fundamental completo, sendo que 10% não
tinham passado pela escola e não sabiam ler ou escrever.
Entre 1991 e 2000 a pobreza cresceu em São Paulo, aumentou o número de chefes de família
com renda abaixo da linha de pobreza e observou-se um crescimento populacional de 22% nas
regiões mais pobres, em comparação com o decréscimo populacional nas regiões de maior
desenvolvimento, o que indica que ocorreu uma piora na qualidade de vida de um conjunto
expressivo de famílias que passaram a morar nas regiões mais carentes da cidade (Pochmann,
2003, p. 28).
Em 2002, quase 41 mil domicílios não tinham cobertura de abastecimento de água. Sendo
essas áreas principalmente áreas de ocupação recente, os sistemas de abastecimento não
conseguiram expandir a cobertura. Quase 309 mil domicílios não tinham rede geral de esgoto
em São Paulo, e quase 24 mil domicílios não eram atendidos pelo serviço de coleta de lixo,
seja feito por empresa pública ou privada (PMSP, 2004, pp. 54,55).
Esse quadro levou à constatação óbvia de que a solução da pobreza e da exclusão em um
município como São Paulo depende, fundamentalmente, de um conjunto mais amplo de ações
250
que envolvem, necessariamente, ações de outros níveis de governo e alterações mais
profundas na dinâmica do mercado de trabalho. Observando-se as transformações no âmbito
produtivo ao longo da década de 90, a cidade de São Paulo pode ser tomada como espelho do
que acontece no nível nacional 225 . Para enfrentar a exclusão, não seria suficiente uma ação
isolada, focalizada ou relativa ao âmbito de uma secretaria apenas. Essa era a aposta que
motivou o desenho e a implementação da proposta.
6.2.1 – Pressupostos e diretrizes da estratégia de inclusão em São Paulo
Segundo informações de Pochmann (2002), até dezembro de 2000 não existia no executivo
municipal uma política ou um conjunto de ações articuladas e voltadas para o combate à
pobreza, à desigualdade e ao desemprego. A partir de 2001, tem início uma ampla estratégia
de inclusão, que parte de uma compreensão abrangente dos problemas da cidade e da escolha
de um eixo aglutinador das ações, centrado no desenvolvimento das capacidades e no
empoderamento, com forte ênfase nas ações voltadas para o mundo do trabalho. Para fazer
frente ao desemprego, à pobreza e às diversas formas de vulnerabilidade, foi formulada uma
estratégia abrangente, sustentada em uma “concepção articulada e integrada de emancipação
dos segmentos sociais excluídos no município de São Paulo” (Pochman, 2002, p. 159). A
concepção que orienta a intervenção parte de um enfoque multidimensional da pobreza e a
concebe como heterogênea e multidimensional e que deve ser vista sob a perspectiva dos
espaços urbanos e territórios. Dessa forma, existe um reconhecimento de que novas formas de
pobreza urbana envolvem segregação espacial. A perspectiva do território é central na
estratégia de São Paulo.
A estratégia de São Paulo introduz componentes do denominado paradigma emergente de
gestão pública, enfatizando uma estrutura de gestão descentralizada, territorializada e
intersetorial. A opção organizacional para viabilizar uma estratégia de políticas públicas ampla
o suficiente para abarcar problemas de grande magnitude (pobreza, desigualdade, desemprego)
foi a criação de uma nova secretaria – Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e
225
Durante a década de 90, no Brasil, ocorreu a destruição de algo em torno de 3,2 milhões de empregos com
carteira assinada. Cerca de 1,5 milhão de brasileiros ingressam no mercado de trabalho anualmente e para
absorver esse contingente seria necessário um crescimento da economia da ordem de mais de 5,5% ao ano, sendo
que o que se verifica na última década é um crescimento inferior a 2,9 em média, por ano (Pochmann, 2002, p.
158).
251
Solidariedade (SDTS) 226 - com a missão de articular o conjunto do governo municipal e
organizações não governamentais em torno desse objetivo. A estratégia de inclusão foi
estruturada, inicialmente, no âmbito da Coordenação dos Programas Sociais Prioritários na
Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Econômico, que tinha a responsabilidade de
viabilizar a infra-estrutura e os recursos para dar início à implementação dos programas,
enquanto se criava a nova secretaria. Uma justificativa para deixar esses programas a cargo de
uma secretaria meio foi a intenção de “proteger” suas características inovadoras, mantendo-os
fora das secretarias tradicionalmente encarregadas das políticas sociais, tais como educação e
assistência social, que poderiam ser consideradas locus “naturais” desse tipo de política227
(Pochmann, 2002, p. 77).
A perspectiva orientadora consistiu na construção de uma estrutura administrativa de gestão
horizontalizada, com ênfase em ações matriciais e em projetos bem delimitados, em uma
estratégia de gestão orientada por objetivos e que buscasse a articulação das ações da recém
criada Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (SDTS) com outras
secretarias e instâncias de governo (administrações regionais), de forma descentralizada e
participativa (Pochmann, 2002, p.57). Tratava-se, segundo Pochmann, de “integrar o conjunto
de políticas que, de forma matricial, busca quebrar paradigmas que predominam na
condução das políticas governamentais” (Pochman, 2002, p. 123).
A articulação institucional e a integração territorial são os dois elementos fundamentais da
estratégia e pode-se dizer que surgem a partir da identificação dos problemas de gestão das
políticas públicas: estruturas burocráticas tradicionais, com normas rígidas, estruturas
ineficientes, ineficazes, com superposição das ações, ausência de flexibilização, de
coordenação, distante dos interesses do público, com recursos pulverizados, conforme
afirmação dos autores (Pochmann, 2002, p. 79). A estratégia utilizada pautou-se pela
226
A estrutura de gestão da SDTS era de “uma teia de poder não verticalizada”, sustentada pela permanente
avaliação de ações e resultados (Campos, 2004, p. 153). As equipes da SDTS, responsáveis pelos nove
programas, eram enxutas: em dezembro de 2002 eram 69 funcionários na SDTS, sendo apenas 10 de carreira,
estando na segunda posição de secretarias com menor número de pessoal, dentre as 20 existentes na Prefeitura.
Mas em contrapartida, os salários eram 71,2% superiores aos salários médios da Prefeitura, sendo a quinta
secretaria com melhor remuneração (Campos, 2004, pp. 151,152).
227
Além dessa escolha de localização institucional dos programas, outra decisão consistiu em entregar a
coordenação dos mesmos para pesquisadores da Universidade de Campinas, sinalizando com isso a busca pela
implantação de uma nova cultura institucional (Pochmann, 2002, p. 77).
252
necessidade de “superar as formas de organização verticalmente integradas, realizando uma
implementação descentralizada, territorializada e intersetorial” (Pochmann, 2002, p. 79) 228 .
Na definição da estratégia, o governo introduziu duas inovações no campo das ações
governamentais. Constituiu três blocos de políticas (redistributivas, emancipatórias e de
desenvolvimento local) que fundamentam a estratégia de inclusão social. As ações são
pautadas pela perspectiva da integração e articulação e pela adoção do universalismo no
atendimento aos excluídos.
“Os programas distributivos no plano horizontal de ação do governo municipal paulistano
não se mostrariam suficientemente inovadores se não estivessem integrados e vinculados
verticalmente aos programas emancipatórios e de apoio ao desenvolvimento local”
(Pochmann, 2002, pp. 68,69).
Foram desenhados nove programas sociais, concebidos de forma integrada e articulados entre
si, que operam, de acordo com seus formuladores, sob o princípio da universalidade, sendo
esse termo utilizado para dizer da cobertura total da população identificada como legítima
demandatária das ações dos programas, uma vez enquadrada nos critérios de elegibilidade.
A diretriz da universalidade na provisão dos serviços é constantemente ressaltada nos
documentos dos programas, para marcar um distanciamento das políticas focalizadas, que
operam a partir de “cotas de atendimento da população alvo”. A estratégia utilizada
estabeleceu uma hierarquia na priorização dos distritos a serem atendidos a cada ano, com a
perspectiva de atender a toda a população pobre do município. Parece contraditório que se
sustente ao mesmo tempo a universalidade e a priorização de áreas de intervenção, mas a
perspectiva que consta nos documentos é demarcar uma diferença em relação a estratégias de
cunho compensatório, residual ou focalizadas. A idéia básica da concepção de universalismo é
evitar discricionaridade na definição do público beneficiado; todos os que se enquadrassem
nos critérios, estabelecidos em lei, seriam atendidos. Universalizar, para os proponentes, é
atender a toda a população pobre, mas iniciando a intervenção por determinados distritos de
maior vulnerabilidade.
228
De acordo com documentos examinados, a busca de horizontalidade ocorreu em quatro movimentos: entre as
secretarias e empresas municipais; em relação ao legislativo municipal; em relação aos conselhos municipais de
assistência e criança e adolescente e junto aos órgãos governamentais no plano local (supervisores de assistência
social, núcleos de ação educativa, administrações regionais). A estratégia para viabilizar a articulação consistiu
em apresentar os programas para as secretarias, enfatizando pontos de contato e potencialidades das sinergias,
fornecer elementos para contornar possíveis resistências (em função das rotinas e tradições burocráticas) e buscar
parceiros (Pochmann, 2002, pp. 79, 80).
253
A seguir tem-se uma breve apresentação dos programas que compõem a estratégia de inclusão,
sendo que os elementos principais de cada um são apresentados nos quadros a seguir.
Os programas redistributivos, organizados basicamente por faixa etária e tendo o trabalho
como eixo -
Programa de Garantia de Renda Mínima, Programa Bolsa Trabalho (com 4
subprojetos), Programa Começar de Novo e Programa Ação Coletiva de Trabalho/Operação
Trabalho
- envolvem o repasse mensal de benefícios para famílias e indivíduos de
determinadas faixas etárias, por um tempo determinado, de forma vinculada ao cumprimento
de certas condicionalidades 229 .
Os programas emancipatórios 230 - Programa Oportunidade Solidária, Capacitação
Ocupacional e de Aprendizagem em Atividades de Utilidade Coletiva, Programa Central de
Crédito Popular (São Paulo Confia) são voltados para o repasse de ativos, sob a forma de
conhecimentos, crédito, experiências tuteladas de trabalho e de ação cooperativa. O público
desses programas foi prioritariamente, embora não de forma exclusiva, o mesmo dos
programas redistributivos 231 .
Os programas de desenvolvimento local - Programa de reestruturação produtiva e relações
do trabalho e Programa Sistema de Alocação Pública do Trabalho - voltaram-se para o
âmbito da geração de oportunidades de trabalho e renda e para a dinamização dos espaços e
229
Programas redistributivos: A) Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima: tem como público alvo
famílias com crianças e adolescentes (de 0 a 16 anos incompletos) e oferece uma complementação monetária em
troca da obrigatoriedade da freqüência escolar. B) Programa Bolsa Trabalho: tem como objetivo atender jovens
desempregados de 16 a 20 anos de idade, fornecendo uma renda vinculada à inserção e freqüência escolar,
capacitando-os ainda para o desenvolvimento de iniciativas comunitárias. Tem quatro subprojetos: bolsa trabalho
renda, para aqueles envolvidos em atividades comunitárias e educacionais; bolsa trabalho cursinho, para acesso a
cursos pré-vestibulares e bolsas em universidades privadas; bolsa trabalho estágio, para estágios no setor público
e privado e bolsa trabalho emprego, para experiência de formação com contrato formal de trabalho. C) Programa
Ação Coletiva de Trabalho (Operação Trabalho): trata-se de um programa voltado para desempregados de longa
duração, com faixa etária entre 21 e 39 anos (preferencialmente) que fornece renda, capacitação e experiência de
trabalho. D) Programa Começar de Novo: voltados para os desempregados com 40 anos ou mais, o programa
garante renda vinculada à formação para atividades produtivas e comunitárias.
230
Esses programas, principalmente o Oportunidade Solidária e o Capacitação Ocupacional, contaram com o
apoio da FAO e da Unesco, respectivamente. O programa Oportunidade Solidária apresenta uma importante
interface com o projeto “Desenvolvimento solidário: geração de renda e ocupação no município de SP”,
apresentado pela SDTS à FAO/ONU. A parceria com a UNESCO nas ações voltadas para a juventude significou
também um aporte substancial às ações do Programa de Capacitação Ocupacional.
231
Programas emancipatórios: esses programas pautam-se pela busca de autonomização dos pobres e
desempregados. A) Programa Oportunidade Solidária: aprendizagem em empreendimentos coletivos
(associativos, cooperativas e comunitários) e individuais, com o objetivo de criar condições para a geração de
ocupação e renda para os mais pobres. B) Capacitação Ocupacional e de Aprendizagem em Atividades de
Utilidade Coletiva: Três tipos básicos de capacitação: ocupação formal, ocupação informal e ocupação em
atividades de utilidade coletiva e comunitária. C) Programa Central de Crédito Popular (São Paulo Confia):
voltado para a difusão do microcrédito, sobretudo para o público beneficiado pelos programas redistributivos e
pelo Programa Oportunidade Solidária.
254
territórios, a partir do fortalecimento das cadeias produtivas e intermediação de negócios e de
alocação de trabalhadores autônomos. Os dois programas que compunham esse bloco estavam
centrados no desenvolvimento das localidades, na perspectiva do desenvolvimento econômico
sustentável (ver quadro abaixo para maiores detalhes sobre cada programa) 232 .
232
Programas de Apoio ao Desenvolvimento Local. A) Programa de reestruturação produtiva e relações do
trabalho: esse programa é voltado para reconstituição de cadeias produtivas, recuperação de empresas falidas e
“investimentos em condomínios de cooperativas”. B) Programa Sistema de Alocação Pública do Trabalho: tratase de uma busca de reorganização do mercado de trabalho, através da criação de um serviço amplo de
intermediação de trabalhadores por meio da busca ativa de vagas em diferentes regiões da cidade, e da
constituição de um banco de dados que articula demanda e oferta de vagas.
255
Figura 7 - Programas Sociais Prioritários: um esquema para identificação dos componentes e suas articulaçõe possíveis
Programas
Redistributivos
Programa de Garantia de
Renda Mínima
Programa Bolsa
Trabalho (com 4
subprojetos)
Programa Começar de
novo
Programa Ação
Coletiva de
Trabalho (ou
Operação Trabalho)
(Foco: indivíduo/família)
Programas
Emancipatórios
Capacitação Ocupacional e
de Aprendizagem em
Atividades de Utilidade
Coletiva
Programa Oportunidade
Solidária
Programa Central de Crédito
Popular (São Paulo Confia)
(Foco: indivíduo)
Programas de
Apoio ao
Desenvolvimento
Local
Programa de reestruturação
produtiva e relações de trabalho
(Foco: território)
Fonte: Elaboração própria, a partir das informações de Pochmann, (2002); Campos, 2004
256
Programa Sistema de Alocação
Pública do Trabalho
Quadro 13: Síntese dos Programas da estratégia de inclusão de São Paulo
PROGRAMAS REDISTRIBUTIVOS
Critérios de elegibilidade, permanência e valor do benefício
renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo; famílias com crianças
de 0 a 15 anos; residentes em SP há no mínimo 2 anos e que atendam às
obrigações estabelecidas no termo de responsabilidade e compromisso:
assiduidade à escola e a retirada das crianças e adolescentes das situações de
risco (trabalho infantil, por exemplo).
Valor do benefício:
“multiplica-se o valor de meio salário mínimo pelo número de membros da
família e do resultado diminui-se o valor da renda familiar. O valor do beneficio
corresponderá a dois terços da diferença entre a renda familiar e o valor obtido
como resultados da multiplicação de meio salário mínimo pelo numero de
membros da família” (Pochmann, 2002, p. 100). Durante 2002, o valor desse
benefício era de R$ 105,72 em média.
jovens com idade entre 16 e 20 anos, que estejam estudando ou que tenham
Bolsa Trabalho
tem como objetivo concluído o ensino médio, estejam desempregados ou sem rendimentos
atender
jovens próprios, pertençam a famílias com renda bruta familiar per capita igual ou
desempregados de 16 a inferior a meio salário mínimo, residentes em SP há no mínimo 2 anos e que
20 anos de idade, atendam às obrigações estabelecidas no termo de responsabilidade e
fornecendo uma renda compromisso. Para serem incluídos e permanecerem no programa, os jovens
vinculada à inserção e devem ter uma freqüência escolar superior a 85% e cumprir a carga horária das
freqüência
escolar, atividades de formação. Tais atividades tem uma carga horária semanal de 20
capacitando-os ainda horas.O prazo de permanência no programa é de 6 meses, podendo ser renovado
para
o por até 2 anos, dependendo de avaliação e da disponibilidade de recursos do
desenvolvimento
de programa; sendo possível o desligamento caso não haja o cumprimento das
iniciativas
exigências do programa.
Valor do benefício: O valor do beneficio corresponde a 45% do salário mínimo
comunitárias.
vigente, acrescido do valor correspondente a dois vales-transporte por dia, além
de um seguro de vida coletivo. Em 2001, esse valor era de R$ 137,00.
Nas modalidades bolsa cursinho, estágio e emprego, houve uma ampliação da
faixa de renda do público a ser atendido, considerando renda familiar total de
até 4,2 salários mínimos.
Fonte: Elaboração própria a partir das informações de Pochmann, 2002
Programa
Renda Mínima
tem como público alvo
famílias com crianças
e adolescentes (de 0 a
16 anos incompletos) e
oferece
uma
complementação
monetária em troca da
obrigatoriedade
da
freqüência escolar.
257
Objetivos
“garantir formação intelectual das crianças e dos
adolescentes das famílias de forma a assegurar-lhes alguns
instrumentos que ajudem a romper com o circulo da
reprodução da pobreza, complementar a renda das famílias
de modo que estas possam atender às necessidades básicas
de seus membros, garantir a permanência e um bom
desempenho das crianças e adolescentes na rede escolar,
reduzir o número de crianças em situação de rua e/ou
daquelas que participam de atividades remuneradas e
melhorar a qualidade de vida das famílias”
“oferecer meios para que os jovens possam continuar
vinculados à rede escolar; propiciar-lhes uma capacitação
adicional - não necessariamente dirigida ao mercado de
trabalho, embora os cursos possam criar condições mais
favoráveis -; potencializar a integração dos jovens aos seus
bairros, por meio seja do desenvolvimento de atividades
comunitárias, seja do (re) conhecimento dos distritos onde
residem; melhorar as condições de vida dos jovens e de seu
grupo familiar”.
O Programa se desdobrou em quatro subprogramas:
Modalidade Renda (igual aos termos anteriores)
Modalidade cursinho (jovens com idade entre 16 e 29 anos
que concluíram o ensino médio e não iniciaram o superior)
Modalidade Estágio (jovens entre 16 e 29 anos que
cursavam o ensino médio profissionalizante ou o superior)
Modalidade Emprego (jovens entre 16 e 24 anos que
concluíram o ensino médio ou o superior)
Quadro 13: Síntese dos Programas da estratégia de inclusão de São Paulo (cont.)
PROGRAMAS REDISTRIBUTIVOS
Critérios de elegibilidade, permanência e valor do benefício
indivíduos com 40 anos ou mais de idade, que estejam desempregados há 6
meses ou mais e que não estejam recebendo seguro desemprego, residam na
cidade de SP há mais de 2 anos e pertençam a famílias com renda mensal per
capita inferior ou igual a meio salário mínimo e que atendam as exigências do
termo de compromisso. É necessário que participem das atividades de
capacitação e aprendizagem para que tenham direito ao beneficio.
O prazo de permanência é de 6 meses, que pode ser prorrogado pó um período
máximo de dois anos e, nesse caso, o valor do beneficio é reduzido para 50% do
salário mínimo. O desligamento pode ocorrer caso o beneficiário deixe de
cumprir as exigências, critérios ou requisitos do programa (termo de
compromisso). O benefício monetário era fixo, correspondendo a 66,0% do
salário mínimo, além de duas passagens de ônibus por dia e um seguro de vida
coletivo.. Em 2001, o seu valor foi de R$ 176,00 e, em 2002, de R$ 189,33
Desempregados de longa duração - há mais de 8 meses - na faixa de 21 a 39
Operação Trabalho
voltado
para anos (podendo ser inseridos pessoas que estivessem fora da faixa, desde que não
desempregados
de participassem nem do Bolsa Trabalho nem do Começar de Novo), que residam
longa duração, com há mais de um ano no município de SP e cuja renda familiar per capita seja
faixa etária entre 21 e igual ou menor a meio salário mínimo.
39
anos Inclusão no Operação Trabalho leva em conta critérios como maior tempo de
(preferencialmente) e desemprego, condição de morador de rua, egressos do sistema penitenciário,
fornece
renda, famílias com filhos desnutridos, deficientes, entre outras condições de especial
capacitação
e vulnerabilidade.
experiência
de A permanência no programa depende do cumprimento do termo de
compromisso e responsabilidade.
trabalho.
O pagamento do benefício é por um período máximo de nove meses.
Valor do benefício: O benefício tem um valor variável, que pode chegar a 150%
do salário mínimo, além de duas passagens ônibus/dia, além de seguro de vida
e por vezes refeição. O valor do beneficio mensal, incluindo deslocamento e
alimentação, atingiu o valor máximo de R$ 295,00 em 2001. Em 2002, foi de
R$ 315,00.
Fonte: Elaboração própria a partir das informações de Pochmann, 2002
Programa
Começar de Novo
voltado
para
os
desempregados com
40 anos ou mais, o
programa
garante
renda vinculada à
formação
para
atividades produtivas e
comunitárias.
258
Objetivos
“oferecer uma capacitação nova ou adicional; atuar sobre as
formas tradicionais de pobreza e exclusão (analfabetismo,
por exemplo); estimular o espírito empreendedor,
oferecendo formação e habilitação para a montagem de
pequenos negócios; assegurar o acesso a atividades de
capacitação ocupacional ou comunitária de qualidade”
combater a pobreza gerada pelo desemprego de longa
duração (principalmente aquele com tempo superior a 8
meses) a partir da transferência de renda associada à
capacitação ocupacional e capacitação cidadã, a partir da
disponibilização de cursos, seminários e oficinas de
capacitação ocupacional e de aprendizagem em atividades
de utilidade coletiva.
Quadro 13: Síntese dos Programas da estratégia de inclusão de São Paulo (cont.)
Programa
Programa
Oportunidade
Solidária
(Apoio ONU/FAO)
Programa
Capacitação
Ocupacional e
Aprendizagem em
Atividades de
Utilidade Coletiva
(Apoio Unesco)
Programa Central de
Crédito Popular –
São Paulo Confia
PROGRAMAS EMANCIPATÓRIOS
Critérios de elegibilidade, permanência e valor do benefício
Objetivos
Beneficiários dos programas redistributivos, de forma a
Aprendizagem em empreendimentos coletivos (associativos,
complementar resultados da estratégia de inclusão social.
cooperativas e comunitários) e individuais, com o objetivo de criar
condições para a geração de ocupação e renda para os mais pobres.
Tem como objetivos oferecer instrumentos e ferramentas que possam
melhorar as condições de formação e atuação desses empreendimentos,
via capacitação e assessoria para gestão, estímulo à constituição de
redes, fóruns e outros tipos de representação coletiva de
empreendedores populares. Acesso a cultura do empreendedorismo.
beneficiários dos programas redistributivos, que parece constituir o
Educação para o trabalho e “educação para a vida comunitária,
público preferencial (Bolsa Trabalho, Começar de Novo e Operação envolvimento com o bem estar e a universalização da cidadania”.
Trabalho), população excluída ou em risco de exclusão dos 96
Desenvolvimento de atividades de capacitação que permitam aos
distritos, povos indígenas, população rural, desempregados e
beneficiários dos programas sociais a aquisição ou aperfeiçoamento de
trabalhadores ocupados em situação precária e outros grupos de
habilidades que possibilitem atividades de geração de renda, além de
beneficiários.
atividades comunitárias. Atividades de capacitação voltadas para o
mercado, para as atividades comunitárias e cooperativas e terceiro
setor.
Empreendedor de baixo poder aquisitivo, mesmo que não seja
Programa voltado para a difusão do microcrédito, sobretudo para o
beneficiários dos programas redistributivos. Cooperativas e micro e
público beneficiado pelos programas redistributivos e pelo Programa
pequenos empreendimentos formais ou informais.
Oportunidade Solidária. Tem como objetivos viabilizar acesso ao
crédito para populações que encontram dificuldades em ter acesso ao
crédito por meio das instituições tradicionais.
Fonte: Elaboração própria a partir das informações de Pochmann, 2002
259
Quadro 13: Síntese dos Programas da estratégia de inclusão de São Paulo (cont.)
Programa
Programa de
Reestruturação
Produtiva e Relações
de Trabalho
Programa Sistema de
Alocação Pública do
Trabalho (São Paulo
Inclui)
PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL
Critérios de elegibilidade, permanência e valor do benefício
Objetivos
Perspectiva de planejamento regional, com foco no território.
programa voltado para desenvolvimento econômico das regiões e para
Identificação coletiva, negociação e decisão sobre que atividades
a identificação e reconstituição de cadeias produtivas, recuperação de
econômicas deveriam receber atenção especial e identificação das 14 empresas falidas e investimentos em condomínios de cooperativas.
“estimular o surgimento de condições objetivas que favoreçam o
regiões que seriam inicialmente beneficiadas.
Atuação e deliberação via fóruns setoriais e fóruns distritais.
desenvolvimento da capacidade econômica local, dinamizando o que já
Assinatura de protocolos entre as instituições, fixando metas e
existe ou trazendo à tona potencialidades identificadas pelos próprios
formas de alcançá-las.
atores da região”
Intermediação de mão-de-obra formal, de mão-de-obra informal
(certificação e call center, que possibilita articular melhor a demanda
e a oferta de serviços) e intermediação de negócios (certificação e
sistema de informações sobre oferta e demanda de serviços e
produtos). Beneficiários prioritários, mas não exclusivos, são os
beneficiários dos programas Bolsa Trabalho, Operação Trabalho e
Começar de Novo.
Fonte: Elaboração própria a partir das informações de Pochmann, 2002
260
Trata-se de uma busca de reorganização do mercado de trabalho,
através da criação de um serviço amplo de intermediação de
trabalhadores por meio da busca ativa de vagas em diferentes regiões
da cidade, e da constituição de um banco de dados que articula
demanda e oferta de vagas. Atuação em três vertentes: mercado de
trabalho assalariado, central de serviços autônomos e intermediação de
negócios populares
Para implementação da estratégia, inicialmente procedeu-se à hierarquização dos 96 distritos,
para priorizar os 13 distritos233 de maior exclusão. A hierarquização das áreas para
implantação dos três primeiros programas (Renda Mínima, Bolsa Trabalho e Começar de
Novo) foi feita de forma coletiva, no Fórum de secretarias e órgãos públicos e coordenada pela
SDTS. De acordo com as decisões tomadas ali, “os programas deveriam ter início nos
distritos que apresentavam a combinação mais delicada de: menor acesso à escolarização, à
ocupação, à renda, e maior exposição de crianças e adolescentes a fenômenos relacionados à
violência urbana (homicídios, em especial)” (Campos, 2004, p. 135). De forma um pouco
diferente, os documentos apontam que a definição dos critérios para implantação gradativa dos
programas nas regionais orientou-se pelos indicadores de “maior taxa de desemprego, maior
índice de violência e menor renda familiar” (Pochmann, 2002, p. 81).
Esses primeiros 13 distritos correspondiam a pouco mais de 4% da população da cidade e a
cerca de 105 mil famílias atendidas. No segundo ano, em 2002, ampliou-se o atendimento para
mais 37 distritos, segundo a ordem previamente estabelecida, completando os 50 distritos para
a implantação prioritária dos programas em 2001 e 2002 (Pochmann, 2002, p.44), para um
atendimento de 280 mil famílias. Em 2004, quando o programa contempla todos os 96
distritos da cidade, são atendidas mais de 490 mil famílias (492.212), representando mais de 2
milhões de pessoas beneficiadas direta ou indiretamente pelos programas desenvolvidos
(Pochmann, 2004, p. 19). Dois programas - Operação Trabalho e São Paulo Confia - não
seguiram a lógica temporal e territorial dos demais programas, que previu a implantação das
ações em 13 distritos no primeiro ano e de 37 no segundo. Esses programas se destacam, nesse
sentido, em relação aos demais.
Os três primeiros programas implantados foram o Renda Mínima, Bolsa Trabalho e Começar
de Novo. As metas de atendimento foram estabelecidas: 60 mil famílias no Renda Mínima, 13
mil jovens no Bolsa Trabalho e 11 mil pessoas no Começar de Novo (Pochmann, 2002, p.77).
Como resultado já apontado no primeiro ano de funcionamento dos programas, tem-se o total
de 110 mil famílias beneficiadas 234 , com investimentos de mais de 64 milhões alocados no
233
Inicialmente foram identificados 10 distritos prioritários, mas rapidamente se constatou que importantes
bolsões de pobreza ficaram de fora, o que foi sanado com a inclusão de mais três distritos logo na primeira fase
dos programas.
234
Na forma como aparece no texto, não fica claro a que programas se refere esse contingente de famílias
atendidas. Optamos por manter essa informação, embora ela seja pouco precisa. Se contarmos o número de
pessoas beneficiadas pelos três programas redistributivos em 2001, tem-se pouco mais de 95 mil.
261
conjunto dos programas, com dinheiro exclusivamente municipal, de acordo com os autores
(Pochmann, 2002, p. 223). Campos afirma que, em julho de 2001, seis meses após o início do
governo, eram mais de 28 mil pessoas cadastradas para os três programas (Renda Mínima,
Bolsa Trabalho e Começar de Novo) e mais de 10 mil recebendo benefícios e participando das
ações de capacitação em dois distritos.
Não é banal esse resultado em tão pouco tempo. Levando em conta todas as operações
necessárias para se ter 10 mil famílias sendo atendidas em seis meses (para uma descrição
detalhada dos processos de cadastramento e seleção dos beneficiários ver Campos, 2004, pp.
137-140) tem-se a magnitude do esforço realizado em São Paulo para colocar de pé três
amplas ações de inclusão social sob a coordenação de uma secretaria recém criada e ainda sem
estrutura adequada de funcionamento.
No primeiro ano, em 2001, existia apenas a previsão de um milhão no orçamento para o
Programa Renda Mínima, sendo que a Prefeitura teve que remanejar quase 64 milhões, o que
ainda assim era menos do que 0,8% do orçamento da cidade. Em 2002, eram 237 milhões para
os programas, cerca de 2,3% das despesas municipais (Campos, 2004, p.149). Esse fato, em
um contexto de grande endividamento, com dívidas anteriores que consumiam 13% do
orçamento municipal, aponta para a centralidade da estratégia na agenda do executivo
municipal.
Na tentativa de empoderamento, as atividades envolvem, além da transferência de recursos,
formação e qualificação, expansão de capacidades. Essa constitui a perspectiva do Bolsa
Trabalho, Operação Trabalho, Começar de Novo, que agregam a transferência de recursos à
formação e qualificação também profissional, através dos programas de Capacitação
Ocupacional e Oportunidade Solidária
235
. O Programa São Paulo Confia articula-se
235
No Começar de Novo, por exemplo, tem-se um módulo de formação cidadã, também denominado módulo
básico, com duração de 160 horas, a se iniciar no momento da entrada no programa, voltado para a “construção
de alternativas de superação da vulnerabilidade social em que se encontram, por meio de práticas cidadãs e
solidárias, desenvolvendo junto aos beneficiários valores como a auto-estima, a valorização da identidade, a
compreensão e o exercício de seus deveres e direitos como cidadão, bem como o estímulo à participação ativa
na busca de alternativas para a inclusão social” (Pochmann, 2003, p. 107). O módulo específico, por sua vez,
volta-se para a ampliação da escolaridade e para ampliação de oportunidades de geração de renda e ocupação,
tanto as voltadas para o mercado quanto as orientadas para atividades comunitárias, ou de utilidade coletiva. O
Programa Capacitação Ocupacional utiliza a mesma metodologia de módulo básico, sendo esse dividido em seis
blocos temáticos articulados. Os blocos e a respectiva carga horária são os seguintes: bloco 1 (16 h), integração;
bloco 2 (32 h), questão social, emprego e trabalho; bloco 3 (30 h), cidadania, direitos e deveres; bloco 4 (30 h),
meio ambiente e qualidade de vida; bloco 5 (32h), novas formas de geração de ocupação e renda; bloco 6 (16 h),
projeto comunitário; cerimônia de encerramento (4h) (Pochmann, 2003, p. 118). Posteriormente tem-se um
262
diretamente com o Oportunidade Solidária e os programas do bloco do desenvolvimento
também se relacionam, no desenho, com os demais programas emancipatórios 236 .
De forma geral, quanto ao desenho da estratégia, tem-se uma política calcada na ótica dos
direitos, o que é revelado na concepção da intervenção e também presente na preocupação da
Prefeitura em transformar em lei os programas desenvolvidos. O centro da estratégia é que a
transferência de renda combina-se com a ampliação da autonomia e das capacidades, com foco
também no desenvolvimento local, com forte ênfase territorial. A complementaridade entre os
três blocos de programas foi a grande aposta da SDTS e o que constituiu sua dimensão mais
inovadora. Os programas emancipatórios priorizam o público dos programas redistributivos, e
também os programas de apoio ao desenvolvimento local priorizam as regiões com maior
concentração dos beneficiários dos programas redistributivos. Isso não quer dizer que sejam
as mesmas pessoas beneficiadas em todos os programas, mas que se prioriza, no caso dos
programas emancipatórios e de desenvolvimento, o público dos programas distributivos. A
lógica da complementaridade se expressa da seguinte forma:
“se por um lado se transfere renda às famílias/indivíduos pobres, por outro criam-se
condições para que possam superar a condição de pobreza,restaria articular a esses dois
eixos um terceiro que buscasse dinamizar a economia local e organizar o mercado de
trabalho” (Oliveira, 2004, p. 96).
•
Alguns resultados 237
Um primeiro ponto a ressaltar sobre a experiência refere-se à agilidade conseguida para
implementar as ações 238 , e a magnitude dos resultados alcançados, em termos quantitativos.
encaminhamento para módulos específicos, voltado para aquisição de habilidades e formação específicas. A
capacitação, nesses módulos, estaria voltada para atividades ligadas ao empreendedorismo individual e coletivo e
para atividades de utilidade coletiva. Dentre as primeiras, as ações de formação podem ser agrupadas nas
seguintes áreas: construção civil (8 cursos); alimentação (3 cursos); costura (4 cursos); estética (4 cursos);
serviços (12 cursos); artesanato; informática (2 cursos) (Pochmann, 2003, p. 119). No campo das atividades
comunitárias e de utilidade coletiva, as áreas são: agentes comunitários e multiplicadores em saúde (7 cursos);
agentes comunitários e multiplicadores em esporte, lazer e recreação (5 cursos); agentes comunitários e
multiplicadores em meio ambiente (4 cursos); agentes comunitários de trânsito (1 curso) (Pochmann, 2003, p.
120).
236
Os programas de desenvolvimento local, na medida em que buscam melhorar a oferta de trabalho nas regiões,
podem favorecer a circulação de produtos e serviços elaborados pelos empreendimentos solidários, conforme
aponta Campos (2004). Mas houve aí de fato um problema.
237
Essa seção terá como base o trabalho de Campos e as informações disponíveis em Pochmann (2002
2003,2004). O trabalho de Campos, embora rico, só contém dados do período 2001 e 2002. Embora essas últimas
fontes não sejam independentes (e que isso, de certa forma, possa colocar sob suspeita alguns resultados), não foi
possível contar com fontes externas que possibilitassem uma visão mais isenta ou descomprometida com a
intervenção, o que seria obviamente mais desejável.
263
No final do primeiro ano de governo, os três programas redistributivos (Renda Mínima, Bolsa
Trabalho e Começar de Novo) estavam implantados e outros três em processo de
implementação (Central de Crédito Produtivo-São Paulo Confia; Desenvolvimento Solidário;
Ação Coletiva de Trabalho/Operação Trabalho). Cabe ainda ressaltar a preocupação com a
regulamentação legal dos programas 239 , de forma a viabilizar maior estabilidade e
institucionalidade das políticas sociais. Esse ponto não é irrelevante, dadas as características
das políticas assistenciais no país, ainda presas de um ranço clientelista e de uma visão da
política como caridade e benesse e não sob o registro dos direitos e deveres de cidadania. A
procura por uma maior institucionalização dos programas é certamente condição necessária,
embora não seja suficiente, para viabilizar maior continuidade e sustentabilidade das ações do
Estado no campo das políticas e da gestão social.
O segundo ponto refere-se ao esforço quanto à geração, sistematização e uso das informações
como recurso gerencial. Um trabalho muito grande tem sido feito pela Prefeitura para
viabilizar sistemas de informação mais adequados para subsidiar processos de tomada de
decisão no campo das políticas e programas de proteção social. Em funcionamento a partir de
2002, o Banco de Dados do Cidadão permite a identificação individual de um conjunto de
dimensões da vida dos beneficiários dos programas sociais de SP. O Banco agregava, em
2003, 361 diferentes tipos de informação para cada um dos 287.482 mil cidadãos selecionados
para os programas redistributivos (Pochmann, 2003, p. 46). Engloba informações passadas e
presentes, informações sobre a trajetória, vida familiar, situação educacional, econômica,
profissional, condições de moradia, gastos e padrões de consumo. Em 2004 contava com
informações de cerca de 600 mil famílias e algo em torno de 1,5 milhão de indivíduos, além
de viabilizar a integração com o cadastro do programa Renda Cidadã do governo estadual
238
Em apenas três meses já haviam sido tomadas as providências necessárias para o início das ações: locais de
implementação definidos, cartões magnéticos acertados, ficha de cadastro elaborada, banco de dados do cidadão
pronto para operar (Pochmann, 2002, p. 81). No começo de abril de 2001, teve início o cadastramento dos três
programas (Renda Mínima, Começar de Novo e Bolsa Trabalho) em dois distritos. No final do ano, os três
programas estavam implementados e outros três em processo de implementação (Central de Crédito
Produtivo/São Paulo Confia; Desenvolvimento Solidário; Ação Coletiva de Trabalho/Operação Trabalho).
239
Lei 13.163, de 2001, que institui o Bolsa Trabalho; Lei nº 13.164, de 2001, cria a SDTS; Lei 13.244, de 2001,
firma termo de adesão ao Programa Bolsa Escola; Lei 13.265, de 2002, altera disposições da Lei do Renda
Mínima (Lei 12.651 de 1998); Lei 13.788, de 2004, que altera dispositivos da Lei do Renda Mínima; Lei 13.841,
de 2004, que dispõe sobre normas do Bolsa Trabalho; Lei 13.118, de 2001, que dispõe sobre a associação civil
Crédito Popular Solidário; Lei 13.178, de 2001, que institui o programa Ação Coletiva de Trabalho; Lei 13.689,
de 2003, que altera a lei anterior, dando nova redação aos dispositivos; Lei 13.799, de 2004, que cria o programa
Começar de Novo; Lei 13.808, de 2004, que cria programa de Capacitação Ocupacional, dentre outros decretos e
portarias (Pochmann, 2004, pp. 163-231).
264
(12,9 mil famílias) e com o cadastro do Programa federal Bolsa Escola (79,5 mil famílias).
Esse esforço deve ser destacado, dadas as condições do aparato gerencial e das estruturas
administrativas de gestão pública, principalmente de gestão social no Brasil. Oferecer um
cadastro único do beneficiário e informatizar a gestão dos programas, viabiliza maior
comunicação entre os programas, uma gestão mais conjunta das ações e do público
beneficiário (Oliveira, 2004, p. 96) 240 .
Quanto a alguns resultados, é importante recuperar que, no momento de implantação da
estratégia de inclusão, a partir de 2001, o número de pobres (definidos como aqueles que
apresentam renda per capita abaixo de meio salário mínimo mensal) era de 973 mil indivíduos
(cerca de 10% da população da cidade), membros de aproximadamente 215 mil famílias (mais
de 7% de todas as famílias existentes na cidade) (Campos, 2004, p. 94). Os 50 distritos
selecionados concentravam cerca de 72% dos indivíduos e 66% das famílias pobres do
município (Campos, 2004, p. 96).
Quanto à cobertura, tem-se que de 2001 a 2004 foram atendidos mais de 323 mil beneficiários
apenas nos programas de transferência de renda para famílias pobres com crianças de 0 a 15
anos 241 . O Programa Bolsa Trabalho atendeu a 63.471 beneficiários e o Começar de Novo a
58.925. O Programa Operação Trabalho atendeu a 20.553 beneficiários. Apenas nos
programas redistributivos, foram atendidas no período 466.741 beneficiários, e no total dos
nove programas, a 490.401 beneficiários, sem dupla contagem. No Programa Oportunidade
Solidária foram atendidos 19,2 mil beneficiários (Pochmann, 2004, p. 141) 242 . O volume de
240
Para uma análise mais aprofundada sobre a iniciativa do Banco de Dados do Cidadão, ver Campos (2004, p.
333).
241
É importante ressaltar aqui que consta na tabela fornecida por Pochmann (2004, p. 141) que o total de
beneficiários atendidos pelos Programas para famílias pobres com dependentes de 0 a 15 anos, no período
de 2001 a 2004, foi de 323.792 pessoas, sem dupla contagem. O Programa Renda Mínima é um dos programas
dirigidos para essa faixa etária. Outros programas, de outros níveis de governo, também são desenvolvidos em
São Paulo: Programa Bolsa Família e Bolsa Escola (do governo federal) e o Programa Renda Cidadã (do
Governo do Estado). Entretanto, ao discriminar o atendimento entre os programas tem-se que o O Renda Mínima
atendeu no período de 2001 a 2004 a 270.591 beneficiários; os programas federais atenderam a 170.389 e o
programa estadual a 16.128 pessoas (Pochmann, 2004, p. 141). Entretanto, somando esses três valores, o total
ultrapassa a 457 mil, o que se deve, provavelmente, a alguma duplicidade no recebimento dos benefícios que foi
corrigida para totalizar 323.792 indivíduos efetivamente atendidos pelos programas no período.
242
Deve-se ressaltar aqui uma ambigüidade: em alguns momentos no documento, aparece explicitamente o
seguinte: “foram atendidas pela estratégia de inclusão social de São Paulo, entre 2001 e setembro de 2004, mais
de 492 mil famílias e 1,1 milhões de ações de inclusão social, representando mais de 2 milhões de pessoas
beneficiadas direta e indiretamente por estas ações” (Pochmann, 2004, p. 19). No anexo, nas tabelas que
consolidam os números de atendimento, tem-se a afirmação de que “a SDTS atendeu a 490,4 mil beneficiários
entre julho de 2001 e setembro de 2004” (Pochmann, 2004, p. 141), definindo como beneficiários cidadãos (e
265
atendimento alcançado pelos nove programas é expressivo. São quase meio milhão de
famílias, mais de dois milhões de pessoas atingidas direta ou indiretamente, cerca de 20% da
população atual envolvendo repasse de recursos da ordem de 1 bilhão de reais (Pochmann,
2004, p. 106). Os desafios em termos financeiros, operacionais, políticos e metodológicos não
foram desprezíveis.
Outros resultados podem ser identificados a partir das avaliações realizadas tanto pela equipe
envolvida na coordenação e gestão dos nove programas quanto pelos parceiros atuantes no
desenvolvimento da estratégia (Pochmann, 2004) 243 . Simulações e estudos foram feitos para
tentar dimensionar os efeitos das ações nas condições de emprego, pobreza e desigualdade. As
evidências elencadas demonstram, entre outros, os seguintes resultados: os programas sociais
da SDTS geram efeitos na dinâmica do mercado de trabalho na cidade, e, se não fosse por
eles, o desemprego não seria de 17,8% (em dez. de 2003), mas de 19,4% (Pochmann, 2004, p.
51). Provocou-se, a partir da execução dos programas da SDTS, uma redefinição da geografia
econômica da cidade, com a vitalização dos 50 distritos mais pobres e com um aumento
expressivo no nível do emprego formal nessas regiões, comparativamente aos distritos
restantes 244 e com o fortalecimento das economias locais 245 . Foi observada uma significativa
redução da desigualdade entre rendimentos auferidos por mulheres e negros em relação aos
homens e brancos, nos 50 distritos inicialmente priorizados 246 . Houve uma expressiva
diferença entre a queda de índices de homicídios nos primeiros distritos atendidos em relação
não famílias) que se cadastraram nos programas sociais da SDTS, que atenderam aos critérios e receberam
benefício ou capacitação ocupacional e comunitária.
243
Dentre as avaliações realizadas, tem-se instituições como DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística
e Estudos sócio-econômicos, o CESIT (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, UNICAMP
(Universidade Estadual de Campinas) e CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea) (Pochmann,
2004, p. 99). As avaliações focaram temas e dimensões diferentes de cada programa e de aspectos da estratégia
de inclusão., agregando metodologias quantitativas e qualitativas, focadas nos processos e resultados das ações.
Pesquisas de opinião também foram feitas com amostra da população, buscando evidenciar a visão que tinham da
estratégia de inclusão em curso.
244
Nas palavras dos autores, “enquanto o nível de emprego formal cresceu 13,1% no acumulado de dezembro de
2001 a junho de 2004 nos 50 primeiros distritos, tal crescimento foi de apenas 4,7% para os 46 distritos restantes
e de 7,8% para a média do município” (Pochmann, 2004, p. 54)
245
Não é desprezível o montante de recursos injetados na economia via transferência de renda. No período de
julho de 2001 a setembro de 2004 foram transferidos quase 710 milhões de reais que foram, em sua quase
totalidade, aplicados no consumo, sendo este, em grande parte, nos territórios de origem dos beneficiários,
provocando um efeito sinérgico e uma confluência positiva com resultados significativos em termos econômicos
(Pochmann, 2004, p. 54)
246
Entre 2001 e 2003, enquanto se observou uma redução de quase 8% na distância entre os rendimentos de
negros e não negros nos 50 primeiros distritos, para os 46 distritos restantes essa distância aumentou em quase
10%, no mesmo período (Pochmann, 2004, p. 58).
266
aos demais distritos 247 e uma clara redução das taxas de evasão e repetência nos distritos onde
foram implantados os programas sociais 248 . Identifica-se uma redução da incidência da
pobreza e da desigualdade para toda a cidade e, de forma mais significativa, para os 50
distritos priorizados inicialmente 249 . A injeção de dezenas de milhões de reais todo mês nas
regiões de grande vulnerabilidade social atua, certamente, como catalisador do tecido
econômico e social (Campos, 2004, p. 252). Essa afirmação se sustenta pelo fato de que mais
de 83% dos beneficiários dos programas distributivos consumiam a bolsa no lugar de origem,
o que remete ao potencial de desenvolvimento econômico e social das periferias a partir das
ações de transferência de renda (Campos, 2004, p.254).
Mudanças nas dimensões da subjetividade também são evidenciadas pelas falas dos
beneficiários, que apontam ganhos de auto-estima, na sensação de segurança que adquirem a
partir da participação nos programas, na capacidade de tomar decisões, fazer e sustentar
escolhas e nas habilidades para se posicionar na vida em suas múltiplas dimensões
(Pochmann, 2004, pp. 78-87). Os depoimentos, embora possam dizer pouco sobre os
resultados mensuráveis quantitativamente, agregam percepções e avaliações a partir das
experiências individuais, do significado das experiências na vida e na trajetória de cada pessoa
ou família atendida. Nesse caso, alguns efeitos podem ser incomensuráveis 250 .
247
Os autores sustentam que a queda da violência é maior e mais rápida nos 13 distritos primeiramente atendidos
(21,7%), enquanto que para os outros 37 e para os distritos restantes, a redução foi de 16,6% e 15,9%,
respectivamente (Pochmann, 2004, p. 62). Da mesma forma, a queda na taxas de evasão escolar são bem mais
expressivas para os distritos que contam com programas sociais (o que pode ser óbvio, em se tratando de
programas que estão vinculados à presença das crianças nas escolas e que priorizam áreas onde as taxas de
evasão são comparativamente maiores).
248
Da mesma forma, a queda na taxas de evasão escolar são bem mais expressivas para os distritos que contam
com programas sociais (o que pode ser óbvio, em se tratando de programas que estão vinculados à presença das
crianças nas escolas e que priorizam áreas onde as taxas de evasão são comparativamente maiores, mas que não
deixam de evidenciar o êxito dessa estratégia que vincula transferência de renda à freqüência à escola).
249
Ocorre, entre o período de 2001 à 2004, uma queda de quase 10% no percentual de famílias pobres no
município, o que significa que cerca de 188 mil pessoas ou de 45 mil famílias saíram da condição de pobreza
como resultado dos efeitos dos programas sociais. De forma semelhante, tem-se uma redução da desigualdade de
cerca de 10% entre a renda apropriada pelos 10% mais ricos e pelos 10% mais pobres, sendo que nos primeiros
distritos atendidos essa redução chegou a 13% (Pochmann, 2004, p. 70).
250
Alguns fragmentos de falas dos beneficiários permitem ilustrar o ponto: “...e com o passar do tempo, a idéia
de formar uma cooperativa foi tomando corpo e decidimos, assim, montarmos uma cooperativa de coffee
break...estávamos, dessa forma, mais que buscando uma atividade econômica e, sim, reencontrando nossa
dignidade, por meio da valorização e solidariedade com os outros e conosco mesmo”. “Antes de começar esse
curso, nós éramos pessoas que estávamos excluídas, rejeitas, estávamos com a auto-estima muito pra baixo, e
depois que começamos a participar desse programa, aí a gente levantou a auto-estima,..começamos a ir a luta
para conseguir alguma coisa...o nosso cantinho para trabalhar” (Pochmann, 2004, pp. 79, 84). E ainda:
“adquiri profissionalismo, postura profissional, participação comunicativa com as pessoas, aprimoramento na
área do trabalho, perspectiva para o futuro...” (Pochmann, 2003, p. 81). Outra entrevistada fala de algo pessoal
267
Entretanto, um ponto importante para que um efetivo processo de empoderamento tenha início
refere-se ao valor do benefício e a possibilidade de sua continuidade no tempo, por um período
que possibilite o processo de interrupção e saída sustentável da condição de pobreza.
Alguns elementos de inovação da estratégia de São Paulo são salientados por Campos (2004).
Foi apontado, por exemplo, que a estratégia de cadastramento e seleção do público dos
programas significou uma alteração significativa e que marca uma ruptura com a forma
tradicional, paternalista e clientelista de gestão de políticas e ações dirigidas aos pobres no
Brasil. Dentre outros elementos, destaca-se a dimensão universalista da abordagem e o
impacto positivo quanto ao enfrentamento estratégico da pobreza; a centralidade da questão
dos direitos; a perspectiva de articulação intersetorial das ações; a perspectiva orientadora de
forte cunho econômico; a preocupação com estratégias articuladas de redistribuição,
emancipação e desenvolvimento local; a ênfase na alteração na estrutura de desigualdade
econômica, de gênero e raça; a preocupação com o monitoramento e acompanhamento
seqüencial dos beneficiários ao longo dos programas; a centralidade da informação como
recurso gerencial.
Entretanto, falhas e ruídos na comunicação entre a prefeitura e o público beneficiário foi
apontado com um dos principais problemas a serem enfrentados (Pochmann, 2004, pp. 102,
105), bem como a dificuldade de se atender às necessidades específicas e individuais, dada a
dimensão massiva do programa (Pochmann, 2004, p. 112). A passagem do público dos
programas redistributivos para os programas emancipatórios também não se deu sem
dificuldades ou descontinuidades, dado o perfil do público que muitas vezes não se encontrava
ainda preparado para apreensão de conteúdos tais como os desenvolvidos pelos programas
emancipatórios, o que acabou por exigir uma readequação dos prazos e dos critérios de
inserção do público, como será visto adiante.
A “falha na comunicação” entre governo e sociedade vai além de problema técnico. Suas
implicações são profundas e altamente impactantes nas relações que são criadas entre os
técnicos e beneficiários dos programas. Nas palavras de Campos, “não há informações sobre
mas que pode ser o espelho da vida de centenas de milhares de Marias: “Nossa, melhorou muito minha vida.
Porque meu marido, ele trabalhava numa transportadora. Daí ele saiu e não recebeu um centavo. Aí foi na hora
certa que essa renda veio pra me ajudar. Porque eu fiquei quase louca, nossa, com um monte de dívida e
pagando aluguel e tudo. Eu trabalhava, era babá de uma menina, mas depois fui mandada embora também. De
repente, meu salário diminuiu pela metade. Ah, eu passei uma dificuldade. Aí que veio a Renda Mínima e me
ajudou, senão, eu nem sei o que seria de mim. Ajudou muito mesmo” (Campos, 2004, p. 355).
268
as razões de alguns receberem X e outros Y, pois a prefeitura não as disponibiliza e, mais
ainda, nem se sabe se, como, onde e quando é possível acessá-las” (Campos, 2004, p. 357).
Ou nas palavras de uma liderança comunitária,
“...veio alguém da subprefeitura aqui, falaram uma coisa, quando chegou lá era outra [...]
As que trabalham, que já tem renda, conseguiram, as que não têm renda, não conseguiram.
E eles não alegaram nada, eles são do tipo assim: não alegam nada, fica por isso mesmo
[...] Eles não explicam, não estão nem aí” (Campos, 2004, p. 315) 251 .
Outros depoimentos citados por Campos salientam os tipos de dúvidas, incertezas, medos e
distâncias (materiais e simbólicas) que marcam as relações do público com o governo. O
desconhecimento sobre os critérios adotados, sobre os motivos para os valores diferenciados
da bolsa ou dos processos pelos quais são selecionadas as famílias beneficiárias foram
retratadas de forma exaustiva por Campos (2004). Retiramos, desse trabalho, apenas algumas
falas, no sentido de conferir um pouco mais de densidade ao que está sendo aqui considerado.
Sobre o sentimento de injustiça quanto aos valores diferenciados tem-se: “Agora, ela tem uma
criança só e veio 500 reais, e nós temos um monte de crianças aqui, o maior sacrifício pra
cuidar, vem só 160” (Campos, 2004, p. 344). É evidente, com toda a clareza no conjunto de
entrevistas realizadas por Campos, o desconhecimento e a desinformação que marcam as
relações dos beneficiários com o governo municipal. Além desse conjunto de dúvidas,
desconhecimentos, incerteza, tem-se nas entrevistas realizadas por Campos algumas pistas
para se entender o tipo de relação que se cria entre o público potencialmente beneficiário e o
governo, questão que se expressa na tensão entre falar a verdade ou mentir para que alguém
possa ter direito de ser incluído no programa e receber determinado volume de recursos 252 .
251
Ao afirmar que não existia um conhecimento sobre os critérios e os motivos que faziam com que algumas
famílias recebessem benefício e outras não, ou sobre os motivos para as diferenças de valor dos mesmos, uma
beneficiária do Programa explicita: “A gente queria saber, né? Por que que cai o de uns e o de outros não. Por
que todo mundo não tava recebendo direitinho? Agora recadastrou e ninguém ainda viu nada. Um recebe e
outro não recebe. Porque podia explicar: não, você não vai ganhar mais porque só tem um filho; não, você não
vai ganhar mais porque você tem um companheiro. Mas eles não dá explicação nenhuma. Eu até pensei: será
que é porque eu arrumei um companheiro. Porque naqueles tempo que eu fui eu tava assim sozinha, com dois
filhos, pagava luz, água, casa, tava desempregada. Aí eu fiz, porque precisava. E a gente ainda precisa, porque
emprego ninguém quer dar, né?” (Campos, 2004, p. 362).
252
Uma entrevistada revela esse sentimento e demonstra o verdadeiro terror do “computador”, que saberia se as
pessoas estariam ou não mentindo:“Se você chegar mentindo lá, o computador fala que você não vai ter Renda
Mínima, porque se você não trabalha, como vai sustentar a família inteira, né? E pagar luz, água e aluguel?
Como? Não tem como [...] Se você falar alguma mentira, o computador fala que tá mentindo. Porque, por
exemplo, era duas salas. Eu fiquei numa e tava falando a verdade, né? Na outra tava o computador lá ligado. E
me falaram: escuta, aqui você já terminou. O que era pra falar, já falou. O computador, já tá tudo lá. Você vai lá
e recebe um papelzinho, pra 30 dias ou 60 dias, pra ver se tem dinheiro [...] Eles chama primeiro numa sala, aí
o computador ele liga lá, não sei como é que é, já tá ligado, aí aquela sala é só pra falar a verdade, né? Se tá
trabalhando, se não tá. Aí pronto, aí termina, aí já despacha a gente. Só que aí vai pra outra sala, onde o
269
Também não fica claro, para os beneficiários entrevistados por Campos, porque às vezes
algumas famílias deixam de receber o recurso:
“Se eles deram uma ajuda, por quê é que eles estão cortando? Deveria deixar continuar a
ajuda. Porque veja bem, a gente nunca teve essa ajuda, tava vivendo, não tamo? De repente
vem esse benefício pra gente, essa ajuda. A gente fica todo feliz, fica todo grato, né? E de
repente pára? Por quê?” (Campos, 2004, p. 365)
E ainda:
“Vamos orar a Deus e pedir a Deus pra continuar recebendo essa Renda Mínima, não é? É
rezar, pra receber só coisa boa” (Campos, 2004, p. 377).
Os depoimentos acima podem ser a demonstração de que muito ainda há que ser feito, antes
de se alcançar o estado almejado de consciência cívica e afirmação de direitos. A estratégia de
inclusão, implantada em 2001, foi alterada em 2005, com a mudança no governo municipal,
com o fim da Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento e Solidariedade (STDS), que havia
sido criada para implementar a ambiciosa estratégia de inclusão social.
Os quadros abaixo sintetizam alguns resultados dos programas e permitem fazer a passagem
para a seção seguinte, que focaliza a experiência de São Paulo tendo como base as concepções
de autonomia, da intersetorialidade e da territorialidade no âmbito da estratégia desenvolvida.
computador já é lá, e ele já apresenta tudo o que você falou na outra sala” (Campos, 2004, pp. 332,333).
Prosseguindo nas suas suposições, a beneficiária acredita que a seleção e o valor do benefício estariam acoplados
a uma questão moral: “então eles vão ver: quem tiver mentindo, a gente põe menos. Quem tiver falando a
verdade a gente põe o tanto normal, que bem que merece. Porque tem muita gente que mentiu” (Campos, 2004,
p. 344).
270
Quadro 14: Programas da estratégia de inclusão social: alguns resultados 253
Diagnóstico
Renda Mínima
Bolsa
Trabalho
Começar de
novo
Antecedentes: Bolsa escola.
Necessidade de ampliar acesso e
permanência das crianças na escola
e redução de situações de risco.
De acordo com dados Seade e
Dieese, o universo é de 309 mil
famílias, ou 10,1% do total de
famílias do município
De acordo com PED 2000, havia
nos 50 distritos a serem atendidos
em 2001 e 2002, cerca de 44.321
jovens de 16 a 20 anos, em famílias
pobres e que se enquadram nos
critérios
Existia, na cidade como um todo,
um conjunto de 65.798 pessoas que
se adequavam aos critérios. Nos 50
distritos atendidos em 2001 e 2002,
esse número era de 41.783
PROGRAMAS REDISTRIBUTIVOS
Famílias atendidas (e número
Beneficiários indiretos: familiares)
2001 (13
2002 (37
Total 2001-2004
distritos)
distritos)
(beneficiários)
71.401
115.366
270.591*
(299.884
indiretos)
(461.464
indiretos)
9.393
21.826
(39.451
indiretos)
(87.304
indiretos)
12.390
22.335
(52.038
indiretos)
(89.340
indiretos)
253
Alguns resultados
Redução evasão e
repetência.Benefícios transferidos
em 2001 e 2002 correspondem a
18,4% da renda das famílias
63.471 (sendo 57.397 na
modalidade Bolsa
Trabalho Renda)
Incremento de 68,8% na renda das
famílias nos 13 distritos iniciais; em
2002, esse incremento foi de 56,2%
na renda das famílias dos 37
distritos seguintes.
58.925
Em 2001 o valor do benefício
correspondia a mais de 88% da
renda das famílias situadas nos 13
distritos e em 2002, correspondia a
quase 73% da renda das famílias
localizadas nos 37 distritos .
Os resultados em termos de número de atendimentos apontados entre as diversas fontes (Campos, 2004 e Pochmann, 2002,2003,2004) não são iguais. Optamos
por reproduzir aqui, nessas tabelas, as informações que constam na tese de André Campos (2004), embora elas se refiram aos dois primeiros anos, 2002 e 2002.
Apenas na coluna total (2001-2004) iremos utilizar os dados que constam em Pochmann (2004, p. 141). Alguns exemplos quanto ao tipo de desajuste identificado
entre o número de beneficiários: No Programa Renda Mínima, para Pochmann, em 2001, foram atendidas 68.722 famílias (288.644 pessoas) e para Campos, foram
atendidas nesse ano 71.401 famílias (299.884 pessoas). O Bolsa Trabalho em 2001, de acordo com Pochmann: 11.796 e para Campos, é 9.393. No Programa
Começar de Novo, de acordo com Pochmann, em 2001 foram atendidos 14.844 bolsistas, e por Campos, 12.390. No Operação Trabalho, em 2002, para Pochmann,
foram atendidos 13,5 mil pessoas e para Campos, esse número foi de 12.821. Entretanto, não tivemos tempo para depurar os dados, buscar explicar as incongruências
encontradas, mas optamos por manter aqui as duas fontes, com as devidas ressalvas.
271
Quadro 14: Programas da estratégia de inclusão social: alguns resultados (cont.)
Diagnóstico
Operação
Trabalho
Número de pessoas cadastrados foi
de 156 mil (cadastramento foi feito
de uma só vez, no final de 2001,
para 52 regiões diferentes da
cidade). Identificação de que havia,
na época de implantação do
programa, 57.598 pessoas que
apresentavam as condições para
inserção no Programa.
PROGRAMAS REDISTRIBUTIVOS
Famílias atendidas (e número Beneficiários indiretos:
familiares)
2001-2202
2001-2004
(beneficiários)
12.821 (65.837 indiretos)
20.553
Alguns resultados
Os benefícios significavam um
incremento de cerca de 202,3% na
renda das famílias atendidas (renda
praticamente triplicava após a
inserção no Programa)
* Agregando o total atendido pelo Bolsa Família e Bolsa Escola e Renda Cidadã/estadual, tem-se o total de 323.792 beneficiários dos programas para famílias com
dependentes de 0 a 15 anos
Fonte: elaborado pela autora a partir do material examinado
272
Quadro 14: Programas da estratégia de inclusão social: alguns resultados (cont.)
Programa
Diagnóstico
Capacitação
Ocupacional e
Aprendizagem
em Atividades
de Utilidade
Coletiva
Necessidade de atuar sobre a
formação e qualificação das
pessoas, na perspectiva de
formação cidadã e formação
ocupacional
Oportunidade
Solidária
Necessidade de ferramentas e
condições que possibilitasse a
geração de renda de forma
autônoma, individual ou coletiva.
Desenvolvimento do
empreendedorismo,
protagonismo, economia solidária
Central de
Crédito
Popular – São
Paulo Confia
Necessidade de ferramentas e
condições que possibilitasse a
geração de renda de forma
autônoma, individual ou coletiva
PROGRAMAS EMANCIPATÓRIOS
Número de Beneficiários
2001
2002
Total
2001-2004
55.693*capa 116.636
38.400*
citações
capacitações
2.586 turmas
796 turmas
e, em 2
simultâneas
períodos,
1.293 turmas
simultâneas
4.200***
10.779**
19.209
6.663 microcréditos
financiados (até o início de
2003), com valor acumulado
de R$ 5.171.890,00. Valor
médio do financiamento: R$
970,00
22.960
Outros resultados
Em 2002 eram mais de 50 instituições, em diversas
regiões da cidade, participando das atividades de
capacitação
De 4.200 atendidos, 3.420 (81,4%) participaram até os
primeiros 6 meses do projeto. Desses, 1.200 (28,6% do
total original) continuaram após os 6 meses. Ao final
da incubação, existiam 100 empreendimentos
individuais e 70 coletivos, sendo que em 2002 estavam
consolidados 50 e 34, respectivamente, gerando renda
e ocupação para 478 pessoas, ou 11,4% do número
original.
Central de disseminação de créditos para incentivo a
formação de micro empreendimentos individuais ou
coletivos. Em 2001, toma forma de Oscip, articulando
diversas (12) e significativas instituições, sob a
coordenação da SDTS. Mudanças na forma de
funcionamento do Programa, com a implantação da
metodologia de Unidades de Grupos Solidários e
concentração em bolsões de pobreza. Aumento número
de empréstimos e redução do valor. Aumento de 125%
no número de créditos, entre 1º e 2º semestre de 2002 e
mais de 42% entre 2º/2002 e 1º/2003.Mais de 126
agentes trabalhando na disseminação do micro crédito,
em dezembro de 2001
* Numero de beneficiários Bolsa Trabalho, Começar de Novo e Operação Trabalho recepcionados pelo Capacitação Ocupacional em 2001 e 2002
**Beneficiários dos Programas Bolsa Trabalho e Começar de Novo recepcionados pelo Oportunidade Solidária nos distritos atendidos em 2001 e 2002
273
Quadro 14: Programas da estratégia de inclusão social: alguns resultados (cont.)
PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL
Programa
Diagnóstico
Programa de Desenvolvimento
Local – Programa de
Reestruturação Produtiva e
Relações de Trabalho
Necessidade de recuperar noção de
planejamento, sob duas dimensões:
setorial e territorial
Programa Sistema de Alocação
Pública do Trabalho - São
Paulo Inclui
TOTAL
Número de
Beneficiários (20012004)
Outros resultados
No final de 2002, havia 12 fóruns distritais em
constituição e outros dois já em funcionamento.
48 parcerias firmadas, em nove fóruns setoriais,
entre a SDTS e instituições diversas: empresariais,
trabalhistas e universitárias
5.740
490.401 (sem dupla
contagem )
Fonte: elaborado pela autora a partir do material examinado
274
6.2.2 - Considerações sobre a estratégia
Seguindo o mesmo conjunto de pontos examinados quanto ao BH Cidadania, tem-se a leitura
do Programa de São Paulo a partir dos elementos de empoderamento e ampliação de
capacidades e autonomia, da gestão da intersetorialidade e o papel do território na estratégia
de intervenção. Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia ambiciosa, e que certamente merece
avaliações sobre seus resultados de forma bem mais aprofundada do que será feito aqui.
Importa salientar que a concepção da estratégia de São Paulo permite perceber de forma clara
elementos mobilizados nos capítulos anteriores, na percepção da pobreza como fenômeno
multidimensional, cuja estratégia se apóia fortemente na transferência de renda mas não se
limita a ela, estando o repasse de recurso sempre condicionado à proteção e ao fortalecimento
de ativos, poderíamos dizer, recuperando termos identificados na literatura.
a) Autonomia, empoderamento, desenvolvimento de capacidades
O programa de inclusão de São Paulo adota uma perspectiva ampla da pobreza, entendida ao
mesmo tempo como ausência e precariedade de renda, altos níveis de múltiplas privações e
atenção aos aspectos menos tangíveis presentes em sua produção e reprodução. Não só nos
seus fins, mas também nos processos, pode-se evidenciar a preocupação com a diretriz dos
direitos, autonomia e empoderamento dos grupos atendidos, conforme salientado por Campos
(2004). O tratamento utilizado nas correspondências dos programas com o público beneficiado
evidenciam o ponto, ao expressar um horizonte de direitos e respeito aos cidadãos 254 . Um
elemento é paradoxal na estratégia. Embora parta de uma concepção abrangente da pobreza, o
254
“Outro aspecto importante aí foi o envio de correspondências, por meio das quais a SDTS comunicava às
pessoas que, verificada a adequação entre as suas características declaradas e aquelas exigidas pela legislação
dos programas sociais, elas deveriam comparecer em local, dia e hora meticulosamente definidos para a
assinatura de um documento que formalizava a sua incorporação a esses programas, para a alocação em
atividades de capacitação cidadã e ocupacional e, também, para a entrega do cartão magnético que viabilizaria
o recebimento dos recursos monetários. O texto dessas correspondências deixava extremamente claro que os
beneficiários eram, desde aquele momento, detentores de todos os direitos garantidos em lei aos participantes
daqueles programas. Além disso, que o critério de escolha utilizado para a seleção era a perfeita identidade
entre os seus atributos individuais e familiares declarados anteriormente no cadastramento, por um lado, e
aqueles necessários segundo a legislação (residência há mais de dois anos na cidade, idade compatível com os
programas, renda familiar per capita abaixo de 1/2 salário mínimo), por outro lado. E, por último, que todos os
beneficiários seriam adequadamente atendidos no local, dia e hora mencionados na correspondência, de forma
que ninguém deveria se preocupar além do necessário com a formalização de um direito que já estava garantido
desde aquele momento. Nada menos que 95,4% deles acusaram o recebimento dessas correspondências, sendo
que elas ainda informavam que uma central telefônica gratuita (o call center mencionado acima, com
capacidade para 20.000 atendimentos diários) estava à disposição para o esclarecimento de quaisquer dúvidas.
Os beneficiários que se utilizaram dessa central chegaram a 13,5%, sendo que 71,5% deles afirmaram ter assim
resolvido todas as suas dúvidas a respeito dos programas” (Campos, 2004, pp. 258,259).
275
público alvo da intervenção é identificado a partir do corte de renda, dado pela linha de
pobreza. Sobre esse ponto, pouco é dito nos documentos examinados, mas Campos (2004)
ressalta essa fragilidade, ao apontar que a definição do público a ser atendido pela estratégia
de inclusão segue um recorte de renda, dado a partir de um parâmetro de valor tão baixo 255 .
A estratégia de inclusão tem um elemento que se refere à preocupação central com a dimensão
dos ativos que os indivíduos possuem e que são necessários para a redução da condição de
vulnerabilidade. Todo o desenho da estratégia sustenta-se por essa perspectiva básica. Nas
palavras dos formuladores da política, a transferência de renda
“funciona como redução do custo de oportunidade – de manter as crianças na escola
(Renda Mínima); de ampliação de conhecimento, aumento da escolaridade (Bolsa
Trabalho); de valorização de habilidades básicas e aquisição de novas competências
(Começar de Novo e Operação Trabalho)” (Pochmann, 2002, pp. 74,75).
Existe no desenho da intervenção uma preocupação central com a dimensão dos ativos e da
criação de capacidades e de fortalecimento de dimensões psico-sociais mais positivas para o
enfrentamento da exclusão. Os programas redistributivos concebem a transferência de renda
como criação de empoderamento, na medida em que buscam reter crianças e jovens na escola
ou propiciar formação profissional, por exemplo. São concebidos como necessários, mas
insuficientes como estratégia de saída da condição de pobreza. Por isso sua articulação com os
programas emancipatórios, orientados para fortalecimento da autonomia e das capacidades dos
indivíduos. O Programa de crédito popular é um exemplo de um tipo de ação voltada para a
criação de ativos. A renda para investimento e criação de novas oportunidades de trabalho é
fundamental como elemento de enfrentamento da pobreza; e ainda que o valor médio
concedido seja pequeno – em torno de 350 reais - o impacto pode ser significativo 256 .
Um Programa como Bolsa Trabalho, com transferência de renda vinculada à realização de
cursos e ações de fortalecimento das capacidades dos jovens, é uma estratégia promissora, de
acordo com o “modelo de ação” esboçado anteriormente. O foco nos ativos (capital financeiro,
255
Em algumas modalidades do Programa Bolsa Trabalho (Cursinho, Estágio e Emprego), contudo, os critérios
permitiram a ampliação para atendimento de jovens com renda familiar total de até 4,2 SM, o que pode significar
uma renda per capita de mais de um salário mínimo. Esse movimento de ampliação da linha de corte para
identificação do público permite uma aproximação da linha de pobreza utilizada por outras instituições, como o
Dieese, cuja estimativa do salário mínimo necessário (renda total de seis salários mínimos e uma renda per capita
de 1 e meio salário mínimo oficial, Campos, 2004, p. 187). Também no Programa Começar de Novo, modalidade
Emprego, amplia-se a faixa de renda para atender a um público com renda familiar total de até 4,2 SM.
256
De acordo com os resultados apontados, dois meses após a obtenção do crédito, verifica-se um aumento médio
de 63% no faturamento dos negócios que foram fortalecidos via empréstimo (Oliveira, 2004, p. 67).
276
humano, social) permite atuar de forma preventiva para alguns jovens, sendo que o programa
pode atuar como uma barreira para a queda na pobreza extrema e para enfrentar situações de
profunda vulnerabilidade.
Também é evidente a ênfase das ações nos componentes menos tangíveis envolvidos nas
situações de exclusão. No programa Operação Trabalho, por exemplo, o objetivo não era
necessariamente a ocupação. Buscou-se aliar capacitação para o trabalho e capacitação cidadã
ao exercício de atividades concretas de âmbito comunitário e de utilidade coletiva. Procurouse reforçar a auto-estima e a recuperação da cidadania. Para tanto, teria sido fornecida uma
atenção especial aos que se encontram na situação de desemprego, a partir da valorização das
habilidades básicas e da oferta de “estímulos sociais e psicológicos”, voltados para o
enfrentamento das condições depressivas que geralmente acompanham os que se encontram
envolvidos nessa condição de “quase exclusão do mercado de trabalho”. Uma especial atenção
é dada, portanto, aos aspectos psico-sociais decorrentes das situações de desemprego de longa
duração, e uma preocupação clara é com a não culpabilização do indivíduo por sua condição
de desempregado, o que é comum quando se focaliza exclusivamente a baixa escolaridade e a
ausência de capacitação profissional como responsáveis em última instância por essa condição
(Pochmann, 2002, p. 125).
De forma distinta, mas apontando para um mesmo conjunto de questões, as ações do
Oportunidade Solidária, por exemplo, buscavam o desenvolvimento de ações coletivas,
centradas no empoderamento e fortalecimento do capital social. No Programa São Paulo
Confia tem-se um outro exemplo da centralidade da dimensão coletiva da estratégia. Ao
enfatizar a metodologia dos grupos solidários tem-se o suposto da confiança, entendida como
um importante elemento de capital social 257 . Na avaliação de alguns resultados, ainda que
preliminares, aparece a convicção de que com as experiências desses programas, houve uma
“grande mobilização das forças positivas dos sujeitos cidadãos para o seu desenvolvimento
estritamente humano e social; ao longo do processo, foram recobrando a auto-estima,
257
O programa de micro-créditos cumpre um papel central na expansão dos ativos, criação e fortalecimento de
formas de cooperação e alternativas de geração de renda, no sentido e na diretriz de uma economia solidária. Esse
é um ponto que expressa a convicção da gestão municipal com a dimensão coletiva e comunitária, uma vez que
esse programa opera com base nas metodologias dos grupos solidários. Essa metodologia caracteriza-se pela
atuação no interior das comunidades, com créditos em valores mais baixos e contando com a garantia de grupo
solidário. Uma das maiores dificuldades dos pobres de terem acesso a crédito reside na ausência de bens e
pessoas que possam atuar como avalistas. O grupo solidário é formado por quatro a sete pessoas que obtém um
crédito em conjunto. O uso do recurso é individual, mas o pagamento das parcelas é conjunto. Essa metodologia
baseia-se na confiança, entendida como um importante elemento de capital social.
277
evidenciada não apenas no trato e na aparência pessoal, na diminuição do consumo de
álcool e de dores variadas, mas na forma de se posicionar e se relacionar com colegas e
monitores, na afirmação de habilidades profissionais e no desejo de voltar a produzir.
Também houve um desenvolvimento da interação e da confiança mútua, que aos poucos foi
se traduzindo em realizar tarefas coletivamente, organizar lanches e refeições coletivas,
colocar à disposição saberes para o outro, compartilhar equipamentos, construir a idéia de
um empreendimento coletivo, cuidar do espaço comum” (Pochmann, 2002, pp. 151,152).
Ainda que pareça idealizada, essa afirmação por parte dos agentes envolvidos no programa
espelha a possibilidade de se provocar senão grandes, pelo menos algumas alterações
significativas nas condições e nas habilidades das pessoas, ampliando seu potencial,
desenvolvendo suas capacidades.
Certamente o desenho da estratégia supõe um compromisso com o fortalecimento dos
ativos 258 , mas a implementação das ações permite levantar alguns pontos, relativos a essa
passagem de idéias às ações sobre a realidade. A partir de processos e descobertas que foram
feitos a partir do caso de São Paulo, pode-se identificar o conjunto de questões envolvidas e a
magnitude dos desafios a serem ainda superados quando se trata de desenvolver políticas para
enfrentamento da pobreza crônica. Os pontos seguintes partem desses exemplos e achados.
•
Vulnerabilidade intensa e limites para o protagonismo e autonomia
Um primeiro ponto refere-se às características do público, que produziram impactos na
modelagem original dos programas emancipatórios. Os programas Oportunidade Solidária e
São Paulo Confia permitem discutir o ponto. O Programa Oportunidade Solidária sofreu
ajustes expressivos após seu primeiro ano de funcionamento. A frase seguinte permite
identificar o por quê.
“Uma das constatações é que o conhecimento sistematizado sobre como fazer a incubação
de empreendimentos populares e solidários é insuficiente para responder às necessidades
de uma população-alvo com tantas exclusões ou vulnerabilidades historicamente
acumuladas (econômica, educacional, ocupacional, política-cidadã, interação comunitária,
de saúde, entre outras)” (Pochmann, 2003, p. 156).
A partir da identificação das dificuldades advindas do perfil do público (baixo grau de
escolarização,
baixa
qualificação
profissional,
258
perfil
pouco
inclinado
para
ações
Principalmente com os ativos do trabalho, capital humano e capital social, conforme a tipologia de Moser,
vista no capítulo anterior. Moradia e relações familiares seriam os outros dois ativos, que não são explícita ou
diretamente considerados na estratégia de São Paulo. Outra tipologia de ativos (enfoque dos modos de vida)
identificam ativos humanos, sociais, naturais, físicos e financeiros. Nessa perspectiva, a estratégia de São Paulo
considera ativos humanos, sociais e financeiros como centrais em sua abordagem. No enfoque do manejo de
riscos, por sua vez, os ativos considerados são humanos, físicos, financeiros e sociais, e nesse sentido a estratégia
contempla ativos humanos, financeiros e sociais.
278
empreendedoras, sentimento de incapacidade, impotência), optou-se por estabelecer outra
dinâmica nas atividades de formação do Programa Oportunidade Solidária para os vinculados
aos programas redistributivos: introduzir um módulo básico, que contemplasse questões de
cidadania, identidade, auto-estima, interação social para que no módulo posterior,
os
indivíduos pudessem escolher “caminhos para a busca da inclusão social”. Além disso, houve
um redimensionamento do tempo previsto para as atividades no Programa Oportunidade
Solidária, que se ampliou de seis para dez meses para que o público beneficiário tivesse mais
tempo para formular uma demanda consciente pela formação de empreendimentos individuais
ou coletivos (Pochmann, 2002, p. 153; 2003, pp. 145, 146).
Dadas as características do programa e o perfil do público dos programas redistributivos, os
técnicos da SDTS envolvidos com o Programa Oportunidade Solidária passaram a considerar
a possibilidade de ampliar o público atendido, para incorporar pessoas que se encontravam em
vias de “cair na pobreza”, que se situavam na linha de risco da exclusão, grupos que não
estavam ainda na situação de pobreza extrema. Esse questionamento levou a que o Programa
desenvolvesse ações para grupos de pessoas que não se encontravam propriamente na situação
de exclusão (Pochmann, 2002, p. 153).
Esse ponto possibilita aqui algumas reflexões a serem exploradas. As ações de
empreendedorismo individual ou coletivo poderiam funcionar como ações preventivas e
mitigatórias ou de contenção dos processos de exclusão e queda na pobreza extrema. Os
resultados potencialmente poderiam ser mais efetivos do que os resultados alcançáveis junto
ao público em condição de pobreza extrema. Para os pobres crônicos, os que se encontram em
situação de pobreza mais extrema e envolvidos em processos de exclusão, essas ações podem
ser insuficientes e perdem a condição de barreira, e não seriam capazes de reverter processos
de exclusão e impulsionar uma inclusão sustentável para centenas de milhares de jovens com
baixíssimas chances no mercado de trabalho. Para que sejam efetivas, uma vez que são
necessárias para viabilizar a inclusão, as ações emancipatórias demandam ações prévias, de
natureza mais básica quanto à proteção. A permeabilidade do programa Oportunidade
Solidária para rever seu desenho original e ajustá-lo ao perfil do público merece destaque,
quando se consideram as análises sobre a flexibilidade necessária das intervenções sociais e a
sua capacidade de ser estratégica e responsiva às necessidades da população.
279
Essa mesma questão – dos ajustes necessários para que as ações se adaptem aos problemas
identificados – se colocou para o Programa São Paulo Confia/Central de Crédito Popular. Um
primeiro resultado do Programa mostrou que apenas as linhas de crédito vinculadas ao fundo
próprio do programa conseguiram algum resultado no sentido de atingir os mais pobres dentre
os empreendedores, sendo que as linhas da Caixa Econômica e do Banco do Brasil não foram
capazes de atender a demanda, pelo fato dos requerentes não se incluírem nos critérios
(Pochmann, 2003, pp. 168, 169). Não apenas os agentes financeiros não foram capazes de se
adequar às exigências postas pelo perfil do público como também a metodologia precisou ser
revista e alterada profundamente. Também o programa de micro crédito precisou incorporar
mudanças nos valores de empréstimos e nos tipos de empreendimentos financiados, para ser
capaz de financiar empreendimentos criados no Programa Oportunidade Solidária.
Conforme afirma Campos (2004, pp. 209-213), inicialmente eram noventa agentes de crédito
em campo, localizados em dez unidades de atendimento e uma central 0800, para
agendamento de visitas dos agentes. Essa estratégia acabou gerando uma demanda dispersa na
cidade, com pouca produtividade dos agentes, que gastavam muito tempo e dinheiro com
deslocamento. A metodologia utilizada, além disso, era inadequada para atender a um público
extremamente vulnerável e sem condições de cumprir as garantias solicitadas. Houve um
esforço para alterar a estratégia de cobertura, com uma maior concentração de atendimento nas
regiões mais próximas das unidades operacionais. Do ponto de vista metodológico, alteraramse as exigências e as garantias, flexibilizando critérios ou estabelecendo outros (como o
passado positivo de crédito, por exemplo, para aqueles que apresentassem comprovantes de
pagamentos para compras a prazo), com resultados efetivos, além da introdução da
metodologia dos grupos solidários em dois bolsões de pobreza da cidade. As informações do
Programa permitem verificar que a introdução dos carnês (a utilização do passado de crédito)
como garantia de crédito provocou um aumento de mais de 3% no número de créditos
concedidos por agente no mês, enquanto que a metodologia dos grupos solidários fez subir a
média de créditos mensais por agentes de 9,5% no carnê para 20,38% com os grupos
solidários, em março de 2003. Percebe-se ainda que são créditos menores
e em maior
quantidade, com prazo de empréstimo menor, em torno de oito semanas e com pagamento
semanal.
280
A matéria prima que alimenta a metodologia dos grupos solidários e a política de microcrédito utilizada enfatiza a dimensão do capital social, fomentando a confiança, reciprocidade
e a cooperação entre pessoas de uma mesma localidade que decidem tomar de forma conjunta
um empréstimo para atividades de geração de renda. Após seis meses com resultados positivos
nessas duas localidades, foram abertas mais três unidades que utilizam a metodologia dos
grupos solidários, alterando expectativas e resistências quanto à viabilidade de experiências
baseadas na cooperação, confiança e reciprocidade em contextos marcados pelo
individualismo e pela fragilização dos laços sociais (Pochmann, 2003, p. 175).
As diretrizes da metodologia compreendem a emancipação sócio-econômica como importante
elemento da geração de renda, na recusa de formas de políticas paternalistas ou
assistencialistas e pela adequação dos critérios de elegibilidade às possibilidades e condições
do público beneficiário (Pochmann, 2003, p. 181). A metodologia dos grupos solidários foi
uma exigência posta pelas características do público atendido pelos programas redistributivos.
Optou-se pela implantação das unidades de grupos solidários em bolsões de pobreza, onde
existiam tanto famílias de baixa renda quanto maior mobilização e organização do tecido
social. A inclusão dessa metodologia possibilitou maior proximidade simbólica e real, nas
palavras de Campos (2004, p. 211), entre a iniciativa proposta e a população, fomentando a
participação e a confiança do público quanto ao programa.
Desses dois exemplos de alterações que foram feitas nos programas (Oportunidade Solidária e
São Paulo Confia) para ajustá-los às características e especificidades do público em situação
de pobreza crônica, pode-se apontar o tipo de desafios com os quais se deparam as estratégias
voltadas para a ampliação da autonomia e das capacidades em um público com tantas e tão
profundas privações.
A partir das considerações feitas a respeito da experiência de São Paulo, tem-se como
aprendizado que ações voltadas para a formação de cooperativas e atividades produtivas,
quando focalizadas nos grupos em pobreza crônica, encontram mais dificuldades e demandam
um tempo maior de preparação. Dessa forma, talvez essa seja uma estratégia mais adequada
no campo da prevenção e da mitigação do que na superação da pobreza. Voltaremos a esse
ponto adiante, sem a pretensão, contudo, de afirmar de forma taxativa essa relação, o que
demandaria, sem dúvida, muito mais argumentos e evidências. O objetivo aqui é colocar em
281
perspectiva os desafios para desenvolver ações de superação da pobreza que sejam adequadas
e ajustadas às características dos públicos.
•
Sobre o papel da capacitação para o empoderamento
Um outro ponto a ser destacado, diretamente relacionado ao anterior, refere-se à efetividade
das ações de capacitação para viabilizar um efetivo empoderamento de uma população em
condição de pobreza crônica. Os programas emancipatórios, tendo como público prioritário os
beneficiários dos programas redistributivos, buscavam criar condições para a ampliação das
capacidades de resposta dos indivíduos, na perspectiva de empoderamento e de fortalecimento
da autonomia, visando a emancipação em relação aos benefícios recebidos.
As ações efetivamente desenvolvidas para o empoderamento das pessoas concentravam-se,
sobretudo, em ações de capacitação, ainda que essas ações estivessem marcadas por conteúdos
mais amplos, que extrapolavam conteúdos mais específicos de uma formação profissional. A
adoção de módulos que consideram questões tais como auto-estima, cidadania, higiene e
cuidados com o corpo e com a saúde são importantes e mesmo centrais para públicos em
precárias condições de vida, mas pode ser pouco. Dada a magnitude das carências e
privações, essas informações podem significar e implicar mudanças substantivas nas
formas de vida e nas percepções dos indivíduos, mas sem dúvida são insuficientes para
viabilizar um efetivo empoderamento, capaz de emancipar as pessoas, permitindo a elas
trilhar um caminho diferente ao da entrada e permanência nas condições de pobreza
crônica. As tecnologias ou metodologias de ação necessárias e suficientes para possibilitar
essa saída não estão claras no programa de São Paulo. Não se depreende, a partir do material
examinado, uma proposta consistente e direcionada para atuar sobre as dimensões menos
tangíveis da pobreza. Embora os cursos de formação incluam conteúdos ligados a aspectos
menos tangíveis (auto-estima, identidade, cidadania), isso não parece suficiente para inferir a
existência de uma metodologia consistente e explícita de intervenção nesse campo. Que
mudanças objetivas são buscadas? Como, por quais mecanismos, os cursos contribuem para
isso?
•
Incorporação social sem trabalho
O terceiro ponto a ser considerado aqui problematiza os limites de uma estratégia centrada no
trabalho como eixo da incorporação social em uma sociedade sem empregos ou trabalho para
282
todos. A estratégia de São Paulo busca dar uma resposta local a um problema criado por uma
conjuntura internacional e nacional e essa condição é estruturalmente determinante dos limites
dos seus efeitos na alteração de mais longo prazo nas condições de pobreza no município.
Sabemos que essa discussão é complicada e não pretendemos nos estender muito aqui, mas
apenas pontuar um limite muito claro de toda a estratégia pretendida, que demanda um
investimento intenso, bancado pelo poder público, para viabilizar oportunidades de trabalho
para um público que já não tem lugar no mercado. Mantendo-se o mercado como está, as
chances de incorporação dos pobres crônicos por essa via estão fortemente comprometidas.
O relato da implantação do Programa Operação Trabalho permite ilustrar o ponto 259 . No início
do programa, foram inscritos 156 mil desempregados com mais de oito meses na condição de
sem trabalho 260 . Em uma segunda fase, foram selecionados 15 mil beneficiários e destes 11,8
mil foram os primeiros a serem atendidos, segundo os seguintes critérios por ordem de
prioridade: maior tempo na condição de desemprego, ser morador de rua em processo de
reinserção, com famílias de menor renda, com menor escolaridade e famílias com filhos
pequenos em estado de desnutrição, famílias monoparentais, com maior número de
dependentes, famílias com idosos, com filhos com medidas sócio-educativas, com piores
condições de moradia, portadores de necessidades especiais e egressos do sistema
penitenciário (Pochmann, 2002, pp. 130,131). Fica evidente, com base nos critérios de
seleção, a prioridade que o Programa Operação Trabalho confere aos grupos sociais em
situação de maior vulnerabilidade social 261 .
Mas dada a magnitude do problema e a limitada capacidade de atendimento, mesmo em
programas massivos como esses, tem-se como conseqüência a necessidade de desenvolver
formas de inserção alternativas ao trabalho, formas de atividades produtivas, integradoras, que
259
A fase de cadastro durou 23 dias, realizada em um total de 52 postos distribuídos nas cinco zonas geográficas
da cidade (em 31 postos da administração direta, organizados e cedidos pelas administrações regionais, 12 postos
da CET e nove ONGs e albergues públicos. Essas últimas eram destinadas ao cadastramento dos moradores de
rua). Os cadastradores eram das administrações regionais, Secretaria de Assistência Social, Secretaria da
Educação e Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, totalizando 650 pessoas envolvidas nessa
fase do programa. Essas informações são suficientes para dar uma luz sobre a magnitude e a complexidade das
tarefas envolvidas em uma seleção de público a ser atendido em programas sociais dessa magnitude.
260
De acordo com o perfil dos cadastrados, o tempo médio de desemprego é de 2 anos e 6 meses, idade média de
33 anos, 65% do sexo masculino, 3% egressos do sistema penitenciário, 1% analfabetos, 62% com ensino
fundamental completo ou incompleto, 33,2% com ensino médio completo ou incompleto e 1,4% com ensino
superior completo ou incompleto, renda média familiar per capita de R$ 63,81 (Pochmann, 2002, pp. 131,132).
261
Pesquisa realizada com os quase 12 mil beneficiários do Programa Operação Trabalho identificou que eles se
encontravam em média, há vinte e seis meses desempregados, sendo que nos últimos dez anos da vida dessas
pessoas, elas estiveram ocupadas apenas 2 anos e meio (Pochmann, 2003, p. 97).
283
não se pautem pela lógica do mercado formal ou do emprego assalariado. Não existem
empregos para todos, sendo necessário criar formas de trabalho protegido. Trata-se, sobretudo,
de criar novas possibilidades de atividades, que sejam diversificadas e capazes de atuarem
como eixos de incorporação social.
•
A complexidade do empoderamento
Como foi discutido nos capítulos anteriores, promover a autonomia requer duas condições:
primeiro, abertura de oportunidades e segundo mudanças de atitudes e comportamento dos
beneficiários. O empoderamento, como processo e como resultado contingente de relações
entre o plano da agência e o da estrutura de oportunidades, emerge como algo buscado pela
estratégia de São Paulo. Os resultados em termos de atendimento são expressivos, mas
parecem ser menos robustos se observados sob o prisma de expansão da autonomia ou das
capacidades. Para promover a autonomia efetiva, contudo, são requeridas intervenções
abrangentes e intensas, por longos períodos de tempo, para que essas sejam capazes de
produzir alterações duradouras, ainda que não seja simples definir que tempo seria adequado
para tanto. A experiência de São Paulo não contou com essa condição. O tempo de
intervenção não foi suficientemente longo nem para garantir a maturação e a consolidação da
estratégia e muito menos para provocar os resultados desejados. Entretanto, se considerarmos
as condições de partida, pode-se ter indícios do que significou a estratégia desenvolvida em
São Paulo.
“Uma fotografia, que congelasse o cenário onde vive a maioria dos participantes do
programa, revelaria uma ausência quase que absoluta de recursos materiais e financeiros
que possam ser dinamizados, mobilizados e potencializados pela comunidade local; pessoas
com sua cidadania esmagada por décadas de assistencialismo e subordinação e uma
comunidade excluída do acesso aos direitos sociais básicos e aos recursos cognitivos
produzidos pela sociedade. Também revelaria a fragmentação da ação pública nestes
locais e um processo de desintegração das relações sociais que poderíamos chamar de
virtuosas” (Pochmann, 2003, p. 143).
E continuando:
“...Quando os programas sociais ... começaram a ser implementados, habitantes e recém
chegados, desconfiados e atônitos, desencadearam um processo de estranhamento e
reconhecimento, isolamento e interação, conflito e integração, retraimento e participação,
anonimato e protagonismo. Aos poucos o cenário paralisado começou outra vez a
movimentar-se e desencadeou-se a interação básica necessária para alavancar os objetivos
destas ações” (Pochmann, 2003, p. 143).
284
A afirmação acima aponta para processos complexos envolvidos na interação das políticas
com o público beneficiário, questão que se torna mais premente em contextos ainda
fortemente marcados por relações clientelistas, paternalistas e baseadas em visões restritas
sobre a pobreza 262 . Nesses contextos, a promoção da autonomia encontra-se de antemão
debilitada. E qualquer esforço que seja feito no sentido de romper com essa barreira (como foi
o caso da estratégia da SDTS) tem o mérito de buscar alterantivas ainda que não seja
totalmente bem sucedido quanto ao êxito dessa tarefa.
Cabe terminar essa seção com uma afirmação, selecionada do conjunto extenso e instigante
das entrevistas discutidas por Campos (2004):
“Quando chega a eleição, dá cesta básica aqui e ali. Por que é que não dá emprego?
Porque todo mundo é capaz de trabalhar. Acostuma o ser humano até a ficar acomodado.
Porque ganha uma coisa aqui, ganha uma coisa ali, se acomoda, não quer mais saber de
trabalhar. Por que que não arruma então emprego pros desempregados ao invés de dar
uma cesta básica?” (expressão aqui utilizada para dizer do Programa Renda Mínima).
Outra entrevistada afirma no mesmo sentido:
“Se o pai dessas crianças, que pega o dinheiro do Renda Mínima, tivesse um emprego
também ou não faltasse comida dentro de casa, tivesse um salário digno, nem precisaria
desse Renda Mínima, entendeu? Se tivesse emprego. Porque o que o pai de família precisa
é de emprego pra trabalhar” (Campos, 2004, p. 373).
Ao buscar a inclusão de pessoas e grupos cronicamente pobres, por tratar-se de um público tão
privado de proteção básica, a dimensão da autonomia pode ser uma meta ainda mais distante
de ser alcançada, dado o esforço e a magnitude das ações e das transformações que devem ser
processadas para que se possa efetivamente, e de forma realista, ter a expectativa da inclusão
social. E essa inclusão, como mostram as entrevistas realizadas por Campos, está fortemente
ancorada, como representação social, na possibilidade de uma inserção no circuito da
produção e do consumo, a partir de relações de trabalho e emprego, e não de caridade ou
favor, ou de políticas assistenciais ou compensatórias.
262
Campos (2004) recupera as representações e visões do público beneficiário sobre o Programa e pelas
entrevistas realizadas percebe-se como a perspectiva dos direitos encontra-se distante do horizonte da maioria da
população atendida. O que se tem, a partir dos depoimentos, é uma persepctiva que associa os programas de
inclusão à boa vontade da Prefeita em ajudar os pobres, ainda fortemente marcada pela ótica do favor, da
caridade e da benesse. Ou, de forma alternativa, o programa é visto como tendo “fins eleitoreiros”, o que também
o distancia de uma perspectiva centrada nos direitos. A confiança, atributo básico para o processo de conversão
necessário produzido pelas políticas de proteção, fica fragilizada e não pode se constituir no terreno sólido sobre
o qual as ações de empoderamento possam frutificar.
285
Vale ressaltar, em relação ao tema do empoderamento e ampliação das capacidades, a
necessidade de se atuar em duas frentes, no âmbito dos fatores endógenos e exógenos aos
indivíduos. Por um lado tem-se que contextos de estagnação, de ausência de crescimento
econômico e redução de postos de trabalho tornam os programas de transferência de renda
compensatórios, sem condições de propiciarem de fato a autonomia ou a independência dos
indivíduos frente aos benefícios e transferências. Nesse sentido, sem mudanças estruturais no
mercado de trabalho (alterações na estrutura de oportunidades) que possibilitem a inserção de
milhares de jovens e adultos nesse universo, não é possível buscar, de forma consistente e
realista, emancipação ou autonomia. Por outro lado, sem a alteração das dimensões menos
tangíveis, as marés cheias, quando e se vierem, não serão capazes de tirar da pobreza um
contingente expressivo de pessoas, uma vez que a pobreza se caracteriza por privações de
ordem não apenas material, embora estejam ancoradas, fortemente, na privação material, de
renda e de ativos diversos. Novamente aqui nos deparamos com a necessidade de atuar em
duas frentes, na dimensão micro, dos indivíduos e famílias, com atenção às dimensões menos
tangíveis e também no nível macro, das estruturas e instituições, abrindo oportunidades para
que o empoderamento possa se efetivar como processo e como resultado.
b) Intersetorialidade e redes multiníveis: os desafios da integração
A estratégia de inclusão social de São Paulo é interessante de ser recuperada aqui não apenas
pelo conteúdo da estratégia, por sua dimensão substantiva que agrega benefícios monetários e
não-monetários, salientando a importância de fortalecimento das dimensões menos tangíveis
da pobreza, o nível individual (das identidades e capacidades) e o coletivo (potencialidades
comunitárias). Outro elemento central da estratégia é a articulação (entre os setores) e a
integração (no território), o que exige um esforço de coordenação nada desprezível.
Nas palavras de Campos, a perspectiva básica era que
“só reunindo os esforços de instituições situadas nos âmbitos das administrações
municipal, estadual e federal, direta e indireta, e, principalmente, no âmbito da sociedade
paulistana, é que a questão da pobreza poderia ser enfrentada em alguma medida por essa
secretaria” (Campos, 2004, p. 131).
A quantidade de parceiros mobilizados para a gestão dos programas é significativa do esforço
realizado para expandir a ação pública no município de São Paulo e permite enxergar a
experiência de São Paulo sob as lentes da perspectiva do governo relacional e multinível,
286
ancorado nos eixos da intersetorialidade, da descentralização intra-urbana e da participação. O
primeiro nível de articulação é relativo à integração entre os nove programas. O segundo nível
refere-se à articulação entre os diversos setores da política municipal e o terceiro refere-se ao
esforço de integração entre as diversas instâncias de governo, seja com o nível estadual e
federal ou com o nível local ou regional. Essas questões são importantes para identificar
alguns limites para a efetiva operacionalização de concepções como a intersetorialidade.
Várias iniciativas de constituição de espaços de articulação demonstram o alinhamento da
estratégia com a perspectiva da governança, com prioridade para constituição e fortalecimento
de redes horizontais e multiníveis e para processos de participação popular e de ampliação da
democracia. O Programa de São Paulo contou com uma complexa estrutura de gestão. Foi
montado, no plano central, um fórum intersecretarias e empresas municipais, para a
construção da gestão articulada dos programas da SDTS, que dependiam da participação das
demais secretarias para sua efetivação. Além da articulação no âmbito do governo e suas áreas
setoriais, os programas demandavam o envolvimento significativo dos serviços e técnicos na
ponta, que atuavam nas estruturas descentralizadas do poder público e da sociedade civil.
Desde o início da estratégia há evidências do esforço empreendido para envolver os diversos
setores e diversas instâncias governamentais para a produção dos programas (Pochmann,
2002, p. 79). Houve um esforço imediato e decidido, por parte do governo municipal, em
integrar as ações dos distintos níveis de governo (federal, estadual e municipal, por um lado e
municipal e local, por outro) e dos diversos setores da máquina pública, envolvendo ainda uma
ampla rede de instituições não governamentais, centros de pesquisa, organizações
internacionais, na execução dos programas da estratégia de inclusão social. Logo no primeiro
mês de governo, quando existiam apenas duas pessoas responsáveis pela implementação dos
Programas Sociais Prioritários, foram visitadas todas as secretarias e empresas municipais,
com os seguintes objetivos:
“enfatizar os pontos de contato com os programas e políticas desenvolvidas por elas –
ênfase na idéia de somar e nos efeitos sinérgicos resultantes -, fornecer elementos que
permitissem contornar eventuais resistências, fundadas nas rotinas ou na tradição das
burocracias envolvidas, e buscar parceiros/aliados para a concepção das políticas públicas
presente nos programas sociais prioritários” (Pochmann, 2002, p. 79).
Para dar materialidade à perspectiva relacional que sustenta o Programa, foram criadas
instâncias coletivas, orientadas para gestão compartilhada, conforme demonstrado por
287
Pochmann (Pochmann, 2003, pp. 41-46): Comissão intersecretarial para implementação
programas redistributivos 263 ; Comissão de Desenvolvimento Solidário 264 ; Grupos de Trabalho
das instituições parceiras de incubadoras e apoiadoras dos empreendimentos populares e
solidários 265 ; Grupo intersecretarial na área jurídica 266 ; Comissão das políticas de
microcréditos 267 ;
desenvolvimento
Fóruns
269
setoriais
de
desenvolvimento 268 ;
Fóruns
; Fórum metropolitano de desenvolvimento regional
263
270
distritais
de
; Grupo de trabalho
Essa Comissão envolve diversas secretarias (educação, saúde, habitação, assistência social, esporte, meio
ambiente, cultura, e diversos órgãos do executivo municipal, como Companhia de Engenharia de Tráfego/CET,
Companhia de Processamento de Dados do Município/PRODAM, Anhembi, SPTrans, subprefeituras, dentre
outros). Essa comissão tem a função de planejar, junto com a SDTS, todas as etapas de atendimento dos
beneficiários dos programas redistributivos. A descrição das etapas e processo de cadastramento das famílias
permite entender o esforço realizado para conseguir, em poucos dias e sob um intenso trabalho de coordenação,
cadastrar a população para expansão dos programas nos 37 distritos, no segundo ano de implementação da
estratégia.
264
Essa comissão é composta por representantes trabalhadores (cinco entidades), representantes empresários
(sete entidades), cooperativas e empresas auto-gestão (sete); universidades/instituições de pesquisa (cinco). Esse
órgão, de caráter consultivo, busca discutir questões relativas à viabilidade e sustentabilidade de iniciativas
ligadas ao empreendedorismo popular e economia solidária
265
Sob a coordenação da SDTS, os grupos buscam o estabelecimento de ações conjuntas de implementação,
monitoramento, avaliação das ações realizadas, via constituição de comissões temáticas (relações humanas e
saúde do trabalho; organização e gestão de empreendimentos populares e associativos; produto, mercado e
comercialização); seminários; reuniões com instituições parceiras, coletivas e individuais. Esse tipo de trabalho
envolve especificidades, requerendo uma metodologia de trabalho com grupos, no âmbito da educação popular,
que são fundamentais para articular cooperativas e empreendimentos calcados na perspectiva da auto-gestão.
Dentre os parceiros, tem-se a Ação da Cidadania; Incubadora Tecnológica de Cooperativas populares da USP;
Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de autogestão e participação acionária (Anteag); União e
Solidariedade das cooperativas do Estado de São Paulo (Unisol); Coletivo de Empresários e empreendedores
afro-brasileiros do Estado de São Paulo (CEABRA); Centro de Estudos e Pesquisas (CEEP); Instituto
Cooperando; Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da FGV; Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares da PUC/SP; Instituto Lidas; Integra Cooperativa; Núcleo de Ação e Pesquisa em
Economia Solidária (NAPES); Instituto de Tecnologia Social (ITS); Rede Unitrabalho, dentre outras instituições
que contribuíram com o Programa, transmitindo know how e compartilhando as ações de formação e capacitação
(Pochmann, 2002, p. 148; 2003, p. 144).
266
Grupo formado por procuradores e assessores jurídicos de diversas secretarias para estudar formas de
participação dos empreendimentos populares nos processos de compras públicas da Prefeitura.
267
Formada por representantes de diversas entidades, responsável pela definição de linhas de ação e pela
implementação da política: Prefeitura Municipal, da Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania
(Cives), Banco do Estado de São Paulo (Banespa), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Confederação Geral
dos Trabalhadores (CGT), Confederação geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), Central de Apoio ao
Trabalho (CAT), Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável (SDS), Secretaria do Emprego e
Relações de Trabalho do Estado de São Paulo (SERT), Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, (CEF),
DIEESE, Sindicado dos Bancários de São Paulo, Sebrae-SP, além de dois importantes intelectuais, Paul Singer e
Luiz Gonzaga Belluzzo (Pochmann, 2002, p. 174).
268
No total estavam funcionando dez fóruns setoriais em 2004.
269
Com três fóruns em funcionamento em 2003, contando com a participação de ONGs, associações e entidades
diversas;
270
Agregando representantes dos 39 municípios da região metropolitana de São Paulo.
288
intersecretarial de desenvolvimento econômico do leste e sul da metrópole 271 ; Grupo
intersecretarial de políticas sociais 272 .
Além dessas comissões e instâncias de consulta e deliberação, tem-se o volume expressivo de
parcerias estabelecidas: universidades e centros de pesquisa estiveram envolvidos e próximos
da gestão dos programas, tanto na formulação quanto no desenvolvimento, no monitoramento
e avaliação das ações 273 . No Programa Oportunidade Solidária são quinze entidades parceiras,
entre instituições públicas, ONGs, entidades de classe (Pochmann, 2004, pp. 41-45; Campos,
2004, p. 192).
Em outros programas, a magnitude da articulação pretendida fica evidente. As ações
complementares para os bolsistas, principalmente do Bolsa Trabalho e no Programa
Capacitação em atividades de utilidade coletiva, permitem verificar a necessária integração
dos setores e nesse sentido cabe mencionar apenas algumas: O Bolsa Trabalho vincula o
repasse de bolsas a ações de formação e à realização de atividades junto a diversas secretarias
e empresas municipais 274 , com ênfase no desenvolvimento de ações comunitárias e sociais. O
Programa Operação Trabalho estabeleceu parcerias com todos os órgãos da Prefeitura, que
271
Formado por representantes de Secretarias e empresas públicas, sob a coordenação da SDTS, para definir a
estratégia de desenvolvimento econômicos das regiões leste e sul da cidade;
272
Formado pelas secretarias das áreas sociais, como saúde, educação, assistência, serviços urbanos,
abastecimento, cultura, que, sob a coordenação da SDTS, tinha a tarefa de definir as ações de cada secretaria em
torno de quatro grandes questões sociais (ações de acolhimento, de combate à fome e pobreza, educação e
combate ao analfabetismo, segurança urbana).
273
Além dos estudos de avaliação e de construção de indicadores, têm-se outras iniciativas que espelham a busca
da proximidade maior entre poder público e instituições de pesquisa e universidades. O projeto Bolsa
Empreendedor, por exemplo, com financiamento de 200 bolsas por um período de seis meses para estudantes
universitários desenvolverem pesquisas, instrumentos e produtos relacionados, sobretudo, com os
empreendimentos populares, demonstra essa preocupação. Nas três edições das bolsas, distribuídas através de
concursos públicos, estiveram envolvidos cerca de 580 estudantes universitários, com aprovação de 369 projetos,
mobilizando alunos de 20 universidades da cidade de São Paulo. Os projetos aprovados, em sua maioria, eram
das áreas de humanas e centravam-se na avaliação da implementação dos programas emancipatórios, embora
muitas vezes tenha ficado evidente a utilização de abordagens e de problemas já superados pelas equipes da
SDTS. Entretanto, foi afirmada a contribuição de muitos estudos para readequação de procedimentos e metas,
apontando problemas e sugerindo soluções. Projetos no campo da psicologia também foram significativos no
conjunto dos projetos aprovados, buscando verificar a visão dos beneficiários sobre os programas e as
representações sobre os programas e as relações estabelecidas com o poder público. Estudos e projetos no campo
da gestão da informação foram relevantes para os processos e tecnologias de monitoramento e avaliação
(Pochmann, 2004, pp. 110-112).
274
Alguns exemplos: jovens qualificados para prevenção e tratamento de DST/AIDS atuando como
multiplicadores junto a outros jovens da comunidade; jovens capacitados para desenvolver ações para idosos no
campo do transporte urbano; jovens formados em fotografia que atuam como multiplicadores de uma técnica de
fotografia junto a professores do ensino fundamental (Pochmann, 2004, pp. 82,83).
289
identificaram a possibilidade de abertura de 13.750 vagas de trabalho 275 . As parcerias
envolviam a elaboração de um plano de capacitação teórica e prática, com cronograma de
execução e com termo de compromisso assinado entre os órgãos envolvidos.
No Programa Capacitação Ocupacional e Aprendizagem em Atividades de Utilidade Coletiva,
por exemplo, estiveram envolvidas onze secretarias municipais e cinco empresas públicas
municipais, além de um grande número de entidades não-governamentais, contando com mais
de 50 instituições parceiras 276 , configurando uma rede de abrangência nacional com ação no
plano municipal e local, voltada para o tema da capacitação e da formação (Campos, 2004, p.
192).
Embora se afirme a articulação entre os diversos setores e programas, não fica claro, contudo,
em que ela consiste, ou até que ponto pode-se dizer que o fato de as diversas secretarias
participarem, oferecendo cursos ou vagas, pode significar uma ação integrada e articulada.
Para isso seria necessário verificar se os custos são cobertos pelas secretarias parceiras, a
magnitude dessa participação (quantos cursos, quantos capacitados), se existe uma
mobilização distinta dos agentes para se adaptarem aos critérios do programa ou de que forma
as ações desenvolvidas significam alteração nas rotinas, procedimentos e metodologias prévias
de intervenção em cada setor ou mesmo a sustentabilidade da estratégia. Esse esforço, que
envolveria uma pesquisa de avaliação, não será feito aqui.
Entretanto, basta olhar para o volume e a complexidade envolvida em um processo de
cadastramento de 156 mil pessoas, como o Programa Operação Trabalho, para ter uma
dimensão do esforço de articulação necessário para desenvolver as ações dos programas 277 .
Também o Programa Começar de Novo conta com a participação direta dos órgãos da
administração municipal para a execução das atividades de formação. Vale ainda a pena
considerar o esforço de mobilização e articulação entre órgãos internos e externos à Prefeitura
275
Secretarias de Educação, Saúde, Esportes, Habitação, Verde e Meio Ambiente, Cultura, Finanças, Assistência
social, Gestão Pública, 28 administrações regionais, Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), SPTrans,
Companhia Habitação (COHAB), Anhembi Turismo, Instituto da Previdência Municipal (IPREM), PRODAM
(Processamento de Dados do município) e serviços funerários (Pochmann, 2003, p. 95).
276
Para detalhamento das instituições parceiras, verificar Pochmann, (2003, pp. 126-135). Por ora vale ressaltar a
grande heterogeneidade entre elas, configurando um conjunto que abrange associações comunitárias, centros de
apoio, centros de educação e de defesa de direitos, instituições religiosas, organizações não governamentais,
sociedades e grupos de ação, centros de estudos e pesquisas, união das escolas de samba, empresas privadas,
dentre outros tipos de entidades.
277
Para se ter uma idéia, uma ação de cadastramento durou 22 dias, envolveu 650 cadastradores em 42 postos na
cidade (Pochmann, 2003, p. 95)
290
para operar mais de 1.200 turmas simultâneas no Programa de Capacitação Ocupacional,
levando em conta o que isso envolve para ser operacionalizado 278 .
Pode-se dizer, entretanto, que tais ações só podem de fato ser consideradas como exemplos de
uma intersetorialidade de alta densidade caso envolvam uma articulação mais intensa e
permanente entre os setores; caso contrário, podem sinalizar um esforço de cooperação
momentâneo, que embora possa ter seu mérito, não corresponde a práticas intersetoriais
consistentes e fortes. Em que medida a ligação desenvolvida entre as diversas secretarias
constitui uma integração e qual a distinção entre integração, articulação, intersetorialidade e
transversalidade são questões pertinentes aqui. É bastante difícil estabelecer critérios
incontroversos para definir o que caracteriza uma ação integrada, mas certamente integração é
algo distinto da existência de algum tipo de ligação, como é o caso que ocorre quando se
encaminham indivíduos e grupos para outros serviços ou quando se faz um mutirão para o
cadastramento ou ainda quando se utilizam os equipamentos públicos de outros setores para
isso, por exemplo.
Conforme apontado pelo coordenador dos Programas sociais prioritários, o aspecto
verdadeiramente inovador dos programas Renda Mínima, Bolsa Trabalho e Começar de Novo
é o fato de serem “programas intersecretarias”: “Têm, portanto, uma concepção
programática e gerencial articulada entre as diversas secretarias de governo e empresas
municipais” (Pochmann, 2002, p. 100).
De acordo com Campos, pode-se apontar para alguns resultados mais tangíveis quanto ao
exercício da intersetorialidade na estratégia de São Paulo:
“Essa forma compartilhada de execução revelou ser um grande salto para assegurar a
qualidade e a eficiência dos cursos ministrados. Dessa forma, onde uma secretaria ou
empresa municipal executora do programa realizava uma ação e um serviço à população
paulistana, os bolsistas passaram a desempenhar ações complementares, proporcionando
uma relação de confiança com o poder público, como também um melhor conhecimento por
parte desse sobre seus munícipes”(Cazzuni, apud Campos, 2004, p.172).
Existe o reconhecimento de que o trabalho conjunto de diversas secretarias viabilizou a
otimização dos custos, garantindo ações sem a necessidade de novos recursos financeiros; a
perspectiva da descentralização favoreceu o fortalecimento das subprefeituras (chamadas na
278
Inclusive na busca por espaços públicos e privados para serem usados na capacitação, priorizando a
proximidade com o público beneficiário, em lugares a um ônibus de distância, no máximo, do local de moradia.
291
administração paulista de governos locais) na implementação dos programas e na busca das
parcerias locais.
Além da articulação entre os diversos setores governamentais, tem-se o esforço de articulação
com agentes da sociedade civil e mercado. Uma afirmação elucida o ponto:
“O Programa Bolsa Trabalho deixou de ser uma iniciativa tão-somente do setor público
para integrar os vários agentes da sociedade civil. Não fosse assim – como inicialmente o
programa dispunha apenas dos recursos necessários para o pagamento das bolsas, das
despesas de deslocamento do beneficiário e do seguro de vida – não se conseguiria
financiar a realização das atividades de formação” (Cazzuni, apud Campos, 2004, p.172).
Entretanto, sem desconsiderar o enorme esforço realizado para compatibilizar a atuação
conjunta de tantas e tão distintas instituições, questões não equacionadas de articulação são
evidenciadas no próprio material produzido pela SDTS (Pochmann, 2002, 2003, 2004),
embora não apareça a discussão mais aprofundada sobre as causas das dificuldades ou uma
análise de suas dimensões. Com relação à integração das ações, foi apontada a necessidade de
maior articulação e integração específica entre os programas desenvolvidos na SDTS e as
secretarias municipais de educação, saúde e assistência, para encaminhamentos referentes a
analfabetismo, doenças crônicas e benefícios da LOAS (Pochmann, 2002, p. 121). Foi
identificado, dentre os beneficiados do Programa Começar de Novo, um alto percentual de
casos de analfabetismo e analfabetismo funcional, alcoolismo, hipertensão e doenças crônicas,
sendo que o encaminhamento e o adequado atendimento dessas demandas para as secretarias
competentes (educação e saúde) ainda não havia sido equacionado.
•
As redes multiníveis
Além do esforço de construção de redes horizontais, a perspectiva das redes multiníveis, nos
termos examinados na literatura, é parte central da estratégia desenvolvida. Se as dificuldades
aparecem no próprio âmbito municipal, as relações entre diversos níveis de governo agregam
outro tipo de dificuldades.
A iniciativa de São Paulo buscou articular e mais do que isso, unificar, os programas de
transferência de renda municipal, estadual e federal. O esforço feito na implementação da
estratégia, principalmente nos programas redistributivos, foi o de compatibilizar os diferentes
valores dos benefícios dos programas municipal, estadual e federal de transferência de renda e
evitar discriminações entre a população pobre em função da fonte dos benefícios recebidos
(Pochmann, 2002, pp. 77,78). Embora tenha havido uma ação imediata e decidida por parte da
292
Prefeitura de São Paulo no estabelecimento de relações com o governo federal, principalmente
para a inclusão do município de SP no programa nacional de renda mínima vinculada à
educação (Bolsa Escola), esse processo ocorreu sob intenso desgaste 279 .
Não foi um esforço desprezível e envolveu muita negociação para que finalmente fosse
acordado um modus operandi, de forma a viabilizar a unificação dos benefícios, com o poder
municipal assumindo a diferença dos valores repassados pelos programas federal e estadual de
transferência de renda. Os problemas e gargalos de financiamento, das relações
intergovernamentais e do processo de descentralização ganham toda a evidência quando se
busca unificar benefícios, tendo como objetivo atender da melhor forma a clientela alvo dos
programas. Programas sobrepostos e com valores diferenciados para um mesmo público
geram disputas, duplicação de esforços e desperdício de recursos, irracionalidade na provisão
de serviços públicos 280 .
Outro exemplo das dificuldades dessa articulação multinível torna-se evidente no caso do
Programa Bolsa Trabalho em relação às escolas de ensino médio, sob a responsabilidade do
nível estadual de governo. As articulações entre o Programa Bolsa Trabalho e a Secretaria
Estadual de Educação foram nitidamente precárias, sobretudo em razão do não envolvimento
do órgão estadual, ainda que essa aproximação tenha sido buscada pela SDTS. Grande parte
279
No programa federal, as famílias, para serem incluídas, tinham que ter crianças na faixa etária de 6 a 15 anos e
renda familiar per capita igual ou inferior a meio salário mínimo. O valor do beneficio é de R$15,00 por criança,
não podendo ultrapassar o teto de R$ 45,00. Nas negociações entre o governo municipal e federal, a Prefeitura
teria proposto um valor único para as famílias, de forma a não gerar competição entre os programas ou
desigualdade entre os pobres, uma vez que o repasse médio de acordo com o programa federal seria em torno de
R$27,00 e o repasse do programa municipal era em torno de R$117,00. E também teria proposto um cartão único,
o que teria sido recusado pela equipe federal. Embora não tivesse sido aceita a proposta de unificação dos dois
programas, a prefeitura de SP aderiu ao Programa Bolsa Escola, com evidente prejuízo para todos, uma vez que
as famílias do renda mínima passaram a ter dois cartões. O programa federal teve início em janeiro de 2002 em
SP. A prefeitura se negou, contudo, a favorecer a desigualdade entre os pobres, mantendo valores de repasse tão
díspares. E estabeleceu um acordo com o MEC, sendo que para cada R$ 1,00 do programa federal a prefeitura
coloca R$3,34, unificando o valor do repasse às famílias (Pochman, 2002, pp. 95-97). A posição da Prefeitura de
SP permitiu de fato evitar a sobreposição das ações, fragmentação do público e desigualdade no repasse dos
benefícios. Esse esforço ganha ainda maior destaque quando se trata, tanto no nível estadual quanto no federal,
de governos de base partidária distinta da existente no município de São Paulo.
280
O esforço do executivo municipal para viabilizar o objetivo da unificação não é, contudo, pouco ou barato: o
valor médio do beneficio do Bolsa Escola (ainda vigente em 2003, depois transformado no Bolsa Família a partir
de 2004) no município de SP era de cerca de R$ 22,00 (mínimo de R$ 15,00 e máximo de R$ 45,00). O benefício
do governo estadual era de R$ 60,00. No Renda Mínima, o valor era de R$ 116,00. Para unificar o benefício, para
cada um real colocado pelo governo federal a prefeitura entra com quase cinco, o que é bastante desproporcional,
principalmente ao se considerar que todo o processo de cadastramento e operação do programa fica a cargo do
município, como aponta Pochmann (2003, p. 72). Segundo cálculos apresentados, o município assume mais de
80% dos recursos para pagamento dos benefícios de transferência de renda e ainda todo o custo operacional para
cadastramento e gerenciamento do programa, no caso, Renda Mínima.
293
do público atendido pelo Bolsa Trabalho eram jovens que estavam inseridos, em sua maioria,
no sistema estadual de ensino, o que demandaria, como parte importante do projeto, uma
atuação conjunta com a escola para potencializar ou mesmo viabilizar os resultados
pretendidos com a intervenção 281 .
A construção da gestão intersetorial e do governo multinível, em suas formulações mais
densas, exigem a alteração de estruturas institucionais e organizacionais ou a adoção de
estratégias de gestão integradas ou mecanismos integradores, nas palavras de Raczynski
(2005), tais como gestão em rede, foco no território e na família, estruturas matriciais de
gestão. De toda forma, os elementos geralmente presentes na definição da intersetorialidade
envolvem o compartilhamento de recursos, responsabilidades e ações e, de forma mais radical,
exigem que os objetivos, estratégias, atividades e recursos de um setor sejam considerados a
partir dos objetivos, estratégias e recursos de outros setores, como aponta Cunil Grau (2005).
Alterações desse tipo não se processam de uma hora para outra e nem são fáceis de serem
realizadas, dadas as resistências de se incorporar lógicas específicas às políticas existentes e a
heterogeneidade de interesses e visões que as sustentam. O desenvolvimento de ações sociais
depende de uma multiplicidade de atores (organizações governamentais, ONGs com perfis
diversos, conselhos, associações, entidades filantrópicas e religiosas etc.) que apresentam
visões diferentes sobre os problemas e sobre os meios para enfrentá-los. Isso requer processos
de negociação e de decisão mais custosos e demorados, o que torna mais complexa a
elaboração e implementação das ações. A fragmentação das burocracias públicas e as disputas
que alimentam suas engrenagens também são características ou condicionantes das políticas
sociais e inserem desafios importantes de serem superados, principalmente para efetivar a
diretriz da intersetorialidade.
A iniciativa de São Paulo buscava alterar as condições de vida do público beneficiado, mas
também pretendia alterar os arcabouços institucionais, viabilizando procedimentos articulados
de gestão. A aposta da SDTS foi a de articular e desenvolver ações de forma intersetorial,
281
O executivo municipal estabeleceu, logo no segundo mês de governo, proposta de união entre o renda mínima
e o programa Complementando a Renda (atualmente Renda Cidadã), desenvolvido pelo governo estadual, através
da Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social do Estado. O público alvo do programa estadual
é o mesmo do programa municipal e também nesse caso, a prefeitura complementa a diferença, uma vez que o
valor do repasse do programa estadual é de R$ 60,00. Em abril de 2002 é assinado o acordo com o governo
estadual. As relações com a secretaria estadual de educação não fluíram de forma a viabilizar uma efetiva
cooperação entre as duas instâncias, não conseguindo garantir a cessão de espaços das escolas estaduais para
cadastramento ou o acompanhamento da freqüência das crianças e adolescentes matriculados na rede estadual.
294
sendo que a mudança do comando do executivo municipal afetou fortemente a SDTS e a
estratégia de intervenção. A estratégia não encontrou respaldo político na nova administração,
algo infelizmente bastante comum nas políticas públicas no Brasil. Mudanças constantes,
rupturas, descontinuidades, são fatores que podem significar perdas significativas de recursos
(financeiros, tempo, motivação das pessoas) e, o que é mais importante, comprometer o
estabelecimento dos vínculos estáveis e pautados na confiança entre agentes públicos e
beneficiários, minando as condições necessárias para uma estratégia exitosa de enfrentamento
da pobreza.
A estratégia de São Paulo buscou, por meio da articulação e da integração, recolocar a pobreza
ao alcance do entendimento e da ação de diversas secretarias, empresas municipais,
organizações diversas, governamentais e não governamentais. Mas as condições para o
enraizamento dessa perspectiva não estiveram presentes na gestão atual, que não garantiu o
respaldo político para sua continuidade. Sem esse apoio decisivo no nível político, o desenho
da estratégia não pôde existir sob sua forma original.
c) Território e desenvolvimento local
Na estratégia de intervenção de São Paulo, um conjunto de programas está orientado,
principalmente, para a revitalização do tecido econômico e para o desenvolvimento de
determinadas áreas territoriais da cidade. O Programa de Reestruturação Produtiva e Relações
de Trabalho/São Paulo Inclui, componente do terceiro bloco de programas voltados para o
desenvolvimento local, foi implantado em “distritos populosos, localizados fora do centro
expandido e com forte potencial gerador de ocupação e renda” (Pochmann, 2002, p. 203) e
tem como objetivo dinamizar as economias e o desenvolvimento local. O centro da estratégia
consiste em identificar nas regiões cadeias produtivas com maior capacidade de gerar
empregos; com maior capacidade de inovação; atividades pouco desenvolvidas que requerem
apoio do poder público para se expandirem (reciclagem, saneamento, tratamento de resíduos,
biotecnologia, etc.); atividades de base tecnológicas e solidárias e atividades que apresentem
melhores condições para exportação (Pochmann, 2002, p. 200). Foram definidos alguns
complexos de atividades nos setores na indústria, comércio e serviços , que receberam atenção
para diagnóstico, acompanhamento e proposição de ações em termos de políticas públicas
(Pochmann, 2002, p. 201). O eixo da estratégia do Programa reside em ações diversas,
295
voltadas para fomentar a dinâmica associativa e produtiva local, conforme pode ser visto na
citação abaixo:
“Trata-se de articular, com os atores sociais das comunidades, fóruns setoriais de
desenvolvimento, organismos fundamentais de discussão, geração de idéias, eleição de
prioridades e calibragem da parceria entre os empreendedores locais e/ou a Secretaria.
Com isso torna-se possível criar várias formas de ação coletiva capazes de estimular a
economia da região. Por exemplo: a) buscar sinergias entre as atividades locais; b) criar
grupos de trabalho com objetivos definidos; c) viabilizar cooperativas de compra e venda
para os bens produzidos na região; d) buscar acordos de cooperação comercial e até
mesmo técnica; e) influenciar, de acordo com estudos e critérios de desenvolvimento e bemestar coletivo, a direção dos investimentos e das opções econômicas adotadas pelos
empreendedores locais. Em outras palavras, ajudar, por meio de planejamento, a
sustentabilidade das atividades, das ocupações e da renda gerada na comunidade”
(Pochmann, 2002, p. 201).
Como se pode perceber, a estratégia do Programa apresenta um claro recorte econômico,
tendo sido formulada com o objetivo de fomentar a economia regional e local, a partir do
fortalecimento das ações de planejamento e coordenação, envolvendo os atores sociais da
comunidade (“governo municipal e comunidade”) no desenvolvimento de ações para o
desenvolvimento local. A perspectiva de projetos tecnológicos e de inovação constitui uma
dimensão central na estratégia e foi formalizada a partir de uma linha de ação (Banco de
Projetos Tecnológicos e Inovação) para conceder premiação e aporte para o desenvolvimento
de projetos (formulados por instituições de ensino e centros de pesquisa) considerados
inovadores e adequados para responder aos problemas enfrentados especialmente nas “áreas
com forte exclusão social”. Esses projetos podem ser viabilizados com o apoio do Programa
Oportunidade Solidária e com o financiamento do São Paulo Confia, em uma linha especial de
financiamento (Pochmann, 2002, p. 204).
O outro programa no âmbito dos Programas de Desenvolvimento Local é o São Paulo Inclui.
O objetivo do Programa é fornecer uma intermediação para a ocupação de postos de trabalho,
a partir de uma busca ativa que busca equacionar oferta e demanda de trabalho, com
prioridade para articular o público dos programas emancipatórios e redistributivos ao mercado
de emprego e trabalho - seja mercado de trabalho assalariado, central de serviços autônomos
ou intermediação de negócios populares. O Programa Oportunidade Solidária e o Capacitação
Ocupacional forneciam o comprovante de habilidades e, para os que não passaram pelos
programas, estes deveriam comprovar suas habilidades acumuladas na trajetória ocupacional
ou poderiam contar com o treinamento e a qualificação adequadas ao mercado de trabalho na
região (Pochmann, 2002, p. 213). A prioridade do Programa é para os beneficiários dos
296
programas sociais prioritários (redistributivos e emancipatórios), sendo que esses são incluídos
no São Paulo Inclui próximo de sua região de origem quando se aproxima o término do prazo
para o recebimento dos benefícios monetários. O Programa encontra-se espalhado
territorialmente em pontos estratégicos da cidade, nos “mesmos lugares identificados pelos
programas redistributivos, emancipatórios e de apoio ao desenvolvimento local” (Pochmann,
2002, p. 212).
Com esses dois programas, buscava-se dinamizar o tecido econômico e o mercado de trabalho
local, visando o fortalecimento dos territórios. Percebe-se, na estratégia de São Paulo, uma
preocupação com políticas territoriais e não apenas políticas territorializadas, recuperando
uma distinção feita no capitulo anterior. Quer dizer, o território é em si mesmo objeto de
intervenção, quando se busca, nos Programas de Desenvolvimento Local, a articulação dos
agentes locais para a produção de maior dinamismo na economia e no mercado de trabalho
locais. A implantação, em cada região, do Centro de Desenvolvimento Local e Solidário,
sinaliza a preocupação com a criação de espaços públicos que servissem como ponto de
articulação
dos
agentes
econômicos
locais
para
impulsionar
os
programas
de
desenvolvimento, mas também espaços nos quais a população da cidade e, principalmente, o
público dos programas redistributivos, pudessem obter informações e soluções para problemas
específicos (como recebimento de cartão magnético, por exemplo).
Nas palavras de Campos,
“os Centros de Desenvolvimento Local e Solidário, situados nos distritos acima referidos,
se constituiriam como espaços de maior enraizamento dos programas sociais, pois, dada a
sua localização, a família ou a pessoa contaria aí com mais facilidades para conhecer, se
inserir e transitar pelas distintas gerações de programas que pretenderiam afastá-la ou
distanciá-la das experiências da pobreza. Espaços que também estimulariam uma
transformação das condições do mercado de trabalho em cada um desses distritos
caracterizados pela atividade econômica parca e insuficiente, dado que as empresas e as
demais instituições que atuam nessas localidades teriam aí referências institucionais mais
próximas para a discussão e a negociação de medidas de aprimoramento dessa mesma
atividade” (Campos, 2004, p. 147).
Cabe assinalar quanto ao lugar da categoria do território na estratégia do Programa que a
perspectiva adotada apresenta um caráter nitidamente econômico, o que a distancia da
abordagem da infra-estrutura social, conforme apresentada no capítulo anterior. Pode-se
sugerir que a estratégia de São Paulo focaliza uma parte da infra-estrutura formal, mas não
compreende grande parte do que está contindo nessa concepção, principalmente em termos de
297
equipamentos e espaços públicos, infra-estrutura urbana, bens e se serviços existentes no
território.
O que se tem é o esforço dos programas de desenvolvimento local para viabilizar a formação
de redes, capazes de alavancar processos de desenvolvimento econômico e de expansão das
potencialidades locais, e uma perspectiva de fortalecimento de práticas associativas e
deliberativas, a partir da estratégia de criação de fóruns setoriais, regionais, metropolitanos,
com a ampliação das conexões e dos contatos entre os diversos agentes sociais no território. O
desenho da estratégia prevê, em sua modelagem, uma gestão ativa dos territórios, buscando
alterar as condições (ainda que apenas econômicas) aí existentes. Quer dizer, busca-se alterar
as condições dos territórios e não apenas as condições das pessoas que moram ali.
6.3 Belo Horizonte e São Paulo em perspectiva
Nesse capítulo, buscou-se explorar duas estratégias de intervenção voltadas para a inclusão
social. Sem a pretensão de avaliar resultados ou processos de implementação, a perspectiva
orientadora foi examinar, na contra luz, como se materializam no mundo empírico algumas
categorias identificadas no quadro conceitual. A questão dos constrangimentos (financeiros,
institucionais,
políticos,
culturais,
institucionais)
que
limitam
ou
condicionam
a
implementação de políticas públicas ou que podem impedir a efetividade de estratégias
inspiradas pelas concepções de empoderamento, intersetorialidade ou territorialidade nas
políticas sociais foi abordada apenas de forma secundária. Alguns dos constrangimentos foram
identificados a partir da experiência, embora não tenham sido analisados em profundidade,
pois o foco da análise foi identificar o marco conceitual, o desenho das políticas ou estratégias
de intervenção.
As duas experiências examinadas consideram o território como elemento da estratégia,
perseguem a intersetorialidade na gestão e priorizam a participação como diretriz política, mas
também se diferem quanto às ênfases dadas a diferentes aspectos ou dimensões da pobreza.
Enquanto a experiência de São Paulo concentrou-se na questão do trabalho, esse tema
permanece invisível na estratégia de Belo Horizonte. Embora partam de uma concepção
ampliada da pobreza, entendida como fenômeno multidimensional, multifacetado e
multideterminado, a identificação dos públicos é feita de forma unidimensional: a partir do
recorte de renda, em São Paulo e a partir do recorte territorial, em Belo Horizonte.
298
Tanto em São Paulo quanto em Belo Horizonte o território é considerado como elemento da
estratégia de intervenção. Em Belo Horizonte foram utilizados vários índices (IVS,IQVU,
IRS) combinados em um índice síntese, que identificou nove áreas com piores condições de
vida e maior vulnerabilidade para serem as áreas piloto do BH Cidadania. Na fase de
expansão, outras 15 áreas estão sendo incorporadas (PBH,2004). Portanto, no desenho da
estratégia do BH Cidadania, o critério de focalização permitiu mapear regiões (dentro das
divisões regionais) onde as condições de pobreza e vulnerabilidade eram piores. Em São Paulo
a opção foi atender a todos os distritos, começando, entretanto, pelos distritos com maior taxa
de desemprego, maior índice de violência e menor renda familiar (Campos, 2004, Pochmann,
2002). Em um caso, o território é claramente o critério básico para focalização das ações e, no
outro, surge como forma de hierarquizar a intervenção, que apresenta, contudo, um viés
universalista, ausente na estratégia do BH Cidadania.
Embora o território seja uma categoria presente nas duas estratégias, não se tem, de forma
evidente, propostas ou concepções que caminhem no sentido de fortalecimento da infraestrutura social. A dimensão das ações comunitárias é mais evidente no caso de Belo
Horizonte, mas não se percebe uma estratégia consistente e conseqüente de intervenção no
sentido desse fortalecimento, ou um marco conceitual consistente que possa guiar a
intervenção. Somente na segunda fase do programa de Belo Horizonte a dimensão urbana
entra como parte da estratégia de intervenção, o que deve fortalecer o foco no território como
unidade de intervenção, articulando ações urbanas e sociais. Na experiência de São Paulo, o
território aparece apenas como locus de articulação de cadeias produtivas, e da dinamização da
vida econômica, sob a égide do desenvolvimento econômico local.
O território, ao ser considerado sob a perspectiva da infra-estrutura social, demanda uma outra
ordem de prioridades, que não são evidentes nos casos considerados. Conforme apontado
pelos agentes envolvidos no Programa Oportunidade Solidária, ao afirmarem os limites das
ações produtivas para um público em situação de pobreza crônica, trata-se, sobretudo, de
viabilizar um investimento maior em ações mais básicas, de construção de condições
primárias de cidadania social. O ponto afirmado a partir da experiência do Oportunidade
Solidária é a necessária criação e manutenção de espaços de socialização criativos e de
ampliação da cidadania, independente da consecução de empreendimentos formalizados. Esse
é um ponto importante que pode passar despercebido, mas que é fundamental para se entender
299
os limites das estratégias de inclusão. A ausência de equipamentos e espaços públicos dos
quais as pessoas e grupos das comunidades periféricas possam se apropriar foi salientada
pelos agentes, o que corrobora os argumentos de Richardson e Munford: a centralidade
da estrutura de bens e serviços na comunidade para se estabelecer uma adequada infraestrutura social. A criação de redes e malhas de solidariedade e de integração em
comunidades degradadas passa, necessariamente, por uma adequada provisão de bens e
serviços de bem-estar, o que inclui equipamentos e espaços de uso comunitário capazes
de possibilitar a socialização e a interação social. Esses elementos, por sua vez, são
fundamentais para o alcance de empreendimentos baseados na cooperação, no estabelecimento
de redes e na confiança e disposição para trabalhos conjuntos de longo prazo.
Nas duas experiências tem-se o esforço de criar espaços e mecanismos de uma gestão
intersetorial das políticas de inclusão. Nas duas cidades foi organizado, no nível central da
administração municipal, o fórum intersecretarias e empresas municipais (São Paulo) e o
Grupo de Trabalho e a Câmara Intersetorial (Belo Horizonte), para a construção da gestão
articulada dos programas, que contavam com a participação das demais secretarias para sua
efetivação 282 . Além da articulação no âmbito do governo e suas áreas setoriais, as
experiências, tanto de São Paulo quanto de Belo Horizonte, demandavam um envolvimento
significativo dos serviços e técnicos na ponta, que atuavam nas estruturas descentralizadas do
poder público e da sociedade civil. Tanto em Belo Horizonte quanto em São Paulo as
experiências de descentralização intramunicipal são recentes e não é irrisório o esforço que
ainda precisa ser feito para dotar os governos locais (em São Paulo) ou as regionais (em Belo
Horizonte) dos elementos necessários para efetivar uma gestão estratégica e com resultados
mais efetivos. Dentre esses elementos destacam-se os recursos financeiros, humanos, materiais
e técnicos necessários para identificar as necessidades e problemas e oferecer respostas
adequadas a elas, com ênfase na participação e na articulação horizontal e multinível, com
foco na produção da autonomia das pessoas e famílias atendidas, no sentido de ruptura com
práticas clientelistas e de cunho assistencialista que ainda pautam a atuação de diversos
282
A execução de grande parte dos programas nas duas cidades tinha, como visto, o pressuposto fundamental do
envolvimento direto de diferentes secretarias, instâncias ou níveis de governo, organizações e atores diversos da
sociedade civil para a execução das ações e a consecução dos objetivos das estratégias de intervenção. As duas
secretarias responsáveis pelos programas (SMPS, em Belo Horizonte e SDTS em São Paulo) eram enxutas,
contando com relativamente poucos técnicos, o que exige que a execução das ações seja feita pelas secretarias e
demais organizações públicas, governamentais ou não-governamentais.
300
agentes na ponta, na interação direta com o público atendido. Além disso, a perspectiva da
intersetorialidade aponta para a necessária articulação com níveis estaduais e federal de
governo. Embora tenha sido feito um esforço considerável no sentido de fortalecer a gestão
intersetorial, não se pode afirmar como essa estratégia foi de fato implementada e com que
resultados.
Um outro ponto salientado quanto às estratégias de intervenção examinadas refere-se não à
estrutura intersetorial de gestão, mas ao conteúdo da intervenção. Sem dúvida existe nos
desenhos da intervenção uma preocupação central com a dimensão dos ativos e da criação de
capacidades e de atenção aos aspectos menos tangíveis da pobreza. Esse ponto é mais evidente
no caso de São Paulo, com a estratégia mais centrada nas questões de trabalho, escolarização,
qualificação e formação profissional. Como foi dito, os programas redistributivos concebiam a
transferência de renda como criação de empoderamento, na medida em que buscavam reter
jovens na escola ou propiciar formação profissional, por exemplo. O acesso a ativos é um
elemento central em uma visão estratégica de enfrentamento da pobreza, e a experiência de
São Paulo claramente considera essa dimensão, ao priorizar ações pautadas pela perspectiva
da economia solidária, centrada nos empreendimentos coletivos e nas ações de micro-crédito
para famílias pobres e indigentes, além do esforço nas ações de capacitação e no
fortalecimento de condições psico-sociais mais positivas para o enfrentamento das condições
de pobreza, principalmente em se tratando de pobreza crônica. Entretanto, uma constatação
que merece destaque é que situações de altíssima privação e pobreza crônica não são
totalmente reversíveis com ações produtivas, embora essas sejam centrais.
No caso de Belo Horizonte, a atenção aos ativos produtivos, relacionados ao trabalho e renda,
ainda é uma promessa. Entretanto, tem-se uma ênfase nas relações familiares, com as ações do
NAF (e de outros equipamentos como a Casa de Brincar) orientadas para as dinâmicas
intrafamiliares e para o fortalecimento dos laços aí estabelecidos. Essa dimensão não encontra
espaço na estratégia de São Paulo. A atenção às relações comunitárias, relativas ao aspecto da
organização social, também é mais presente no desenho do BH Cidadania, embora esse
programa careça ainda de um consistente marco conceitual, operacionalizado em objetivos,
metas e indicadores, de forma a permitir uma compreensão mais clara das transformações
desejadas nesse âmbito.
301
CAPÍTULO 7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
“envelopada miséria que vem do fundo dos tempos...” (Pochmann, 2003, p. 142)
Desde a promulgação dos direitos humanos, há sessenta anos atrás, o direito a uma vida digna
constitui um direito central 283 . Entretanto, esse direito ainda encontra-se, para uma parcela
enorme da população, não efetivado. O tema da pobreza é um dos mais centrais no contexto da
globalização, no qual a riqueza, a tecnologia e o conhecimento chegam a campos e níveis
altíssimos de realizações e no qual uma parcela ampla da população mundial permanece sem
acesso aos direitos humanos básicos e ao piso mínimo para viver com dignidade, por mais
discutíveis e relativos que sejam tais padrões. Convivemos com a pobreza há séculos e apesar
de toda a riqueza gerada, pessoas em grande quantidade morrem de fome, não sabem ler, não
têm acesso à saúde, vivem sem liberdade e de forma indigna e sub humana. Tais constatações,
óbvias, não são, contudo, sem importância. Acostumamo-nos com a pobreza, vista e sentida,
de acordo com Vera Telles (1999), como paisagem, algo que não nos incomoda, quando muito
se torna problema quando ameaça a ordem e a segurança social.
A conexão entre pobreza e direitos não se dá apenas pelo fato de o direito a uma vida digna ser
um dos direitos humanos fundamentais, mas principalmente porque a construção do problema
da pobreza e a conseqüente categorização de um grupo como pobres ou excluídos demanda,
do ponto de vista moral e societário, uma tomada de posição e desenvolvimento de ações de
inclusão e integração social 284 . Como diz Campbell (2004, p. 122), “o mal não é tanto a
pobreza em si, mas o fato de ela resultar de instituições humanas e de escolhas coletivas”.
Nessa parte das considerações finais cabe ressaltar alguns pontos, sem pretender reconstituir
toda a trajetória desenvolvida no decorrer do trabalho, mas apenas enfatizar questões que
merecem destaque, a partir da análise da literatura e do estudo empírico realizado.
283
Artigo XXII - Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo
esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos
direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua
personalidade.
Artigo XXV - Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem
estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito
à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de
subsistência fora de seu controle.
284
A pobreza observada sob a perspectiva dos direitos humanos é uma abordagem que encontra respaldo entre
diversos autores que não foram considerados aqui. Um balanço sobre a questão pode ser encontrado em um artigo
publicado por Tom Campbell, denominado “A pobreza como violação dos direitos humanos: justiça global,
direitos humanos e as empresas multinacionais”, In: WERTHEIN, Jorge e NOLETO, Marlova Jovchelovitch
Pobreza e Desigualdade no Brasil. Traçando caminhos para a inclusão social. Unesco, 2004.
302
Sintetizando e articulando o conjunto de categorias e concepções identificadas, buscou-se no
trabalho salientar distintos enfoques sobre o fenômeno da destituição, com o foco na pobreza
crônica, identificando categorias e elementos teóricos convergentes e divergentes na tentativa
de configurar um quadro de análise mais adequado para compreender a pobreza e atuar sobre
ela. Cada um dos enfoques examinados – monetário, necessidades básicas, capacidades,
exclusão, vulnerabilidade – aporta elementos específicos para a conformação do quadro
analítico, mas pode-se sintetizar que as concepções que enfatizam o caráter multidimensional
da pobreza crônica, sua heterogeneidade e o peso dos aspectos relacionais em sua produção
e manutenção exigem, ou apresentam quase que como um contraponto no campo da ação
pública, a necessidade de políticas intersetoriais e territoriais, com um modo de provisão
dos serviços flexível, sensível às necessidades heterogêneas das populações e territórios,
com redes de serviços adequadas de atendimento e, substantivamente, quanto ao conteúdo,
orientadas para autonomia e empoderamento do público atendido, para a expansão de sua
base de ativos e adoção de estratégias mais efetivas para o enfrentamento das condições de
pobreza, principalmente aquela que é extensa no tempo e intensa na profundidade das
privações e na interação perversa entre seus vetores.
As pessoas e famílias em condição de pobreza crônica padecem de uma síndrome de privações
e aspectos de carências, mas também apresentam potencialidades e ativos que podem ser
mobilizados, desde que exista um suporte efetivo e articulado por parte das estruturas e
processos, traduzidos por meio das políticas públicas. A adoção de formas mais flexíveis e
relacionais de gestão pública local, “aderentes” às necessidades das pessoas, famílias e
territórios e desenvolvidas pelos diversos setores das políticas e níveis de governo de forma
mais integrada constituem estratégias potencialmente mais exitosas, segundo as concepções
mais ampliadas sobre pobreza que foram discutidas aqui.
São essas as categorias em torno das quais a tese se estruturou e que forneceram a matéria
prima para a elaboração do quadro analítico contra o qual contrastou-se, no capítulo anterior, o
desenho das duas estratégias de inclusão que se pautam por visões abrangentes sobre o
fenômeno da pobreza e desenvolvem estratégias de políticas afinadas com as diretrizes da
intersetorialidade e da territorialidade. Para além do quadro analítico e do “modelo de ação”,
tem-se algumas questões que merecem destaque, dada a centralidade que tiveram no trabalho:
a visão coletiva e estratégica da pobreza como condição básica para seu enfrentamento; as
303
condições políticas e institucionais para a superação da pobreza e da vulnerabilidade; o tema
do território e infra-estutura social; a gestão da intersetorialidade como contra-face de uma
visão abrangente sobre a pobreza; a centralidade do âmbito local na provisão de proteção
social.
a) O primeiro ponto aqui destacado é que reconhecer a pobreza como problema social e
identificar grupos que se encontram em situação de privação são questões que exigem
respostas por parte do conjunto da sociedade. A existência de direitos envolve
obrigações legitimamente reconhecidas, remontam a deveres e acordos sociais. Não
existe de antemão um conjunto inalienável de direitos, mas sim direitos acordados por
uma comunidade e que implicam, portanto, a existência de pessoas e instituições
capazes de cumpri-los. Dessa forma, os direitos passam a ser algo mais do que apenas
garantias individuais, podendo espelhar o desejo comum por sociedades menos
desiguais e efetivamente mais democráticas. Os direitos seriam meios para se alcançar
padrões de dignidade e afirmar o compromisso societário com a autonomia de seus
membros.
As palavras de Pooge são claras quanto ao aspecto moral envolvido na questão da pobreza:
“sem um sentido de responsabilidade moral pela ordem econômica global que estamos
impondo, não haverá a vontade política de reformar essa ordem , nem disposição, da parte
dos governos e dos indivíduos, para mitigar seus piores efeitos” (Pooge, 2004, pp. 253,254)
Uma proposta como a que sustenta a renda de cidadania parte de suposições que enfatizam a
responsabilização do conjunto da sociedade com a vida de seus membros, com a convicção de
que a pobreza ou a exclusão não é algo que pode ser compreendido sob a perspectiva
individual ou que deve estar a cargo de políticas focalizadas e setorializadas. A proposta da
renda de cidadania se baseia em uma perspectiva universalista do problema social e resgata a
dimensão de valores comuns que justificam falar de comunidade,
“valores que hacen que personas diferentes tengan interes en convivir en un mismo cuerpo
social; la focalización, en cambio, se sustenta sobre valores que hacen diferente al grupo,
crea sub-comunidades, normatiza lo diferente, genera una dependencia prácticamente
plena entre beneficiário y política” (Lo Vuolo, 2004, p. 37,38).
A perspectiva universalista que está na base dessa concepção sustenta-se na dimensão dos
direitos e não no mérito da necessidade. Essa última noção remete à celebração pública da
condição inferior dos pobres, que remete a eles a responsabilidade por sua própria situação de
304
miséria. Nessa visão residual de pobreza, dissolve-se a responsabilidade pública, o que faz
com que o tema da pobreza permaneça desvinculado de um debate público sobre igualdade e
justiça, tal como afirmado por Vera Telles (2001). Essa visão da pobreza evoca compaixão,
mas não indignação moral, pois essa última
“só pode existir se houver uma medida comum de equivalência, tendo na lei a referência
simbólica a partir da qual os indivíduos, na irredutível singularidade de cada um, podem
ser reconhecer como semelhantes” (Telles, 2001, p. 32).
Ao remeter a um problema coletivo, que diz respeito a toda a sociedade e, principalmente, à
forma como a sociedade está estruturada, uma visão estratégica de superação da pobreza não a
considera como paisagem, como algo externo a um mundo propriamente social, como afirma
Telles. Sobretudo a visãoda pobreza no âmbito da questão social ultrapassa a idéia de mínimos
de sobrevivência (que remete a um estado regido unicamente pelas leis da vida e da morte) e
insere a discussão sobre pobreza na dimensão dos direitos, que remete fundamentalmente aos
princípios de igualdade social, o que interpela para responsabilidades coletivas para sua
superação. E nesse âmbito de questões, a pobreza não é algo que diz respeito a setores
específicos das políticas sociais, especificamente ao campo da assistência social.
A
assistência social não pode estar destinada aos não-cidadãos, orientada para “minorar as
desgraças” ou ajudar os pobres a “sobreviver na miséria”, como afirma Telles. Ao
operar segundo os critérios pautados pelo “mérito da necessidade”, o que se tem é uma
regulação estática da pobreza, uma intervenção que não altera a paisagem da pobreza,
que a consolida como um fenômeno inscrito na ordem naturalizada das coisas. A
perspectiva de Telles articula-se diretamente com a proposta de Lo Vuolo, o que liga a
dimensão dos direitos a um modelo não residual de proteção social.
As ações de transferência de renda, quando concebidas como um fim em si mesmas, não
geram autonomia nem empoderamento e podem ser a expressão de uma visão limitada e que
não contribui de forma efetiva para a superação da pobreza. A transferência de renda com
exigência de cumprimento de condicionalidades (garantir a presença das crianças e jovens na
escola ou dos adultos nos cursos de formação) pode, por um lado, estar orientada para
diminuir riscos e vulnerabilidades presentes e futuras dos indivíduos e famílias; mas também
pode, por outro, conforme apontado na literatura, resvalar para a adoção de práticas
autoritárias e de caráter punitivo. Segundo Cohn, “as condicionalidades, se trazem consigo a
305
dimensão da co-responsabilização, também carregam consigo um lado sombrio, que pode
reforçar nossa cultura social autoritária e punitiva” (Cohn, 2004, p. 14)
A perspectiva dos Programas de São Paulo, ao agregar renda e capacitação, dá um passo no
sentido de ultrapassar a visão residual ou o caráter compensatório das políticas focalizadas de
transferência de renda com verificação de carência, mas pode ser pouco. O tempo para o
recebimento do benefício é pequeno e pode ser insuficiente para propiciar alterações
substanciais nas condições de vida de indivíduos e famílias extremamente pobres, se não for
acoplado a alternativas reais e sustentáveis de inserção produtiva e de geração de renda e a
outras medidas de caráter estrutural. Principalmente são insuficientes se não vierem
acompanhadas de um outro conjunto de políticas universais, que garantam efetivamente o
acesso a serviços públicos de qualidade. A estruturação de sistemas de proteção mais
abrangentes, com maior cobertura e intensidade protetora, parece ser uma condição básica
para uma atuação estratégica no enfrentamento da pobreza. Os modelos que têm sido
seguidos, contudo, apontam para a retração do gasto social e para o desenvolvimento de
estratégias de
aráter residual, focalizadas e com base na verificação de carências.
Compreender a pobreza do ponto de vista das abordagens das capacidades, exclusão e
vulnerabilidade, levando em conta as concepções de território, comunidade, capital social,
infra-estrutura social, aponta para a dimensão coletiva da pobreza, demandando um enfoque
de ação centrado nas relações sociais, nas interações que ocorrem entre indivíduos e
instituições, entre usuários e agentes das ações públicas e governamentais. Adotar uma visão e
uma atuação estratégica diante da pobreza, como visto anteriormente, implica colocar o
problema da pobreza como objetivo generalizável, comum ao conjunto da sociedade e objeto
de atuação de todos os setores das políticas públicas, demandando um envolvimento efetivo
desses com as diretrizes de inclusão. Essa perspectiva impõe elementos para a ação política
que não permitem uma abordagem individualizada e individualizante do problema da pobreza.
Esse é o primeiro ponto a ser destacado como conclusão da tese. A utilização de uma
concepção ampliada de pobreza relaciona-se com uma visão mais coletiva do problema e
com estratégias mais universais para seu enfrentamento.
b) O segundo ponto a destacar é que a transposição de idéias para ações ou conseqüências
sobre a realidade é permeada por elementos do contexto. Quer dizer, distintas abordagens
sobre a pobreza trazem implicações para o desenho das políticas de enfrentamento, mas essa
transposição não se faz sob o prisma da ética ou da lógica, sendo condicionada pelas
306
características econômicas, institucionais, políticas e sociais do contexto, que estabelecem as
respostas possíveis em termos de políticas públicas. Do ponto de vista dos constrangimentos
institucionais, tem-se a dimensão dos recursos, inclusive financeiros, e dos arranjos políticos e
organizacionais que podem atuar como fatores impulsionadores ou limitantes para uma
estratégia com efeitos e impactos positivos no desenvolvimento social. Em situações de
pobreza crônica, o êxito dos processos de inclusão está condicionado pela existência e
aplicação de metodologias consistentes, com a definição mais precisa de metas de resultados,
de condições institucionais estáveis, de legitimidade política, de infra-estrutura social
adequada para responder às demandas por bens e serviços. Esses elementos determinam
fortemente a capacidade de uma intervenção para atuar efetivamente como rede de proteção,
por um lado, e trampolim, por outro, no sentido de viabilizar a saída das condições de pobreza,
principalmente da pobreza crônica.
As questões relativas aos constrangimentos de diversos tipos não foram abordadas direta ou
prioritariamente aqui, embora os elementos do contexto tenham estado presentes, ainda que de
forma implícita, na temática do empoderamento. Esse é o segundo ponto a destacar: a
centralidade da concepção de empoderamento no desenho de estratégias para o enfrentamento
da pobreza crônica e a centralidade das políticas e de seus agentes como agentes catalisadores
do processo.
Uma formulação, presente em um dos enfoques da vulnerabilidade e que confere
materialidade à noção de empoderamento, focaliza as estruturas de oportunidades, que
viabilizam ou impedem a efetividade dos processos de empoderamento. Recuperando a noção
de empoderamento como algo contingente das relações entre o plano micro e macro, tem-se a
centralidade das estruturas de oportunidades abertas pelos agentes públicos que tornam viável
ou não o fortalecimento da capacidade dos indivíduos de fazerem escolhas e de transformar
tais escolhas em atos e resultados. A dimensão da agência remete à capacidade de fazer
escolhas e as estruturas de oportunidades apontam para os aspectos do contexto que
possibilitam transformar agência em ação efetiva 285 .
A moldura teórica dada pelo enfoque da vulnerabilidade parece ser a mais adequada para
permitir operacionalizar a perspectiva do empoderamento, da autonomia, da ampliação e
285
Por exemplo, a capacidade de escolha de uma mãe ou pai de colocar ou não o filho na escola não existe ou
não se realiza se não existem escolas cujo acesso seja viável, dadas as condições e os ativos das famílias.
307
fortalecimento das capacidades. Esse enfoque permite, mais do que qualquer outro, articular
os níveis micro e macro, o plano dos agentes e o da estrutura. A concepção de vulnerabilidade,
principalmente na abordagem do portfolio de ativos e também na abordagem dos modos de
vida, ao focalizar a quantidade, qualidade e diversidade dos ativos que os pobres possuem e as
estratégias que eles utilizam para prevenir, mitigar ou enfrentar as condições de risco (nível
micro) e as oportunidades abertas pelo Estado, mercado e sociedade (nível macro), fornece
um arcabouço abrangente e complexo o suficiente para permitir o desenho de políticas
adequadas à heterogeneidade das condições de pobreza. A concepção de vulnerabilidade
permite identificar situações distintas de indivíduos, domicílios e comunidades quanto à
propriedade de ativos, e distintas capacidades de resposta, permitindo desenhar estratégias
mais aderentes às necessidades e potencialidades identificadas, possibilitando atuar a partir das
características heterogêneas existentes nas situações de pobreza. No caso da pobreza crônica, a
base de ativos encontra-se geralmente muito danificada, havendo uma sobreposição de
carências, privações e estratégias de ação que acabam por levar às armadilhas da pobreza,
tornando mais difícil a interrupção do processo e a saída sustentável dessa situação.
Além de intervenções abrangentes em seu escopo, as intervenções voltadas para pobreza
crônica demandam a proximidade entre técnicos e usuários das políticas, em relações pautadas
pela confiança, estáveis e duradouras, de forma que as intervenções sejam capazes de produzir
as mudanças esperadas. São requeridas intervenções abrangentes e intensas, por longos
períodos de tempo. Dados o padrão histórico de descontinuidade e rupturas programáticas e
administrativas no aparelho de Estado e o traço clientelista que ainda permanece na
formulação e gestão de políticas sociais no país, estratégias de superação da pobreza
dependem fortemente que se ultrapasse a visão negativa e a desconfiança da população sobre a
ação do Estado no campo social. Alguns exemplos retirados da tese de Campos (2004) e
apresentados na descrição do caso de São Paulo permitem identificar essa situação, que ainda
permanece como um forte traço que contribui para minar as chances de construção de políticas
mais claramente emancipatórias.
Se o enfoque da vulnerabilidade e a categoria de empoderamento emergem como centrais para
a compreensão da pobreza, a perspectiva dos itinerários de inserção ou de incorporação social
(exemplificados no trabalho a partir do Programa Puente) pode ser uma tradução operacional
dessa diretriz no campo da ação ou da política pública, entendida como uma “tecnologia
308
social” que busca atuar sobre aspectos tangíveis e menos tangíveis dos fenômenos de pobreza,
possibilitando o acesso a ativos, a bens e serviços públicos e sociais, fortalecendo capacidades
e habilidades, a partir de uma ação que leva em conta o protagonismo da família (o plano
micro) e que se sustenta no compromisso dos diversos setores públicos (plano macro) com o
processo de inclusão social. A partir desse recorte, pode-se considerar a dimensão do contexto
pela via da estrutura de oportunidades, como presente no enfoque da vulnerabilidade e, dessa
forma, ter mais clareza das interações entre o plano micro e macro, que contribuem para a
permanência da pobreza crônica e podem atuar para sua superação.
b) O terceiro ponto a ser aqui salientado refere-se também, de certa forma, à
complexidade da interação entre os planos micro e macro, interações que se
materializam no âmbito do território. Como visto nos capítulos anteriores, os
fenômenos de área existem e condicionam os processos de degradação e de
regeneração de espaços e comunidades, o modo de vida local, a vida e o cotidiano das
pessoas que habitam determinadas áreas urbanas. Em alguns lugares a pobreza é mais
densa, mais permanente, atinge de forma mais severa um conjunto de famílias e é mais
difícil escapar das “armadilhas” da pobreza. Os processos e mecanismos que intervêm
para produzir essas realidades não são fáceis de serem reconhecidos de forma não
ambígua, mas a literatura sugere que as concepções de capital social, infra-estrutura
social, de estigma e identidade poderiam compor possíveis matrizes explicativas.
Uma das idéias centrais é que as estruturas de oportunidades (dadas pelo mercado, Estado e
sociedade) presentes em certas áreas são tão limitadas que funcionam como estímulos
negativos que reproduzem mecanismos de exclusão social. Isso remete à importância da
atuação do Estado na produção desse tipo de segregação espacial, gerando valorização e
desvalorização de determinadas áreas, facilitando ou dificultando o acesso a bens e serviços, à
infra-estrutura etc. O argumento sobre o papel da infra-estrutura formal para a existência de
um espaço urbano e uma infra-estrutura social saudável ganha novamente aqui todo o sentido.
A abordagem dos modos de vida, que também ressalta o papel das estruturas e processos na
manutenção ou alteração das condições de vulnerabilidade de indivíduos, grupos ou regiões,
também encontra aqui uma correspondência.
Exemplos e evidências são abundantes. Os achados a partir da mensuração pelo Mapa da
Vulnerabilidade Social de São Paulo permitem evidenciar o óbvio e que pode ser
309
generalizável para outras áreas urbanas. Foi observada alta incidência de homicídios entre
jovens em áreas de alta vulnerabilidade, de maior precariedade de acesso a serviços e acúmulo
de indicadores de riscos sociais e ambientais, embora existam problemas específicos em zonas
de baixa ou média vulnerabilidade. Um ponto ressaltado pelos elaboradores do mapa da
vulnerabilidade social de São Paulo (PMSP, 2004) e que merece ser ressaltado aqui é a relação
entre a presença do Estado por meio de equipamentos e serviços para o público jovem e a
violência nessa faixa etária. A relação sustentada é entre o vazio institucional e o estímulo à
violência, o que nos remete, novamente, ao tema da infra-estrutura social. Novamente aqui a
noção de infra-estrutura social emerge como potencialidade para configurar um arcabouço
capaz de modelar as ações dos agentes públicos e sociedade civil na recuperação e prevenção
de áreas e espaços urbanos degradados via uma combinação sui generis de organização
material de bens e serviços e de organização social. Essa última dimensão deve ser entendida
como espaço de manifestação de “auto-ajuda” comunitária, de grupos de ação, de
organizações comunitárias e de normas e regras de conduta, informais e extremamente
poderosas como elementos de controle social.
d) O quarto ponto refere-se ao tema da intersetorialidade, cuja primeira aproximação pode se
dar pela via da articulação entre políticas, no nível macro de análise. Nesse sentido, uma
primeira conseqüência de se partir de uma perspectiva compreensiva consiste na necessidade
de se articular políticas compensatórias, com foco no curto prazo e mais imediatas, com
políticas mais estruturais, que interfiram de forma mais profunda no fenômeno de reprodução
da pobreza.
Uma convicção básica desse trabalho, evidenciada pela análise da literatura, é a de que a
superação da pobreza depende da estruturação de um sistema de proteção social que combine,
consistente e articuladamente, estratégias universais e focalizadas, e que estas sejam
estabelecidas de forma coerente e aderente às demandas e necessidades de proteção social dos
grupos, indivíduos e regiões. Além de serem moldadas a partir das demandas e necessidades,
a efetividade das políticas focalizadas depende, em grande parte, da existência prévia de
políticas universais. Ambas orientações são necessárias, pois são complementares e utilizadas
para situações diferentes (Raczynski, 1999, p. 192):
“Para elevar la equidade, sin embargo, los programas de cobertura universal deben ser
complementados con programas específicos orientados hacia los grupos mas vulnerables o
los servicios más descuidados. La focalización es indispensable en programas tendientes a
310
generar oportunidades para que los sectores desposeídos superen las causas de la pobreza
o la vulnerabilidad” (Raczynski, 1999, p. 194).
Outro ponto, relacionado ao anterior, diz respeito à articulação necessária entre os âmbitos de
decisão econômica e social. O crescimento econômico é necessário, embora não suficiente,
para a redução e superação da pobreza. Para que a população pobre tenha condições de
incrementar sua renda, é necessário um ambiente favorável à geração de emprego e renda, que
exista dinamismo econômico capaz de gerar impactos positivos sobre a população mais pobre.
Entretanto, dada a alta taxa de desigualdade, o crescimento da produção pode não levar
necessariamente à redução da pobreza a não ser que as políticas econômicas enfatizem a
geração de incentivos para criar empregos e incrementar a capacidade produtiva dos setores
mais pobres, fortalecendo de forma efetiva seus ativos. A combinação de ativos que atuem na
prevenção, mitigação e superação da pobreza e vulnerabilidade remete também ao tema da
intersetorialidade, ou de uma ação mais articulada no campo das políticas públicas,
econômicas, urbanas, sociais.
A prioridade de redução da exclusão e da desigualdade, em uma visão estratégica, teria de se
tornar uma preocupação constante das políticas econômicas, da mesma forma que a
estabilidade e o crescimento econômico. Dito de outra maneira, o ponto consiste em reforçar
os vínculos entre políticas econômicas e políticas sociais, de aproximar os objetivos sociais e
inseri-los no âmbito das estratégias de desenvolvimento econômico; de inverter a posição
subalterna das políticas sociais em relação às econômicas e inserir o desenvolvimento social
como objetivo máximo, ao qual o desenvolvimento econômico deve estar vinculado. Sem essa
articulação não é possível desenvolver ações com resultados efetivos e sustentáveis no
combate à exclusão social. A superação da pobreza e da exclusão social exigem a expansão
das capacidades individuais e coletivas, e essa expansão se realiza fundamentalmente a partir
de uma combinação virtuosa entre políticas universais e focalizadas, de caráter estratégico e
compensatório, com foco no longo e no curto prazo, atentas à multidimensionalidade da
pobreza e à dinâmica dos processos, ancoradas na perspectiva da autonomia, desenvolvimento
e dignidade humana.
No caso da pobreza crônica, na qual a multidimensionalidade se evidencia ainda mais, tem-se
a convicção de que “para romper esta rígida configuración que perpetúa la pobreza a través
311
de su transmisión intergeneracional se requieren políticas públicas coordinadas que influyan
simultáneamente en todos los ámbitos analizados” (CEPAL, 2004, p. 15).
e) Além da intersetorialidade como diretriz estratégica das políticas de proteção social
voltadas para pobreza crônica, tem-se a centralidade do nível local para seu enfrentamento. A
gestão pública contemporânea é marcada pela flexibilidade na prestação de serviços, pela
ênfase em atendimentos mais personalizados, pelo reconhecimento da multiplicidade dos
atores e interesses. Essa diretriz encontra mais condições de ser efetivada em contextos de
proximidade, nos quais os níveis de gestão conseguem ser mais sensíveis para captar
demandas, necessidades e problemas identificados. Novos modelos de proteção social têm
sido delineados tendo o nível local como locus de inovação e com promessas de apresentarem
melhores condições para o enfrentamento da pobreza crônica e de novas formas de exclusão
social. Esse processo de fortalecimento do poder local é uma das grandes tendências de
inovação na gestão pública.
Entretanto, embora seja reconhecido o papel do âmbito local de gestão para a expansão e
ampliação da democracia e para maior efetividade da ação governamental, tem-se dúvidas
sobre as possíveis implicações negativas quanto ao ganho de autonomia do nível local. Sem
entrar nesse debate, certamente importante, parece suficiente sinalizar que a fragmentação e o
ganho em proximidade que advêm com a revalorização do nível local de gestão são
acompanhados, em outro nível, pela redução da perspectiva universalizante presente na
provisão central ou nacional de bens e serviços de proteção social. Quer dizer, embora o nível
local de gestão possa ser mais adequado para capturar demandas e responder a elas, a
perspectiva igualitária e universalizante da produção de políticas é um atributo das políticas
centrais, que devem garantir equidade e a efetivação de direitos, para além da autonomia do
âmbito local de gestão. Mais uma vez a solução pode estar no equilíbrio entre essas duas
dimensões: a combinação entre ações desenvolvidas tanto pelo nível local, atentas às
especificidades dos problemas e capazes de adotarem formas de provisão de serviços com
maior grau de interação, e ações do nível nacional, que viabilizem maior igualdade e a
garantia de direitos sociais básicos.
As experiências de São Paulo e Belo Horizonte, exemplos de iniciativas locais de inclusão
social, são fundamentais para viabilizar a proximidade com as demandas e problemas e para
aumentar as chances de respostas mais adequadas a elas. Entretanto, uma atuação estratégica
312
para enfrentamento da pobreza exige políticas desenvolvidas por outros níveis de governo e
que se situam fora do âmbito específico das políticas sociais. Sem essa compreensão tem-se,
recuperando a metáfora, o trabalho infindável de Sísifo, de levar a pedra ao alto da montanha
para vê-la cair novamente. Somente inserindo a problemática da pobreza no centro da questão
social, como problema que diz respeito ao conjunto das políticas públicas e não apenas às
políticas sociais, como uma questão que deve ser equacionada pelos distintos níveis de
governo e setores da sociedade é que se pode perceber a conexão necessária entre
conhecimento e ação, no sentido de viabilizar a utopia de construir novas possibilidades
humanas.
O caminho para essa utopia é longo e talvez o destino final não seja alcançável. Mas construir
conhecimento e ações mais efetivas no campo da pobreza e das políticas públicas não é uma
escolha, mas uma imposição ética e instrumental. Como afirma Pooge, recuperando Kant,
“um projeto imposto por obrigação moral não pode ser abandonado apenas por supormos,
com base em nosso conhecimento atual, que ele talvez seja impraticável, mas apenas se ele
for demonstravelmente impossível. Quando os rendimentos dos seis por cento mais ricos da
humanidade são 70 vezes maiores que a renda da metade mais pobre, quando um terço de
todas as mortes humanas se deve a causas relacionadas à pobreza, e quando a renda
agregada global mantém-se em crescimento contínuo, seria ridículo alegar que a redução
da pobreza é demonstravelmente impossível...fica claro que o que nos falta aqui não são
conhecimentos especializados, mas sim o senso de responsabilidade moral e, baseada nele,
a vontade política de financiar o desenvolvimento e promover reformas em nossa ordem
econômica global” (Pooge, 2004 , pp. 255,256).
Insisto que essa deve ser a moldura na qual o presente trabalho se situa, que confere a ele seu
sentido, sua razão de ser. Recuperar a utopia, colocá-la na perspectiva dos direitos de
cidadania, enfocar a pobreza como paisagem intolerável em sociedades de abundância. Esse é
o sentido desse esforço, algo que se situa fora, mas que confere uma inteligibilidade de outra
natureza ao que foi discutido nesse trabalho.
313
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ANEXOS I - Mensuração da pobreza e das condições de vida em Belo Horizonte
A) IQVU: componentes e indicadores
VARIÁVEIS
COMPONENTES
1-ABASTECIMENTO
Equipamentos
Abastecimento
INDICADORES
de
- Área por habitante de hiper e supermercados, mercearias,
restaurantes e similares.
Cesta Básica
- Economia de compra possível.
2- ASSISTÊNCIA SOCIAL
Equipamentos
- Número de entidades de Assistência Social
3- CULTURA
Meios de Comunicação
- Tiragem por habitante de jornais locais
Patrimônio Cultural
- Número de bens tombados, de grupos culturais.
Equipamentos Culturais
- Número de equipamentos e freqüência de público.
- Área por habitante de livrarias e papelarias.
Programações
culturais
4- EDUCAÇÃO
artístico-
- Número e freqüência às atividades culturais oferecidas.
Pré-Escolar
- Taxa de matrícula e número de alunos/turma.
- Primeira a quarta séries.
- Taxa de matrícula, no. de alunos por turma e índice de
aproveitamento (para os três componentes).
- Quinta à oitava séries
- Segundo grau
5- ESPORTES
6- HABITAÇÃO
7- INFRAESTRUTURA
URBANA
Equipamentos Esportivos
- Área por habitante de: quadras, piscinas, campos, clubes e
congêneres.
Promoções Esportivas
- Número de eventos esportivos e freqüência de público.
Disponibilidade
habitação
de
- Área construída por habitante, sujeita a IPTU.
- Padrão de acabamento das moradias.
Conforto habitacional
- Número de pessoas por dormitório.
Limpeza Urbana
- "Nota" para coleta de lixo, varrição e capina.
Saneamento
- Taxa e freqüência de fornecimento de água tratada.
- Disponibilidade de rede de esgoto.
Energia Elétrica
- Taxa de fornecimento domiciliar.
- Iluminação pública.
Telefonia
- Porcentagem de ruas com rede telefônica.
- Qualidade das ligações (descongestionamento).
324
Transporte coletivo
- Possibilidade de acesso de transporte (pavimentação).
- Número e conforto dos veículos (BHTRANS)
8- MEIO AMBIENTE
9- SAÚDE
Conforto Acústico
- Número de ocorrências de perturbações ruidosas
Qualidade do ar
- Autuações de veículos de transporte coletivo
Área Verde
- Área por habitante com cobertura vegetal
Atenção à Saúde
-Número por habitante de : leitos hospitalares, postos de
saúde, outros equipamentos de Assistência Médica e
equipamentos odontológicos.
Vigilância à Saúde
- Taxa de sobrevivência até um ano
- Taxa de nascidos com peso normal
10- SERVIÇOS URBANOS
Serviços pessoais
- Número de agências bancárias, pontos de táxi e postos de
gasolina
Serviços de Comunicação
- Número de agência de correio, bancas de revistas e telefones
públicos.
- Funcionamento dos telefones públicos
11- SEGURANÇA URBANA
Atendimento Policial
- Número de equipamentos, efetivo policial e viaturas.
- Tempo de espera para atendimento policial.
Segurança Pessoal
- Ausência de: homicídios, tentativas de homicídios,
violações de domicílio, estupros, roubos, porte ilegal de
armas, atentados ao pudor e lesões corporais.
Segurança Patrimonial
- Ausência de roubo e furto de veículos e a moradias e
estabelecimentos.
Segurança no Trânsito
- Ausência de acidentes com ou sem vítimas, ocasionados por
direção perigosa de veículos, abalroamentos, colisões,
choques, atropelamentos e capotamentos.
Segurança Habitacional
- Grau de disposição ao risco geológico
Fonte: Documento SMPS/Urbal, 2004
325
B) Estrutura do Mapa de Exclusão Social de BH
Elementos
Temas
Índice de vulnerabilidade social
Acesso à moradia
Acesso à infra-estrutura
Acesso à escolaridade
Acesso ao trabalho
Acesso à renda
Acesso à assistência jurídica
Acesso aos serviços de saúde
Garantia de segurança alimentar
Acesso à previdência social
Representações especiais
População de rua
População em domicílios improvisados
População analfabeta
População com pós-graduação
Trabalho infantil
Características populacionais
Taxa de população por faixa etária
Taxa de população por cor da pele
Taxa de população por sexo
Índice de assistência social1
Composto de 8 indicadores de atendimento por serviços destinados
aos vários segmentos da população mais vulnerável
Fonte: PBH/PUC-MG, 2000. (Documentos PBH/Urbal, 2004)
1 - Com o Indice de Assistência Social (IAS), busca-se dimensionar as ações mitigadoras das
políticas públicas de Assistência Social no município.
326
C) Vulnerabilidade Social: composição do índice e peso das dimensões, variáveis e
indicadores
Dimensões
Cidadania
de VARIÁVEIS
Ambiental - 0,23
INDICADORES
Acesso a Moradia - 0,60
Densidade domiciliar - 0,57
Qualidade do domicílio - 0,43
Acesso aos serviços de infra-estrutura urbana - Infra-estrutura básica
0,40
Cultural - 0,18
Acesso à educação
Índice de escolaridade relativa
Econômica - 0, 27
Acesso ao trabalho - 0,70
Taxa de ocupação - 0,44
Taxa de ocupação formal/informal - 0,56
Acesso à renda - 0,30
Renda familiar “per capita”
Jurídica - 0,08
Acesso à assistência jurídica
Acesso à assistência jurídica privada
Segurança
Acesso aos serviços de saúde - 0,44
Mortalidade neo e pós-neo natal
Garantia de segurança alimentar - 0,36
Atendimentos de crianças por desnutrição
Acesso à previdência social - 0,20
Benefícios da previdência pública
de
Sobrevivência-0,
24
Fonte: Documentos PBH/Urbal, 2004
D) Indicadores e Pesos Utilizados na construção do Indicador Composto de Risco à
Saúde.
Fonte de
Informação
Mortalidade
Nascidos
Vivos
Indicadores
Peso
0,57
1,23
0,20
Total=2,00
0,75
0,50
Descrição
Mortalidade neonatal, excluindo as mortes por doenças congênitas
Mortalidade pós neonatal
Mortalidade por desnutrição, doenças respiratórias e Infecciosas em menores
de 5 anos (Nº óbitos por 1.000 habitantes)
Proporção de crianças nascidas com baixo peso
Proporção de crianças nascidas filhas de mães não adolescentes baixa Instrução
(menos de 8 anos de estudo)
Proporção de crianças nascidas filhas de mães adolescentes (10 a 16 anos)
0,75
Total=2,00
Favela
1,50
Percentual da área do setor censitário que está dentro de favela
Censo 91
2,00
Renda média dos chefes de família
Censo 96
2,00
Escolaridade média dos chefes de família
Fonte: Documento PBHS/Urbal, 2004
327
ANEXO II - Organização dos serviços de Assistência Social – SMAAS - PBH
Serviços de Base Local – Assistência Social
Programas,
equipamentos ou
serviços
Descrição objetivos e público
Componentes e ações
Núcleo de Apoio
à Família - NAF
“serviço de caráter preventivo que atua de forma
sistemática e intersetorial com famílias moradoras de
áreas mais vulneráveis da cidade.
atividades de grupos
Objetiva ampliar a inclusão social dos grupos familiares
no contexto local e da cidade, através do fortalecimento
dos vínculos intra-familiares e comunitários e do
encaminhamento e acompanhamento a bens e serviços
governamentais e não governamentais”.
atividades
comunitárias
(oficinas
de
socialidade,
grupos de convivência e
promoção de eventos).
Casa do Brincar
Um “ equipamento da Política de Assistência Social para
o atendimento às crianças pequenas (0 a 6 anos) e suas
famílias em situação de vulnerabilidade com o objetivo de
contribuir para o fortalecimento dos vínculos familiares e
comunitários, através do resgate do brincar, da cultura
local, da convivência e das relações intrafamiliares.
Atende a cada hora em média
12 crianças acompanhadas por
um familiar
Serviço
de
Socialização
Infanto-Juvenil
“equipamento para atividades de promoção, proteção,
desenvolvimento e socialização de crianças e adolescente,
na faixa de 6 a 14 anos, que, no horário alternado ao da
escola, freqüentam os Centros Infanto-Juvenis”.
atividades
de
apoio
pedagógico, esporte e lazer,
arte e cultura, suplementação
alimentar e saúde.
Núcleos
Jovens
“programa dirigido aos jovens entre 15 e 18 anos que
estão fora da escola e egressos de programas sociais e
inseridos em contextos de violência..para que eles atuem
de forma cooperativa e contribuam para a melhoria de
sua comunidade”.
capacitação
aos
jovens
acompanhamento permanente
de orientadores sociais com a
família, escola e comunidade
de
Grupos e Centros
de Convivência
para a 3ª Idade
“ atendimento através de encontros periódicos em espaços
específicos da comunidade voltados para pessoas acima
de 60 anos, para desenvolvimento de atividades que
fortaleçam sua autonomia, socialização, inserção social”
Fonte: elaboração própria a partir material fornecido pelo Projeto Urbal
328
contribuição
adolescente
financeira
ao
Serviços de Base Regional – Assistência Social
Programas,
equipamentos ou
serviços
Serviço de
Orientação Sócio
Familiar - SOSF
Muriki - Inclusão
da Criança e
adolescente com
deficiência na
comunidade
Serviço de
atendimento à
crianças e
adolescente com
medida de proteção
em abrigo
Serviço de
atendimento ao
adolescente com
medida Liberdade
Assistida (L.A).
Serviços de
atendimento ao
adolescente com
medida de
Prestação de
Serviços à
Comunidade.
(PSC).
Plantão Social
(Serviço para
famílias com
problemas de
subsistência)
Serviço de
abordagem de rua
Descrição objetivos e público
Atendimento sistemático e continuado a famílias de
crianças e adolescente em situação de risco pessoal e/ou
social. Fortalecer função protetiva do grupo familiar,
minimização riscos.
programa para inclusão das crianças e adolescente, com
deficiência e baixa renda
garantir a transitoriedade da medida de proteção em
abrigo através de ações de inserção familiar
melhoria do atendimento nos abrigos
Componentes e ações
capacitação de profissionais,
capacitação de lideranças
(sensibilização para a questão
do deficiente na comunidade)
Supervisão entidades?
23 unidades
atende de forma sistemática os adolescentes
encaminhados pelo Juizado da Infância e da Juventude
e com medidas de liberdade assistida
atende aos adolescentes encaminhados pelo Juizado da
Infância e da Juventude e com medidas de prestação de
serviços à comunidade.
atendimento social à população com problemas de
subsistência, famílias e adultos vulnerabilizados em
situação de risco pessoal e/ou social. Serviço de
referência para as situações de urgência e emergência,
caracterizado como uma das “portas de entrada” do
usuário na Política de Assistência Social.
Serviço destinado à população de rua, que tem como
objetivo construir processo de saída definitiva das ruas,
através da intervenção de equipe de educadores sociais.
inclusão das pessoas adultas com deficiência na família
Serviço de
e na comunidade
Habilitação e
Reabilitação de
pessoa com
deficiência.
Fonte: elaboração própria a partir material fornecido pelo Projeto Urbal
329
entrevista/ estudo sócioeconômico concessão de
benefícios orientações
encaminhamentos.
visitas domiciliares/apoio
sócio familiar, orientações
encaminhamentos
Serviços de Base Municipal – Assistência Social
Programas,
equipamentos ou
serviços
Serviços de
Convivência para
crianças,
adolescentes ,
adultos e
famílias.
Descrição objetivos e público
Componentes e ações
a) Centro de Referência da população de rua
b) Centro Cultural do Miguilim (crianças e
adolescente com trajetória de rua)
Abrigamento
Temporário
a) República Reviver (república de 40 homens
solteiros com trajetória de rua)
b) República Maria, Maria (república, de 50
mulheres, com trajetória de rua, sozinhas ou com
filhos até 6 anos)
c) Se Essa Casa Fosse Minha (acompanhamento
social de famílias e pessoas sozinhas inseridas no
Programa Bolsa – moradia da URBEL)
d) Albergue Noturno Municipal (população
masculina, adulta de rua)
e) Abrigo São Paulo (conveniada. Acolhida de
famílias e adultos sozinhos, em situação de risco e
vulnerabilidade. Suporte na realização das
Campanhas Emergenciais Agasalhe-BH (intervenção
no período do inverno) e BH solidária (intervenção
no período das chuvas)
a) serviços de higienização,
guarda-volumes,
espaço para lavagem de roupas,
acompanhamento social
oficinas sócio-educativas
b) oficinas de artes, esporte,
cultura e lazer.
a) Socialização
inserção no mundo do trabalho
construção de saída definitiva das
ruas
b) serviço de acompanhamento
encaminhamento social,
inserção ao mundo do trabalho
construção de saída definitiva das
ruas
c)
d) pernoite, café da manhã,
higienização, acompanhamento e
encaminhamento social
e) abrigamento / atendimento com
permanência diurna,
acompanhamento social, jantar,
café da manhã, almoço (diurno),
higienização.
Abrigos para
Famílias
Removidas de
Áreas de Risco
Equipamento para abrigar famílias vitimizadas pelas
chuvas, moradoras de áreas de risco em vilas e
favelas da cidade, cadastradas no Programa
Estrutural para Áreas de Risco e que tiveram perda
total ou parcial das casas, sem condições de retorno
às mesmas.
a) Abrigo Municipal Pompéia
b) Abrigo Municipal Granja de Freitas
24 casas asilares conveniadas com a PBH que
oferecem atendimento integral (moradia,
alimentação, cuidados básicos de saúde, higiene e
lazer)
Serviço de
Longa
Permanência
para o Idoso
Supervisão de Entidades conveniadas que executam
serviços de habilitação e reabilitação
Repasse do Benefício de Prestação Continuada, que
assegura 1 salário mínimo mensal a idosos acima de
65 anos de idade e a pessoas com deficiência.
Prepara o usuário da assistência social para a sua
Serviço de
Preparação para inserção no mercado de trabalho
- Equipamentos de Preparação para a Inclusão
Inclusão
Produtiva:
Produtiva
Qualificarte Gameleira, Qualificarte Mariano de
Abreu,
Qualificarte Oficina Pública Profissionalizante
Fonte: elaboração própria a partir material fornecido pelo Projeto Urbal
Supervisão entidades
Gerência de
Inclusão das
Pessoas Portador
de Deficiência
330
Serviço de inserção protegida ao
trabalho
Intermediação do trabalho ao
portador de deficiência. Serviços
de inserção em atividades
produtivas. Serviço de formação
sócio-profissionalizante
Quadro síntese dos programas e serviços da assistência social em Belo Horizonte
Complexidade baixa e volume
atendimento alto
Complexidade média e
Volume atendimento
médio
Complexidade
atendimento
baixo
Serviços de base local. Prevenção de
riscos e de promoção da autonomia
das famílias. ações no âmbito da
socialidade, da convivência e
fortalecimento dos vínculos
familiares, sociais e comunitários.
Serviços de base regional. Proteção
suplementar, que constitui a proteção
frente a situações de vulnerabilidade.
Nesse nível estão programas e serviços
como o Serviço de Orientação Sócio
Familiar (SOSF) e o Plantão Social.
Serviços de base central. Proteção
integral, seja em termos de moradia
ou trabalho protegido. Nesse nível
estão os programas para meninos de
rua e para adolescentes autores de
ato infracional
Núcleo de Apoio à Família – NAF
(serviço de caráter preventivo que
atua de forma sistemática e
intersetorial com famílias moradoras
de áreas mais vulneráveis da cidade);
Casa do Brincar (equipamento para o
atendimento às crianças pequenas (0 a
6 anos) e suas famílias); Socialização
Infanto-Juvenil (equipamento para
atividades de promoção, proteção,
desenvolvimento e socialização de
crianças e adolescente, na faixa de 6 a
14 anos); Núcleos de Jovens
(programa dirigido aos jovens entre
15 e 18 anos que estão fora da escola
e egressos de programas sociais e
inseridos em contextos de violência);
Grupos e Centros de Convivência
para a 3ª Idade (atendimento através
de encontros periódicos em espaços
específicos da comunidade voltados
para pessoas acima de 60 anos).
Serviço de Orientação Sócio Familiar
– SOSF (Atendimento sistemático e
continuado a famílias de crianças e
adolescente em situação de risco
pessoal e/ou social com medidas de
proteção); Muriki (Inclusão da Criança
e adolescente com deficiência na
comunidade); Serviço de atendimento
ao adolescente com medida
Liberdade Assistida; Plantão Social
(Serviço para famílias com problemas
de subsistência); Serviço de
abordagem de rua (Serviço destinado
à população de rua, que tem como
objetivo construir processo de saída
definitiva das ruas, através da
intervenção de equipe de educadores
sociais); Serviço de Habilitação e
Reabilitação de pessoa com
deficiência; Serviço de atendimento à
crianças e adolescente com medida de
proteção em abrigo
Serviços de Convivência para
crianças, adolescentes , adultos e
famílias (equipamentos para
população de rua);
Fonte: elaboração própria a partir material fornecido pelo Projeto Urbal
331
alta
e
volume
Abrigamento Temporário para
população de rua;
Abrigos para Famílias Removidas
de Áreas de Risco;
Serviço de Longa Permanência
para o Idoso;
Gerência de Inclusão das Pessoas
Portador de Deficiência;
Serviço de Preparação para
Inclusão Produtiva
ANEXO III - Mensuração da pobreza e das condições de vida em São Paulo
Mapa da Vulnerabilidade Social de São Paulo
Educação
Fator 1
Fator 2
- porcentagem de responsáveis pelo
domicilio
com
ensino
fundamental
completo no total de responsáveis
- porcentagem de responsáveis pelo
domicílio alfabetizados no total de
responsáveis
- anos médios de estudo do responsável
pelo domicilio no total de responsáveis no
setor censitário
Renda
- rendimento nominal médio do responsável
pelo domicílio
- porcentagem de responsáveis com
rendimento de até 3 salários mínimos,
inclusive renda zero, no total de
responsáveis
Idade e estrutura
familiar
- porcentagem de adolescentes de 1 a 19
anos no total de pessoas residentes no setor
censitário.
- porcentagem de responsáveis por
domicílio com idade entre 10 e 29
anos no total de responsáveis
- idade média do responsável pelos
domicílios
- porcentagem de crianças de 0 a 4
anos no total de pessoas residentes no
setor censitário
Condições
habitação
Gênero
de
- tamanho médio do domicílio no setor
censitário
- porcentagem de responsáveis do sexo
feminino com no máximo ensino
fundamental no total de responsáveis
Fonte: elaborado pela autora a partir do Mapa da Vulnerabilidade Social da população da cidade de São
Paulo, 2004.
332
Grupos identificados a partir do Mapa da Vulnerabilidade Social em São Paulo
Grupos
Condição de privação
números
%
Porcentag
em de
responsáv
eis por
domicilio
com renda
de até 3
SM
Porcentagem de
responsáveis
com ensino
fundamental
completo, no
total de
responsáveis do
grupo
Chefes do sexo
feminino com
até 8 anos de
escolaridade
Porcentagem
de jovens de
15 a 19 anos
Porcentagem
de crianças
de 0 a 4 anos
Grupo 1
nenhuma
privação
Privação muito
baixa
Baixa privação e
idosos
Média
baixa
privação e idosos
Média privação e
adultos
Alta privação e
jovens
Alta privação e
adultos
Altíssima
privação e jovens
660.287
6,3
7,7
90,6
18,4
6,5
6,0
1.642.744
15,8
20,3
73,9
39,5
8,1
6,4
1.705.694
16,4
30,3
57,7
63,7
8,8
5,8
1.183.717
11,4
42,5
45,2
75,9
10,2
6,7
2.162.920
20,8
46,2
42,7
75,7
9,9
9,3
779.509
7,5
67,2
25,2
86,4
9,8
13,6
1.867.466
18
60,4
31,5
84,6
11,2
10,3
399.312
3,8
75,9
19,1
91,8
11,1
13,7
total
10.401.649
100
Fonte: elaborado pela autora a partir do Mapa
40,1
51,1
64,1
9,5
8,4
Grupo 2
Grupo 3
Grupo 6
Grupo 4
Grupo 5
Grupo 7
Grupo 8
Indicadores de Alerta
risco à infância
- Proporção de crianças de 5 a 9 anos não alfabetizadas (também capta informações sobre
alfabetização precoce, entre crianças de 5 e 6 anos)
- Taxa de internação por doenças infecciosas de veiculação hídrica em crianças de até 5
anos de idade (por 100 mil habitantes deste grupo etário)
- Taxa de internação em decorrência de pneumonia em crianças de até 5 anos (por 100 mil
habitantes deste grupo etário)
risco à juventude
- Percentual de mães entre 10 e 19 anos de idade no total de mulheres nessa faixa etária
- Percentual de mães entre 10 e 19 anos de idade com até 7 anos de escolaridade, no total
de mães jovens
- Percentual de filhos de mulheres entre 10 a 19 anos de idade com baixo peso ao nascer
(menos de 2, kg), em relação ao total de filhos de mães jovens
- Taxa de homicídios entre pessoas de 15 a 29 anos de idade (por 100 mil habitantes deste
grupo etário)
Fonte: elaboração própria a partir Mapa da Vulnerabilidade Social da população da cidade de São Paulo,
2004
333
Políticas públicas
a) Acesso a
serviços
e
equipamentos
públicos
b)
Qualidade
dos serviços
c)
acesso
a
serviços básicos
(infra estrutura)
Fonte: elaboração
2004
a) - Distancia média do grid ao ambulatório de baixa complexidade mais próximo
- Distancia média do grid ao ambulatório de média ou alta complexidade mais próximo
- Distancia média do grid ao ambulatório que oferece atendimento odontológico mais próximo
- Distancia média do grid ao ambulatório que oferece pequenas cirurgias mais próximo
- Distancia média do grid à Unidade Básica de Saúde mais próxima
- Indicador de prioridade para instalação de novas unidades básicas de saúde
- Distancia média do grid ao Núcleo Sócio Educativo mais próximo
- Indicador de prioridade para instalação de novos Núcleo Sócio Educativo
b) - Percentual de professores de 1 a 4 series com licenciatura completa
- Percentual de alunos de 5 a 8 séries que estudam em escolas sem bibliotecas
c) - Percentual de domicílios sem rede geral de água
- Percentual de domicílios sem rede geral de esgoto
- Percentual de domicílios sem coleta de lixo
própria a partir Mapa da Vulnerabilidade Social da população da cidade de São Paulo,
334
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