KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA 1 Dr. Jorge Miranda de Almeida Resumo:O objetivo desse artigo é demonstrar a originalidade da crítica estabelecida por Kierkegaard à filosofia em sua forma tradicional, lógica e metafísica. O pensador dinamarquês estabelece como condição de validade da existência, desenvolver estratégias para que o existente e a existência sejam constituídos como obras de arte, em sua unicidade e singularidade. O concretizar da síntese existencial é ao mesmo tempo o estabelecimento da indissociabilidade entre ética e estética. Palavras chave: existência, ética, filosofia primeira. K ierkegaard é um enigma-gåde. Seu pensamento é extremamente enigmático- gådefuld, e contraditório-modstridende, como ele mesmo afirma: “por toda a vida me encontrarei sempre (KIERKEGAARD,1980, na contradição, p.132). A porque contradição a vida mesma existencial e é o contradição” apresentar-se enigmaticamente, através da pseudonimia, constituem uma estratégia fundamental e, ao mesmo tempo, intencional de Kierkegaard em demonstrar a impotência da Filosofia especulativa diante da realidade concreta, pois “a especulação não é uma comunicação de existência: nisto consiste o seu erro, enquanto pretende explicar a existência” (KIERKEGAARD, 1993, p.577). O enigma se constitui no jogo de pseudônimos, utilizado como retórica existencial na comunicação direta - indireta, com o objetivo explícito de demonstrar os limites da Filosofia especulativa, em sua forma padrão de comunicação de saber. É nesse contexto que Wittgenstein desenvolveu na obra Tractatus Logico-philosophicus os limites da linguagem entre o que é possível demonstrar e o que é do alcance do indizível. Kierkegaard, antecipando Sartre, Levinas, Wittgenstein pretende demarcar a insuficiência da pretensão filosófica em decifrar o τέλος último da existência e no Diário realiza a distinção entre a Filosofia sistemática e a Filosofia existencial com a ironia que deve permear toda a reflexão existencial. 1 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Università Gregoriana, Roma. Prof. Adjunto da UESB-BA, autor e coautor dos livros Kierkegaard pela editora Jorge Zahar (2007) e Kierkegaard no Brasil, pela editora Idéia, Sergipe (2007). Presidente da SOBRESKI – Sociedade Brasileira de Estudos Kierkegaardianos nos anos 2006-2007. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 ALMEIDA, Jorge Miranda -2- O fato que a filosofia deva começar com um pressuposto não deve ser considerado um defeito mas uma “benção”; por isso, também este “na sich” permanece uma maldição, do qual ela não pode se liberar. É esta discórdia entre a consciência, como forma vazia, e a imaginação retida do objeto fugaz, que tem o seu correspondente no problema da liberdade (KIERKEGAARD, 1980, 18). Se a Filosofia começa com a dúvida, o começo é sempre um pressuposto e não implica o engajamento radical do indivíduo singular, de forma que a reduplicação entre o saber e o agir não ocorra, mas permaneça no campo da conceitualização. Pensamos que toda a produção kierkegaardiana está contida enigmaticamente nesse enunciado. Em primeiro lugar, demonstra que a filosofia permanece no campo do puro conceito, das proposições e probabilidades e não se concretiza em uma situação e, portanto, é incapaz de uma ética verdadeira, porque não existe ética separada da realidade de fato. Em segundo lugar, porque através do método filosófico, a reflexão não se contextualiza e no campo do puro pensar não existem os conflitos e contradições reais entre necessidade e liberdade, finito e infinito, temporal e eterno. O objetivo é claro: “como pode a ilusão ser dissipada?” (KIERKEGAARD, 1993, p.43). A Filosofia, quando se limita a trabalhar com categorias do pensamento, não encontra dificuldade e elas podem ser mediatizadas, mas, enquanto fatos, existentes e existências, o conceito é impotente perante o contemporaneizar dessas realidades, exatamente, porque são realidades contraditórias que não se deixam apreender em um conceito, mas permitem a apropriação em uma relação. Em terceiro lugar, porque a Filosofia com sua pretensão de saber universal não concretizou a vida digna de ser vivida, a vida digna do homem. Simplesmente, porque, no universal, o indivíduo é dissolvido, despersonalizado de sua estrutura íntima. Isto é, não existe uma responsabilidade pessoal, o que é o mesmo que afirmar que não existe uma existência autêntica. Nesse sentido, a uma Filosofia do conceito, Kierkegaard propõe uma Filosofia da situação-tensionada; a uma Filosofia da objetividade pura e da redução da diferença à identidade do mesmo, opõe uma Filosofia da subjetividade responsável e da alteridade do primeiro Tu, como é desenvolvido na primeira série de Obras do Amor, no item B, intitulado Tu deves amar o próximo. Dessa forma, a uma Filosofia conclusiva e sistemática, é proposta uma filosofia da descontinuidade – Afbrydelse- e da inconclusividade – Uvidenskabelig - em que a coerência da reflexão não é comprovar a universalidade do conceito, mas reduplicá-lo “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA -3- existencial e coerentemente na própria existência. É no interior dessa conjuntura que se estabelece a retomada da maiêutica socrática, como reduplicação, visando estabelecer uma nova possibilidade de se fazer filosofia. No Diário se encontra o núcleo da tese kierkegaardiana: “cada vida individual é incomensurável para o conceito, porque a coisa suprema não se pode viver na qualidade de filósofo. Onde se realiza esta incomensurabilidade? – Na ação –. O lugar em que todos os homens se encontram é na ação” (KIERKEGAARD, 1980, p. 117). O filósofo dinamarquês entende por ação, exatamente o movimento do concretizar o dom e a tarefa, o que é de domínio da realidade histórica e, portanto, ética, e não metafísica ou ontológica. Kierkegaard distingue a Ética da Ontologia, ao separar a realidade situacionada, da qual fazem parte todas as contradições e mistérios que constituem o ser humano, da realidade do conceito que se satisfaz com fórmulas e enunciados da razão, como é expresso: as diversas ciências se deveriam ordenar, segundo o modo em que se acentua o ser e como a relação com o ser dá a recíproca vantagem. Ontologia e Matemática:a certeza é absoluta – aqui o pensamento e o ser se identificam, mas para um encontro estas ciências são hipóteses. Ciência do existencial (KIERKEGAARD, 1980, p. 117). O argumento utilizado é nitidamente contra a pretensão de Hegel em querer explicar a 2 existência, reduzindo-a à existência de conceitos . A existência não pode ser explicada de fora da própria existência e o erro fundamental do sistema é abstrair da existência a própria existência, ou reduzindo a existência a uma existência de passado, eliminando a contemporaneidade e os dramas existências. É por isto que Kierkegaard argumenta que toda a sua produção tem como objetivo retirar o indivíduo da multidão. Segundo Kierkegaard: “a especulação abstrai da existência: para ela o ser se torna o ser existido (o passado), e a existência um momento evanescente e dissolvido no puro ser do eterno. A especulação não pode, como abstração, se tornar contemporânea da existência e não pode conceber a existência como existência” (KIERKEGAARD, 1993, p.577). A conclusividade do pensamento objetivo é incapaz de apreender o atualizar-se do eterno no tempo, é impotente em abranger o dinamismo da síntese eterno e temporal, 2 Para Hegel a existência imediata (Dasein) do puro aparecer (Schein) se dissipa na essência (Wesen), a qual por sua vez se torna o fundamento (Grund) da existência (Existentz) como aparição (Erscheinung) da essência mesma. (nota de Kierkegaard, à Wissenschaft der Logik, II. Buch, I. Abschn., Kap.1). “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 ALMEIDA, Jorge Miranda -4- eternidade e temporalidade, liberdade absoluta e liberdade histórica, no ato em que ela está se instituindo. A Filosofia, enquanto objetividade pura, se desviou de sua origem e se perdeu no emaranhado de conceitos que construiu a partir de uma premissa falsa: “o puro homem não existe”. A crítica de Kierkegaard é contundente: “a linguagem da abstração não deixa verdadeiramente transparecer a dificuldade do existente na existência” (KIERKEGAARD, 1993, p. 425); e ainda: “como tudo aquilo que diz respeito aos problemas da existência, o pensamento abstrato faz uma incursão na esfera do cômico, de forma que o considerado pensamento puro em geral é uma curiosidade psicológica que existe só no meio da fantasia” (KIERKEGAARD, 1993, 425). A principal diferença entre o pensador existencial e o filósofo sistemático consiste em que o primeiro não define do externo, está mergulhado até a medula nos dramas e conflitos existenciais, porque ele é ciente de si mesmo “como um determinado indivíduo, com determinados dotes, inclinações, impulsos, paixões, influenciado de determinado ambiente, produto de um determinado mundo exterior” (KIERKEGAARD, 2001, 141). Enquanto o pensador sistemático é completamente indiferente a sua própria existência e 3 ao processo histórico-cultural, desde que realize o sistema . A tarefa do pensador existencial é evitar a pretensão de identificar a inteligibilidade com a especulação pura, a racionalidade com o racionalismo que reduz todos os problemas existenciais a problemas de conceitos, esquivando-se do essencial. Isto é: que o pensamento possa se traduzir em qualidade de existência, chave para a possibilidade de identificar a ética como filosofia primeira e que, para Kierkegaard, é definido a partir da categoria da Reduplicação. O pensador existencial insere a razão como faculdade fundamental no processo de fundamentar o sentido da existência, mas não como única faculdade, desconsiderando outras faculdades, como a paixão, a vontade, o amor, a abnegação, que contribuem 3 Kierkegaard no Diário, usa a seguinte metáfora contra o filósofo sistemático: “certo pensador eleva uma construção imensa, um sistema, um sistema universal que abraça toda a existência e história do mundo, etc., - mas se alguém atentar na sua vida privada, descobre com pasmo este enorme ridículo: que ele próprio não habita esse vasto palácio de elevadas abóbadas, mas um barracão lateral, uma pocilga, na melhor das hipóteses o cacifo do porteiro! E zanga-se se alguém ousa uma palavra para lhe fazer mostrar essa contradição. Pois que lhe importa viver no erro, logo que construa o seu sistema...com a ajuda desse erro”. Consultar também a obra A Doença Mortal. São Paulo: Abril Cultural,1974, p. 359 “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA -5- igualmente para a construção do sentido último. É imprescindível explicitar de início esta constatação. Para o pensador existencial, a existência não pode ser analisada nos moldes científicos. Ela não é uma ciência, é uma história, que envolve personalidades, relações e contradições paradoxais, que não se esgota em definições e demonstrações lógicas. É importante estabelecer a diferença fundamental entre o pensador subjetivo e o pensador objetivo, para compreender a dinâmica da Filosofia da Existência e a força da crítica à Filosofia de sistema. Segundo Kierkegaard: a distinção entre o pensador objetivo é indiferente com respeito ao sujeito pensante e à sua existência, o pensador subjetivo, como existente essencialmente interessado ao seu próprio pensamento, é existente nele. Portanto, o seu pensamento tem uma outra espécie de reflexão, isto é, aquela da interioridade, do domínio, com que ele pertence ao sujeito pensante e a nenhum outro. Enquanto o pensador objetivo coloca tudo em resultado, e estimula a inteira humanidade a trapacear copiando resultados e fatos, o pensador subjetivo, põe tudo em devir e omite o resultado, em parte, propriamente porque esta é a tarefa do pensador existencial, porque possui o caminho, em parte, porque como existente ele é sempre em devir. A reflexão da interioridade é a reflexão-dupla do pensar subjetivo. Pensando o pensador pensa o universal; mas como existente neste pensamento, ele o apropria em sua interioridade e existe (KIERKEGAARD, 1993, p.226). Para diferenciar o pensador existencial do filósofo objetivo, o pensador dinamarquês distingue entre o que –Hvad-“é” e o como – hvorledes- “é”, utilizando a seguinte metáfora: se alguém que vive em meio ao cristianismo entra na casa do verdadeiro Deus, com a verdadeira idéia de Deus, e se coloca a pregar , mas prega em não-verdade; e se um vive em uma terra idólatra, mas prega com toda a paixão da infinitude,se bem que os seus olhos se põem sobre o simulacro de um ídolo: onde tem mais verdade? Um prega Deus em verdade, embora, adore um ídolo, o outro prega em não-verdade, o verdadeiro Deus e portanto, adora, em verdade um ídolo (KIERKEGAARD, 1993, p. 367). O que se pretende esclarecer com a metáfora é a diferença entre o pensamento objetivo que reflete apenas sobre o que se comunica, ou seja, “se Deus é uma maçã ou uma pêra, pouca diferença faz, contanto que se fale que a pêra é Deus” (KIERKEGAARD, 1980, p.16). O que é determinante para o pensador existencial é ter plena consciência que ele não pode determinar Deus, ou o que venha a ser a realidade última, mas deve se colocar em relação, de forma que a sua relação exprima em verdade a relação para com “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 ALMEIDA, Jorge Miranda -6- Deus e dessa forma Deus se deixe apropriar pelo existente no interior da própria existência. Kierkegaard, como Kant, também admite um imperativo: “certamente não nego que eu admito ainda um imperativo do conhecimento e que por via de tal imperativo poderei agir sobre a vida dos seres humanos” (KIERKKEGAARD, 1980, p. 46). No domínio do conhecimento científico, a razão é absoluta, e o pensador não precisa tornar-se uma equação matemática para ser coerente com o seu ofício, mas, no que diz respeito ao saber existencial, é prerrogativa ética que o pensador exista coerentemente com o que diz e no como diz, entre a forma e o conteúdo. O pensador subjetivo permanece aberto ao Mistério, enquanto o pensador sistemático, em sua pretensão de domesticar e decifrar o mistério, não fundamenta a verdade última, mas hipotetiza sobre a verdade, absolutizando a hipótese e, dessa forma, fundamentando uma possibilidade, sem, contudo, provar a veracidade da hipótese. Nessa perspectiva é justificada a crítica de Kierkegaard quando denuncia que a verdade do sistema é somente uma verdade de aproximação porque no que diz respeito ao sentido último, ao Paradoxo Absoluto, a única certeza que a razão pode emitir é que “ela deve compreender que não se pode compreender” (KIERKEGAARD, 1993, p. 376) Em uma nota do Diário, é realizada a distinção entre compreender com a razão e compreender com a razão inserida na existência: o conceito de absurdo reside exatamente em compreender que não se pode e não se deve compreender; é uma categoria negativa, mas igualmente dialética, como qualquer princípio positivo. O absurdo, o paradoxo, é construído de tal modo que a razão não pode sozinha resolvê-lo e mostrar que não tem sentido. Não, ele é um sinal, um enigma, um enigma de síntese, do qual a razão deve dizer: é irredutível, incompreensível, mão não por isto, um não-sentido. (...) É um erro fundamental crer que não existam conceitos negativos. Os princípios mais elevados de todo pensar, ou seja, as provas deles, são negativos. Os combatimentos são negativos. A razão humana tem confins; é ali que estão os conceitos negativos. A razão absoluta é um produto da fantasia e isto explica aquela fantástica falta de limite pelo qual não exista algum conceito negativo, mas deve compreender tudo, como a feiticeira da fábula que termina por alimentar-se com o próprio estômago. (KIERKEGAARD, 1980) O reconhecimento da importância da razão na caminhada do ser humano está presente em toda a produção kierkegaardiana: “não é necessário pensar mal do paradoxo, porque “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA -7- o paradoxo é a paixão do pensamento e os pensadores privados do paradoxo são como amantes sem paixão: medíocres companheiros de jogo” (KIERKEGAARD, 1993, p.219). Afirmar que o paradoxo é a paixão mais alta da razão significa afirmar exatamente que a razão deve dar conta de tudo aquilo que corresponde à existência enquanto finitude; significa estabelecer, reconhecer a tensão existencial no máximo de sua força, porque só quando ela está rigorosamente tesa é que se constrói a certeza militante, “que não se pode atingir quando a luta se atenua, mas somente quando ela se torna mais forte” (KIERKEGAARD, 1993, p. 381) O sentido da existência humana não está em reconhecer uma finalidade última, não é primeiramente admitir a existência de Deus, mas é, na lógica kierkegaardiana, tornar-se morada do próprio Deus, é assumir a tarefa de ser o co-construtor e colaboradorMedarbejder do projeto de Deus, assumindo na própria carne a responsabilidade de concretizar o projeto e, dessa forma, antecipar a plenitude dos tempos no agora existencial. Para Kierkegaard, é a reduplicação que permite a atualização do projeto de Deus. É pela categoria da repetição, entendida no sentido de recuperação, que o projeto se torna atual, e cada ser humano, tão essencialmente atual quanto Adão, tão necessariamente desafiado quando Abraão, tão provocador e amado quanto Jó. É com a categoria da reduplicação que a razão atinge a sua plenitude, ao exigir que o indivíduo se reduplique coerentemente, entre o que é expresso conceitualmente e a realidade concreta em que está inserido. Para o pensador existencial, é no interior dessa categoria que a éticasegunda pode ser fundamentada. É ela que norteia a relação intrínseca entre todas as outras categorias existenciais, como a seriedade, a paixão essencial, a verdadesubjetiva, enquanto testemunho da verdade, a comunicação ética, a alteridade como fundamento do direito, o edificante e o ato de edificar etc. É com a categoria da reduplicação que o pensador existencial se diferencia do pensador objetivo e conclusivo, porque a tarefa e a relação entre finito e infinito, temporal e eterno e liberdade absoluta e a liberdade relativa não são dados prontos, não podem ser expressos através de conceitos. A reduplicação impossibilita a conclusividade, a sistematização entendida especulativamente, porque o ato de existir não se deixa apreender especulativamente; o estádio seguinte não é o resultado puro e simples do precedente e não se procede através de um encadeamento lógico; mas através da “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 ALMEIDA, Jorge Miranda -8- descontinuidade, de interrupções existenciais, porque a própria existência é plena de conflitos e incertezas. A escolha da reduplicação como eixo norteador nos permite confrontar o pensador existencial Kierkegaard com o homem Kierkegaard e se sua principal tese estiver correta, a saber, a reduplicação na vida entre aquilo que se sabe e o que se pratica, não teremos alternativa a não ser investigar o universo de Kierkegaard a partir de dentro do próprio Kierkegaard, sem, contudo, nos fundirmos em Kierkegaard, como pretendem alguns estudiosos. Sua obra não está separada de suas entranhas, como ele mesmo testemunha: “todo conhecimento em que o indivíduo esvaece de si mesmo, assim como qualquer explanação fornecida por um conhecimento desta espécie é equívoco” (KIERKEGAARD, 2000, p. 67) A reduplicação possibilita uma outra compreensão da realidade do ser humano e introduz, novamente, a tarefa da sabedoria como auto-domínio, sem cair nos domínios esotéricos, mas no sentido existencial de seriedade, que significa um compromisso intransferível e inalienável do existente, no interior da existência, ou como expressa Kierkegaard: “desta forma o indivíduo singular tem a si mesmo como tarefa de modo que ela consiste em organizar, formar, temperar, acender como um fogo, isolar como um fogo, em suma, produzir uma simetria na alma, uma harmonia que é fruto das virtudes pessoais” (KIERKEGAARD, 2001, p. 156). Somente com a maturidade existencial é possível que o indivíduo esteja habilitado a desenvolver a tarefa por excelência que compete a cada homem em sua singularidade, a tarefa de transformar a si mesmo no indivíduo universal. A reduplicação é a pedra angular da filosofia da existência e da Ética-segunda. Ela é fundamentalmente a coerência entre o saber e o concretizar o saber; coerência entre o discurso e a ação; coerência entre a teoria e a prática. Por isso, a Ética-segunda é um constante exercício de sabedoria: o verdadeiro saber se concretiza em ação e esta em prática de vida. É isto o que constatamos em Prática do Cristianismo, quando Kierkegaard afirma: “existir no que se compreende, isto é, reduplicar” (KIERKEGAARD, 1961, p. 194). O conhecimento do o bem, da verdade, da justiça, da transparência, da lei, da responsabilidade, do amor e da seriedade não significa que o indivíduo viva, necessariamente, estes valores. Expressa somente que ele conhece a sua realidade. Neste sentido, não se ultrapassa o dualismo entre a norma e ação, o mandamento e a “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA -9- prática, mas permanece prisioneiro da esquizofrenia entre a norma e a ação. A Éticasegunda supera esta dicotomia, porque internaliza na ação a exigência ética e neste ato supera a diferença entre o enunciado e a exigência. A exigência da Ética-segunda recupera a dimensão da responsabilidade e do compromisso individual. Cada indivíduo singular é responsável pela concretização da ética e pela construção de um mundo melhor. Kierkegaard no Diário, na Recensão Literária: Duas Épocas e na polêmica Revista O Instante, ao demonstrar que o mundo vive na ilusão e que quer ser enganado, está, ao mesmo tempo, denunciando uma situação indigna e propondo uma outra possibilidade de existir autêntico, o que ocorreria a partir da reduplicação que é sinônimo da Ética-segunda. O decisivo é empenhar-se em ser ético. Porém, ser ético não é obedecer a normas e princípios estereotipados de um código rígido imposto. É fazer com que cada existente, em cada ato, se reduplique em uma ação ética. É assumir-se enquanto agente, porque, “aquele que não compreende o infinito valor da ética, mesmo se esta exigência dissesse respeito a ele somente em todo o mundo, este não compreende verdadeiramente a ética” (KIERKEGAARD, 1993, p. 335). É preciso assumir a Ética-segunda com originalidade, caso contrário, ela se tornará uma abstração, uma “viseira, uma máscara e será ensinada somente aos seminaristas e sacristãos” (KIERKEGAARD, 1993, p. 335). Estamos no interior da exigência e da existência ética. Quais são as condições e fundamentos que guiarão a ação do indivíduo singular para que elas se tornem éticas? Ou a Ética-segunda se torna sinônimo de transparência, coerência, autenticidade entre o que se pensa e o que se executa, entre o que se crê e o que se vivencia, entre o que se discursa e o que se pratica, entre a teoria e a prática, ou ela não conseguirá ter ultrapassado a Ética-primeira e se tornará apenas mais uma teoria ética indiferente à existência concreta do indivíduo e do gênero humano. A Ética-segunda poderá concretizar o tão sonhado acordo entre Ética e Estética, ao 4 educar e desenvolver no indivíduo singular o cultivo pela interioridade que deve 4 Evidentemente se a existência é a concretização de um contínuo devir, que se traduz em ações de uma liberdade histórica em meio a uma comunidade, a educação desempenha um papel extremamente relevante na formação da personalidade, no cultivo do homem interior, na prática e na vivência das virtudes ou do caráter. Embora Kierkegaard não tenha sistematizado uma pedagogia da educação, tinha consciência que a maior necessidade para tornar-se ético é, primeiramente, educar-se. Não à toa demonstrava tanta admiração por Sócrates e pela “dieta de socratismo” desenvolvida na Doença para a Morte. Em seu Diário, constatamos “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 ALMEIDA, Jorge Miranda - 10 - expressar-se em ações nobres e na valorização da transparência, na vivência do amor e da justiça que se traduzirão em ações que poderão resultar em um mundo mais harmonioso e, por isto, mais belo. É nesse sentido que Wittgenstein afirma no Tractatus que “Ética e Estética são uma só”. (WITTGENSTEIN, 1994, no 6421) Esta é talvez a grande utopia da Ética-segunda. Decididamente, não é fácil ser ético. Por isto, Kierkegaard denomina como sendo o extraordinário quem consegue superar o nível do homem-cópia, do homem-verme (KIERKEGAARD, 2001, p.155), do animal-sensitivo, para edificar-se em uma singularidade que traduz em cada ação o compromisso e responsabilidade com todo o gênero humano. Se é muito mais fácil e prazeroso viver no erro, no trivial, no fugaz, por que, então, o ser humano precisaria se esforçar tanto, sacrificar-se tanto para ser ético? Ser ético implica, necessariamente, entrar em colisão - Anstö- com o mundo estabelecido, porque o mundo atual é “um mundo de porco, é um mundo gentil, formado por velhacos, mesquinhos e hipócritas, uma gente sem caráter” (KIERKEGAARD, 2001, p. 172). A falta de caráter expressa a falta de ética, pode ser constatada em cada número da Revista O Instante: “um aspecto é característico da Cristandade (Estado): a falta de virilidade, o fato de haver nos truques, na falsidade e nas mentiras o próprio ponto de força” (KIERKEGAARD, 2001, p.187). Kierkegaard fotografa a realidade atual com lucidez através da “radiografia desta fantástica miragem, desta mascarada-Maskerad-, deste jogo de sociedade, desta palhaçada” (KIERKEGAAD, 2001, p. 187). A partir da reflexão existencial que é sempre inconclusa, o ponto de partida para a Filosofia não é determinar conceitualmente o ser humano, “transformando o sujeito existente em qualquer coisa de acidental e, portanto, reduzindo a existência a qualquer coisa de indiferente, de evanescente” (KIERKEGAARD, 1993, p. 362). É claro que é muito mais fácil desenvolver uma reflexão filosófica asséptica, como faz o pensamento puro, porque é uma reflexão isenta da contradição e que reduz todos os conflitos e dificuldades, através da mediação abstrata, a uma realidade de conceitos, mas não a uma realidade de existência e, por isto mesmo, uma realidade real. esta preocupação: “Não! Educação, educação: Eis o que o mundo mais tem necessidade. Este sempre foi o contínuo tema dos meus escritos, o argumento dos meus colóquios com Cristiano VIII (Rei da Noruega, foi rei da Dinamarca antes de Frederico VII –1839-1848)”. VIII A 186. De certa forma, todos os discursos edificantes têm esta preocupação: edificar como sinônimo de educação. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA - 11 - O projeto de Kierkegaard é explicitado no Post-Scriptum: “é sobre este ponto do existir e da exigência ética em confronto com a existência, que é necessário insistir, quando uma filosofia abstrata e um pensamento puro querem explicar tudo, evitando, contudo, esclarecer o ponto essencial” (KIERKEGAARD, 1993, p. 428). O projeto existencial consiste exatamente em “esclarecer a relação entre a ética e a individualidade existente” (KIERKEGAARD, 1993, p. 428). Kierkegaard não desenvolveu uma concepção sistemática da ética, pois segundo a orientação aristotélica, a ética não é primeiramente um saber, é um poder de agir e concretizar o bem ou o mal. Esta é a primeira grande dificuldade para qualquer pensador que pretenda enveredar pelas tortuosas vias dos dilemas existenciais. O fato da ética não ter sido desenvolvida em uma obra específica exige um estudo minucioso e analítico de todas obras escritas por Kierkegaard e suas múltiplas vozes. Estudar Kierkegaard, ler Kierkegaard implica uma outra ótica de interpretação para a atividade filosófica: a reduplicação dialética - dialektik Fordoblelse. Esta nova interpretação requer que o leitor possa se colocar no papel interlocutor de Kierkegaard, se apropriando do conteúdo edificante para edificar a própria existência. O pensador existencial se apresenta ironicamente como não tendo autoridade - uden Myndighed. É a utilização da ironia que torna a conclusividade imprópria para o que diz respeito à atividade filosófica, porque o objetivo do pensador não é demonstrar que possui um saber, mas conduzir o outro a manifestar-se e concretizar-se. Eticamente “a decisão está no sujeito, a apropriação é a interioridade paradoxal” (KIERKEGAARD, 1993, p. 601) que deve traduzir em sua ação o sentido do seu existir, isto é, “a liberdade subjetiva” em que agindo ele transforma a si mesmo e o meio em que está inserido e na qualidade da ação,concretiza positiva ou negativamente o dom e a tarefa que são atribuídos a todo ser humano. A utilização da ironia no interior da reduplicação faz com que o leitor reduplique, na existência, a coerência ou descarte a superficialidade do objeto pensado. É superada a dialética do senhor e do escravo, do filósofo como detentor de um saber e do discípulo como ignorante e passivo no processo de ensino e aprendizagem. O processo é construído em uma dinâmica que envolve personalidades reais. Dessa forma, o leitor não é um anônimo, ele se constitui no essencial da reflexão existencial. Por isto, Kierkegaard “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 ALMEIDA, Jorge Miranda - 12 - considerava seus escritos endereçados a uma personalidade concreta, ao seu leitor. Os termos utilizados e que justificam a reduplicação são: meu leitor - Min Læser, meu próximo - Min Næste, meu ouvinte - Min Tilhører e têm como objetivo despertar, conscientizar e educar o indivíduo singular - den Enkelte para que ele possa interferir e transformar as estruturas da Ordem dominante. A nova perspectiva filosófica inverte a proposição hegeliana do interior como sendo idêntico ao exterior e vice-versa. O interior é a subjetividade existencial e é o decisivo para o existente, o existir e a existência. A interioridade não corresponde a um saber descomprometido e desinteressado e, por isto mesmo, um saber insuficiente e inadequado no que diz respeito às questões essenciais do existir humano. Para Kierkegaard o que é fundamental na existência é que o saber seja reduplicado no agir cotidiano. Um agir consciente e que concretize, ao mesmo tempo, a realidade que quer ser realizada. A objetividade se concretiza, não por uma conjunção filosófica e-e-både-og, como pensam os hegelianos, mas por uma disjunção existencial enten-eller como expressão da escolha ética: o assumir eticamente a responsabilidade de concretizar o projeto existencial de Deus no tempo. A partir da disjunção qualitativa, é possível afirmar que não é a objetividade que determina a subjetividade, é a subjetividade, quando se traduz em responsabilidade, que legitima e concretiza a objetividade. O pensador existencial utilizando a comunicação direta-indireta e a disjunção qualitativa – Enten Eller - se posiciona clara e criticamente contra o discurso filosófico que não se dirige ao indivíduo singular e que, em sua pretensão de universalidade, anula o indivíduo e o Absoluto em suas realidades específicas; transformando Deus em um fantoche, em uma causa necessária sem personalidade e incapaz de doar-se, de relacionar-se. Transforma o indivíduo singular, em um ser desprovido de personalidade, individualidade e singularidade, condições indispensáveis para a realização da tarefa existencial. A novidade introduzida por Kierkegaard no contexto filosófico é que o pathos existencial, ao mesmo tempo que representa o limite da filosofia e de todo saber diante do paradoxo e do enigma, incita a razão a penetrar até as vísceras do existente, para que a ação seja conseqüência de uma resolução de consciência em que o resultado de cada ação tenha um valor eterno e para a eternidade. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA - 13 - A Filosofia do limite consiste primeiramente na impossibilidade de se fundamentar linearmente uma tese filosófica que requer encadeamentos precisos, lógicos e necessários, mas lidando com conteúdos existenciais que em seu bojo são disjuntivos, contraditórios, paradoxais e não se deixam definir em conceitos estanques e cristalizados. A Filosofia em sua forma padrão exige a identidade entre o conceito e o ser. O método adequado consiste, então, em demonstrar coerentemente essa relação. Porém, no que diz respeito ao existente, ao existir e à existência, a identidade não pode ser conciliada em uma síntese, porque é próprio da condição da existência realizar a separação entre pensamento e ser, como é expresso pelo próprio Kierkegaard; “a idéia do sistema é a identidade do sujeito-objeto, a unidade do pensamento e ser; a existência, ao contrário, é precisamente a separação” (KIERKEGAARD, 1993, p.324). A existência não é desprovida de pensamento, é precisamente o oposto. É um pensamento que abarca a totalidade do ser humano e tudo aquilo que o constitui. O que se propõe não é anular a identidade entre ser e pensamento, mas distinguir que o ser não pode ser conceitualmente reduzido ao pensamento, porque seria uma leitura reducionista e determinista. Kierkegaard estabelece um intervalo que distingue o sujeito do objeto, o pensamento do ser, como condição de superar a tautologia do ser e do pensamento. O intervalo que distingue o ser e o pensamento é exatamente o devir da liberdade enquanto possibilidade que se concretiza em um ato de liberdade. Porém, não é uma liberdade de pensamento, mas uma ação que produz o próprio existente, de forma que ser livre é ser ético. Existir é concretizar escolhas éticas, que respondam positivamente ao convite do doador do dom. Quando Kierkegaard em Enten-eller afirma que o indivíduo singular “não cria si mesmo quando escolhe si mesmo” (KIERKEGAARD, 2001, p. 95) está realizando uma distinção fundamental entre o indivíduo singular e todo o restante da natureza, pois “enquanto a natureza é criada do nada, enquanto eu mesmo como personalidade imediata sou criado do nada, se bem, como espírito livre eu sou gerado do princípio de contradição, ou, gerado graças ao fato que escolhi a mim mesmo” (KIERKEGAARD, 2001, p. 95). O que Kierkegaard compreende por princípio de contradição oferece duas possibilidades de leitura: Por um lado, a eternidade que se apresenta no tempo, isto é, “a eternidade “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 ALMEIDA, Jorge Miranda - 14 - toca o eterno do homem no tempo” (KIERKEGAARD, 1983, p. 442), o que faz com que a possibilidade enquanto o futuro possa constituir um sentido. Por outro lado, o princípio de contradição estabelece a separação radical em que o Absoluto “criando se retira, criando Ele comunica, de forma da dar independência ao indivíduo com relação a si” (KIERKEGAARD, 1993, p. 400). O distanciamento de Deus para com O indivíduo estabelece um dever ético a ser desenvolvido no interior da tríade vontade, liberdade e responsabilidade. Por isto, ele não se cansa de repetir que “a tarefa ética é por sua vez, a origem de todas as tarefas” (KIERKEGAARD, 1983, p. 203); “a ética é e continua sendo a tarefa suprema que é colocada para cada ser humano” (KIERKEGAARD, 1993, p.339); e ainda: “a vitória da ética sobre a vida e sobre todas as ilusões” (KIERKEGAARD, 1993, p.445) consiste essencialmente em tornar-se um indivíduo singular. É dessa forma que é possível compreender que não existe entre o indivíduo singular e Deus nada que não seja a ética, isto é, “o único meio através do qual Deus quer comunicar com o homem, e o único meio do qual o indivíduo pode falar com ele, é o empenho ético” (KIERKEGAAD, 1980, p. 148). A inconclusividade da reflexão filosófica e a reduplicação dialética são os elementos da nova Filosofia inaugurada por Kierkegaard. A este respeito Karl Jaspers na conferência sobre Kierkegaard realizada em fevereiro de 1951, no Cub Pen de Basiléa, nos oferece uma demonstração da crítica e ao mesmo tempo da atualidade do dilema filosófico, iniciado com Kierkegaard: Ao se fazer filosofia na hora presente, com consciência do momento histórico em que estamos inseridos, ao darmo-nos conta de que aconteceu algo irreparável e que transformou definitivamente a existência humana. Ao constatarmos que não houve uma pessoa ou uma nação que tenha conseguido dominar a turbulência deste acontecimento e que não existe uma realidade ética ou religiosa que seja capaz de tomar as rédeas e salvar da catástrofe, oferecendo, por sua vez, uma ascensão para novas possibilidades, quando cremos que em um mundo cada vez mais frio está sucedendo o ocaso da filosofia ocidental na forma como se legitimou desde Parmênides até Hegel...nos damos conta que os avatares desta época de transição, da pureza de complexão que tem os pensadores como Nietzsche e Kierkegaard, que com as mesmas ferramentas discursivas herdadas da tradição escapam da órbita secular para novas latitudes e contudo, são capazes de assinalar uma nova orientação...Se a filosofia perde cada dia sua importância em um mundo marcado por cataclismos espirituais e materiais pelos quais estamos passando em direção a um futuro desconhecido, isto se deve ao fato de não se saber mais como manejá-la. A filosofia é algo tão próprio do homem e está pedindo uma nova configuração...Kierkegaard e Nietzsche nos têm aberto os olhos. Quando os sentimos obrar sobre nós se tem a “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA - 15 - impressão de que nosso olhar vai ganhando luz. O problema está em saber como vamos usar estes olhos, como vamos viver e o que vamos fazer (JASPERS,1995, pronunciamento a Rádio de Basiléia). Kierkegaard inaugura uma nova configuração para a Filosofia, ao introduzir na reflexão filosófica a descontinuidade, o paradoxo, a contradição existencial, isto é, o fato de que o homem, enquanto síntese de finito e infinito, temporal e eterno, necessidade e liberdade, é inconciliável em uma mediação ou uma apreensão conceitual. A ética existencial, a verdade subjetiva, a responsabilidade radical, a certeza militante são todas categorias que encontram na interioridade do indivíduo singular a sua força e razão de ser. Não são categorias objetivas que castram a vontade, o desejo, mas, uma nova forma de racionalidade que não se reduz aos imperativos da razão positivista, da razão empíricoanalítica das ciências naturais. O novo ponto de partida do filosofar implica uma nova racionalidade, em que sua coerência é testada não do exterior, mas de dentro da própria situação; racionalidade que é sinônimo do próprio agir ético, porque os preceitos éticos existem para serem atuados. Racionalidade que supera a esquizofrenia da subjetividade e objetividade puras, porque o indivíduo singular ao se apropriar da verdade, enquanto subjetividade, exprime na ação responsável a objetividade necessária à construção da dignidade humana. As decisões são subjetivas e, portanto, éticas. Do contrário não seriam ações éticas e sim tirania do dever, como realizado nas sociedades comunistas, “em que o ético era considerado como qualquer coisa de estranho à própria personalidade” (KIERKEGAARD, 2001, p.145). Por outro lado, o princípio do dever é objetivo, pois “unicamente quando é o indivíduo mesmo o universal, unicamente dessa forma, o ético se deixa realizar em concreto” (KIERKEGAARD, 2001, p. 148). Isto é, o indivíduo ético assume, com maturidade e responsabilidade, exprimir com tudo o que constitui o seu ser, o “individual e o universal. É esse o segredo que tem a vida individual de ser ao mesmo tempo, o individual e o universal, pois quem vive eticamente se esforça em se tornar o homem universal”. (KIERKEGAARD, 2001, p. 148) A Filosofia deve recuperar a sua fonte, orientando-se ao homem em sua condição humana e existencial e colocar-se a serviço desta condição. A inconclusividade da Filosofia encontra nessa tarefa a sua razão de ser, pois ela não deve impor, deve convidar; ela não pode possuir uma verdade, deve ser apenas meio para que o indivíduo possa construir, com a sua ajuda, a verdade. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 ALMEIDA, Jorge Miranda - 16 - Pensamos que é tarefa da razão encontrar uma justa medida que possa direcionar a contradição da existência e no seu interior as contradições entre o direito e a justiça, a história e a natureza, o indivíduo singular e a comunidade, o público e o privado etc. Cada indivíduo singular é filho de um tempo, de uma história, portanto, de uma cultura determinada, de um espaço físico-geográfico situado, não é uma ilha deserta. A razão é soberana neste território. Qual seria a justa medida da razão? O que Kierkegaard entende por razão? Qual é a pertinência da compreensão da faculdade da razão por Kierkegaard? A primeira dificuldade em determinar o conceito de razão para Kierkegaard é que ele utiliza Fornuft e Forstand como sinônimos e são traduzidos nos diversos idiomas como entendimento, inteligência, compreensão, intelectualidade etc. O termo Fornuft em língua dinamarquesa significa: razão, bom senso, capacidade de juízo; enquanto Forstand significa intelecto, capacidade mental, raciocínio, inteligência, discernimento, critério, sentido. Kierkegaard não desenvolve uma análise da faculdade da razão. Ele prefere aprofundar a utilização da razão por parte do indivíduo singular em direção a concretização de si mesmo e da tarefa existencial. O que se constata no interior de sua obra não é um desmerecimento da razão. Pelo contrário, na prática, ele a eleva à condição capital para tornar-se indivíduo. A diferença básica é que para ele a razão não pode atingir o absoluto, sem cair no domínio da possibilidade, do pressuposto. Não existe uma razão absoluta. Mas é preciso desenvolver “um esforço diuturno no extremo recesso da interioridade” (KIERKEGAARD, 1993, p. 575) para estabelecer “uma distinção ao interno do âmbito total da razão: que existe uma razão mais alta, é também, uma razão” (KIERKEGAARD, 1993, p. 574). Em Migalhas Filosóficas, se constata novamente a importância da razão para diagnosticar-lhe os limites: “assim o maior paradoxo do pensamento é querer descobrir algo que ele próprio não possa pensar” (KIERKEGAARD, 1993, p. 62). A razão é limitada do paradigma da entrada de Deus no tempo, sem contudo, alterar o percurso da história. Para Kierkegaard “Cristo é o paradigma da situação da contemporaneidade em que cada geração tem a tarefa de recomeçar em Cristo e de expor a sua vida como um paradigma” (KIERKEGAARD, 1993, p. 744). É este o paradigma que “supera o intelecto” e diante dele não tem outra opção que a disjunção: enten-eller- ou...ou... “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 KIERKEGAARD: PENSADOR DA EXISTÊNCIA - 17 - Referências Bibliográficas: KIERKEGAARD. Diario. Brescia: Morcelliana, 1980 _________Post-scriptum conclusivo não científico às migalhas filosóficas. Milano: Sansoni Editori, 1993 _________Enten-Eller. 6ª edição. V volumes. Milano: Adelphi Edizioni, 2001 _________A Doença Mortal. São Paulo: Abril Cultural, 1974 _________Escola do Cristianismo. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1961 _________O Fortalecimento do homem interior. Rio de Janeiro: edição do autor, 2000 _________Prática do Cristianismo. Madri: Ediciones Guadarrama, 1961 _________Gli Atti dell’amore. Milano: Rusconi, 1983 _________Migalhas Filosóficas. Petrópolis, RJ : Vozes, 1993 WITTGENSTEIN, Tractatus Logico-philosophicus, São Paulo: Edusp, 1994 “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007