A "velha história" francesa no ensino superior: o exemplo de Affonso D'Escragnolle Taunay na Faculdade Livre de Filosofia e Letras de São Paulo Itamar Freitas1 Os itinerários da História no ensino superior em São Paulo são marcados por vários tipos de experiências. Uma delas foi a instituição de cadeiras isoladas dentro dos primeiros estabelecimentos de ensino superior não profissionais, ou seja, das escolas e faculdades que não formavam bacharéis em direito, medicina e engenharia. Num período imediatamente anterior à legislação específica sobre o ensino - o Estatuto das Universidades (1931) - esse tipo de prática proliferou-se nos cursos de formação de padres, músicos, damas da alta sociedade e bacharéis em filosofia. A configuração mais comum foram as matérias de história do Brasil e História universal, ambas, na maioria dos casos, ministradas por um mesmo titular. Essa comunicação traz à luz uma agência, um personagem e um documento-chave que expressam parte da experiência do saber histórico transformado em disciplina "universitária" em São Paulo, no início da década de 1910. O texto procura explorar vestígios das práticas docentes de um personagem que participou, nos anos 1930, da montagem dos primeiros cursos de graduação em História no Brasil. Dessa forma, ao problematizar o significado da conferência "Os princípios gerais da moderna crítica histórica", pronunciada por Affonso D'Escragnolle Taunay, catedrático de história, na Faculdade Livre de Filosofia e Letras de São Paulo em 1911, procuro criar condições para resolver uma questão mais genérica que, no momento, ocupa o meu horizonte de expectativa: o que havia de superior nos cursos superiores de história inaugurados em 1934 e 1935, na Universidade de São Paulo e na Universidade do Distrito Federal? Da história para a filosofia Antes de constituir-se como curso de formação superior – um agregado de cadeiras que formariam o bacharel e o licenciado a partir de 1934 – a História constituía uma cadeira que poderia ministrar cursos de conteúdo voltado para a arte, igreja, economia, direito, entre outros temas. Na Faculdade Filosofia e Letras, como em muitas instituições do gênero na Europa do último quartel do século XIX, a história não rendia um diploma, porém, compunha os saberes necessários para a formação do licenciado em letras. De maneira idêntica foi 1 Doutorando do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação – História, Sociedade e Educação. Esse trabalho faz parte das atividades do Projeto de Cooperação Acadêmica – PROCAD/CAPES/2001, parceria entre a Universidade Católica de São Paulo e a Universidade Federal de Sergipe. 1 pensada a primeira faculdade de filosofia aberta no Brasil e semelhante status obteve a cadeira de história nesse estabelecimento de ensino. A Faculdade Livre de Filosofia e Letras de São Paulo fazia parte do projeto de implantação de uma universidade católica no Brasil, concretização de uma das teses do II Congresso Católico Brasileiro, realizado no Rio de Janeiro, em 1908 (Lacombe, 1976, p. 81). Esse projeto, que seria gradativamente implantado – partindo de faculdades especiais – nascia em 1908 sob o modelo da Universidade de Louvain, incorporando, com isso, o movimento neotomista iniciado pelo Cardeal Mercier. Para o prelado belga, o aristotelismo era “simultaneamente a filosofia verdadeira, ao menos em substância, e a verdadeira filosofia... a ciência que completa a unidade do saber” (Sentrou, apud. Costa, 1998, p. 58; Derosa, 1916, p. 15). A despeito da adoção do modelo doutrinário de Louvain, o neotomismo viria também reforçar o combate às “más idéias” que grassavam na mocidade, a geração nascida no cipoal dos materialismos configurados em evolucionismo, monismo, positivismo e tantos outros “ismos” reinantes na virada do século XIX para o século XX no Brasil (cf. Relatório de 1916, p. 7; Costa, 1956, p. 389-390). Assim, com o amparo desta doutrina, a instituição projetada por Dom Miguel Kruse viabilizaria não somente a sua missão espiritual, mas a sua tarefa patriótica, já que o estudo da filosofia poderia fundamentar a discussão sobre economia e política brasileiras. A Faculdade de Filosofia e Letras funcionava à noite, nas instalações do Mosteiro de São Bento que lhe fornecia suporte administrativo. Possuía biblioteca – composta pela doação de professores e alunos e era auxiliada pelo Centro de Filosofia e Letras (Relatório de 1912, p. 21). Este órgão, uma espécie de braço extensionista, tinha a função de promover, fora dos cursos regulares da Faculdade, o “estudo da filosofia em particular, e da literatura em geral, oferecendo conferências quase que semanalmente aos sócios da entidade – alunos, ex-alunos, professores e convidados (Anuário da FLFL, 1911, p. 63; 1913, p. 67). Os matriculados eram estudantes do nível superior e profissionais estabelecidos nas carreiras liberais. O quadro dos resultados dos exames em 1916 dá uma mostra dos freqüentadores do estabelecimento; dos vinte e três alunos com origem identificada (dos sete ouvintes não há informações) quatorze eram ligados ao direito, três à politécnica, dois à medicina, dois à teologia e dois ao magistério (Relatório de 1916, p. 5). Para melhor compreender o papel da história na Faculdade Livre de Filosofia e Letras é importante ter em mente que essa instituição fora criada para ministrar o ensino superior em filosofia “e das matérias que, segundo o uso das universidades, se reúnem com o título de 2 letras, compreendendo a literatura em geral e as ciências históricas e sociais (Estatutos, 1912, p. 6). Por isso, foram criadas, inicialmente, as cadeiras de filosofia, história geral, e literatura. Para o ano seguinte (1912), projetava-se constituir em sessões (com a criação de cadeiras complementares) as áreas de letras e de história. Mas, enquanto isso não ocorria, apenas a sessão de filosofia estava estabelecida, fornecendo cursos de lógica criteriologia, ontologia, cosmologia, psicologia, teodicéia, filosofia moral e história da filosofia. Essas matérias, por sua vez, deveriam ocupar quatro das cinco aulas semanais da Faculdade. A história, assim como a literatura, poderia ser estudada em quaisquer dos três anos que duravam o curso e estava submetida ao mesmo processo avaliativo das demais disciplinas: freqüência de 50% das aulas, avaliação anual com aprovação a partir da nota cinco e conceitos variando entre a grande distinção notas 9,5 a 10, distinção – 9, plenamente – 6 a 8, e simplesmente, nota 5 (cf. Relatório de 1912, p. 29). No período 1908/1917, o curso de filosofia e letras foi sustentado pelos catedráticos Monsenhor Carlos Centrou (filosofia, e literatura francesa), Dom Miguel Kruse (literatura), Monsenhor Silveira Barradas (literatura portuguesa) e o próprio Affonso D’Escragnolle Taunay, catedrático de história universal. Da física para a história O regente da cadeira de história, o professor Taunay, esteve presente na Faculdade desde a sua fundação. Era muito ligado aos Beneditinos, fora escolhido, inclusive, para narrar a história da ordem no Brasil. Sua formação inicial era a engenharia, cursada na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Daí a sua contratação como professor de física do Ginásio São Bento e da Escola Politécnica de São Paulo, em 1911, na cadeira de física experimental. Tal saber, contudo, não segurou o professor durante muito tempo, já que em 1917 foi convidado para assumir a direção do Museu Paulista. Para Odilon Nogueira Matos (1977), maior especialista na obra de Taunay, outros motivos o levaram ao território de Clio. Os contatos com os mestres Capistrano de Abreu e Alfredo Moreira Pinto, a convivência com o seu pai – o também historiador, Alfredo D’Escragnolle Taunay (Visconde de Taunay) –, a convivência com os sócios do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, onde foi admitido em 1911, e a própria experiência da família – no governo do Paraná e de Santa Catarina, na Missão Artística francesa do início do século XIX, na Guerra do Paraguai, e na fundação de agências como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Letras – foram os grandes responsáveis por sua transferência das ciências exatas para os domínios da história. Da Faculdade Livre de Filosofia e Letras e do Ginásio de São Bento são poucos os registros coletados que informam sobre práticas docentes. Sabe-se que ministrou algumas conferências 3 promovidas pelo Centro de Filosofia e Letras, que foi professor dos seus futuros substitutos na cadeira de História do Brasil na USP, Alfredo Ellis Júnior e Sérgio Buarque de Holanda, ajudando a esse último a publicar o seu primeiro artigo (APL, apud. Oliveira Júnior, 1984, p. 17 n.; Holanda, 1982, p. 1175). Da sua produção historiográfica, todavia, pode-se inferir que o professor Taunay soube integrar à atividade de pesquisador a labuta do professor. Alguns textos publicados tinham origem nas exposições na Faculdade e, de modo inverso, alguns cursos de história do Brasil devem ter servido como laboratório para os seus trabalhos em livro. Isso é o que indicam alguns marcos bibliográficos inscritos em sua trajetória como “A missão artística de 1916 e o meio colonial fluminense (Revista do IHGB, 1914), conferência organizada pelo Centro de Filosofia e Letras a 28 de novembro de 1912, e “Os princípios gerais da moderna crítica histórica” (Revista do IHGSP, 1914), “aula inaugural” do curso de história do universal, ministrada a 3 de maio de 1911. A aula inaugural tem sido apreciada como documento de valor historiográfico, principalmente, por ser um distinto lugar onde Taunay disserta sobre a natureza do conhecimento histórico e os limites dessa nova ciência. Para Odilon Nogueira Matos (1998), peça é “uma admirável lição sobre crítica histórica, das primeiras certamente a serem elaboradas no Brasil”. É obra não superada, “apesar dos quase setenta anos que dela nos separam” (1977, p. 27, 41, 74). Para Oliveira Júnior (1994), o documento apresenta “um balanço da situação do conhecimento histórico no seu tempo”. O autor é, portanto, um “historicista romântico-erudito”. Entretanto, “não há nele senão uma conjugação de idéias e concepções sobre o conhecimento histórico que objetivam perpetrar a sua meta primordial: celebrar as tradições paulistas através do conhecimento científico da história” (Oliveira Júnior, 1994, p. 1994). Em síntese, “os princípios gerais são um instrumental cientificista para construir uma história não problematizadora; uma história memória”. Diferentemente dos autores citados, proponho uma abordagem que privilegia o texto como um registro sobre o ensino de história, dando a conhecer o que lia e como lia o professor Taunay, o material que enformaria o aluno de sua matéria e o futuro bacharel em filosofia e letras. Isso não impede, porém, que o diálogo entre as conclusões deste trabalho e as questões tipicamente historiográficas levantadas por Odilon Nogueira Matos e Oliveira Júnior, venha a ser estabelecido futuramente. Da Sorbonne para a Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo Tratar de “Os princípios gerais da crítica histórica moderna” como fonte das práticas docentes de Taunay é enfrentar um problema fundamental. O registro da aula é um trabalho publicado 4 na Revista do IHGSP em 1914 e esse fato nos leva a indagar: o texto impresso corresponde ao texto lido? Na hipótese de não serem a mesma coisa, o que teria sido acrescentado, interpolado ou omitido no percurso entre a aula e a tipografia? Ficamos então condicionados a essa dúvida. Entretanto, seja qual for a resposta a esse problema, por certo, as conclusões sobre o exame do “texto publicado” não serão significativamente alteradas. “Os princípios gerais da crítica histórica moderna” é um trabalho breve (20.000 caracteres, uma hora e meia de fala, aproximadamente) que se inicia com uma discussão sobre a emergência do espírito crítico na sociedade moderna. Para Taunay, até o século [XVIII], “a alma da humanidade” era caracteristicamente emotiva e partidária. Refletindo-se na produção do saber, o espírito inspirava uma história partidária, panegírica e apologética. Com a instauração do espírito crítico, o debate e a discussão tornaram-se lugar comum, entre historiadores, sobretudo, provocando mudanças no ofício. O historiador foi obrigado a afastar-se de Cícero, no que diz respeito ao caráter pedagógico da história e, ao mesmo tempo, aferrar-se ao seu principal aforisma sobre a escrita: não ousar dizer algo falso, não ousar dizer algo que não seja verdadeiro, afastar qualquer suspeita de complacência e de rancor (Cícero, in. Hartog, 2001, p. 151). Justificado está, o título da “conferência” – Os princípios gerais da moderna crítica histórica – que é distribuída equilibradamente pelos seguintes tópicos: a necessidade da heurística e o emprego das ciências auxiliares; o trabalho de crítica externa, de restauração e de procedência; a crítica interna, de interpretação, de sinceridade e exatidão; instruções para agrupar os fatos, de forma negativa; o estabelecimento de relações entre os fatos, de forma positiva e as formas de exposição da matéria; e conclusão, que responde sobre as funções da escrita da história e, por conseguinte, do ensino da matéria correspondente. Pelo exposto, percebe-se que se trata dos passos fundamentais da crítica histórica elaborados no final do século XIX. Mas, onde o professor Taunay teria buscado os seus referenciais? A única nota apensa à conferência indica o emprego “das idéias de diferentes autores e críticos de história contemporâneos” (p. 344). As obras que expunham esquematicamente os passos da crítica, naquele período, foram produzidas por franceses e alemães. Dentre os mais difundidos estavam os livros introdutórios de Droysen, Bernheim, Monod, e Langlois e Seignobos. Na conferência, Taunay não explicita, mas o exame da estrutura do seu trabalho e a coleta dos conceitos fundamentais levam-me à constatar que o professor Taunay fundamentou-se no trabalho de Langlois e Seignobos, especificamente no texto da Introduction aux études historiques, publicado treze anos antes. Este manual expunha as regras do método crítico” e representou, na época em que foi lançado (1898), o rompimento 5 definitivo dos historiadores profissionais com os amadores da historiografia: os diletantes, os compiladores, os literatos e os filósofos da história. O texto era o resultado das aquisições da disciplina em território francês, desde os anos 1870, e das apropriações de práticas alemãs, desenvolvidas no campo da filologia e da crítica documental. A Introduction condensava as conferências proferidas por Langlois e Seignobos no primeiro curso de historiografia da Sorbonne, no ano acadêmico de 1896/1897. Era, portanto, um “ensaio sobre o método” que procurava indicar o caráter e os limites da disciplina, respondendo a questões do tipo: o que é possível se conhecer do passado? O que é documento, e como tratá-lo? Como agrupar os fatos e construir a obra histórica: Enfim, como realizar as tarefas da busca de fontes (heurística), da análise (crítica documental) e da síntese (exposição) históricas? Na conferência, de temática semelhante, Affonso Taunay se utiliza das mesmas estratégias do manual francês. Acompanhemos, então, as sete partes do trabalho iniciando do lugar onde Taunay aborda os conhecimentos preliminares necessários a todo aprendiz, como a noção de documento e os limites do saber: A história se faz, com os documentos. Os atos cujos vestígios materiais desapareceram estão para ela perdidos e quando muito podem concentrar-se no domínio das reminiscências coletivas (Taunay, 1914, p. 236). Na Introduction esse texto foi grafado da seguinte forma: L’ histoire se fait avec des documents. (...) Or, toute pensée et tout acte qui n’a pas laissé de traces, directes ou indirectes, ou dont les traces visibles ont disparu, est perdu pou l’histoire: c’est comme s’ il n’avait jamais existé. (Langlois e Seignobos, 1992, p. 29). A segunda parte da conferência apresenta as operações de análise, a crítica documental em suas versões de restauração e de procedência: De posse das peças documentais que lhe servirão de base para a obra futura, cabe ao escritor iniciar uma série de operações das mais trabalhosas, a crítica de introspecção (...). Depois da comparação, impõe-se a crítica de origem sabendo-se quanto é expontânea no espírito humano a tendência em aceitar como autênticas as indicações de proveniência (Taunay, 1914, p. 329). Seguem-se-lhes, na terceira parte, as operações analíticas – as críticas de interpretação, de sinceridade e exatidão – e têm início as primeiras operações sintéticas. Nesse segmento, Taunay incorpora um princípio fundamental para a historiografia “moderna”: 6 Os progressos da atualidade introduziram, porém, um dos mais poderosos ditames da crítica o que se chamou a dúvida metódica. Aplicada às afirmações dos documentos, a dúvida metódica torna-se a desconfiança metódica. A priori, deve o historiador desconfiar das afirmações de um autor, mesmo quando é tido como muito verídico (Ibidem, p. 332, grifos do autor). Ici, comme en tout science, le point de départ doit être le doute méthodique. Tout ce qui n’est pas prouvé doit rester provisoirement douteux; pour affirmer une proposition il faut apporter des reisons de la croir exacte. Appliqué aux affirmations des documents, le doute méthodique devient la défiance méthodique (Langlois e Seignobos, 1992, p. 134). Sobre o agrupamento dos fatos, o professor afirma que “a história é obrigada a combinar, com o estudo dos fatos gerais, a apreciação de outros, particulares, a adotar um caráter misto de ciência de generalidades e narrativa de aventuras”. E, continua: Para construir a história geral é necessário ainda procurar todos os acontecimentos que possam explicar quer o estado de uma sociedade, quer uma de suas evoluções. É preciso rebuscá-los em todas as ordens de fatos políticos, religiosos, deslocamentos de população, inovações de qualquer natureza; o importante é que tenham tido ação decisiva (Taunay, 1914, p. 338). Pour construire l’histoire générale il faut chercher tous les faits qui peuvent expliquer soit l’état d’une société, soit une de ses évolutions, parce qu’ils y ont produit des changements. Il faut les chercher dans tous les ordres de faits, déplacement de population, innovations artistiques, scientifiques, religieuses, techniques, changement de personnel dirigeant, révolutions, guerres, découvertes de pays. Ce qui importe, c’est que le fait ait eu une action décisive (Langlois e Seignobos, 1992, p. 203). Na quinta parte, Taunay apresenta as regras para um adequado “raciocínio construtivo’ quando justifica que “os fatos históricos fornecidos pelos documentos não são bastante para ocupar a composição, há claros a preencher”. Resumindo alguns parágrafos da Introduction, enfatiza 7 A necessidade do esforço construtivo, a que obedece o historiador, tomadas as cautelas para que se não entrelacem o raciocínio e a análise documental, as conclusões de um exame de documentos e os resultados da argumentação; para que uma conjectura não assuma o aspecto da certeza, nem se lance mão de conclusões defeituosas (Taunay, 1914, p. 339). A temática do raciocínio construtivo ocupa também a sexta parte, assim como a construção das fórmulas gerais (teses) e as mais adequadas formas de exposição da matéria. A esse respeito, Taunay faz um alerta: Não se deve escravizar o historiador de hoje à forma, mas também não lhe assiste agora, mais do que nunca, o direito de traçar a sua narrativa com um estilo incorreto, em língua frouxa e sem relevo (Ibidem, p. 343). Ce n’est pas à dire, bien entendu, que la “forme” soit sans importance, ni que, pourvu qu’il se fasse compreendre, l’historien ait le droit d’avoir une langue incorrecte, vulgare, lâche ou pâteuse. Le mépris de la rhétorique, des faux brillants et des fleurs en papier , d’exclut pas le goût d’un style pur et ferme, savoureux et plein (Langlois e Seignobos, 1992, p. 252). A conferência é finalizada com a defesa da cientificidade da história – centrada nos documentos –, a premência da orientação da pesquisa para a idade moderna – sobre a qual há copiosa documentação –, a crítica à história magistra vitae, e a apresentação de uma finalidade mais abrangente para o saber de Clio: Sem falar no íntimo, indestrutível, cada vez mais poderoso nas sociedades cultas, que liga vivos e mortos numa solidariedade intensa entre a humanidade vivente e a humanidade dos túmulos, constitui a história indispensável elemento para a compreensão das ciências políticas e as sociais em vias de formação. Eis porque a lingüistica, o direito, a economia política, a ciência das religiões tomaram, nos tempos contemporâneos, a forma de ciências históricas. E ainda: reside o principal mérito da história na sua superioridade incomparável, como instrumento de cultura intelectual; quando acostuma o espírito a reagir contra a credulidade sistemática! Quando dá ao homem a certeza de que a evolução das sociedades não se produz sob a ação das mesmas causas que determinam a evolução animal! Essas citações dão uma mostra da transposição textual do manual de Langlois e Seignobos para a conferência do professor Taunay. Observando-se os dois textos por inteiro, será fácil 8 constatar que das dezessete partes da Introduction, quinze foram referenciadas, por certo, de maneiras diversas: resumindo parágrafos, modificando a ordem de exposição dos exemplos, transcrevendo o tópico frasal e sintetizando as questões e exemplos, transformando nota de pé-de-página em texto principal, redistribuindo os capítulos do manual e, é claro, transcrevendo integralmente as passagens fundamentais. Examinar as formas de enunciação destacando as formas encontradas pelo “tradutor” para ajustar o texto ao público e ao contexto requereria muito espaço e não vem ao caso fazê-lo no momento. Todavia, é forçoso comentar algumas mudanças ocorridas nesse processo de transposição que resultaram na produção de um novo sentido, talvez, para o texto dos franceses. Na Introduction, o “advertissement” estabelece os limites do manual e também elege os seus antípodas, no caso, os que buscaram as leis da história, os positivistas comtianos como historiador P. J. Buchez. Na conferência, as ações do Papa Leão XIII, franqueando os arquivos do Vaticano e reiterando o aforisma de Cícero apresentam, na introdução, a postura crítica e atual da Igreja em relação ao conhecimento científico. Na conclusão da conferência, porém, mudanças na tradução podem indicar um encaminhamento bastante singular para o sentido do texto. Ao afirmar que “le principal mérite de l’histoire est d’être un instrument de culture intellectuel”, Langlois e Seignobos apresentam três razões: “D’abord, la pratique de la méthode historique d’investigation (...) est très hygiénique pour l’esprit, qu’elle guérit de la crédulité (...); elle montre un grande nombre de sociétés différentes, preparè à comprendre et à accepter des usages variés (...); [por fim], préserve de la tentation d´expliquer par des analogies biologiques (sélection, lutte pour l´existence, hérédité des habitudes, etc.) l’evolution des societés, qui ne se produit pas sous l’action des mêmes causes que l’evolution animale (Langlois e Seignobos, 1998, p. 256-257). Se observarmos o fragmento da conclusão de Taunay, transcrito no parágrafo anterior, verificaremos que o professor Taunay excluiu a segunda finalidade da história – o respeito às diferenças entre as sociedades – e agregou uma função judicativa: a história “responde ao chamamento dos que recorrem ao seu veredicto como o inflexível juiz, e (...) faz ouvir essa voz que Pedro II proclama a antecipação do julgamento divino (Taunay, 1914, p. 344). Além disso, “carregou nas tintas” ao traduzir as duas outras funções principais da história: a primeira, “est très higienique pour l’esprit, qu’elle guérit de la credulité”, assim traduzida, “quando acostuma o espírito a reagir contra a credulidade sistemática!”. E a segunda, “préserve de la tentation d’expliquer par des analogies biologiques... le evolution des sociétés, que ne se produit pas sous l’action des mêmes causes que l’evolution animale”, traduzida de forma enfática, “quando dá ao homem a certeza de que 9 a evolução das sociedades não se produz sob a ação das mesmas coisas que determinam a evolução animal!” A mudança, como exposta, não se opera somente na tradução das palavras, mas também com a inserção das figuras de exclamação (!) inexistentes no texto original. Os indícios das formas de apropriação do manual sorbonnista pelo professor Taunay para uso na Faculdade Livre de Filosofia e Letras de São Paulo, não passam de luzes de pirilampo (na feliz metáfora braudeliana). São clarões instantâneos sobre o ensino de história nos anos 1910 em São Paulo que podem, por hora, apenas orientar a elaboração de algumas hipóteses. A primeira delas é que a professor Taunay estaria instrumentalizando-se com a mais atualizada literatura, já que a Introduction sintetizava práticas hegemonicamente alemãs (a crítica documental) e francesas (a narrativa) e era, ainda, o vade mecum no ensino superior da França, tanto para os “normaliens” como para os “sorbonnards” – pelo menos até os primeiros “combats” desferidos pela geração fundadora dos Annales. Pensando nessa direção, a possibilidade de criar-se uma seção de história na Faculdade, com posterior oferta de títulos de bacharel em história pode ter significado muito mais do que uma simples formalidade estatutária. A segunda hipótese procura pensar as alterações promovidas por Taunay como a tentativa de transformar a ciência da história – e em seguida, o saber ensinado da história –, em mais um instrumento da cruzada católica contra o cientifismo que havia se alastrado nas instituições superiores de ensino, traduzindo-se, posteriormente, na produção bibliográfica (científico-literária) dos explicadores do Brasil e nas reformas políticas operadas no Estado até então. O combate às doutrinas “materialistas” conjugaria, então, dois interesses particulares: do grupo majoritário de historiadores ligados aos Institutos Históricos do Rio de Janeiro e de São Paulo, e do projeto católico de estender os domínios da Igreja ao ensino superior. A terceira e última hipótese desencadeia uma série de questões. Se admitirmos (com parâmetros francófilos) que, em 1911, o “novo” no ensino superior de história significava aprender os passos da crítica, seguindo as orientações de Gustav Monod, Langlois e Seignobos e, se pensarmos na possibilidade de que a opção por esses autores e essas formas de “traduzi-los” não fossem prerrogativas apenas do professor Taunay, poderíamos continuar enxergando a cultura “savant” anterior à universidade como ensimesmada, sectária, indiferente ao que se passava no mundo universitário da Europa e dos Estados Unidos? A tese da ausência de “renovação” da historiografia sobre o Brasil, mesmo vinte anos após à criação dos cursos superiores de história, poderia continuar se sustentando-se apenas no argumento de que o modelo de inteligibilidade dos catedráticos da história do Brasil das Faculdades de Filosofia era centrado na erudição e na memória, não acompanhando, assim, os “avanços” da 10 historiografia européia? Na verdade, a questão de fundo é bem mais complexa e nos obriga, quem sabe, a cometer uma heresia: tínhamos mesmo que evoluir nessa ordem, velha história, história nova e nova história? Não há muito de teleologia na história do ensino superior de história no Brasil? Referências bibliográficas BARREIRO FILHO, Roberto Coelho. Igreja, Estado e Universidade. Estudo de caso: PUCSP, seus 50 anos – 1946/1996. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Breve histórico da Universidade. Revista da Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, v. 32, n. 60-61, p. 223-233, jan./jun. 1967. CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo no Brasil. São Paulo: Paulus, 1998. [A primeira edição é de 1968]. CASALI, Alípio Márcio Dias. Universidade Católica no Brasil: elite intelectual para a restauração da Igreja. São Paulo, 1984. Tese (Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. COSTA, João Cruz. Contribuição às história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1956. Del PRIORI, Mary. Introdução. In: TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Monstros e monstrengos do Brasil: ensaio sobre a zoologia fantástica brasileira nos séculos XVII e XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 7-23. HARTOG, François (org.). A história de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Entrevista. Ciência e cultura, São Paulo, v. 33, n. 10, p. 1175-1183, set. 1982. KRUSE, Dom Miguel. A Faculdade de Filosofia e Letras. Anuário da Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo - 1925, São Paulo, Tipografia Brasil de Rothschild, 1926. p. 5-16. LACOMBE, Américo Jacobina. Para uma história das origens da Universidade Católica: aula inaugural da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, proferida em 1976. Verbum, Rio de Janeiro, v. 32, p. 71-85, 1976. 11 LANGLOIS, Charles-Victor e SEIGNOBOS, Charles. Introduction aux études historiques. Paris: Kimé, 1992. (Primeira edição pela Hachette, em 1898). MATOS, Odilon Nogueira. Afonso de Taunay, historiador de São Paulo e do Brasil: perfil biográfico e ensaio bibliográfico. São Paulo: Museu Paulista, 1977. __________. A propósito do quarto centenário beneditino. Notícia Bibliográfica e Histórica, Campinas, n. 171, p. 410-413, out./dez. 1998. MATTOS, Dom Xavier de. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento: alocução inaugural proferida por ocasião da abertura dos cursos. Revista Brasileira de Pedagogia, Rio de Janeiro, v. 5, n. 21, p. 177-184, fev. 1936. MELO, Astrogildo Rodrigues de. Os primórdios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Revista de História, São Paulo, n. 52, n. 104, p. 717-722, out./dez. 1975. NOIRIEL, Gérard. Naissance du métier d´historien. Gênesis, p. 58-85, set. 1990. OLIVEIRA JÚNIOR, Paulo Cavalcante de. Affonso d’E. Taunay e a construção da memória bandeirante. Rio de Janeiro, 1994. Dissertação (Mestrado em Historiografia) – Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Relatório da Faculdade Livre de Filosofia e Letras de São Paulo correspondente ao ano de 1912. Anuário da Faculdade Livre de Filosofia e Letras – 1912. São Paulo, [sn], 1913. RODRIGUES, José Honório. Afonso Taunay e o revisionismo histórico. In: História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1965. P. 135-147. __________. Afonso Taunay e a história do Brasil. In.: História combatente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. P. 233-254. SALES, Diogo Moreira. Relatório sobre os trabalhos do Centro de Filosofia e Letras de São Paulo durante o ano de 1916. Anuário do oitavo ano letivo da Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo – 1916. São Paulo: Casa Duprat, 1916. TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Os princípios gerais da moderna crítica histórica. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. 16, p. 323-344, 1914. __________. Discurso de paraninfo. Anuário da Faculdade Livre de Filosofia e Letras 1913. São Paulo, 1914. 12