Estudo genético revela alta incidência de híbridos entre tartarugas

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O ESTADO DE S. PAULO
DOMINGO, 12 DE AGOSTO DE 2012
Estudo genético revela alta incidência
de híbridos entre tartarugas da Bahia
Mais de 40% das que desovam no Estado são filhas de cruzamento entre espécies diferentes; pesquisadores querem entender o porquê
MARTA GRANVILLE/PROJETO TAMAR
PLANETA
Herton Escobar
Algo “promíscuo” está acontecendo entre as tartarugas-marinhas da Bahia. Ao melhor estilo
carnavalesco, elas andam desatentas com uma das regras mais
básicas de bom comportamento
da biologia evolutiva: a de que só
se deve procriar com membros
da própria espécie.
É o que indica uma série de estudos genéticos, segundo os
quais mais de 40% das tartarugas que desovam nas praias do
Estado são híbridas – filhas de
paisdepaiemãedeespéciesdiferentes. Pesquisadores ainda não
sabem dizer quais são as causas
nem as consequências disso para o futuro das populações locais
de tartarugas. Mas sabem que,
além de uma curiosidade, é algo
que precisa ser levado em conta
nas estratégias de conservação
dessas espécies – todas elas
ameaçadas de extinção.
Um primeiro estudo, publicado em 2006 na revista Conservation Genetics, revelou que 43%
das tartarugas consideradas
morfologicamentecomoEretmochelys imbricata (tartaruga-depente) eram, na verdade, animais híbridos, com parte de seu
DNA herdado de Caretta caretta
(tartaruga-cabeçuda) ou Lepidochelys olivacea (tartaruga-oliva).
Uma taxa muito acima de qualquer outra registrada no mundo.
Agora, um novo estudo, publi-
Na natureza. Uma tartaruga híbrida no litoral do Nordeste; cientistas não sabem qual será o impacto disso nas populações
cado na revista Molecular Ecology, amplia o número de tartarugas amostradas e detalha com
muitomaisprofundidadeahistória desse carnaval genético.
Os pesquisadores investigaram o genoma de 387 tartarugas,
com base em amostras de tecido
coletadasdeváriasáreasdedesovaealimentação aolongo da costa brasileira.
Os resultados revelam que a
hibridização é um fenômeno localizado– restritoprincipalmente ao norte da Bahia e, em menor
escala,aosuldeSergipe– erelativamente recente. A maioria dos
híbridos é de animais de primeira geração e, alguns, de segunda.
O que significa que pelo menos
umaparteda populaçãode híbridos é “viável” do ponto de vista
reprodutivo.
“Mostramos que há, no mínimo, duas gerações de híbridos.
Não há como negar isso”, diz o
geneticista Fabrício Santos, da
Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Considerando
que o tempo que uma tartarugamarinhaleva paraatingiramaturidade sexual é de no mínimo 20
anos, os cientistas estimam que
a hibridização começou há 40
anos ou mais. E não para por aí.
“Agora, certamente, há tartarugas híbridas de terceira geraçãonadandoporaí”,dizapesquisadoraSibelleVilaça,queparticipou da pesquisa durante seu
FUGINDO DA EXTINÇÃO
l Há cinco espécies de tartaruga-marinha que se reproduzem na costa brasileira. Os detalhes do ciclo
reprodutivo variam para cada uma delas. Veja aqui o exemplo da tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta)
Ciclo de vida
Atingem a fase
reprodutiva entre
os 20 e os 30 anos
Machos e fêmeas
migram para
áreas de
reprodução
Migração durante o
desenvolvimento em
mar aberto*
NO MAR
Machos
retornam
para área de
alimentação
Área de
reprodução.
A fêmea pode
copular com
vários machos
e vice-versa
Praia de desova. As fêmeas
realizam de 3 a 7 posturas
por temporada
NA PRAIA
*Ambiente de mar aberto, onde
os seres vivos não dependem
diretamente do fundo marinho
dade e viabilidade reprodutiva,
masnãoénecessariamenteinfértil”, explica Luciano Soares, pesquisador associado ao Projeto
Tamar. Um exemplo é o do burro, resultado do cruzamento entre um jumento e uma égua. A
maioria é inviável, mas uma minoria consegue se reproduzir.
No caso das tartarugas, é comose 43%de umapopulaçãoque
se pensava ser de cavalos fosse,
na verdade, composta de burros
que se parecem com cavalos.
Causas. Constatada a hibridiza-
ção, os pesquisadores querem
agora saber o que a motivou. A
principalhipóteseéqueoscruzamentos tenham sido induzidos
Alterações vão
além da aparência
Monitoramento mostrou
que animais híbridos com
aparência de uma espécie
foram se alimentar em
áreas típicas de outra
NO MAR
Área de
alimentação
costeira. Indivíduos
imaturos e adultos
mestrado na UFMG.
Em um ninho, os pesquisadores chegaram a encontrar filhotes com DNA de três espécies –
incluindo Chelonia mydas (tartaruga-verde), uma espécie que
não desova no continente, apenasemilhas,etalvezporissoapareça apenas pontualmente nas
amostras. Ou seja: filhotes de
um animal que já era híbrido e
cruzou com uma terceira espécie,formando “híbridos triplos”.
“Talvez as fêmeas híbridas sejam mais promíscuas que o normal”, especula Santos. “Sem ter
uma espécie definida, talvez elas
percam a especificidade e acasalem com qualquer espécie.”
“Ohíbridotemmenorfecundi-
As tartarugas híbridas da Bahia
nãosãodiferentesde suasparentes de “raça pura” apenas na aparência. Dados de monitoramento por satélite, publicados por
cientistas do Projeto Tamar, sugerem que elas têm comportamento ecológico também fora
dos padrões.
Depois de desovar na praia, fêmeashíbridascommorfologiatípicadetartaruga-de-pente(Eretmochelys imbricata) foram se alimentarem áreas típicas de tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta),
levantandodúvidassobreacapacidadedessesanimaisdeseadaptar a nichos ecológicos de uma
ou outra espécie.
“A morfologia de cada espécie
é adaptada à sua dieta específica”, diz o cientista Luciano Soa-
res, um dos autores do estudo,
publicadoemmaiona revistaEndangered Species Research.
Tartarugas-de-pente são chamadas em inglês de “hawksbill”,
porquetêmumbicopontudo,parecido com o de um falcão, que
usam para cavoucar fendas em
busca de esponjas, anêmonas e
outros alimentos moles encontrados em recifes de coral. Já as
tartarugas-cabeçudas, como sugereonome,têmcabeçaemandíbulamaisrobustas, queusampara quebrar a carapaça de lagostas, caranguejos e outros crustáceos que caçam em fundos de
areia ou lama.
Ouseja: asduasespécies sealimentam de coisas diferentes,
em ambientes diferentes. O que
acontece,então,quandosãomisturadas num mesmo animal?
Oscientistascolocaramaparelhos de monitoramento via satélite em 15 fêmeas classificadas
morfologicamente como tartarugas-de-pente. Análises de
DNA, porém, mostraram que 6
delas eram híbridas – meio pen-
Desova
Nascimento
A fêmea sai da água geralmente à noite, provavelmente para evitar uma longa
exposição ao sol durante o processo
O grande número de ovos é uma estratégia evolutiva da espécie.
Apenas alguns filhotes sobrevivem até a idade adulta
Escolha
Quando sai da
água, a tartaruga leva
cerca de 20 minutos até
escolher o local do ninho
Saindo do ninho
Depois de rasgar a casca do
ovo, o filhote sobe até a superfície
da areia e procura a luminosidade
do horizonte para alcançar o mar
1
Preparo do ninho
Começa a cavar com
as nadadeiras posteriores e
ao mesmo tempo vai
apertando as paredes do
ninho, para ficar bem firme
2
Postura
Desova cerca de 120 ovos e
começa a tapar o ninho com as
nadadeiras posteriores. Por último, faz
uma camuflagem com as nadadeiras
anteriores e volta para o mar
3
FONTE: PROJETO TAMAR
te, meio cabeçuda. Destas, cinco
rumaram ao norte para se alimentarem áreas típicas de tartaruga-cabeçuda, ao largo do Rio
Grande do Norte, Ceará e até Pará, onde há muita pesca de lagosta; enquanto que as pente “puras” permaneceram em áreas típicas da espécie, de Pernambuco para baixo, onde os recifes de
coral são bem mais abundantes.
Aparentemente, a genética de
pente prevaleceu na morfologia;
mas no comportamento alimentar,quemditouarotafoiagenética de cabeçuda.
Avaliação. A grande dúvida é
qualseráoimpactodessahibridização no futuro das espécies.
“Pode ser uma ameaça, teoricamente, mas para dar respostas
mais consistentes precisamos
de mais pesquisas”, avalia Neca
Marcovaldi, diretora técnica nacional do Tamar.
Novos estudos vão tentar determinar o que as híbridas estão
comendo e qual é, exatamente,
sua viabilidade reprodutiva. Por
exemplo, se há diferenças entre
tartarugashíbridasepurasnonúmerodeninhos,deovos,defilhotes nascidos, ou no tamanho dos
filhotes. “O hibridismo não é necessariamente um problema”,
complementa Soares. / H.E.
Filhote
1
No mar
Se orienta pela
ondulação, que a afasta da
costa, e pelo campo
magnético terrestre
2
50 cm
30 cm
Paternidade múltipla
As tartarugas fêmeas copulam com vários
machos por temporada. Elas podem
estocar os sêmen dentro de seu sistema
reprodutivo antes de fertilizar os óvulos, e
depois desovam várias vezes por
temporada. Como resultado, cada ninho
pode ter filhotes de vários pais diferentes
pelo colapso das populações de
tartarugas,pressionadaspela caçade animaisadultos epelacoleta de ovos nas praias – práticas
ainda comuns no litoral da Bahia
até poucas décadas atrás.
“Compopulaçõesmenoresnuma área grande, fica mais difícil
um macho e uma fêmea da mesma espécie se encontrarem”, diz
Santos. Em outras palavras: na
falta de um parceiro da mesma
espécie, acasala-se com quem
aparecer na frente mesmo.
Um ponto importante foi
constatar que o Projeto Tamar
não foi, sem querer, um dos responsáveis por induzir a hibridização. Quando o projeto foi criado na Bahia, em 1980, uma das
estratégias para evitar a predação dos ninhos pelos habitantes
locais era retirar os ovos das
praias e levá-los para um centro
de reprodução, para depois liberar os filhotes na natureza. Havia a suspeita de que isso poderia
terinterferidonocomportamento reprodutivo das tartarugas.
Como o projeto tem 32 anos e
a hibridização começou há mais
de 40, porém, essa possibilidade
foi desconsiderada. Hoje, 70%
dosninhosmonitoradospelo Tamar são mantidos intocados.
“Eu diria que esse é o maior
resultado prático do Tamar”, diz
acoordenadora técnica nacional
do projeto, Neca Marcovaldi.
“Não fazemos fiscalização. O fato de os ninhos não serem mais
mexidos é resultado da educação ambiental e da inclusão social. As tartarugas agora valem
mais vivas que mortas, porque
geram empregos e são motivo de
orgulho para os habitantes locais. É um patrimônio deles.”
De 3,5 a 4 cm, 30 g
Tamanho natural
Determinando o sexo
O sexo da tartaruga marinha é
determinado pela temperatura da
areia onde os ovos repousam
ACIMA DE
ABAIXO DE
28,74ºC
28,74ºC
NASCEM
MAIS
NASCEM
MAIS
FÊMEAS
MACHOS
40 cm
Após a desova, o ninho fica de 45 a 60 dias no período de incubação...
...e demora mais 3 ou 4 dias para o filhote sair do ovo e subir à superfície
INFOGRÁFICO: FARRELL E GLAUCO LARA/AE
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