Infância Subtraída Uma reflexão sobre o trabalho infantil na cidade

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Infância Subtraída: Uma reflexão sobre o trabalho infantil na cidade de Manaus
Ana Carolina Affonso Gomes [1]
Silvia Bezerra da Silva [2]
Resumo
A exploração do trabalho infantil é um fenômeno social de grande incidência na sociedade
atual. Em vista disto, este artigo traz uma reflexão acerca desta problemática, através de sua
identificação na cidade de Manaus, bem como das conseqüências que o mesmo acarreta para a
criança, a família e a população em geral. O tema exposto foi trabalhado por meio de um
estudo bibliográfico, a partir de uma abordagem crítico-dialética. Partiu-se da necessidade de
compreender a trajetória histórica da infância no Brasil para, em seguida, observar a
participação fundamental da família na construção da identidade e sociabilidade infantil. A
partir daí realizou-se a caracterização deste fenômeno e de suas conseqüências. A seguir
relatou-se sobre a temática especificamente na cidade de Manaus. Por fim, foram abordadas
as políticas de proteção social voltadas para este tipo de exploração, bem como os desafios do
assistente social frente a essa expressão da questão social. Durante a construção da reflexão,
constatou-se que o trabalho infantil é uma violação de direitos garantidos na Constituição do
país e no Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelecem proteção integral à criança.
Neste contexto, o Assistente Social desempenha papel central na luta pela erradicação de tal
violação.
Palavras-chave: Criança; Família; Trabalho Infantil.
1. Introdução
A exploração da mão de obra infantil é pertinente ao contexto mundial. No Brasil, esta
expressão da questão social evidencia-se de forma muito frequente. Tal fenômeno social
excludente atinge prioritariamente as crianças pertencentes às famílias pobres, inserindo-se na
relação burguesia X proletariado, na qual as crianças são as maiores vítimas, por serem
naturalmente indefesas, tendo apenas o trabalho como escolha, enquanto maneira de garantir
sua própria sobrevivência e de seus familiares.
Toda atividade laboral realizada por crianças é efetivamente prejudicial ao pleno
desenvolvimento das mesmas, comprometendo assim, sua integridade física, moral e
intelectual, encaminhando-as a evasão escolar e ao mesmo tempo privando-as, na fase adulta,
da condição de usufruir do direito de viver dignamente.
_______________________
[1] Acadêmica Finalista do Curso de Serviço Social do Centro Universitário do Norte – UNINORTE, 2011.
[2] Professora Orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso.
2
Este fenômeno abrange principalmente as classes menos favorecidas, mantendo relação
direta com outras problemáticas, a exemplo do aumento do desemprego estrutural do
trabalhador adulto e do analfabetismo, que atinge grande parte da população brasileira.
Refletindo de forma mais específica, reportamos este estudo teórico à cidade de
Manaus, onde esta expressão da questão social é latente, e se manifesta pela precarização das
condições de vida e de trabalho, sendo possível perceber sem muito esforço, a presença de
meninos e meninas em situação de rua, catadores de lixo e pedintes.
Esta violência ampla, complexa e excludente, fere princípios constitucionais. O
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA garante em seu artigo 60º, a proteção da criança
contra o trabalho infantil. Portanto, faz-se necessário uma ação conjunta, envolvendo Estado,
sociedade e família pela erradicação da exploração da mão de obra infantil.
No desenvolvimento desta pesquisa bibliográfica, lançou-se mão da dialética marxista
enquanto metodologia de trabalho. Buscamos entender a questão da exploração do trabalho
infantil partindo da evolução histórica da infância no Brasil, da fundamental participação
familiar na construção da identidade da criança e do fenômeno do trabalho precoce e suas
consequências. Em seguida, abordaram-se as reflexões sobre esta problemática em Manaus, a
aplicação da Política de Proteção Social Especial na referida cidade e por fim, os desafios do
Assistente Social frente a esta temática.
Para tratar da categoria criança, utilizou-se como referencial teórico as contribuições de
Del Priore, Goés e Florentino, Rodrigues e Lima e Silva. No que concerne à família, os
escritos de Szymanski e Marques foram essenciais ao desenvolvimento do trabalho. Por fim, a
construção da discussão sobre o trabalho infantil fundamentou-se em Iamamoto, Vivarta,
Garcia, Scherer, Souza, Rezende, Torres, Filho e Morgado. A elaboração deste artigo só foi
possível devido às contribuições dos autores mencionados.
2. Evolução histórica da infância no Brasil
A compreensão atual da infância requer um resgate da história social da criança desde
os primórdios da nação. E como toda história tem suas especificidades, com o Brasil não é
diferente. Segundo Del Priore (2009, p.12), as constatações dos historiadores brasileiros
apontam para “uma sociedade certamente injusta na distribuição de suas riquezas, avara com o
acesso à educação para todos e vincada pelas marcas do escravismo”. Essas três características
exerceram uma influência tal sobre a infância que pode ser percebida até os dias de hoje.
3
Considerando a dominação estrangeira sobre o país desde a época do Brasil Colônia,
há de se observar que a escravidão não afetou apenas os adultos, mas também as crianças. De
acordo com Góes e Florentino (2009), entre os séculos XVIII e XIX, apesar de não haver um
mercado próprio de crianças cativas, dois entre cada dez escravos eram crianças. Estas eram
iniciadas no trabalho por volta dos quatro anos de idade, e aos onze ou doze anos já haviam
aprendido tanto um ofício, quanto a ser escravos.
Acerca da desigualdade na distribuição das riquezas, Del Priore (2009) esclarece que
havia aquelas crianças de famílias abastadas que desde cedo distribuíam ordens e gritos a seus
inferiores. Mas a grande maioria, vivia na pobreza, e tinha em geral dois destinos: ou eram
deixados ao nascer nas Rodas dos Expostos, que surgiram a partir do século XVIII ou
precisavam trabalhar nas mais variadas atividades, como nas embarcações, nas lavouras, nas
minas e até nas ruas para sobreviver.
A autora afirma que foi apenas na segunda metade do século XVIII, durante o governo
do Marques de Pombal, que o ensino público foi instalado. E ainda assim, no século XIX,
enquanto os filhos de uma pequena elite recebiam aulas de professores particulares, os filhos
dos pobres trocavam a formação escolar pelo trabalho, visto pelas classes subalternas como a
melhor escola.
Rodrigues e Lima (2007, p. 63) expõem que o significado adquirido pela infância ao
longo da história se contrapõe em rica e pobre, cabendo a primeira, a proteção, o aconchego e
a educação e a segunda, a vigilância, os perigos e o trabalho. Essa colocação nos leva a
concluir que a partir da condição econômica havia dois modos de ver a criança. Os pequenos
que nasciam em famílias abastadas recebiam o cuidado necessário para seu crescimento e, por
conseguinte possuíam um sentimento de infância. Por sua vez, as crianças que nasciam em
famílias pobres eram roubadas no reconhecimento de seu estado de desenvolvimento em
função da necessidade de colaborar com o sustento da família desde muito cedo.
Obrigadas a assumir responsabilidades que não eram suas, as crianças passavam a
entrar precocemente no mundo dos adultos, num quadro em que as condições de vida e de
moradia precárias e a falta de privacidade nas famílias pobres induziam-lhes a vivenciar não
apenas o trabalho, mas também os vícios, a criminalidade e o ócio. (IDEM, 2007). Vale
ressaltar que esta situação de negação da infância ocorria primariamente no contexto familiar,
porém, não era proposital, ao contrário, a família não tinha escolha, o que favorecia a
naturalização da indiferença com a violação da infância no cotidiano das classes menos
favorecidas.
4
Somente no século XX, quando o Brasil passava por um processo de urbanização
européia, que surgiu a primeira legislação acerca da criança e do adolescente, o Código de
Menores de 1927 (Decreto nº 17.943, 12/10/1927), também conhecido como Código Mello
Matos. Pois os menores que passavam muito tempo nas ruas necessitavam ser recolhidos, uma
vez que suas condições expunham a pobreza das cidades. Em 1979, foi instituído um novo
Código de Menores (Lei nº 6.697, 10/10/1979), que não apresentou mudanças significativas
quanto ao primeiro Código, ao invés disso, colocou a criança e o jovem de classes menos
favorecidas na condição de perigo à sociedade. Assim, aquelas crianças e adolescentes
consideradas pelo sistema vigente como delinqüentes ou de conduta criminosa podiam
simplesmente ser enviadas à instituições de confinamento.
Para Silva (2005), a filosofia do Código de Menores era reflexo dos ideais militares,
que acabou entrando em colapso, por conseqüência do fim da Ditadura Militar e do cenário
nacional de luta em favor da democracia e dos direitos de cidadania durante a década de 1980.
Como resposta a falência do referido Código, foi aprovada em 1990, a lei federal nº 8.069 que
dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA1. Nesse momento, obteve-se o
reconhecimento legal dos direitos da criança e do adolescente e da necessidade de proteção
integral aos mesmos.
No decorrer da história da infância no país alcançaram-se, por meio da mobilização
popular, muitos avanços quanto aos direitos desta, a exemplo do ECA, mas no cotidiano da
criança brasileira ainda notam-se violações de direitos que fazem lembrar a infância pobre
e/ou escrava dos séculos XVII e XVIII e que podem ser percebidas ao observar-se a relação
família-criança.
2.1 A fundamental participação familiar na construção da identidade da criança
No contexto das relações sociais em que os indivíduos estão inseridos, a família é o
primeiro grupo de socialização da criança, ou seja, é a estrutura que lhe permitirá, ao longo de
seu crescimento, desenvolver a sua subjetividade.
De acordo com Szymanski, ao dedicar atenção à família
1
De acordo com Silva (2005), o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA corresponde há uma das
conquistas democráticas alcançadas na década de 1980, que veio substituir o Código de Menores de 1979, numa
tentativa de ruptura com a visão autoritarista de infância vigente naquele período, incorporando tanto elementos
de descontinuidades quanto de continuidades acerca da legislação anterior.
5
o ponto de partida é olhar para esse agrupamento humano como núcleo em torno do
qual as pessoas se unem, primordialmente, por razões afetivas, dentro de um projeto
de vida em comum, em que compartilham um quotidiano, e, no decorrer das trocas
intersubjetivas, transmitem tradições, planejam seu futuro, acolhem-se, atendem
idosos, formam crianças e adolescentes. (2002, p. 10).
A partir das considerações da autora, destacam-se dois pontos centrais.
O primeiro é o reconhecimento de que no interior das relações familiares, concretizase a formação social da criança. Esse processo ocorre por meio da transmissão de aspectos
culturais, à medida que lhe é ensinado o modo de conduzir-se nas mais diversas situações que
se lhe apresentam, bem como pelas trocas afetivas, que por sua vez imprimem nas crianças
marcas que serão carregadas por toda a vida e repercutirão na formação de futuras famílias.
O segundo fator relevante acerca da família é a relação de interdependência entre seus
membros, percebida em vários âmbitos, como por exemplo, o afetivo, o intelectual e o
material, ou de uma forma geral, no cuidado e no amparo destinado aos entes que deles
necessitem. Esse modo de proceder com o outro é denominado pela autora de solicitude,
podendo ser vivenciado de modo autêntico ou deficiente. Na solicitude autêntica predominam
o respeito, a tolerância e a valorização do outro, permitindo que este volte-se para si mesmo e
alcance sua independência. Na relação de solicitude deficiente, todavia, percebem-se aspectos
opostos, como o desrespeito, a intolerância e a negligência que, a partir dos modos de ser,
acabam gerando um quadro de dominação.
Quer autêntica, quer deficiente, a solicitude desenvolve-se no ambiente familiar, o que
torna a família, particularmente aqueles que desempenham o papel de pai e mãe, responsáveis
pela socialização das crianças. Em vista disso, o ECA determina em seu Artigo 19º, que é
direito de toda criança e adolescente ser criado e educado no seio de sua família, ficando desta
forma, assegurada a convivência familiar e comunitária. Assim, entende-se que a família é a
primeira encarregada de zelar pela integridade de seus filhos, fornecendo sustento e educação.
Uma vez estabelecido o papel protetor da família, passa-se a sua contribuição na
construção da identidade infantil. É necessário destacar que a compreensão de família aqui
adotada ultrapassa a noção de família tradicional. Os diferentes tipos de família que existem
atualmente podem ser definidos como:
1) Família nuclear, incluindo duas gerações, com filhos biológicos; 2) famílias
extensas, incluindo três ou quatro gerações; 3) famílias adotivas temporárias; 4)
famílias adotivas que podem ser bi-raciais ou multiculturais; 5) casais; 6) famílias
monoparentais, chefiadas por pai ou mãe; 7) casais homossexuais com ou sem
crianças; 8) famílias reconstituídas depois do divórcio; 9) várias pessoas vivendo
juntas, sem laços legais, mas com forte compromisso mútuo. (KASLOW apud
SZYMANSKI, 2002, p. 10).
6
Tal classificação torna claro que o conceito de família já não é mais aquele em que se
tinha apenas o pai, a mãe, e os filhos, no qual os papéis de cada um já estavam rigorosamente
estabelecidos, pois vai além de critérios como laços consanguíneos ou legais, o que leva à
uma reflexão sobre as dificuldades causadas por esta transformação. O principal desafio é a
constituição da identidade e o desenvolvimento do sentimento de pertencimento ao grupo
familiar.
Vasconcelos evidencia que
tanto o processo de internalização quanto o de externalização são construtivos e
constitutivos da identidade do sujeito, já que, mesmo sob condições de sugestões
sociais variadas, cada individuo constrói sua identidade e a apresenta aos demais de
forma única, com sentido subjetivo, individualmente diferenciado, em cada situação
social que a expõe. O sujeito constrói o novo, tanto quanto possível, dentro da sua
forma de ser, dando a essa identidade um sentido próprio, por meio das informações
que emanam de fontes diferentes de seu meio social. (VASCONCELOS apud
MARQUES, 2001, p. 43)
A
identidade
de
cada
sujeito
é
construída
no
contexto
da
relação
internalização/externalização a partir de suas experiências dentro da família, enquanto meio
social primário.
Isto significa que é a família quem vai fornecer a grande maioria de
características que a criança apresentará em sua identidade, e que serão posteriormente
externadas por ela. Logo, o comportamento da criança sofre influência direta da postura
adotada pela família.
O ambiente familiar deve ser um lugar de equilíbrio e moderação, no qual seus
membros mais jovens se expressem livremente, absorvendo mais, ou menos, as práticas
culturais de cada momento histórico. E é nesse espaço, independentemente de sua
composição, que a criança encontrará sua referência de proteção para desenvolver-se
socialmente.
Quanto ao sentimento de pertencimento, a criança passa por um processo de adaptação
aos novos hábitos e valores que lhe são impostos em decorrência das transformações do
núcleo familiar, o que implicará ou na sua identificação com o grupo familiar e no surgimento
de novos modos de ser com o outro ou na negação da vida familiar.
Conclui-se que a família tem participação fundamental na construção da identidade do
individuo em formação, particularmente no que tange a garantia de seus direitos assegurados
por lei, a saber, o direito a vida, a saúde, ao respeito e a dignidade. No entanto, isso só é
possível quando a família dispõe de uma estrutura social, política e econômica para prover
7
suas necessidades básicas, na ausência dessas condições, é negada a criança a proteção
necessária.
Assim, se a família, independente das razões, não cumpre com seu papel de instituição
acolhedora e cuidadora dos pequenos que a integram, deixando de defender seus direitos, a
criança terá sua identidade comprometida, bem como seu peculiar desenvolvimento.
É a partir da perspectiva da violação do direito que trabalharemos a problemática da
exploração da mão de obra infantil, enquanto fator de comprometimento do desenvolvimento
da criança.
2.2 O fenômeno da exploração da mão de obra infantil
A compreensão de criança que vem sendo difundida atualmente é a de sujeito de
direitos, cujo desenvolvimento ainda não se completou. Por esta razão, a sociedade tem se
mobilizado amplamente em favor da efetivação desses direitos, à exemplo da luta contra a
exploração de sua mão de obra.
Ao tratar de trabalho infantil, Rodrigues e Lima (2007), o definem como
atividades impróprias à sua condição peculiar de desenvolvimento, geralmente
acima de sua capacidade física, intelectual e moral, sob condições de risco e com o
agravante de afastá-la da escola e da possibilidade de acesso a informações e
conhecimentos que lhe permitam a inserção na sociedade e no mercado de trabalho
no devido tempo, como cidadão e de forma crítica e participativa, auferindo dos
frutos das riquezas produzidas socialmente. (p. 59)
Somente pode-se analisar a colocação das autoras por meio de um olhar para a origem
desta problemática. Segundo elas, tal fenômeno compõe a organização estrutural das
sociedades, a saber, a escravista, a feudal e a capitalista. Mas é apenas nesta última, que o
trabalho infantil se intensifica e passa do aspecto educativo para o da sobrevivência.
Apesar de, na Idade Média, a infância ainda não ser concebida como uma fase distinta
da fase adulta, o trabalho de crianças tinha um caráter educativo, pois era realizado sob a
orientação dos pais, que ensinavam aos filhos seus ofícios. Até esse momento, o trabalho era
uma atividade artesanal que envolvia criatividade e satisfação. Apenas no século XVIII, com
o advento das máquinas durante a Revolução Industrial, é que o trabalho deixa de produzir
valor de uso e passa a produzir valor de troca. Essa passagem significou uma mudança no
conceito de trabalho, a partir de então, o trabalho desvinculou-se da idéia de criação e se
transformou em mercadoria que precisava ser vendida para garantir a sobrevivência.
8
É nesse ponto que a utilização da mão de obra infantil torna-se uma expressão da
questão social2. Pois o homem não pode mais prover o sustento da família e a mulher e os
filhos são obrigados a trabalhar para manterem-se vivos. A presença feminina e infantil no
local da fábrica, não ocorreu por acaso, e sim porque representava uma diminuição nos gastos
e um aumento nos lucros do capital.
Porém para as famílias trabalhadoras, tal mudança repercutiu de maneira desastrosa
em suas condições de vida. Pois o pai perdeu a capacidade de amparar com seu esforço
próprio aqueles que dele dependiam, e sem ter outra saída consentiu na entrada da mulher e
das crianças na relação de exploração vivenciada no trabalho fabril. Um aspecto relevante
nesse processo, é que mesmo o trabalho tornando-se alienador, era visto como uma
oportunidade, tanto de sustento quanto de ser um indivíduo bom, afinal quem se recusasse a
trabalhar era tido como vadio, preguiçoso etc. (IDEM, 2007).
De acordo com Rodrigues e Lima, o trabalho precoce faz parte de uma estratégia de
dominação burguesa
para intervir nas famílias proletárias, para que adotassem o padrão burguês, o que
propiciava o controle dos seus membros, principalmente as crianças, tidas como
uma ameaça à sociedade devido a uma latente rebeldia, e à promiscuidade, até
porque a classe trabalhadora era considerada indecente e associada à criminalidade e
a transmissão de doenças. (2007, p. 64).
Além de uma estratégia de lucro, o trabalho infantil constituiu-se também em
estratégia de enquadramento, que preparava desde cedo os futuros trabalhadores com o
argumento da criminalização da pobreza, quando na verdade, fatores como a rebeldia, a
promiscuidade e a transmissão de doenças nada mais eram do que o resultado das pressões
capitalistas sobre a classe trabalhadora.
Contextualizando a exploração da mão de obra infantil é possível percebê-la como um
fenômeno excludente, que atinge prioritariamente as crianças pobres, tendo em vista que está
inserida na relação burguesia X proletariado, na qual as crianças são as maiores vítimas, pois
2
Adota-se aqui a definição de questão social como sendo o “conjunto das expressões das desigualdades da
sociedade capitalista madura, que têm uma raiz comum: a produção social é cada vez mais colectiva, o trabalho
torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos se mantém privada, monopolizada por
uma parte da sociedade”. (IAMAMOTO, 2007, p.27).
9
não possuem meios de se defenderem, e para garantir a própria sobrevivência e de sua família,
são empurradas, sem direito à escolha, para o trabalho.
Ao trazer a discussão para os nossos dias, nota-se a continuidade desse tipo de
exploração no cotidiano da infância pobre, que se naturalizou e legitimou através do
comprometimento da identidade infantil e das conseqüências que produz sobre o indivíduo
tanto na infância quanto nas fases subsequentes da vida.
Atualmente, a proteção quanto ao trabalho infantil é garantida por lei. Em seu artigo
60°, o ECA dispõe que “é proibido trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na
condição de aprendiz”. Isso significa o reconhecimento de que a exploração da mão de obra
infantil é um ato delituoso que priva a criança de viver sua condição de infância. É certo, que
nas últimas décadas, a incidência desse fenômeno tem reduzido, porém ainda estamos
distantes do fim da exploração de crianças, especialmente em espaços invisíveis.
As atividades realizadas por crianças são prejudiciais ao seu desenvolvimento, pois
comprometem sua integridade física, moral e intelectual, além de ocupar grande parte do
tempo disponível que a criança possui e assim, contribuir para a evasão escolar, privando-a de
uma condição de vida digna em sua fase adulta.
De forma geral, o trabalho infantil é uma problemática que atinge uma parcela
considerável de crianças, a maioria pertencente à classes menos favorecidas. Posteriormente,
trataremos acerca das consequências desta problemática na vida da criança.
2.3 As consequências do trabalho infantil
Como já visto no tópico acima, ao exercer atividade o desenvolvimento da criança é
prejudicado, podemos até dizer que chega a ser interrompido. De acordo com Silva (2002),
“as crianças estão assumindo atribuições e responsabilidades de gente adulta”, neste sentido a
identidade do ser fica comprometida.
A adultização da infância provoca uma perda do vínculo da sociabilidade humana,
fundada no trabalho útil, pois, o processo de sociabilidade da criança não passa mais
pela sociabilidade por meio do aprendizado coletivo da escola, da vizinhança, da
vida, itso é, do trabalho concreto, mas sim pelo trabalho repetido e cansativo, isto é
pelo trabalho abstrato, da identidade prematura e envelhecida das futuras gerações
(SILVA, 2002, p. 169).
Ao empregar o termo adultização da infância, a autora refere-se à adoção de
comportamentos de adulto pela criança, a partir do acúmulo de responsabilidades baseado na
10
inversão quanto aos cuidados, ao invés desta receber proteção da família, é ela quem toma
para si o dever de proteger o grupo familiar, tanto as outras crianças quanto os adultos. Neste
aspecto, a sociabilidade infantil se transforma, pois a criança sai do ambiente de
aprendizagem de ofícios e é inserida no mundo do trabalho precarizado, sendo prejudicada em
outras instâncias de sua sociabilidade, a exemplo da escola e da vizinhança.
Desta forma, podemos perceber que o período da infância é negado pelo trabalho, na
medida em que a criança é privada do lazer e da educação ao abrir mão das brincadeiras e dos
estudos para exercer as mais diversas atividades impróprias à sua condição. Sem os momentos
necessários de lazer e divertimento próprios de sua idade, a criança não se identifica enquanto
criança e privada de educação, a mesma chega à fase adulta sem uma boa formação para
inserção no mercado formal de trabalho.
Vivemos em um período de mutações societárias, onde a presença da precariedade no
mundo do trabalho é tida através da flexibilidade, terceirização e do desemprego e ainda dos
ataques da política de corte neoliberal que infelizmente, ao invés de combater a problemática
do trabalho infantil acabam facilitando tal iniciativa, promovendo projetos que incentivem
empresas na contratação de crianças. Assim, outra consequência negativa do trabalho infantil
é o constante aumento do desemprego estrutural do trabalhador adulto.
Uma das formas de redução do custo da força de trabalho é o contrato da mão-deobra infantil. Quando 30% da população economicamente ativa do mundo está
desempregada, cresce o desemprego dos adultos e aumenta, contraditoriamente, o
emprego infantil (IAMAMOTO, 2007, p. 39).
A autora argumenta de forma clara, que o desemprego dos adultos intensifica a
utilização da mão de obra infantil, uma vez que os pais ou responsáveis encontram-se
desempregados não há alternativa senão que as crianças trabalhem. É certo que a situação
econômica da família não é o único fator determinante do trabalho infantil, mas sem dúvida é
o principal, pois produz infâncias subtraídas, ou seja, infâncias apenas de nome e não de fato,
bem como reproduz histórias de exploração.
Conforme observado por Vivarta, “a trajetória de trabalho dos pais influencia a
história dos filhos. Mais de 80% das crianças trabalhadoras com residência urbana têm pais
que começaram a trabalhar com 14 anos ou menos” (2003, p. 39). A partir da historicidade de
vida dos pais, se percebe a repetição de certas condições, como a probabilidade de inserção
precoce dos filhos no mercado de trabalho e da relação do nível de escolaridade da criança
com o dos responsáveis.
11
De maneira cultural, podemos perceber que os pais são inseridos no mercado de
trabalho muito cedo, geralmente exercendo atividades informais e de rentabilidade suficiente
apenas para a garantia da sobrevivência, fator este que influi diretamente no nível de
escolaridade dos mesmos. Assim, à medida que os filhos foram nascendo, os pais, pela
constante questão da necessidade, reproduzem sua vida nos filhos, ou seja, inserindo-os no
mundo do trabalho, de maneira informal e precária a fim de complementar a renda familiar.
No tocante aos estudos, da maneira como o trabalho impedia os pais de irem à escola durante
a infância, os filhos hoje também são impossibilitados de aprender, estabelecendo-se uma
relação direta entre o trabalho e o grau de escolaridade desses indivíduos, pois quanto mais
cedo ingressarem no mercado de trabalho, menor será o nível de instrução alcançado.
Assim sendo, a exploração do trabalho infantil também é responsável pela ausência da
educação, uma vez que priva a criança de ir à escola, e mesmo quando lhe sobra tempo o
cansaço e a fadiga não permitem que ela participe das aulas acordada, situação que leva a uma
série de outros fatores, como a desatenção aos conteúdos ministrados causada pelo desgaste
físico e intelectual, o comprometimento da elaboração das tarefas e exercícios, as faltas e
atrasos frequentes, dentre outros aspectos, que culminam na repetência e por fim na evasão
escolar. Isso tudo sem mencionar a ineficiência do sistema educacional brasileiro, cuja
qualidade do ensino prejudica unicamente os cidadãos mais pobres.
Ao abordarmos a educação brasileira, não se pode deixar de citar o analfabetismo, que
segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD3, em 2008
alcançava 10% da população com mais de 15 anos e correspondia a 4% entre os menores de
15 anos. Essas estimativas mantem relação direta com o trabalho infantil, juntamente com o
analfabetismo funcional, que engloba grande parte da população.
A criança não compreende a dimensão desta problemática, pois no momento presente
colocar comida dentro de casa e pagar o aluguel é sem duvida mais importante do que estudar,
mas alguns anos à frente os danos causados pelo estudo deficiente ou pela ausência da
educação lhe custarão sua qualidade de vida. De acordo com a pesquisa Trabalho Infantil:
Custos Privados e Sociais4, “o trabalho precoce empobrece o cidadão e o país”. Segundo este
estudo
3
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, 2008. Disponível em: <www.ibge.gov.br> Acesso em:
29/04/2011.
4
Pesquisa realizada em 1998, por Antonio Carlos Coelho Campino e Maria Dolores Montoya Diaz, professores
da Universidade de São Paulo. Citada em: VIVARTA, Veet. Crianças invisíveis: o enfoque da imprensa sobre o
trabalho infantil doméstico e outras formas de exploração. São Paulo: Cortez, 2003.
12
se uma criança começar a trabalhar aos 7 anos, deverá receber em média, 37,7 % a
menos do que receberia se tivesse ingressado no mercado de trabalho aos 14. Se a
comparação for com uma pessoa que começou a trabalhar aos 21, esse porcentual
atingirá 50%. (VIVARTA, 2003, p. 43).
Em suma, o ingresso prematuro no mercado de trabalho incide negativamente na vida
adulta das crianças, em decorrência dos prejuízos na educação e consequentemente na
formação profissional das mesmas.
Além das conseqüências na economia e na educação, o trabalho infantil também
atinge a saúde das crianças, conforme explicita Kassouf
Por causa das diferenças físicas, biológicas e anatômicas das crianças, quando
comparadas aos adultos, elas são menos tolerantes a calor, barulho, produtos
químicos, radiações, etc., isto é, menos tolerantes a ocupações perigosas, que podem
trazer problemas de saúde e danos irreversíveis (KASSOUF apud VIVARTA, 2003,
p. 45).
Em razão de a criança estar em fase de crescimento, sua estrutura física não está
totalmente desenvolvida, e, portanto, expô-la a riscos presentes no ambiente de trabalho é
patrocinar acidentes e problemas de saúde futuros. Fazemos menção ainda, aos danos à saúde
emocional da criança, que exposta às pressões da vida adulta, torna-se vítima fácil do medo,
da insegurança e de uma auto-imagem depreciada.
Diante das muitas consequências do trabalho infantil, percebemos que este tipo de
exploração abrange um conjunto de aspectos, como econômico, educacional e sociocultural,
encontrando-se ligado às relações sociais de tal maneira que apesar da mudança dos atores, se
perpetua na repetição das realidades familiares. A seguir buscaremos refletir os aspectos
relevantes do trabalho precoce no Brasil, especificamente abordando a contextualização desta
temática na cidade de Manaus, a partir de um reporte teórico.
3. Reflexões sobre a exploração do trabalho infantil como uma das problemáticas na
cidade de Manaus
Manaus é a cidade capital do Estado do Amazonas e o principal centro financeiro e
econômico da Região Norte brasileira. De acordo com dados do IBGE5, em 2000, a
população de Manaus correspondeu à metade da população do Estado do Amazonas,
5
IBGE – Censo Demográfico, banco de dados SIDRA (Sistema IBGE de Recuperação Automática), 2004.
Disponível em <www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em 21/09/2010.
13
elevando sua posição na rede de cidades brasileiras para a de cidade-estado6. De acordo com
Souza (2005), tal posição é reflexo dos impactos causados pelos projetos governamentais para
integrar a Amazônia à economia nacional.
Tendo seu desenvolvimento avançado desde os tempos áureos da borracha, Garcia
(2004, p. 24), nos aponta que o Amazonas, nos idos dos anos de 1850, começava a responder
a demanda por borracha do mercado internacional, que apresentava elevados índices de
crescimento. Com isso, torna-se visível a partir de então, o crescente aumento tanto
econômico como populacional no local. Com a criação da Zona Franca, foi a partir de 1968
que os investimentos industriais tiveram início e o processo migratório alavancou o número
da população na cidade.
Com 1.738.641 habitantes7, Manaus cresceu significamente. Tal crescimento não
ocorreu somente em Manaus, mas também, em cidades vizinhas. De acordo com censos do
IBGE, a população aumentou entre os anos 1960/1970 cerca de 40%, enquanto nas décadas
de 1970/1980 percebeu-se um aumento percentual de 94% da população.
Refletindo sobre esta grande expansão demográfica e populacional, percebemos a
questão social no Estado do Amazonas, especificamente aqui reportando a cidade de Manaus,
manifestada pela precarização das condições de vida e de trabalho. Contraditoriamente, a
cidade desenvolvida através dos processos industriais, tecnológicos e avanços da era
informacional, nos apresenta uma face de precarização no mundo do trabalho onde a exclusão
social é perceptível em qualquer ponto desta cidade.
A discussão sobre a modernização na cidade nos faz refletir sobre o crescente
desemprego estrutural e a inserção dos trabalhadores na informalidade. As diversas
expressões da questão social estão presentes em Manaus na forma de meninos e meninas em
situação de rua, mulheres e crianças no caminho da prostituição, catadores de lixo, pedintes,
lembrando principalmente o crescente fator da violência em toda a sua amplitude, aqui
especificado e discutido na forma de trabalho infantil.
Considerando que, mesmo em face aos avanços na área dos direitos sociais
conquistados por meio das reivindicações populares, a atual conjuntura nacional permanece
marcada por expressões da questão social, pode-se afirmar que o trabalho infantil corresponde
à uma dessas expressões, pois tem se mantido bem real no dia a dia brasileiro.
6
Segundo Souza (2005: 35), outros fatores contribuíram para Manaus ser considerada uma cidade-estado: a
super concentração de indústrias na capital amazonense, acima de 90% e demais atividades econômicas.
7
Estimativas de população. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Relatório de 14 de agosto de
2009. Acesso em 12 de setembro de 2010.
14
Segundo dados da PNAD 2008, ainda há no país 993 mil pessoas ocupadas na faixa
etária de 5 à 13 anos de idade, das quais a grande maioria é empregado doméstico ou trabalha
em áreas agrícolas, sendo que em muitos casos nem mesmo recebem pagamento pelos
serviços prestados. Apesar de o trabalho ser permitido somente a partir de 16 anos com
carteira assinada, ou ainda a partir de 14 na condição de aprendiz, as crianças vem sofrendo
com a exploração a que são submetidas ao ingressarem precocemente no mundo do trabalho.
Scherer (2009), evidencia que no Amazonas, a ausência de registros do trabalho
infantil nas áreas rurais dificultam a interpretação desse fenômeno. Há apenas os números
referentes às áreas urbanas fornecidos pela PNAD8 que em 2003, contabilizou 13.342 crianças
e adolescentes de 5 a 14 anos envolvidos no trabalho infantil. Na capital do estado, de acordo
com os dados concedidos pela prefeitura de Manaus, os Conselhos Tutelares registraram em
2004, uma quantia de 555 casos de trabalho infantil na cidade (SOUZA, 2005, p. 103). Vale
ressaltar que esses números representam apenas as ocorrências das quais o governo tem
conhecimento, pois mesmo com a falta de denúncias formais, sabe-se que tal problemática
está infiltrada na realidade de muitas famílias manauaras.
Para Scherer,
a cidade de Manaus não difere das demais cidades brasileira (sic) no que se refere
especialmente, a crianças e adolescentes envolvidas no Trabalho Infantil. Elas estão
nas ruas limpando os pára-brisas dos carros, guardando veículos e pedindo esmolas.
É ainda muito comum encontrar crianças catando lixos nas feiras públicas,
especialmente na Feira da Banana, onde catam e recolhem as frutas mais
aproveitáveis para serem revendidas nas quitandas e barracas nos bairros onde
moram. (2009, p.150).
Ao constatar esta dura e inegável realidade, busca-se uma explicação que justifique a
presença de crianças em tantas esquinas, sinais, feiras e demais locais impróprios para elas, o
que nos remete à situação de desigualdade social vivida pela população dessa capital. Como
em outras cidades, em Manaus, a pobreza e a riqueza convivem bem próximas, na medida em
que alguns têm absurdamente muito e outros quase nada. Esse contraste alcança também as
crianças, no momento em que precisam ajudar a compor a renda familiar para garantir o
sustento da casa.
8
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, 2003. Citada em: SCHERER, Elenise.
Vulnerabilidade social da cidade de Manaus: o avesso do progresso. In: Questão Social na Amazônia.
Manaus, EDUA, 2009.
15
Uma vez que grande parte dos pais não possui condições econômicas para prover o
sustento dos filhos, principalmente por não terem acesso à qualificação profissional, em meio
a um mercado tão competitivo, as crianças entram em ação desde muito cedo. O que leva os
filhos a entenderem o trabalho como algo normal à sua idade que deve ser abraçado como sua
responsabilidade enquanto colaboração com os outros membros da família, podendo por
vezes, ser confundido com brincadeira, mas que na verdade é uma maneira de privá-los de sua
condição de desenvolvimento, pois “impede-os de viver sua infância, e reduz radicalmente
suas expectativas futuras de alcançar melhores condições de vida, como o acesso à
escolaridade e melhores postos de trabalho, empobrecendo o cidadão e o país”. (SOUZA,
2005. p. 102).
Diante deste quadro, trabalharemos a seguir as políticas públicas voltadas para esta
forma de exploração na cidade de Manaus.
3.1 Política de Proteção Social Especial para crianças exploradas e sua aplicação na
cidade de Manaus
Ao admitirmos que o trabalho infantil é um fenômeno comum no modelo de sociedade
vigente, e dada a sua complexidade, é de suma importância refletir também acerca das
políticas públicas que alcançam esta problemática.
Conforme exposto anteriormente, é apenas no final do século XX, com as constantes
mobilizações da sociedade civil em favor da ampliação da cidadania, que a criança deixou de
ser vista como menor para ser reconhecida como cidadã, tornando-se a infância uma questão
legitima para o Estado. O que pode ser observado através do Artigo 227 da Constituição
Federal de 1988
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e
ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(Art. 227, CF-88).
A partir dessas disposições da Carta Magna e posteriormente do ECA (Lei nº 8.069 de
13/07/1990), o Estado passou a articular políticas públicas que garantissem a materialidade da
legislação referente a infância.
16
A exploração da mão de obra de crianças constitui-se como uma das expressões da
questão social abrangidas pela Assistência Social, que de acordo com a Política Nacional de
Assistência Social – PNAS se insere na Proteção Social Especial de Média Complexidade,
pois corresponde a uma violação de direitos, na qual os vínculos familiar e comunitário não
foram rompidos.
Visando a garantia dos direitos da criança no tocante ao trabalho infantil, o Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate a Fome – MDS, através do Sistema Único de
Assistência Social – SUAS, criou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI.
Este programa articula um conjunto de ações que objetivam a remoção de crianças e
adolescentes de até dezesseis anos das práticas de trabalho infantil, salvo na condição de
aprendiz a partir de 14 anos.
O PETI possui três eixos básicos: a transferência direta de renda a famílias com
crianças ou adolescentes em situação de trabalho, que atualmente é acessada em conjunto com
o Programa Bolsa Família – PBF; os serviços de convivência e fortalecimento de vínculos
disponíveis no Centro de Referência de Assistência Social – CRAS; e o acompanhamento
familiar realizado no Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS.
Segundo dados do MDS9, o PETI atende mais de 820 mil crianças afastadas do
trabalho infantil em mais de 3,5 mil municípios, reconhecendo-as enquanto sujeitos de direito,
e contribuindo para seu desenvolvimento integral. Em contrapartida, as famílias assistidas
devem comprometer-se em retirar as crianças das atividades de trabalho e exploração,
matriculá-las na escola, manter a freqüência às aulas em no mínimo 85%, bem como
participar dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos.
Além dessas ações, o programa prevê ainda abordagens preventivas, como ações
educativas, articulação com outros serviços socioassistenciais e parceria com Conselhos
Tutelares, Órgãos de defesa dos direitos da criança, Secretarias de Educação, dentre outras
instituições.
Mas, apesar dos esforços do Governo para erradicar o trabalho infantil, o PETI ainda
apresenta limitações no atendimento à sociedade, o que pode ser constatado pela quantidade
de usuários que recebem o beneficio. Em Manaus, no ano de 2009, de acordo com dados
divulgados pelo MDS10, haviam apenas 632 crianças cadastradas no programa. Isso sem
mencionar o valor repassado, que corresponde a R$ 40,00 por criança, o que não é suficiente
9
Disponível em <www.mds.gov.br>. Acesso em 10/05/2011.
Disponível em <www.mds.gov.br>. Acesso em 10/05/2011.
10
17
para suprir as necessidades do mês, levando o menino ou a menina a voltarem ao trabalho tão
logo o dinheiro acabe.
Levando em conta que o trabalho infantil é um fenômeno complexo, que comumente
envolve a família em situação de vulnerabilidade social, expressa por meio da pobreza, da
privação e da fragilização de vínculos, faz-se necessário a efetivação de políticas de geração
de emprego e renda que alcancem os pais e responsáveis das crianças envolvidas no trabalho
precoce.
Compreende-se, portanto que o combate a esta forma de exploração tão cruel, passa
por dois pontos centrais. Primeiramente o ataque à raiz do problema, que é a falta de renda
das famílias em razão da desigualdade social vivenciada no sistema capitalista, por meio de
programas e projetos de incentivo à geração de emprego e renda. Em seguida, é fundamental
trabalhar a prevenção desta problemática, através da sensibilização e mobilização da
população em favor dos direitos da criança. Somente assim a criança poderá usufruir de sua
condição de desenvolvimento.
3.2 O Assistente Social e seus desafios frente a esta problemática
Ao discutir sobre os desafios do assistente social no contexto problemático do trabalho
infantil, nos propomos primeiramente a refletir o Serviço Social como uma profissão que
possui uma ação interventiva na efetivação de direitos à cidadania. Nos dizeres de Rezende
(2009), o Serviço Social se inscreve enquanto profissão em uma prática interventiva na
confluência dos três direitos de cidadania: civil, política e social.
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, em sua base política e filosófica
vincula-se à Proteção Integral, preconizando a efetivação dos direitos fundamentais à essa
população, sendo que, para a efetivação desses direitos é necessária a criação de ações de
cunho governamentais, tanto a nível federal, estadual e municipal surgindo assim, as políticas
e programas sociais nas quais o assistente social deve atuar.
A questão da criança e adolescente, por ser uma temática ampla de discussão, é
considerada um fenômeno social, não somente por suas peculiaridades no contexto da
sociedade, mas, principalmente pelo contexto histórico e cultural que este fenômeno abrange.
Sendo assim, se tornam de suma importância ao profissional de Serviço Social o
acompanhamento deste processo histórico e sua constante qualificação no atendimento desta
população.
18
Um dos maiores desafios que o Assistente Social vive no presente é desenvolver sua
capacidade de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e
capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no
cotidiano. Enfim, ser um profissional propositivo e não só executivo.
(IAMAMOTO, 2007, p.20).
Deixando de ser apenas executor, o profissional de Serviço Social, precisa formular e
gerir políticas sociais. Por sua vez, ser propositivo no âmbito do planejamento e da criação de
políticas sociais requer do profissional um conhecimento prévio da realidade social em que se
está trabalhando. A criatividade e a inovação são fatores essenciais, posto que, de acordo com
Torres, Filho e Morgado (2009), as políticas públicas têm, nos últimos cinco anos, procurado
se ajustar à lógica do ECA, porém, não se pode consolidar uma intervenção sem uma
qualificação adequada à responder as demandas vivenciadas na realidade.
No contexto da implantação de propostas, deve-se refletir sobre a negação da prática
do clientelismo, do autoritarismo e da burocracia nas políticas discutivas, expressões tão
utilizadas na execução de políticas sociais atuais onde se institucionaliza a prática profissional
do assistente social. No tocante à prática profissional, dentro de uma instituição, ao se tratar
especificamente do atendimento à criança e ao adolescente não basta o conhecimento teórico
do problema, mas como já mencionado, a observação do contexto tanto individual como
coletivo, deve ser um dos instrumentais que não pode faltar ao profissional.
Outro ponto importante a destacar é a proposta de trabalho interdisciplinar já tão
exigido no mercado de trabalho atual. A intervenção profissional será melhor embasada e terá
maiores resultados se integrada aos diferentes ramos e especialidades profissionais, pois,
como fenômeno social, a questão da criança e adolescente, além da problemática do trabalho
infantil, discutida neste artigo, aborda uma grande diversidade de situações que vai desde ao
fator geral da violência, seja doméstica ou não, exploração sexual, alto índice de gravidez
entre adolescentes, crianças e jovens em situação de rua e drogas, além da prática do ato
infracional.
Diante dessas e tantas outras expressões da questão social que acometem a infância de
nossas crianças, é mister que as intervenções profissionais sejam permeadas pela defesa da
cidadania. Além de um comprometimento ético dos assistentes sociais em não se permitirem
paralisar ou acomodar frente às políticas sociais ainda tão limitadas e deficientes que não
possibilitam a este segmento desfrutar plenamente de uma vida digna.
Ainda segundo Torres, Filho e Morgado, não é possível manter, em nome da proteção
à infância, ações públicas de orientação higienista, moralizadora, assistencialista e
repressiva (2009, p. 117). Esta colocação é central para se constatar que o foco não é mais a
19
ameaça oferecida pelas crianças, segundo a doutrina da situação irregular, e sim seu pedido de
socorro, por tanto tempo silenciado. Porém, com o marco da Constituição Cidadã, que trouxe
consigo novos ares de democracia e defesa dos direitos, tal clamor não pode ser ignorado pela
sociedade e menos ainda pelos profissionais de Serviço Social que atuam na área da Infância e
Juventude.
Na prática, isto significa que o assistente social deve agir de forma comprometida com
a classe trabalhadora, adotando procedimentos imprescindíveis como o conhecimento da
realidade, a compreensão de que cada caso é único e possui especificidades próprias, não
podendo, portanto, utilizar fórmulas prontas e o respeito ao direito da criança de ser ouvida,
afinal as ações desenvolvidas tem como alvo a sua proteção.
Dada a realidade do trabalho infantil na cidade de Manaus, e reconhecendo que esta é
objeto de intervenção do assistente social, torna-se necessário que este profissional atue com a
clareza de sua inserção na Rede de Proteção voltada para a criança, e que, portanto, a
qualidade dos serviços prestados individualmente refletirá diretamente na efetivação desta
Rede. É ao deparar-se com o pequeno número de beneficiários contemplados pelo PETI ou
com o valor irrisório da bolsa, por exemplo, que o profissional deve articular-se buscando
novas alternativas de garantia de direitos.
Em geral, a garantia de direitos perpassa pela concessão de informações aos usuários,
pois o profissional de Serviço Social exerce o papel de orientador do caminho que leva a
concretização destes, a começar pelo direito à sobrevivência e manutenção das famílias, que é
a raiz do trabalho infantil. Ao orientar satisfatoriamente seu público alvo, acerca dos
programas e serviços que visam a melhoria da qualidade de vida da população, o assistente
social estará trabalhando a causa da exploração da mão-de-obra de crianças e cooperando para
sua erradicação.
4. Considerações Finais
Tendo em vista que os objetivos da elaboração deste artigo estão na reflexão sobre o
trabalho infantil na cidade de Manaus e de suas conseqüências tanto para a infância quanto
para a sociedade em geral, foram as contribuições de autores como Rodrigues e Lima, Silva,
Goés e Florentino, Scherer, Souza, Iamamoto e Rezende que nos permitiram apontar algumas
conclusões.
20
Inicialmente, observa-se que o trabalho infantil é uma problemática decorrente, na
maioria dos casos, da desigualdade social própria do sistema capitalista, que ao privar os pais
dos meios de manutenção da família, acaba por inserir precocemente as crianças no mercado
de trabalho. Expondo assim a contradição da relação burguesia X proletariado, na qual uma
minoria detém grande parte da riqueza socialmente produzida enquanto a maioria, possuidora
unicamente de sua força de trabalho, utiliza-se de todas as estratégias possíveis para
sobreviver.
Constatou-se ainda, que esta forma de exploração é um fenômeno social que envolve
fatores históricos e culturais, vivenciados no Brasil desde o período Colonial. Fatores
históricos a exemplo da escravidão, pois a cada dez escravos dois eram crianças, o que
colaborou com a naturalização do trabalho infantil no país. E culturais como a visão arcaica
de que a criança deve trabalhar para não cair na marginalidade ou para aprender a dar valor às
coisas conquistadas. Porém, as legislações brasileiras atuais, especialmente a Constituição
Federal de 1988 e o ECA, vêem romper com esta estrutura antiga, ao estabelecer a Proteção
Integral à infância, na qual a criança é compreendida enquanto cidadã de direitos.
Porém, apesar dos avanços alcançados na área da cidadania e do desenvolvimento que
a capital amazonense tem apresentado nas últimas décadas, a utilização da mão de obra de
crianças ainda se faz presente em Manaus, devido ao contraste social vivenciado pela
população, sendo que, os serviços e programas oferecidos não são suficientes para suprir a
demanda apresentada.
Diante dessa expressão da questão social e de suas consequências expostas no decorrer
do trabalho, nota-se que a luta contra o trabalho infantil não será vencida enquanto todos os
atores sociais não se articularem, ou seja, somente quando o poder público, a sociedade civil,
as famílias que experimentam esta situação, os profissionais e entidades que atuam na área da
infância e particularmente o assistente social se mobilizarem em prol da erradicação da
exploração de nossas crianças e da devolução de sua infância subtraída.
Enquanto um dos profissionais que exercem papel fundamental no combate a esta
problemática, o assistente social é desafiado a atuar propositivamente, abandonando a função
de mero executor de políticas terminais, a negar o clientelismo, o autoritarismo e a burocracia
ainda tão presentes em determinados ambientes profissionais, a aderir uma proposta de
trabalho interdisciplinar, reconhecendo que assim maiores e melhores resultados poderão ser
alcançados e a prestar serviços de qualidade, na medida em que põe em prática seu
compromisso ético-político com a classe trabalhadora. Em suma, a intervenção deste
21
profissional deve visar à garantia dos direitos da criança, aqui expressos na negação do
trabalho infantil.
Abstract
The exploitation of child labor is a phenomenon of great social impact on society today. In
view of this, this article offers a reflection on this issue, by identifying the city of Manaus, and
the consequences that entails for the child, the family and the general population. The above
theme was worked through a literature search, from a critical-dialectical approach. The
starting point was the need to understand the historical trajectory of childhood in Brazil to
then observe the fundamental participation in the construction of family identity and infant
sociability. From then there was the characterization of this phenomenon and its
consequences. Then it was reported on the issue specifically in the city of Manaus. Finally,
we addressed the social protection policies aimed at this type of exploitation, as well as the
challenges facing the social expression of this social question. During construction of the
reflection, it was found that child labor is a violation of rights guaranteed in the Constitution
and the Statute of Children and Adolescents, which provide full protection to the child. In this
context, the social worker plays a central role in the eradication of such violation.
Key-words: Child; Family; Child Labor.
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