esquizofrenia

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ANO 05
IMPRESSO E ON-LINE - BOLETIM Nº 19
TIRAGEM: 2.000 - JUN/JUL/AGO - 2012
O drama da realidade da
esquizofrenia
Confira Também
Ocupacional
Artigo
Transtornos mentais afetam saúde do trabalhador brasileiro
Psicofobia é crime
Pág. 06
Pág. 08
CANAL ABERTO
A
+ x÷
matemática da vida
Fosse a existência uma equação de solução única, nossa vida seria bem mais
simples. Quem dera pudéssemos resolver nossos dilemas subtraindo ou multiplicando números, exatos e precisos como “dois e dois são quatro”. A matemática
da vida, no entanto, é mais complexa.
Nesta edição do Saúde Mental em Foco, exploramos esta complexidade com
matéria de capa sobre uma doença devastadora e ainda misteriosa aos olhos da
ciência: a esquizofrenia. E aproveitamos para destacar a vida de um dos mais
proeminentes esquizofrênicos de nossa contemporaneidade, a do matemático
John Forbes Nash. Ele, mais do que ninguém, vive a dualidade entre o racional
e o ilógico. E desafia a medicina ao conseguir emergir de sua paranoia e lidar
com seus fantasmas, frutos de suas alucinações, sem ajuda de medicamentos.
Sem dúvida, um case para os psiquiatras.
Enquanto isso, a ciência avança no sentido de prevenir a doença, detectando
seus sinais no cérebro e evitando o primeiro surto psicótico. Já é possível sim,
embora haja controvérsias, tratar um indivíduo em estado de pré-esquizofrenia.
E então paramos para pensar como poderia ter sido genial se John Nash tivesse
se tratado previamente e evitado seu primeiro episódio psicótico.
Este fascinante assunto é tema da reportagem de capa desta edição. E foi inspirado
no 3º Congresso Brasileiro de Gestão e Políticas em Saúde Mental, realizado
em maio último, na programação do ClasSaúde 2012. Na ocasião, o pesquisador
Rodrigo Bressan levou ao público estudos interessantes acerca da esquizofrenia,
seu diagnóstico precoce, causas, prevenção e tratamento.
EXPEDIENTE
Saúde Mental em Foco é uma
publicação do SINDHOSP
DIRETORIA:
EFETIVO
Dante Ancona Montagnana (presidente)
Editora:
Ana Paula Barbulho (MTB 22170)
Pesquisas abrem a porta para tratamentos de
prevenção possíveis, mas que envolvem
questões éticas complexas
Ana Paula Barbulho, Aline Moura e
Fabiane de Sá
editoração eletrônica:
Carlos Eduardo, Thiago Alexandre
(Marketing)
Colaboraram nesta edição:
Ricardo Mendes, coordenador de Saúde
Mental do SINDHOSP
Reproduzimos ainda relevante artigo, do presidente da Associação Brasileira de
Psiquiatria (ABP), Antonio Geraldo da Silva, no qual ele aborda a grave questão
do preconceito em relação ao doente mental. E propõe que a sociedade repense
seus valores em relação à doença mental, deixando de considerá-la algo passageiro ou pouco
importante. Ano passado, inclusive, a ABP
deflagrou uma campanha de combate ao
preconceito, levando ao público diversas
personalidades que já sofreram com
transtornos psiquiátricos e que deram
seu depoimento em favor da causa. Esta
iniciativa teve início no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, evento anual promovido pela entidade. Sua continuidade
é essencial para que ultrapassemos esta
enorme barreira chamada “estigma”.
Trimestral
2
uma corrida contra o tempo
REdação E REVISÃO:
Circulação:
*Ricardo Mendes é coordenador do
Departamento de Saúde Mental
do SINDHOSP
Esquizofrenia,
Aline Moura
Trazemos também um alerta para o aumento dos afastamentos do trabalho
causados pelos transtornos mentais. Segundo a Organização Mundial da Saúde,
a depressão será a segunda maior causa de comorbidades no mundo até 2020.
Ranking que nos assombra e que nos faz refletir sobre a condição precária e
frágil da condição humana. O impacto disso para as empresas, inevitavelmente,
tem sido devastador.
Boa leitura, boa reflexão!
MATÉRIA DE CAPA
Entre diretores e administradores de
hospitais psiquiátricos e clínicas
PERIODICIDADE:
FOTOS MATÉRIA CAPA:
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DEMAIS FOTOS:
Thinkstock e divulgação
Correspondências para:
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Estima-se que, a cada ano, 56 mil brasileiros irão apresentar o diagnóstico de
esquizofrenia. Ainda estigmatizada, a doença tem prevalência em cerca de 1%
da população, aparece geralmente antes dos 25 anos de idade tanto em homens
quanto em mulheres e pode ser altamente incapacitante. Para se ter uma ideia,
cerca de 75% dos portadores de esquizofrenia não trabalham ou estão desempregados. Estima-se ainda que de um a dois terços dos moradores de rua sofram
da doença.
Marcada pelos surtos psicóticos, a esquizofrenia faz com que o paciente dissocie seus pensamentos da realidade, podendo chegar a apresentar delírios,
discurso desorganizado, disfunções sociais, agitação psicomotora, depressão,
comportamento catatônico, fala e risos imotivados, paranoia, ideias delirantes e
alucinações auditivas persecutórias.
As estimativas não são boas para esta população, que comparada às pessoas em
geral, possui duas a três vezes mais risco de morrer. Cerca de 10% dos esquizofrênicos, por exemplo, cometem suicídio, sendo esta a maior causa de mortalidade entre esses pacientes. Outros riscos também são aumentados, como maior
predisposição ao uso de drogas (cigarro, álcool, maconha, cocaína), levando a
uma diversidade de doenças associadas. Medicamentos utilizados para manter a
doença sob controle também podem causar problemas, como síndrome metabólica, especialmente entre os antipsicóticos de segunda geração.
Embora o diagnóstico da esquizofrenia seja clínico, e baseado em exame psíquico, são crescentes os estudos que aproximam a neurociência e a psiquiatria,
permitindo importantes constatações. Uma delas, já disseminada – e que direciona os tratamentos medicamentosos – é a de que o esquizofrênico possui uma
desregulação no nível de dopamina no cérebro. Novas pesquisas avançam nesta
direção e apontam que os receptores glutamatérgicos (maior sistema excitatório
do Sistema Nervoso Central) também estejam ligados à fisiopatologia da doença. O psiquiatra e pesquisador brasileiro, Rodrigo Affonseca Bressan, é um dos
maiores especialistas do assunto e escreveu sobre o tema em trabalho intitulado
“Hipótese glutamatérgica da esquizofrenia”. Atribui-se aos avanços nos estudos
de neuroimagem de receptores (PET e SPET) as importantes descobertas para o
entendimento da doença e suas origens no cérebro.
Segundo Bressan, que apresentou alguns trabalhos
correlacionados durante o 3º Congresso Brasileiro
de Gestão e Políticas em Saúde Mental, realizado
em maio durante o ClasSaúde 2012, os pesquisadores têm avançado muito, inclusive no que diz respeito à prevenção na esquizofrenia – um tema ainda
tabu mesmo entre a comunidade científica. Estudos
revelam, por exemplo, perda de conectividade e de
massa cinzenta em pacientes em estado de risco
para o diagnóstico de esquizofrenia. Trocando em
miúdos, isso quer dizer que indivíduos ainda não
diagnosticados, mas que apresentam pré-sintomas,
podem revelar mudanças cerebrais significativas,
apontando para o alto risco da doença. "As perdas
cerebrais são identificadas antes do primeiro episódio psicótico. Existem marcadores biológicos que
indicam que alguma coisa está acontecendo no cérebro de pessoas em alto risco para este diagnóstico", afirma Bressan.
Iniciadas na Austrália, na década de 1990, tais pesquisas associaram sintomas iniciais de esquizofrenia - como ideias persecutórias, conteúdo incomum
do pensamento e discurso desorganizado - às mudanças neurocerebrais. Impulsionaram diversos
estudos após os resultados iniciais, realizados atualmente inclusive no Brasil. O passo seguinte às
constatações foi indicar terapias neuroprotetoras
para esses pacientes em estado de “ultra-alto risco”,
o que conseguiu prevenir o surgimento de quadros
psicóticos ou diminuir sua incidência. Isso significa, em outras palavras, medicar pacientes que nunca apresentaram nenhum surto, mas que são potencialmente esquizofrênicos devido ao seu histórico
clínico e neurocerebral. Para Bressan, as vantagens
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MATÉRIA DE CAPA
de se medicar um paciente ainda sem diagnóstico definido envolve questões
éticas complexas. "Tenho ressalvas em usar antipsicótico em casos de pessoas
que não tiveram quadro psicótico ainda, mas os ensaios mostram que a prática
tem sido eficaz."
A medicação consegue amenizar os sintomas já detectados e impedir a neuroprogressão da doença, prevenir o desenvolvimento da psicose e reduzir os
quadros psicóticos. As desvantagens desta medicação precoce, segundo o professor, são a possível aplicação de um tratamento inapropriado, os efeitos colaterais e a estigmatização.
Para o psiquiatra Thiago Marques Fidalgo, chefe do plantão de emergências
psiquiátricas da Unifesp, o estigma é um dos maiores problemas a serem enfrentados no tratamento das pessoas que sofrem de esquizofrenia. “A própria
denominação da doença já é um estigma."
À parte as questões éticas, os estudos na área demonstram a importância de
se pesquisar mais e melhor a neurociência, e sua aplicabilidade na prevenção
das doenças mentais. Por outro lado, Rodrigo Bressan admite que os sintomas
são uma atividade mental altamente prevalente, e que quanto mais se manifestam, mais se sedimentam e se tornam automatizados. Nos surtos psicóticos,
por exemplo, as manifestações tendem a ser tornar mais intensas na ausência
de tratamento, menos espaçadas, comprometendo cada vez mais a capacidade
de remissão do paciente. Esta constatação, que vale para diversos outros problemas mentais, também tem a ver com a formação do cérebro, composto pela
genética e pela interação com o meio ambiente.
Sabe-se ainda que existe determinada ligação da esquizofrenia com a hereditariedade. Recentemente, pesquisadores suecos e israelenses divulgaram que
crianças cujos pais ou irmãos foram diagnosticados com esquizofrenia têm
três vezes mais chances de desenvolver a doença, além de poderem apresentar
outros distúrbios, como autismo ou a síndrome de Aspenger. O estudo, publicado
nos Arquivos de Psiquiatria dos
Estados Unidos, analisou três
bancos de dados – dois que
acompanharam crianças e
suas famílias na Suécia e
seus diagnósticos e outro
com informações sobre
todos os cidadãos que
entraram no serviço
militar de Israel, incluindo irmãos. Para
os pesquisadores, há
certas mutações genéticas que aparentemente provocam a predisposição ao autismo e
à esquizofrenia.
MATÉRIA DE CAPA
Quem decide o que é racional?
Os avanços nos estudos em torno da doença sofisticam cada vez mais os tratamentos disponíveis.
Atualmente, os antipsicóticos da segunda geração
se mostram eficazes no controle dos surtos e são
largamente utilizados entre os pacientes esquizofrênicos. No entanto, a simples medicação já não é
mais recomendada de forma isolada, como se fazia
no passado. Rodrigo Bressan, ao lado do psiquiatra
Cristiano Noto, também da Unifesp, lançaram recentemente o livro “Esquizofrenia: avanços no tratamento multidisciplinar” (editora ArtMed, 2012,
312 páginas). Nele, os médicos combatem as internações de longo prazo, comuns há algumas décadas para os pacientes esquizofrênicos, e propõem
uma abordagem diferente, não apenas baseada na
ministração de medicamentos. Psicoterapia, terapia
cognitivo-comportamental, psicoeducação e intervenções familiares são consideradas fundamentais
para a estabilização do paciente e a para a manutenção de uma vida digna, principalmente na fase
remissiva dos surtos, quando é comum o aparecimento de depressão, apatia e outros sintomas chamados negativos.
Esta frase, “Quem decide o que é racional?”, foi dita na cena final do
filme “Uma mente brilhante”, em que o ator Russell Crowe, no papel
de John Forbes Nash, discursa em Estocolmo, na Suécia, em agradecimento ao Prêmio Nobel de Economia. O grand finale é carregado de
poesia. O filme e o seu desfecho ajudam a humanizar uma das doenças
mais multiformes e devastadoras que se tem notícia, a esquizofrenia. A
película, aclamada pelos críticos, conta a vida de John Nash, o gênio
da matemática que aos 30 anos sofreu seu primeiro episódio de esquizofrenia paranoide. Por trás das cenas, a vida de Nash, no entanto, não
é tão hollywoodiana quanto parece. Antes dos 30, John Nash desenvolveu a teoria do comportamento racional, pela qual levou o Nobel décadas mais tarde (1994). Ironicamente, deixou de produzir conhecimento
substancial durante este hiato, período em que a doença tomou conta de
sua racionalidade, levando a reboque o seu gênio. Nash foi considerado uma mente brilhante desde cedo, mas também “um estranho”, conforme conta a autora do livro homônimo do filme, Sylvia Nassar. Em
ensaio autobiográfico que escreveu para o Nobel, Nash ainda ressalta
que o prêmio não pode restaurar o que foi perdido. Repetidamente, ele
se lamenta pela doença e especula se ainda conseguirá produzir algo
à altura do que desenvolveu antes do diagnóstico. “Estatisticamente
parece improvável que um matemático ou cientista com 66 anos de
idade possa fazer um esforço contínuo de pesquisa capaz de acrescentar
alguma coisa a suas realizações anteriores. Entretanto, eu ainda estou
tentando, e é possível que, com um intervalo de 25 anos de pensamento parcialmente delirante representante uma espécie de férias, minha
situação seja atípica. Assim, eu tenho esperança de conseguir realizar
alguma coisa de valor com os meus estudos atuais ou com novas ideias
que me venham no futuro."
“Contidos os primeiros sintomas mais violentos da
doença, os pacientes podem levar uma vida comum,
contanto que tomem os remédios corretos regularmente e contem com tratamento multidisciplinar”,
afirma Bressan.
Após levar o prêmio máximo da academia, John acabou virando um
case para a psiquiatria, e um exemplo de esperança para a cura da doença. Isso porque o matemático, após repetidas internações e medicações,
conseguiu conviver com seu estado psicótico, apenas rejeitando as hipóteses irracionais do pensamento delirante. “Eu emergi do pensamento irracional, no fim das contas, sem nenhum remédio”, disse ele, em
1996, para uma plateia de psiquiatras em Madri. Relatou ainda, para o
amigo Harold Kuhn: “O fantasma só vem muito tarde, depois das seis,
porque até mesmo um fantasma pode ter problemas humanos comuns e
precisar consultar um médico”, referindo-se às suas alucinações.
A história guarda inúmeros outros exemplos de pessoas extremamente
inteligentes e que eram portadoras da esquizofrenia, como Vicent Van
Gogh e Isaac Newton. Esta íntima ligação entre a genialidade e a doença, inclusive, já foi tema de pesquisas científicas.
Thiago Marques Fidalgo
Rodrigo Affonseca Bressan no 3º Congresso Brasileiro
de Gestão e Políticas em Saúde Mental, realizado em
maio, durante o ClasSaúde 2012
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Cenas do filme "Uma mente brilhante"
Os norte-americanos, por exemplo, levantaram a hipótese de a esquizofrenia estar ligada a um gene que aumenta a habilidade do cérebro
de pensar. Desenvolvido pelo Instituto Nacional para a Saúde Mental
dos Estados Unidos, em Maryland, o trabalho foi publicado no Journal
of Clinical Investigation. E demonstrou a ligação entre o gene DARPP-32, ligado ao raciocínio mais sofisticado, a 257 famílias com histórico de esquizofrenia. Os resultados mostraram que o gene é bastante
comum entre pessoas com a doença. O DARPP-32 amplia a capacidade
de processamento de informação e, quando o cérebro funciona normalmente, o indivíduo ganha flexibilidade para pensar e um melhor desempenho da memória. Outros genes e as condições de vida, no entanto,
podem fazer com que o cérebro encontre dificuldades para gerenciar
esse ganho, ocasionando efeito colateral.
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OCUPACIONAL
Transtornos mentais afetam
Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) alertam que de 25% a
30% da população mundial sofrerá, ao longo da vida, algum tipo de perturbação
mental ou comportamental. Quando abordado um grupo específico da sociedade,
como a classe trabalhadora, os números também são preocupantes. Segundo a
OMS, os transtornos mentais menores acometem cerca de 30% dos trabalhadores
ocupados. Os mais graves atingem de 5% a 10% da classe.
A realidade no Brasil segue a tendência mundial. Os transtornos mentais e comportamentais respondem pela terceira causa de afastamento do trabalho no país,
de acordo com o levantamento feito pela Previdência Social de 2008 a 2011.
Essas doenças perdem apenas para as do sistema osteomuscular, como a LER/
DORT (Lesão por esforço repetitivo/Distúrbios osteomusculares relacionados
ao trabalho), e as lesões traumáticas.
De acordo com o último Anuário Estatístico de Acidente de Trabalho da Previdência Social, o número de acidentes de trabalho no Brasil apresentou redução de
7,2% entre 2008 e 2010. No entanto, os transtornos mentais não estão acompanhando esta tendência. A concessão de auxílios em função dessas doenças subiu
mais 1,5% de 2010 para 2011, passando de 12.150 para 12.337 casos.
Dentro dos transtornos mentais e comportamentais, as doenças que mais afastaram
os trabalhadores no ano passado foram os episódios depressivos e transtornos
depressivos recorrentes, que respondem por mais de 50% das licenças concedidas; transtornos de ansiedade, como o transtorno do pânico e o de estresse pós-traumático; seguidos pelos transtornos decorrentes de substâncias psicoativas
(álcool e dependência de drogas); e esquizofrenia.
A depressão é um mal que acomete mais as mulheres – na proporção de duas
para cada homem –, devido à sobrecarga de trabalho (dupla jornada) e, por
consequência, de responsabilidade, e por fatores de questão hormonal. No sexo
masculino, a predominância maior é de perturbações originárias pelo consumo
de álcool e uso de drogas, principalmente cocaína.
Para o perito médico da Previdência Social, Mario Jorge Tsuchiya, a justificativa
para esses números está no fato de a administração e a gestão dos processos
produtivos terem se alterado substancialmente nas últimas décadas, ganhando
relevância a evolução pautada no processo produtivo voltado para metas, considerando a automação, cada vez maior, do processo produtivo, o que acaba por
gerar maior demanda no trabalho, tudo em nome da competitividade e produtividade. “Praticamente todas as atividades humanas na sociedade, desde educação,
trabalhos de produção ou de serviços, foram afetados, aumentando as exigências
principalmente mentais e comportamentais de todos”, disse.
Os transtornos mentais e de comportamento relacionados ao trabalho, no entanto,
não resultam de fatores isolados, mas de contextos de trabalho em interação com
o corpo e o aparato psíquico dos trabalhadores. Segundo o psiquiatra, médico
do trabalho e coordenador do Grupo de Saúde Mental e Psiquiatria do Trabalho
do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, Duílio Antero de
Camargo, o desencadeamento desse tipo de doença que resulta em licença do
trabalho está associado a um tripé de fatores formado pelos aspectos social,
individual e o ambiente e exercício da ocupação profissional.
Desde o início dos anos 2000, explica Camargo, estamos vivendo a era da
ansiedade, do aumento da competitividade entre as pessoas, da violência e dos
conflitos familiares. Associado a isso, tem-se a questão da predisposição genética
ou familiar de cada indivíduo para transtornos e doenças mentais, convivendo
com a insegurança quanto à manutenção do emprego, o excesso de cobrança e
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de atividades, aumento das responsabilidades e conflitos com a chefia. “É a junção de todos esses fatores
que pode desencadear ou não o transtorno psíquico.
São situações, períodos de ajustamento em que se
pode ter origem as doenças mentais e gerar ou não a
incapacidade do trabalhador. É sempre um conjunto
de fatores. Nunca é um fator isolado.”
A opinião é compartilhada por Thatiane Fernandes,
médica psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas, que evidencia que a cultura
da competição, a rapidez das informações, o excesso
de cobrança e as demais ações do mundo moderno
podem, ao mesmo tempo, tirar o melhor e o pior
de cada pessoa, e levar a resultados diferentes em
cada indivíduo. “Se é cobrado para ser magro, o
mais bonito, o mais rico, ser bem-sucedido, e não
seremos assim. Isso gera descontentamentos, sensação de esvaziamento interior, cria vidas vazias de
propósitos, criatividade e de valores, levando a uma
frustração, que pode se tornar uma depressão ou
não.” De acordo com dados da OMS, a depressão
irá se tornar a segunda maior causa de comorbidade
no mundo ocidental até 2020.
Mas Camargo faz uma ressalva: é muito importante
a avaliação bem específica das causas do desenvolvimento dos transtornos mentais (análise do nexo
causal), pois a doença pode não ter sido provocada
pelo exercício da profissão ou não impedir o indivíduo de realizar as suas atividades no trabalho. “Nesse
caso, não justifica o afastamento. Além disso, desde
a mudança na legislação, em 2007, quando houve a
inversão do ônus da prova, cabe a empresa, assim
que solicitada a licença das funções profissionais
do empregado, provar que não foi ela a causadora
da doença no funcionário.” A recente legislação
também mexe com o caixa das empresas, pois
quanto mais acidente de trabalho (assim também
chamado o afastamento do serviço por doença),
mais a empresa terá que pagar pelo RAT (risco de
acidente de trabalho).
Tsuchiya também alerta para a confusão existente
entre doença e incapacidade, que só se justifica quando as manifestações clínicas impedem o exercício
da atividade habitual. Nestes casos, o que vale é a
adequação das condições de trabalho.
Excesso de diagnósticos
Para os três médicos, a deturpação entre tristeza e
depressão e incapacidade ou não do trabalhador tem
levado ao excesso de diagnósticos de transtornos
mentais. Antigamente, segundo Thatiane, situações
de simples tristeza, ansiedade ou solidão, reações
humanas consideradas normais, eram classificadas
saúde do trabalhador brasileiro
como neurose. Isso significa que, do ponto de vista
psiquiátrico, a pessoa não perdeu o contado com
a realidade, mas pode acabar evoluindo para um
quadro de depressão. Como o exame das funções
mentais apresenta muita dificuldade para a maioria
dos médicos não psiquiatras em suas atividades
diárias, até mesmo para o médico do trabalho das
empresas, esses sintomas acabam sendo registrados
como transtornos mentais, o que também tem feito
aumentar o número de casos dessas doenças, promovendo a banalização dos diagnósticos.
SIMULAçÃO E DISSIMULAçÃO
Há também casos de pessoas que simulam transtornos mentais para se afastar
do trabalho e conseguir ficar recebendo sem trabalhar ou acumulando renda
do Instituto Nacional de Serviço Social (INSS).
Thatiane Fernandes, que também é perita do INSS, informa que como muitas
vezes não há exames que comprovem essas doenças, a técnica e a experiência
do médico para identificar a simulação dos sintomas dos transtornos mentais
são fundamentais. Ela relata que é preciso estar atento quando o funcionário
diz estar tendo esquecimentos e brancos, ouvindo vozes ou vendo vultos.
Mudar este cenário é meta dos psiquiatras que atuam
na medicina do trabalho. Eles defendem que para
uma maior capacidade de avaliação do diagnóstico é preciso mais informação, acesso a diretrizes
específicas, melhora do sistema de atendimento na
área de saúde mental, maior integração do médico
do trabalho da empresa com os demais atores participantes no sistema.
Duílio Camargo alerta para o feito contrário: a dissimulação, que ocorre quando
por medo de perder o emprego o funcionário disfarça os sintomas e esconde
que está doente. “O presenteísmo, que é trabalhar com uma doença considerada
simples (como dor de cabeça), leva ao absenteísmo (falta ao trabalho). Para
evitar o estigma de que é sempre o funcionário que falta, muitos escondem os
que realmente estão sentindo e passando, e com isso o que poderia ser tratado
como uma doença comum, pode acabar evoluindo para um transtorno mental
considerável”, explica.
Prevenção da doença e promoção da saúde
Ele lembra que mais que combater o absenteísmo, muito
presente na área da saúde e
de segurança do trabalho,
é preciso estar atento
ao que acontece com
o funcionário, para
perceber quando ele
está em sofrimento
psíquico e não adoeceu ainda. “O programa de saúde mental
de uma empresa deve atuar
na promoção, prevenção,
intervenção, remediação e
reintegração, quando necessário. E antes mesmo do programa
ser lançado o ideal é que o serviço
de saúde e o RH da empresa sejam
treinados e preparados para lidar com o
tema e a demanda.”
Um bom começo para diminuir o número de casos
de afastamento do trabalho por transtornos mentais,
segundo o perito Tsuchiya, é provocar maior discussão sobre o assunto, proporcionar diagnósticos mais
precisos, identificar possíveis fatores laborais e criar
soluções focadas em cada caso, já que não há como
generalizar uma solução. “A prevenção de doenças
e promoção da saúde são as medidas desejáveis em
qualquer espécie de doença. Além de reduzir o custo
para as empresas, reduziria o próprio custo da assistência à saúde, significaria uma verdadeira mudança
de cultura em nossa sociedade.”
Camargo ainda defende que o acesso à informação,
seja por meio de palestras, folders, campanhas, é a
melhor forma de prevenção dessas doenças, aliadas
a uma boa comunicação interna nas empresas, com
acompanhamento do departamento de Recursos
Humanos, para verificar o relacionamento entre as
lideranças, chefias e demais funcionários, num processo moldado pela cultura organizacional.
A promoção de saúde mental se dá por meio de
ações que propiciem mudanças de atitudes na chefia
e nos funcionários, para que eles tenham ferramentas que possibilitem identificar sintomas e sinais
de maneira precoce, sem estigmas e preconceitos
– considerados uma das grandes barreiras quando
o assunto é saúde mental. Neste aspecto, justifica
Thatiane, a família pode ajudar muito, verificando
qualquer mudança de comportamento, acompanhando ao médico e incentivando à psicoterapia e
a prática de hábitos saudáveis que propiciem uma
melhora na qualidade de vida.
Duílio Antero de Camargo
ARTIGO
Psicofobia é
crime
Por Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)
No desembarque do aeroporto JFK, em Nova York,
no começo deste ano, o outdoor que recebia milhares
de pessoas diariamente não trazia nenhuma bela foto
da cidade ou mensagem de boas-vindas. O que os
viajantes encontravam era uma enorme propaganda
com a mensagem “Relaxe, vai passar, isso é temporário… Se você não diz isso sobre o câncer, também
não diga sobre a depressão”. A ironia desconcertante
da publicidade reflete muito da imagem que alguns
transtornos mentais ainda recebem por parte da sociedade: para alguns, um destempero; para outros,
uma fraqueza. Mas a depressão é um transtorno
mental dos mais graves e incapacitantes. Dentre as
dez principais causas de afastamento do trabalho em
todo o mundo, cinco são decorrências de transtornos
mentais. A depressão aparece em primeiro lugar.
Para 46 milhões de brasileiros, segundo dados do
Ministério da Saúde, a depressão é uma realidade:
20% a 25% da população já tiveram ou têm depressão ao longo da vida. A incapacitação profissional, a
falta de interesse e de motivação para participar de
atividades sociais rotineiras e de ter prazer nas coisas
que gostam e com as pessoas que amam transformam
dramaticamente o cotidiano dessas pessoas, o de seus
familiares e amigos, trazendo consequências devastadoras. Essa falta de capacidade de se relacionar tem
efeitos profundos e duradouros, que dificultam a reinserção social dos que tentam
se recuperar de um episódio de depressão.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a depressão e os demais transtornos
mentais atingem a muitos brasileiros, o preconceito em torno deles é crescente na
sociedade. Já é hora de combater essa discriminação, como atualmente já se faz com
os homossexuais, os negros e as mulheres. A expressão psicofobia expressa justamente o nefasto preconceito contra os doentes mentais e os portadores de deficiência.
Se não se deve debochar ou subestimar de doenças como o câncer, conforme
apontou o outdoor no aeroporto americano, também não há razão para as doenças mentais não serem encaradas com a seriedade que
elas pedem e seus portadores exigem. Há várias
formas de preconceito, entre elas a própria
negação da doença como algo menor ou
passageiro. Como disse Albert Einstein,
lamentando a triste época em que vivia, “é
mais fácil desintegrar um átomo do que
um preconceito”. Em pleno 2012, ideias
preconceituosas devem ser combatidas
com veemência. É chegada a hora de a
sociedade olhar com maturidade e respeito para os portadores de transtornos
mentais. Psicofobia é crime.
(Publicado no jornal O Globo, em 29 de junho
de 2012)
DEU NA IMPRENSA
Castigos físicos aumentam chances de crianças
apresentarem distúrbios mentais na vida adulta
Punições físicas aplicadas pelos pais para disciplinar
os filhos podem desencadear uma série de problemas
mentais entre as crianças ao longo da vida. Segundo
um novo estudo publicado nesta segunda-feira na
revista Pediatrics, agressões — mesmo que não sejam as formas mais graves de abuso, como sexual ou
negligência, comprovadamente prejudiciais à saúde
mental, como empurrar, bater e agarrar, estão associadas a distúrbios de ansiedade e de personalidade.
Segundo os autores do trabalho, está clara a relação
entre maus tratos às crianças, tanto físicos e emocionais quanto abuso sexual, e problemas emocionais
apresentados por elas durante a vida adulta. No
entanto, de acordo com eles, pouco foi estudado
sobre os efeitos negativos das punições físicas que
são usadas como uma forma de castigo, para a saúde
mental dos indivíduos.
Para a pesquisa, uma equipe da Universidade de
McMaster, no Canadá, se baseou em dados de 600
americanos inscritos no Exame Nacional de Epide-
8
miologia em Álcool e Condições Relacionadas, dos Estados Unidos, que coletou
dados de 34.653 pessoas maiores do que 20 anos entre 2004 e 2005. Os autores
observaram que entre 2% e 7% dos distúrbios mentais apresentados pelos participantes — entre eles os transtornos de humor, ansiedade, bulimia, transtorno
obsessivo compulsivo (TOC) e abuso de álcool e drogas — foram atribuídos a
punições físicas na infância.
Os autores da pesquisa explicam que, embora essa porcentagem pareça pequena,
ela já é suficiente para mostrar que os castigos físicos podem ser considerados
como fatores de risco para problemas mentais. Eles acreditam que esses resultados
reforçam a ideia de que reduzir o castigo físico pode ajudar a diminuir a prevalência
de transtornos mentais na população em geral.
Brasil — Uma pesquisa divulgada em junho pelo Núcleo de Estudos da Violência
da Universidade de São Paulo indicou que um em cada cinco brasileiros sofreu
punição física regular, ou seja, ao menos uma vez por semana, na infância, e que
pouco mais de 70% apanharam ao menos uma vez quando crianças. O levantamento, feito em 2010 com 4.025 pessoas de onze capitais do país, também mostrou
que os indivíduos que relataram sofrer mais punições físicas apresentavam mais
chances de adotar a violência na criação de seus filhos.
(Fonte: Revista Veja, 2 de julho de 2012)
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