Música popular afro-mineira: conflitos étnicos e éticos de uma construção Glaura Lucas Texto apresentado no I Encontro de Estudos da Música Popular, realizado em outubro de 2006 na Escola de Música da UFMG Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer ao Prof. Carlos e à Prof. Heloísa pelo convite para participar deste Encontro, não só pela importância para os estudos da música popular em geral, e especialmente como um marco nesta Escola, para a ampliação do estudo e da pesquisa. [Iniciativas e projetos nesse sentido já vêm sendo realizados há um bom tempo, e eu tive o prazer de ter tido uma pequena participação ao dar aulas, durante dois anos e meio, no curso de extensão em música popular, juntamente com Carlos, Heloísa e Mauro Rodrigues. Além disso, como etnomusicóloga, a música popular sempre esteve presente nas disciplinas que eu ministrei desde 1999 e que ministro hoje como bolsista do CNPq]. E fico feliz de integrar essa mesa, cujo objetivo é o de abordar os múltiplos olhares lançados sobre a música popular. A etnomusicologia se destaca nos estudos da música em geral pela ampliação do olhar e da escuta. Embora seja ainda bastante associada ao estudo da música de sociedades tradicionais, aborígenes e, no caso brasileiro, também da música convencionalmente chamada de folclórica ou da cultura popular, o campo, desde que assumiu esse nome na década de 1950, foi definido não pelo tipo de música estudado e sim pela metodologia, através da qual a música de qualquer sociedade fosse abordada como cultura e como prática social. Minha intenção nesta fala é, então, ampliar o olhar, a partir de uma noção também expandida e múltipla de ‘popular’1, que contenha suas diferentes formas de ocorrência: tanto a música tradicional, da cultura popular, quanto a música de mercado, autoral, que assume a denominação genérica de música popular. Embora as fronteiras entre essas subcategorias sejam fluidas e permeáveis, repletas de relações de influências e apropriações, percebem-se diferenças conceituais marcantes nos olhares e escutas lançados sobre suas práticas pelos participantes de cada domínio. A etnomusicologia se mostra como uma ferramenta importante para promover a aproximação e o diálogo entre essas concepções. Guimarães, Leda Maria de Barros, 2005 tese – Uma ordem desobedecida: espaços do popular no ensino de arte na universidade, UFG. 1 A vontade de abordar o tema veio da observação, no momento atual, de várias frentes de ação vindas de setores diversos da sociedade, em torno de um único complexo de práticas musicais: o do Congado mineiro. O foco principal é um movimento crescente de utilização de elementos das construções sonoras e de símbolos congadeiros em shows e gravações, por parte de um setor da música popular. Mas, compõem também esse cenário atual 1) a reação dos congadeiros frente a esse movimento e suas próprias iniciativas e formas de diálogo com a sociedade e de divulgação mais ampla, através de critérios próprios, de suas práticas musicais; 2) a expansão de um processo de valorização e promoção da cultura e da arte negra na cidade, através de projetos e festivais os mais variados; 3) a aprovação pelo IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais) da realização do registro e inventário do patrimônio imaterial da comunidade dos Arturos e de outros núcleos congadeiros do Estado, e 4) a mobilização em torno da produção de materiais para-didáticos e da capacitação de professores para atender à Lei 10.639 de 2003, que obriga o ensino de História da África e História da Cultura Afro-brasileira nas escolas públicas e privadas de ensino médio e fundamental. Há vários níveis e formas de utilização dos elementos do Congado por músicos populares, várias são as justificativas e motivações para esse uso, mas, no geral, existe uma intenção de se desenvolver uma identidade musical afro-mineira, que seja projetada como uma marca própria regional no universo da música popular brasileira, a exemplo da Bahia ou de Pernambuco. E é compreensível que o Congado, com seu diferencial de força histórica, tradicional de resistência da cultura negra em Minas, se tornasse modelo e fonte de inspiração. E ele passa a constituir referencial de identidade étnica para alguns e histórico-geográfica em geral. Quanto à forma de utilização, há vários níveis e graus, desde uma ambientação a partir de re-elaborações sutis até a reprodução literal de cantos e ritmos em timbres também congadeiros; quanto à intenção, vai desde a homenagem até o aproveitamento comercial de um modismo, passando pelos velhos argumentos do resgate, da valorização, da divulgação, do fortalecimento, da recuperação e preservação. Independentemente da justificativa e do grau de utilização, o que eu observo é um distanciamento de concepções e sentimentos em relação à música congadeira. Porém, a concepção dos músicos populares sobre o que seja música em geral é a predominante e é também a que rege as leis sobre autoria, e que, portanto, se pretende universal, ainda que se baseie, por exemplo, numa hierarquia de valor relacionada aos parâmetros musicais, que é específica, ou de modos de criação, também específicos (e que está em debate, mas sem solução satisfatória, domínio público, não contempla propriedade coletiva). Uma vez que a concepção dos músicos populares é mais generalizada, quase naturalizada, ela se projeta sobre a música congadeira, como se os significados fossem compartilhados. Então, eu gostaria de trazer para essa questão, algo da perspectiva dos congadeiros sobre a noção de música, de autoria e de propriedade no contexto do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Quando eu estava terminando o mestrado, depois de quatro anos que eu vinha freqüentando e pesquisando o Congado, eu comentei com o capitão João Lopes da Irmandade do Jatobá que eu havia restringido a minha pesquisa aos padrões e comportamentos rítmicos e suas relações rituais, devido ao volume de informação que já havia gerado, ficando o aprofundamento dos cantos para uma outra oportunidade. Aí, o capitão me surpreendeu com a seguinte pergunta: “Quer dizer que batido de caixa de Congado é música?” Há muitas questões envolvidas nessa pergunta, inclusive em relação à hierarquia dos parâmetros musicais, mas o que eu quero destacar é que EU é que tinha naturalmente reconhecido e abordado aquilo como música. O capitão João Lopes se referia aos batidos de caixa de Congado como rituais (o Congo tem 5 rituais, o Moçambique tem 2 e o Candombe tem só 1). E de fato, a essas configurações rítmicas desenvolvidas nos instrumentos de percussão característicos (caixas, patangomes, gungas, pandeiros, canzalos) se vincula um conjunto de normas pré-estabelecidas que devem ser seguidas para a correta condução das obrigações, de tal forma que as ações sejam eficazes e produzam os efeitos desejados. Tais normas se relacionam aos significados atrelados aos padrões rítmicos, tornando uns mais adequados que outros, conforme o espaço, o tempo e a ocasião, e também à aplicação de variações às bases dos padrões rítmicos no decorrer dos longos fluxos musicais. Juntamente com os cantos, eles compõem uma aura sonora que abriga as cerimônias do Reinado e as dimensiona temporalmente. A partir dos referenciais históricos e míticos, os cantos, os instrumentos e os sons que produzem funcionam como canais de ligação dos congadeiros com seus antepassados e promovem também a aproximação de Nossa Senhora do Rosário. Essa música é contínua, se configurando como uma massa sonora heterogênea, realizada pelas muitas guardas que participam dos festejos, as quais executam, simultaneamente, cantos e ritmos diferentes. O conjunto desses cantos e ritmos é geralmente percebido por congadeiros da Grande Belo Horizonte como integrantes de um patrimônio pertencente ao universo do Congado em geral, a ser utilizado, com responsabilidade e propriedade, para o louvor a Nossa Senhora do Rosário e aos antepassados e para o cumprimento de obrigações rituais. Não há um sentimento de posse dos cantos por um indivíduo ou por um grupo. Ao contrário, são dádivas e todos os fiéis têm o direito de se expressar por meio delas, ofertando-as aos seres de devoção, como também aos irmãos congadeiros. Muitos percebem a criação dessas músicas como resultante de uma força divina, como no seguinte depoimento do falecido capitão João Lopes: “Música de Congado acontece assim, casualmente. Quando cê tá no auge da espiritualidade, que tá puro, a gente escuta cantar no ouvido da gente as coisa bonita, ocê escuta e aprende a cantá aquilo. Eu invento, mas num é através do meu potencial, não, é através da força divina, da iluminação do espírito santo sobre a gente.” Como dons divinos, pertencem a Deus e a Nossa Senhora, para uso de todos os fiéis. Então, mesmo quando alguém se declare autor de um canto, não existe uma reivindicação ou sentimento de propriedade desse canto. Além disso, ainda tem que se considerar que a noção de autoria segue critérios culturais próprios de equivalência e distinção, os quais são bem diferentes dos que regem as leis vigentes. Por exemplo, uma criação pode ser a colocação de uma nova letra numa melodia conhecida. Da mesma forma, letras semelhantes em melodias bem distintas são consideradas um mesmo canto. E esses estão em processo de constante recriação, não apenas ao longo de gerações, mas também entre diferentes comunidades ou mesmo indivíduos, que vão remodelando os cantos, imprimindo sotaques próprios a eles ou variações mais acentuadas, conforme o tipo e a função do canto, destacando assim as expressões e habilidades pessoais. Isso significa que existem várias possibilidades para um mesmo canto, não havendo uma versão “original” ou “mais correta” a partir da qual outras são feitas. E isso dificulta seu exame e classificação sob a ótica de maior fixidez do mundo das músicas de mercado. (isso lembra a polêmica do Pelo Telefone, primeiro samba a ter sucesso através de gravação, registrado em 1916 em partitura por Donga na Biblioteca Nacional) Porém, há vários tipos de música, conforme o tipo de guarda e suas funções, uns cantos tendo maior valor ritual e afetivo do que outros. E há um livre trânsito desse repertório entre grupos congadeiros, sendo comum a apropriação de cantos de outras guardas. Integram esse repertório não só cantos mais tradicionais do Congado, transmitidos através das gerações, que são predominantemente utilizados nas situações de maior profundidade espiritual, como também aqueles apropriados da Igreja Católica, da Folia, da Umbanda, e até do mercado, que são executados em momentos da maior descontração (esses normalmente com vida curta dentro das celebrações, como aconteceu, por exemplo, com um canto do Padre Marcelo que teve uma parte adaptada como um refrão, dentro dos padrão formal dos cantos congadeiros de solo/resposta coral com improvisações, mas não durou mais que duas festas). Estamos, então, diante de um universo musical bastante heterogêneo e fluido, em que seus agentes vão reconstruindo o conhecimento através dos diálogos e embates entre as várias maneiras de ser congadeiro. Mesmo assim, muitos significados atrelados à música são amplamente compartilhados entre os congadeiros. Temos que lembrar ainda dos sentimentos em relação aos próprios atos de cantar, tocar e dançar. No Congado, não há artistas na concepção que a vincula a um talento especial que distingue o indivíduo dos outros não talentosos. São pessoas que vivem cotidianamente o direito de se expressarem através da música, e não profissionais da música. Mas, eles detêm os conhecimentos não só técnicos e teóricos da prática musical, como também os significados rituais associados. Então, o sentido de “apresentar”, “mostrar” pros outros está longe de ser a motivação primordial do fazer musical. Porém, quando se ultrapassam as fronteiras desse universo, nas relações com um público externo, aí sim, há um sentimento geral de proteção e resguardo dessas músicas, frente a uma concepção musical externa que, para os congadeiros, normalmente conduz a usos inadequados e a interpretações equivocadas desse patrimônio imaterial. E é aí, então, que identificamos um sentimento de propriedade coletiva. O sentimento de alguns grupos congadeiros diante dos usos equivocados e abusivos de suas músicas e símbolos por artistas da música popular é o de um profundo desrespeito, de carnavalização e de destruição, fazendo com que o termo ‘sagrado’ surja insistentemente no discurso dos congadeiros com um público externo e pondo em cheque os argumentos de valorização, preservação, resgate e divulgação. Diante dessas e de outras situações, os congadeiros continuam se valendo de métodos históricos, centenários de proteção e resistência cultural, que incluem a ocultação, a dissimulação, o uso de metáforas textuais e códigos sonoros e gestuais que mantêm os significados restritos à comunidade, bem como a preservação que, no universo congadeiro, significa a extinção do saber cultural. Conscientes de que a transmissão de certos saberes exige um grau de desenvolvimento pessoal e de merecimento do aprendiz, os mestres preferem não transmiti-los de modo a preservá-los contra um uso indevido. E é aqui que retornamos ao cenário atual. A música popular com seu poder de difusão vem disseminando uma concepção do que seja música de congado bastante esvaziada de seus significados. Passando ao largo das formas de ocorrência do congado, vem se criando e disseminando muito velozmente de forma arbitrária esta idéia. Voltar a: IEPHA e lei 10639