O papel da sociedade da Torre em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister Guilherme Percival Keusch Albano Nogueira Universidade de São Paulo/FFLCH [email protected] Resumo Goethe, ao lado de poucos autores, não se deixa incluir em apenas um movimento literário. Entre préromantismo, romantismo e classicismo, a genialidade do autor alemão se enquadra e se mistura com todos. Uma leitura de sua obra entre 1770 e 1830 demonstra uma versatilidade que imprime a cada um de seus livros características dos respectivos movimentos. Alem do mais, o autor desenvolve diversos leitmovits que se conectam em algum ponto, transformando um simples tema em uma explanação muito mais profunda. Em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Goethe, habilmente, une forma e conteúdo. A formação, tema essencial na trajetória de Meister, também é observada na maneira em que o romance foi construído (três partes bem distintas). Alguns críticos como Lukacs definem o romance como um produto de transição, conseqüência dos próprios anos de evolução de Goethe. Outro ponto essencial está no conceito de romance de formação. Wilma Maas relembra que os dois radicais (Romance e Formação) “correspondem a dois conceitos fundadores do patrimônio das instituições burguesas” . E, finalmente, há no romance diversos trechos que destacam essa crença na insuficiência de uma formação completa somente através de preceitos burgueses. O próprio Meister, em carta endereçada ao seu amigo Werner, reforça essa noção ao afirmar que “Se, na vida corrente, o nobre não conhece limites, se é possível fazer-se dele um rei ou uma figura real, pode portanto apresentar-se onde quer que seja com uma consciência tranqüila diante dos seus iguais, pode seguir adiante, para onde quer que seja, ao passo que ao burguês nada se ajusta melhor que o puro e plácido sentimento do limite que lhe está traçado”. No meio da busca por uma formação mais completa e durante a descoberta de que o teatro é apenas um meio transitório para que atinja o seu objetivo, surge um grupo secreto que se denomina Sociedade da Torre (Turmgesellschaft). Ela será essencial para que Meister se forme e para o desfecho de seu desenvolvimento. Em um dos trechos do posfácio de Lukács, o critico considera que aos olhos do autor alemão, a “nobreza tem valor exclusivamente como trampolim, como condição favorável a tal formação da personalidade” . Essa nobreza é representada por diversas personagens, dentre elas a própria sociedade e seus elementos formadores. Este grupo ganha uma importância própria, onde o coletivo é mais relevante do que o individual; e isso acaba sendo determinante na formação de Meister. Palavras Chaves: Goethe, Wilhelm Meister, Sociedade da Torre Abstract Goethe, next to few authors, cannot be included in only one literature movement. Between pre-romanticism, romanticism and classicism, the author geniality can be perceived in all of them. Reading his books between 1770 and 1830, the reader can observe a versatility that will reflect parts of each movement. Besides that, Goethe develops several leitmotivs that will connect at some part, transforming a simple theme into a deeper thesis. In Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Goethe, joins format and content. The education, key theme in Meister trajectory, is also observed in the way the book has been built (three very distinct parts). Some critics as Lucaks define the novel as a transition product, consequence of the apprenticeship years of Goethe. Another key point is in the concept of Bildungsroman (Romance de Formação, in Portuguese). Wilma Maas reminds that both base words (Romance and Formação) “correspond to two concepts that were key to the foundation of bourgeois institutions”. And, finally, there is in the novel several parts that highlight this belief in the scarcity of a complete education through bourgeois prescriptions. Meister, himself, in a letter shared with his friend Werner, reinforces this concept by affirming: “If, on ordinary life, the noble does not know boundaries […] can move ahead to wherever he wishes, the bourgeois is very adjusted to the pure and SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP placid feelings of the limits that are projected to him”. In the middle of this search of a more complete education and during the finding that the theatre is not more than a transitory means to reach his goals, Meister finds a secret group called Society of the Tower (Turmgesellschaft). It will be essential for Meister Education and also for his evolution denouement. Lukács considers that through Goethe`s eyes, “aristocrats are being valued as a trampoline, as a favourable condition for the personality shaping”. Several characters represent this aristocracy and one of them is the Society of the Tower and their elements. This group ends the novel with a high importance, when the collective is more relevant than the individual; and this ends up being determinant for Meister Education. Key words: Goethe, Wilhelm Meister, Society of the Tower SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP Introdução Goethe, ao lado de poucos autores, não se deixa incluir em apenas um movimento literário. Entre préromantismo, romantismo e classicismo, a genialidade do autor alemão se enquadra e se mistura com todos. Uma leitura de Os sofrimentos do jovem Werther e de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister demonstra como Goethe teve seus próprios anos de evolução e mudanças; e também revela como o autor podia ser versátil o suficiente para imprimir a cada um dos livros características dos respectivos movimentos. Em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Goethe, habilmente, une forma e conteúdo. A formação, tema essencial na trajetória de Meister, também é relevante na maneira em que o romance foi construído; inicialmente composto por cinco livros, Goethe escreveu sua última versão em oito partes, sendo as últimas três bastante distintas das cinco primeiras. Isso ocorre porque o autor passa por seu próprio processo de formação, havendo, portanto, diversas situações que o influenciam como pessoa e como autor. Críticos como Lukács definem o romance como um “produto de transição” . Segundo Schlegel (1795-96), citado por Marcus Mazzari (2010, p103), julgar o romance de Goethe através de um critério clássico seria “como se uma criança quisesse apanhar a lua e os astros com a mão e guardá-los em sua caixinha” . É um livro que une qualidades de diferentes momentos do romance moderno e, também por isso, recebe uma qualificação bastante única, a de romance de formação (Bildungsroman). O termo Bildung significa educação, formação, instrução, enquanto o termo Roman quer dizer romance. Inicialmente, a crítica considerou o Bildungsroman como um fenômeno tipicamente alemão mas, com o tempo, acabou considerando que tornou-se “um conceito produtivo em quase todas as literaturas nacionais de origem européia” . O romance de formação, como apresenta Wilma Maas, em um livro sobre este gênero, é “uma forma literária de cunho eminentemente realista, com raízes fortemente vincadas nas circunstâncias históricas, culturais e literárias dos últimos trinta anos do século XVIII europeu”. Neste aspecto, é essencial relembrar que Goethe participa tanto do momento classicista alemão quanto do romântico. Carpeaux, por exemplo, afirma que o autor, em seus primeiros anos em Weimar, ainda era tipicamente pré romântico (Carpeaux, p.88). Neste período, Goethe lança Os sofrimentos do jovem Werther, mostrando “anos de um tempestuoso culto da natureza, de tempestuosos divertimentos, de tempestuosos amores”. Logo após, o alemão entra em um período distinto; além de ser nomeado como ministro do ducado de Weimar, envolve-se com uma nobre que acrescentou “a cultura do coração à dos sensos e do espírito” . Mas é a sua viagem à Itália, conforme relembra Carpeaux, o “acontecimento capital de sua vida e da história do classicismo alemão”. Goethe, portanto, diminui o desespero típico de sua fase pré romântica e começa a escrever obras mais distanciadas daquela excessiva emoção, buscando retirar-se “o mais possível da tempestade do mundo”. Marcus Mazzari, na apresentação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, compara estes momentos de Goethe através do léxico utilizado pelo autor em seus livros. Enquanto a palavra “coração” é primordial em Os sofrimentos do jovem Werther e o termo “aspirar” é essencial em Fausto, em Meister o termo fundamental é “formação” (Mazzari, p.11). Em outro estudo, Bornheim observa que há entre Goethe e os românticos “muito menos oposição do que permite concluir um exame superficial” . O crítico afirma que Goethe buscou uma experiência clássica, após a viagem à Itália, mas que acabou percebendo, “suscitado por uma série de razões, de que seus ideais clássicos representam uma fórmula sem futuro em solo germânico” . Ainda que tenha escrito, provavelmente, as primeiras linhas do romance de formação em 1777, Goethe só o termina entre 1793 e 1795. Isso significa que o autor começou sua escrita enquanto ainda era considerado pré romântico e a terminou após sua viagem à Itália e sua maior identificação como classicista. Isso certamente influenciou o romance, em seu conteúdo e em seu formato, fazendo com que ele fosse considerado como um protótipo do romance de formação. É fundamental considerar o contexto no qual a palavra formação estava inserida naquele momento; ela era, na verdade, “prerrogativa exclusiva da aristocracia” , ou seja, de difícil acesso aos burgueses. Ainda nesse aspecto dos elementos formadores do romance de formação, Wilma Maas relembra que os dois radicais (Romance e Formação) “correspondem a dois conceitos fundadores do patrimônio das instituições burguesas” . E, finalmente, há no romance diversos trechos que destacam essa crença na insuficiência de uma formação completa somente através de preceitos burgueses. O próprio Meister, em carta endereçada ao seu amigo Werner, reforça essa noção ao afirmar que “Se, na vida corrente, o nobre não conhece limites, se é possível fazer-se dele um rei ou uma figura real, pode portanto apresentar-se onde quer que seja com uma consciência tranqüila diante dos seus iguais, pode seguir adiante, para onde quer que seja, ao passo que ao burguês nada se ajusta melhor que o puro e plácido sentimento do limite que lhe está traçado”. SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP Lukács reforça isto ao definir o romance como uma busca pela “libertação de uma alma poética da [...] estreiteza do mundo burguês” ; neste caso, é importante apontar que o romance de formação mostra o desenvolvimento de seu protagonista em diversos aspectos. Wilma Maas, inclusive, observa outra definição do termo como uma “forma de romance que representa a formação do protagonista em seu início e trajetória até alcançar um determinado grau de perfectibilidade” . Meister, por exemplo, vê o teatro como elemento formativo essencial de seu caminho durante parte do livro; em uma leitura superficial, pode-se até considerar que este item seja, de fato, um dos leitmotivs do romance, pois inicialmente é através do teatro que Meister busca sua satisfação. No entanto, o teatro acaba sendo apenas um ponto de transição de sua formação, verdadeira temática do livro. Ele se torna o mecanismo pelo qual Meister descobre que o “caminho para a humanização” seria outro, talvez o de seu próprio desenvolvimento. No meio desta busca por uma formação mais completa e durante a descoberta de que o teatro é apenas um meio transitório para que atinja o seu objetivo, surge um grupo secreto que se denomina Sociedade da Torre (Turmgesellschaft). Ela será essencial para que Meister se forme e para o desfecho de seu desenvolvimento. Em um dos trechos do posfácio de Lukács, o critico considera que aos olhos do autor alemão, a “nobreza tem valor exclusivamente como trampolim, como condição favorável a tal formação da personalidade” . Essa nobreza é representada por diversas personagens, dentre elas a própria sociedade e seus elementos formadores. Este grupo ganha uma importância própria, onde o coletivo é mais relevante do que o individual; e isso acaba sendo determinante na formação de Meister. Marcus Mazzari observa essa dicotomia do coletivo versus o individual ao afirmar que os últimos dois livros do romance aproximam-se “de uma teoria da socialização, preconizando-se a necessidade de interação estreita entre indivíduo e sociedade, eu e mundo” . Esta união entre o ser individual e o ser coletivo (ou entre a nobreza e a burguesia) acaba sendo mais um dos papéis que a Turmgesellschaft representa. Objetivos A sociedade da Torre será objeto de estudo deste projeto. Na apresentação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Marcus Mazzari define a sociedade como “uma comunidade movida por ideais humanistas e ao mesmo tempo pragmáticos” . Esta análise, consequentemente, se concentrou em avaliar como o coletivo influenciou o caminho individual de Meister e como Goethe atribuiu diversos papéis a este grupo, os quais não se limitaram somente à representação de seus ideais humanistas. Materiais e Métodos Este projeto foi desenvolvido através da leitura e fichamento de bibliografia sobre o autor e sobre o livro Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Foram analisados trechos do livro em língua inglesa e em língua alemã, além de se fazer a releitura do romance e de seus pontos mais importantes. Foram consultados alguns livros sobre literatura alemã, além da participação em três palestras sobre estudos relacionados ao romance estudado. A análise de alguns capítulos da autobiografia do autor e a leitura de Os sofrimentos do jovem Werther também fizeram parte deste projeto. Algumas discussões foram realizadas com o orientador, que sempre colaborou prontamente com seu largo conhecimento sobre o autor alemão e sobre o romance estudado. Resultados Abaixo estão descritos alguns dos papéis que a Sociedade da Torre exerce no romance: » Ela representa o fechamento de um processo de transição para Wilhelm. Ainda que esteja presente em diversos momentos da trajetória dele, ela surge silenciosamente e só se revela depois que o próprio personagem chega à conclusão de que o teatro não é a sua força motriz, mas apenas um meio de transição. » Goethe a utiliza para representar seus ideais humanistas. Este ponto é analisado por diversos críticos e diversos trechos do romance reforçam isto. Lukács escreve que “em Lothario e Natalie, Goethe incorpora a realização dos ideais humanistas”. E logo que se apresentam à Meister, um de seus membros diz: “não é SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em deixar que o errado sorva de taças repletas seu erro”. » O grupo da Torre representa, além da formação, outro leitmotiv do romance: a moderação. Eles sempre buscam moderar o herói, tanto para equilibrá-lo com mais emoção quanto com mais razão; torna-se, portanto, um tipo de figura paterna para Meister. » Ela representa o desconhecido na vida de Wilhelm, além de um reencontro com seu passado. É pela sociedade que a maioria dos segredos do romance é revelada. » A sociedade ajuda a demonstrar o caráter auto biográfico do romance. Auerbach relembra que Goethe também possuía “ideal de formação [...] enraizado na concepção classista-aristocrática da universalidade elevada e não especializada e da aparência”. Conclusões A sociedade, portanto, não é apenas uma personagem imprescindível de Goethe. Ela é o coletivo e o individual ao mesmo tempo. Ela representa diversas metáforas que estão alinhadas com o centro do romance: a formação. Ela retrata o humanismo, elemento que Lukács relembra ser medular para o livro; ela assume o papel de formação, que poderia ter sido papel do pai de Meister; ela busca moderar Meister, qualidade obrigatória para sua formação. A sociedade é seu mestre e seu reino. É através dela que Goethe insere diversos elementos autobiográficos; e é com seu suporte que Wilhelm se forma de uma maneira mais plena. Ainda assim, em nenhum momento Goethe indica Wilhelm como um mero discípulo; o alemão busca mostrar ao leitor a dicotomia do ser pleno, ou seja, aquele que conquista o seu mundo através do singular e do social. Referências Bibliográficas AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 6a ed. Rio de Janeiro: F.Alves, 1986. BENJAMIN, Walter. Ensaios Reunidos: escritos sobre Goethe. 1a ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009. BOYLE, NICHOLAS. 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