prevenção do câncer do colo do útero em população feminina do

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ÉRICA RIBEIRO PEREIRA
PREVENÇÃO DO CÂNCER DO COLO DO ÚTERO EM
POPULAÇÃO FEMININA DO PARQUE INDÍGENA DO XINGU,
MATO GROSSO
Tese apresentada à Escola Paulista de
Medicina da Universidade Federal de
São Paulo, para obtenção do Título de
Doutor em Ciências.
São Paulo
2011
ÉRICA RIBEIRO PEREIRA
PREVENÇÃO DO CÂNCER DO COLO DO ÚTERO EM
POPULAÇÃO FEMININA DO PARQUE INDÍGENA DO XINGU,
MATO GROSSO
Tese apresentada à Escola Paulista de
Medicina da Universidade Federal de
São Paulo, para obtenção do Título de
Doutor em Ciências.
Orientador: Profa. Dra. Neila Maria de Góis Speck
Coorientador: Profa. Dra. Julisa Chamorro
Lascasas Ribalta
São Paulo
2011
Pereira, Erica Ribeiro
Prevenção do câncer do colo do útero em população
feminina do Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso. / Erica
Ribeiro Pereira. -- São Paulo, 2011.
xi, 118f.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Paulo. Escola
Paulista de Medicina. Programa de Pós-Graduação em
Ginecologia.
Título em inglês: Prevention of cervical cancer in female
population Xingu Indigenous Park, Mato Grosso.
1. Neoplasias do colo do útero/prevenção e controle. 2. Programas
de rastreamento 3. Saúde indígena. 4. Índios Sul- Americanos.
5. Saúde da mulher. 6. Atenção à Saúde.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA
DEPARTAMENTO DE GINECOLOGIA
Chefe do Departamento:
Prof. Dr. Afonso Celso Pinto Nazário
Coordenador do Programa de Pós-Graduação:
Prof. Dr. Manoel João Batista Castello Girão
iii
ÉRICA RIBEIRO PEREIRA
PREVENÇÃO DO CÂNCER DO COLO DO ÚTERO EM
POPULAÇÃO FEMININA DO PARQUE INDÍGENA DO XINGU,
MATO GROSSO
Presidente da banca:
Profa. Dra. Neila Maria de Góis Speck
Banca examinadora:
Prof. Dr. Roberto Geraldo Baruzzi
Prof. Dr. José Focchi
Prof. Dr. Luiz Carlos Zeferino
Profa. Dra. Thais Heinke
iv
Dedicatória
Dedico esta tese às mulheres indígenas do Xingu que me receberam com carinho nos
anos que lá estive.
Fonte: Projeto Xingu, 2003
v
Agradecimentos
À Deus por me guiar e dar esperança nos momentos difíceis.
Aos meus pais, dedico mais esta trajetória em minha vida com eterno agradecimento.
Ao meu companheiro Rafael, pelo carinho e compreensão incondicional.
À orientadora Profa. Dra. Neila Maria de Góis Speck e coorientadora Profa. Dra.
Julisa Chamorro Lascasas Ribalta, profissionais dedicadas e parceiras nesse
trabalho junto às mulheres indígenas. Obrigada por me acompanharem nessa longa
jornada, pela oportunidade, apoio e confiança durante todo este tempo de convívio.
Ao Prof. Dr. Roberto Baruzzi, por me acolher e orientar no início desta caminhada.
Ao Dr. Douglas Rodrigues, pela oportunidade de experimentar e ampliar meu trabalho
na saúde indígena. Agradeço o carinho que se dedicou à leitura desta tese.
À Dra. Lavínia Santos de Souza Oliveira, pelo incentivo, apoio e dedicação
proporcionados ao longo do meu trabalho no Projeto Xingu.
À Dra. Sofia Beatriz Mendonça, pelo carinho e incentivo constante.
Ao Dr. Marcos Schaper dos Santos Júnior, pelo envolvimento e apoio neste trabalho
junto às mulheres do Xingu.
À Dra. Heloísa Pagliaro, pelo tempo e carinho dedicados (in memorian).
Sinceros agradecimentos aos meus eternos mestres: Dr. Baruzzi, Dr. Douglas, Dra.
Sofia e Dra. Lavínia, pessoas iluminadas, altruístas e precursoras na saúde indígena.
Aos amigos e companheiros de trabalho do Projeto Xingu e Ambulatório do Índio do
Departamento de Medicina Preventiva/Unidade de Saúde e Meio Ambiente/UNIFESP,
que compartilham os mesmos ideais.
vi
A equipe da Casa de Saúde do Índio de Sinop-MT e Canarana-MT que me recebeu
com carinho, em especial à Marly.
Aos alunos de graduação e residentes da Universidade Federal de São Paulo que
colaboraram com nosso trabalho no Xingu.
À equipe do Núcleo de Prevenção de Doenças Ginecológicas-NUPREV, em
especial às pós-graduandas: Valéria, Ana Carolina, Wany, Pabline, Fernanda,
Daiene, Márcia que se dispuseram a viajar para o Xingu, contribuindo na continuidade
desse projeto junto às mulheres indígenas.
Ao Departamento de Medicina Preventiva da UNIFESP por ter me recebido como
aluna do Programa de Pós-Graduação durante período probatório.
Ao Departamento de Ginecologia da UNIFESP por ter me recebido como aluna do
Programa de Pós-Graduação, possibilitando minha titulação. A Karim pelas
orientações e apoio.
À equipe do Laboratório de Citopatologia do Departamento de Ginecologia da
UNIFESP, em especial a Dra. Célia Regina Sakano que se dedicou ao processamento
e leitura das lâminas, pelo envolvimento e responsabilidade.
À equipe do Departamento de Anatomia Patológica da UNIFESP, em especial ao
Dr. Gustavo Rubino de Azevedo Focchi pela dedicação e apoio neste trabalho.
Ao Manoel Schimidt por dedicar-se à tradução do resumo da tese.
Às comunidades, lideranças e mulheres indígenas do Xingu. Aos agentes indígenas de
saúde e auxiliares de enfermagem indígenas que muito me ensinaram. Em especial às
agentes indígenas de saúde: Sula Kamayurá, Mahin Waurá, Tsaulu Trumai, Kaiulu
Trumai, Araci Kaiabi, Quareaiup Kaiabi, Põan Kaiabi.
vii
Sumário
Dedicatória........................................................................................................................v
Agradecimentos...............................................................................................................vi
Listas de figuras e quadros..............................................................................................ix
Lista de tabelas.................................................................................................................x
Lista de abreviaturas........................................................................................................xi
Resumo...........................................................................................................................xii
1. INTRODUÇÃO..........................................................................................................01
2. JUSTIFICATIVA........................................................................................................09
3. OBJETIVOS..............................................................................................................11
4. REVISÃO DE LITERATURA....................................................................................13
4.1. Saúde sexual e reprodutiva da mulher indígena ...................................................14
4.2. Mulheres indígenas do Xingu: aspectos culturais e reprodutivos..........................18
5. CONTEXTO HISTÓRICO.........................................................................................22
5.1. O Parque Indígena do Xingu..................................................................................23
5.2. A Universidade Federal de São Paulo ..................................................................26
5.3. Breve histórico de contato dos povos do Médio, Baixo e Leste Xingu..................28
5.4. Programa de atenção básica à saúde no Xingu ...................................................31
5.5. O câncer do colo do útero no Xingu.......................................................................35
6. PACIENTES E MÉTODOS.......................................................................................37
6.1. Delineamento do estudo........................................................................................38
6.2. Local e população..................................................................................................38
6.3. Critérios de inclusão e não inclusão......................................................................38
6.4. Aspectos éticos......................................................................................................39
6.5. Período da coleta de dados...................................................................................40
6.6. Fontes de informação............................................................................................40
6.7. Trabalho de campo................................................................................................41
6.8. Métodos.................................................................................................................46
6.8.1. Coleta do exame citopatológico............................................................................46
6.8.2. Colposcopia..........................................................................................................48
6.8.3. Cirurgia por ondas de radiofreqüência (CORAF).................................................50
6.9. Métodos estatísticos..............................................................................................51
7. RESULTADOS..........................................................................................................52
8. DISCUSSÃO.............................................................................................................63
9. CONCLUSÕES.........................................................................................................80
10. ANEXOS..................................................................................................................82
11. REFERÊNCIAS .......................................................................................................98
Abstract
Bibliografia consultada
viii
Lista de figuras
Figura 1.
Mapa do Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso...................................25
Figura 2.
Organização da assistência à saúde indígena..........................................33
Figura 3.
Exame ginecológico realizado na aldeia e adaptado na rede...................42
Figura 4.
Observação do colo do útero por mulher da etnia Ikpeng.........................43
Lista de quadros
Quadro 1.
Classificação de Bethesda, 2001..............................................................47
Quadro 2.
Terminologia colposcópica, Barcelona (IFCPC, 2002)..............................49
Quadro 3.
Classificação histológica de Richart, 1990................................................49
Quadro 4. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo faixa etária, etnia e exame citopatológico, no
período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu...54
Quadro 5. Distribuição das 59 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, portadoras de atipias citológicas e achados
colposcópicos, no período de outubro de 2005 a fevereiro de 2006, residentes no
Médio, Baixo e Leste Xingu............................................................................................55
Quadro 6. Distribuição das 43 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo achados colposcópicos anormais e
anatomopatológicos de biópsia, no período de fevereiro de 2006, residentes no Médio,
Baixo e Leste Xingu........................................................................................................56
Quadro 7. Distribuição das 22 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual que realizaram cirurgia, segundo resultados da
citopatologia,
colposcopia,
anatomopatológico
de
biópsia,
indicação
e
anatomopatológico de peça cirúrgica, no período de outubro de 2005 a maio de 2006,
residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu.....................................................................62
Quadro 8. Distribuição dos exames citopatológicos relativos à flora vaginal, período
de outubro a dezembro de 2005, Médio, Baixo e Leste Xingu.......................................95
Quadro 9. Distribuição dos exames citopatológicos relativos à microbiologia, período
de outubro a dezembro de 2005, Médio, Baixo e Leste Xingu.......................................95
Quadro 10. Distribuição dos exames citopatológicos quanto à presença de
Gardnerella vaginalis segundo etnias, período de outubro a dezembro de 2005, Médio,
Baixo e Leste Xingu........................................................................................................96
Quadro 11. Distribuição das 59 atipias citológicas, segundo resultado dos exames
citopatológico, colposcópico e anatomopatológico de biópsia, período de outubro de
2005 a fevereiro de 2006, Médio, Baixo e Leste Xingu..................................................96
ix
Lista de tabelas
Tabela 1. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo etnias e resultado do exame citopatológico, no
período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste
Xingu...............................................................................................................................56
Tabela 2. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo faixa etária e resultado do exame
citopatológico, no período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo
e Leste Xingu..................................................................................................................57
Tabela 3. Distribuição das 59 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo faixa etária e atipias citológicas, no período de
outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste
Xingu...............................................................................................................................58
Tabela 4. Distribuição das 59 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo grupo etário e atipias citológicas, no período de
outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste
Xingu...............................................................................................................................58
Tabela 5. Distribuição das 43 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo faixa etária e exame anatomopatológico de
biópsia, no período de fevereiro de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste
Xingu...............................................................................................................................59
Tabela 6. Distribuição das 43 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo grupo etário e exame anatomopatológico de
biópsia, no período de fevereiro de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste
Xingu...............................................................................................................................59
Tabela 7. Distribuição das 43 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo resultado do exame citopatológico e
anatomopatológico de biópsia, no período de fevereiro de 2006, residentes no Médio,
Baixo e Leste Xingu........................................................................................................60
Tabela 8. Distribuição das 22 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo resultado do exame anatomopatológico de
biópsia e peças cirúrgicas, no período de maio de 2006, residentes no Médio, Baixo e
Leste Xingu.....................................................................................................................61
x
Lista de abreviaturas
ACA
AEI
AIS
AGC
ASC-H
ASC-US
CAF
CASAI
CEC
CEP
CNS
CONEP
CORAF
DIU
DSEI
DST
EMSI
EPM
FUNAI
FUNASA
HPV
HIV
HSIL
HSP
IFCPC
INCA
JEC
LAG
LBG
LSIL
MS
MT
NIC
NUPREV
OMS
PIX
PNCCU
RG
SIASI
SISCOLO
SOE
SPSS
SUS
UBS
UNIFESP
USMA
Adenocarcinoma
Auxiliar de enfermagem indígena
Agente indígena de saúde
Células glandulares atípicas
Células escamosas atípicas não podendo afastar lesão de alto grau
Células escamosas atípicas de significado indeterminado
Cirurgia de alta freqüência
Casa de Apoio a Saúde Indígena
Carcinoma espinocelular
Comitê de ética em pesquisa
Conselho Nacional de Saúde
Comitê nacional de ética em pesquisa
Cirurgia por ondas de radiofreqüência
Dispositivo intrauterino
Distrito Sanitário Especial Indígena
Doenças sexualmente transmissíveis
Equipe multiprofissional de saúde indígena
Escola Paulista de Medicina
Fundação Nacional do Índio
Fundação Nacional da Saúde
Papilomavírus humano
Vírus da Imunodeficiência Humana
High grade squamous intraepitelial lesion
Hospital São Paulo
Federação Internacional de Colposcopia e Patologia Cervical
Instituto Nacional do Câncer
Junção escamocolunar
Lesão intraepitelial escamosa de alto grau
Lesão intraepitelial escamosa de baixo grau
Low grade squamous intraepitelial lesion
Ministério da Saúde
Mato Grosso
Neoplasia intraepitelial cervical
Núcleo de prevenção de doenças ginecológicas
Organização Mundial da Saúde
Parque Indígena do Xingu
Programa Nacional de Controle do Câncer do Colo do Útero e Mama
Registro
Sistema de informação da atenção à saúde indígena
Sistema de informações de combate ao câncer do colo do útero
Sem outras especificações
Statistical Package for Social Sciences
Sistema Único de Saúde
Unidade Básica de Saúde
Universidade Federal de São Paulo
Unidade de Saúde e Meio Ambiente
xi
Resumo
Objetivo: Descrever e analisar a prevenção do câncer do colo do útero no Parque
Indígena do Xingu, Mato Grosso, no período de 2005 a 2006. Métodos: Trata-se de estudo
observacional, transversal, retrospectivo realizado por meio da coleta de dados das ações
de prevenção do câncer do colo do útero no âmbito do Projeto Xingu da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP). O universo da população foi de 503 mulheres indígenas,
com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, pertencentes a sete etnias
que residiam nas regiões do Médio, Baixo e Leste Xingu. A coleta e análise de dados
foram desenvolvidas a partir de três ações: rastreamento do câncer do colo do útero
realizado no mês de outubro a dezembro de 2005, colposcopia em fevereiro de 2006 e
cirurgia por ondas de radiofreqüência (CORAF), conização clássica e histerectomia em
maio de 2006. Resultados: A cobertura do exame citopatológico no Xingu, no ano de
2005, foi de 99,6%. A idade das pacientes variou de 12 a 75 anos, mediana de 25 anos
com predominância (61,4%) de jovens na faixa etária dos 12 aos 29 anos. Foram
identificados 59 casos (11,7%) com atipias citológicas, assim distribuídas: 3,0% de células
escamosas atípicas de significado indeterminado (ASC-US), 2,3% de células escamosas
atípicas não podendo afastar lesão de alto grau (ASC-H), 1,4% de células glandulares
atípicas (AGC), 3,0% de lesão intraepitelial escamosa de baixo grau (LBG), 1,6% de lesão
intraepitelial escamosa de alto grau (LAG), 0,2% de carcinoma espinocelular (CEC) e 0,2%
de adenocarcinoma (ACA). Nos 58 exames colposcópicos, houve predominância do
epitélio acetobranco (81,4%). Identificou-se nos 43 exames anatomopatológicos de biópsia
colposcopicamente dirigidas, 13 casos (30,2%) de LAG, 11 casos (25,6%) de LBG e 19
casos (44,2%) como cervicite crônica. Houve predomínio da LAG (92,3%) na faixa etária
de 20 a 49 anos, LBG (36,4%) de 12 a 19 anos e acima de 60 anos. Foi indicada excisão
da zona de transformação por CORAF em 20 casos (44,2%). Em 2 casos (4,6%) indicouse conização clássica e histerectomia. O exame citopatológico mostrou sensibilidade de
54%; especificidade de 97%, valor preditivo positivo de 88% e valor preditivo negativo com
83%. A sensibilidade do exame anatomopatológico de biópsia foi de 72,2%, especificidade
de 100%, valor preditivo positivo de 100% e valor preditivo negativo com 44,4.
Conclusões: Os resultados do programa organizado de prevenção do câncer do colo do
útero no Xingu foram: aumento da cobertura e qualidade dos exames citopatológicos,
detecção precoce das lesões intraepiteliais cervicais, garantia de tratamento e seguimento
de 100 % dos casos detectados, aumento da resolutividade, redução significativa na
ocorrência do câncer do colo do útero e suas lesões precursoras. A participação de
profissionais da UNIFESP com apoio matricial foi fundamental no êxito deste trabalho.
xii
1.
INTRODUÇÃO
2
No Brasil, de acordo com dados do Instituto Nacional do Câncer
(INCA), a estimativa para o ano de 2010 e válida para o ano de 2011, mostra a
ocorrência de 489.270 casos novos de câncer, sendo mais incidentes os tumores de
próstata e pulmão no sexo masculino, de mama e de colo do útero no sexo feminino,
não se incluindo o de pele não-melanoma (INCA, 2009).
O câncer do colo do útero é o segundo mais comum entre as
mulheres no mundo, com aproximadamente 500.000 mil casos novos por ano. Em
alguns dos países em desenvolvimento, ocupa a primeira posição na prevalência dos
cânceres entre as mulheres, enquanto nos desenvolvidos, situa-se em sexto lugar. As
mais altas taxas de incidência no mundo são registradas, por ordem de freqüência, no
Zimbábue, Uganda, Brasil, Mali, Argentina, Gâmbia, Colômbia, Equador, Vietnã, Índia e
Tailândia. O número esperado de casos novos, no Brasil, para 2010 é de 18.430, com
um risco estimado de 18 casos a cada 100 mil mulheres. A região norte apresenta a
maior incidência com 23 casos a cada 100 mil mulheres (Ribeiro, 2008; INCA, 2009;
Brasil, 2010).
Essa neoplasia é responsável pelo óbito de aproximadamente
230.000 mulheres por ano em todo o mundo. No Brasil, seu coeficiente de mortalidade
variou de 4,6 a 5,0/100.000 mulheres no período de 2002 a 2008. A região norte
apresenta a maior incidência, com taxa de 7,1/100.000 mulheres em 2008 (Martins et
al., 2005; INCA 2009).
Dentre todos os tipos de cânceres, o do colo uterino é o que oferece
um dos mais altos potenciais de prevenção, sendo passível de cura se detectado
precocemente. Na faixa etária de 20 a 29 anos torna-se evidente a freqüência desse
câncer e o risco aumenta entre 45 a 49 anos (INCA, 2002; Brasil, 2006; INCA, 2009).
No Brasil, cerca de 70% dos casos de câncer do colo do útero são
diagnosticados em fase avançada, portanto, com prognóstico bastante reservado.
Apesar deste tipo de câncer ter evolução lenta e ser prevenível, as questões culturais,
associadas à problemas de acesso, mau funcionamento e precariedade dos serviços
de saúde à mulher, podem explicar, em parte, porque continua sendo a segunda causa
de morte por câncer no sexo feminino em nosso país (INCA, 2008).
A característica marcante na sua incidência é a ocorrência de 80 %
dos casos nos países em desenvolvimento, associado ao baixo nível socioeconômico,
ou seja, acomete grupos com maior vulnerabilidade social. Nesses grupos concentram-
3
se as maiores barreiras de acesso à rede de serviços para detecção e tratamento das
lesões precursoras (INCA, 2002; Brasil, 2006).
O principal agente causal é o papilomavírus humano (HPV) que
ocasiona a infecção sexualmente transmitida mais comum em todo o mundo, atingindo
aproximadamente de 5 a 44 % das mulheres com vida sexual. Essa infecção é comum
em mulheres jovens, na primeira década de atividade sexual. Na maioria dos casos a
infecção é intermitente e transitória. Naquelas de infecção persistente, o risco de
desenvolver câncer do colo do útero é maior. As infecções virais persistentes
promovem modificações celulares que resultam na ocorrência e progressão das lesões
pré-cancerosas, neoplasias intraepiteliais cervicais (NIC), em neoplasia invasiva
(Guanilo et al., 2006; Schiffman et al., 2007; Ribeiro, 2008; Sankaranarayanan et al.,
2008; Rosa et al., 2009 ).
Nas últimas décadas, foram identificados mais de 100 tipos de HPV,
onde 40 deles têm predileção pelos epitélios da região anogenital. Aproximadamente,
18 apresentam potencial oncogênico, a saber: 16, 18, 26, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 53,
56, 58, 59, 63, 66, 68 e 82. Os tipos 16 e 18 são responsáveis por 70% dos cânceres
cervicais. Aqueles considerados de baixo risco oncogênico, como o 6 e 11 estão
associados a 90% das verrugas
anogenitais (Guanilo et al., 2006; Ribeiro, 2008;
Sankaranarayanan et al., 2008; Rosa et al., 2009 ).
A
persistência
do
HPV
é
condição
necessária
para
o
desenvolvimento, manutenção e progressão das lesões intraepiteliais de alto grau e
ocorrência de câncer invasivo do colo uterino. Vários cofatores de risco têm sido
estudados quanto à associação com o desenvolvimento desse câncer, mas ainda
permanecem obscuros seus verdadeiros papéis. São eles: multiplicidade de parceiros
sexuais,
tabagismo,
coinfecção
por
agentes
infecciosos
como
o
Vírus
da
Imunodeficiência Humana (HIV) e Chlamydia trachomatis, uso prolongado de
contraceptivos orais, iniciação sexual precoce, multiparidade, baixa ingestão de
nutrientes antioxidantes como vitaminas A e E, baixa condição socioeconômica,
imunossupressão, higiene íntima inadequada e história familiar de câncer do colo do
útero (Aldrighi et al., 2002; INCA, 2002; Pinto et al., 2002; Uchimura et al., 2005; Brasil,
2006; Parellada, 2006; Silva et al., 2006; Appleby et al., 2007; Ribeiro, 2008; Rosa et
al.,2009; INCA, 2009).
As estratégias na prevenção do câncer do colo do útero consistem
no diagnóstico precoce de lesões pré-malignas antes de evoluírem para lesões
4
invasivas,
por
meio
de
técnicas
de
rastreamento.
O
exame
citopatológico
cervicovaginal, comumente conhecido como Papanicolaou, é o método de detecção
mais efetivo e eficiente a ser aplicado em programas de rastreamento (Pinho et al.,
2003).
No Brasil, segundo as diretrizes estabelecidas pelo Instituto Nacional
do Câncer (INCA, 2011), do Ministério da Saúde (MS), a periodicidade desse exame
deve ser: após os dois primeiros exames consecutivos negativos, com intervalo anual,
deve-se realizá-lo a cada três anos. Quanto à população a ser rastreada, orienta-se o
início em mulheres de 25 anos de idade, que já tiveram atividade sexual, estendendose até os 64 anos de idade, podendo ser interrompido, após esta idade, caso tenham
dois exames negativos consecutivos nos últimos cinco anos. Nas mulheres com mais
de 64 anos de idade, que nunca realizaram o exame citopatológico, indica-se realizar
dois exames com intervalo de um a três anos. Caso os exames forem negativos,
orienta-se dispensá-las de exames adicionais, salvo se houver história prévia de lesões
precursoras do câncer do colo uterino (INCA, 2002; INCA, 2002a; Brasil 2006; INCA,
2008; INCA, 2009; INCA, 2010; INCA, 2011).
Com a descoberta da estreita relação entre o HPV e o câncer do
colo uterino, outras atitudes têm sido desenvolvidas na promoção e prevenção da
saúde como o controle da infecção do HPV por meio da vacinação, além dos
programas de rastreamento. O objetivo da vacina profilática é impedir infecção por
tipos mais prevalentes do HPV. Atualmente duas vacinas profiláticas estão sendo
comercializadas: uma bivalente contra os HPV 16 e 18 e outra tetravalente contra os
HPV 6, 11, 16 e 18. São indicadas para mulheres entre 9 e 26 anos de idade1 sendo
administradas em três doses por via intramuscular. Entretanto, apesar da grande
eficácia clínica da vacina contra o HPV, seu alto custo impossibilita sua utilização na
saúde pública, principalmente nos países em desenvolvimento (Sankaranarayanan et
al., 2008; Villa, 2008; Silva et al., 2009).
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2007), as
estratégias na luta contra o câncer do colo do útero estão relacionadas à prevenção
primária, que é impedir a infecção pelo HPV e os cofatores que incrementam o risco de
desenvolver tal doença. A prevenção secundária, com detecção precoce por meio de
programas de rastreamento sistemático; a prevenção terciária com diagnóstico,
1
A vacina bivalente é indicada para mulheres na faixa etária de 10 a 25 anos de idade e a tetravalente de 9 a 26 anos de idade.
5
tratamento, seguimento dos casos positivos e cuidados paliativos na doença avançada.
Na prevenção primária além da vacinação, o uso de preservativo nas relações sexuais
deve ser estimulado, pois diminui a possibilidade de transmissão do HPV.
O Ministério da Saúde do Brasil, por meio do INCA, assinou em
1996, protocolo de intenções para implementar ações objetivando detecção precoce e
o controle do câncer do colo do útero. Foi criado o Programa Viva Mulher-Programa
Nacional de Controle do Câncer do Colo do Útero e Mama (PNCCU) que, inicialmente,
envolveu cinco capitais brasileiras e o Estado de Sergipe para testar a viabilidade de
sua execução (Brasil, 2001). Em 1998, as ações do Programa “Viva Mulher” foram
estendidas a todos os municípios brasileiros por meio de campanha nacional,
passando de 7 para 10,3 milhões de exames citopatológicos processados por ano
(Martins et al., 2005).
Em 1999, o PNCCU estabeleceu normas e recomendações para
monitoramento das ações de rastreamento em exames realizados pelos laboratórios.
Foi implantado, a partir de janeiro de 2000, o Sistema de Informações de Combate ao
Câncer do Colo do Útero (SISCOLO) formando banco de dados a nível estadual, que
possibilita aos gestores municipal, estadual e federal acompanhar as ações de
rastreamento (Lago, 2004; Maeda et al., 2004).
Apesar da implementação das ações de prevenção e controle, a
persistência de taxas de incidência e mortalidade relativamente altas por essa doença
revela não serem suficientes as medidas adotadas para efetividade dos programas
(Pinho et al., 2003). Entre os fatores relacionados ao baixo impacto dos programas de
rastreamento, figura o uso tardio dos serviços de saúde pelas mulheres consideradas
de risco (Dias-da-Costa et al., 2003; Oliveira et al., 2006).
Segundo a OMS (2007) o fracasso dos programas de rastreamento
do câncer do colo do útero, em certos países, decorre de barreiras que dificultam a
redução da sua incidência e mortalidade. Assim, barreiras políticas como ausência de
prioridade na saúde sexual e reprodutiva para mulheres, a carência de diretrizes
apropriadas e de políticas nacionais são consideradas importantes. Da mesma forma
são barreiras da comunidade e individuais como: falta de conhecimento, de atitudes, de
idéias e crenças que impedem o falar sobre doenças do aparelho genital; além das
barreiras representadas pela baixa condição socioeconômica. Importam ainda as
barreiras técnicas e de organização impostas pela infraestrutura sanitária deficiente e
sistemas de saúde mal organizados.
6
No Sul do Brasil, apesar do aumento geral de cobertura do exame
citopatológico, constatou-se a não melhora em grupos de mulheres mais vulneráveis:
mulheres de classe econômica mais baixa, idosas, não brancas, viúvas ou solteiras
(Dias-da-Costa et al., 2003; Hackenhaar et al., 2006). No município de Campinas-SP,
foi menor a proporção de mulheres referidas como pretas ou pardas dentre aquelas
submetidas ao exame rastreador, bem como as de menor escolaridade ou de nível
socioeconômico mais precário. Isso sugere desigualdade racial no acesso ao programa
de rastreamento (Cesar et al., 2003; Amorin et al., 2006).
No Brasil, Martins et al., (2005), mostram poucas estimativas sobre
cobertura dos exames de prevenção. A maioria são estudos transversais realizados
nas regiões Sul e Sudeste do país, correspondentes às grandes cidades, indicando
diferenças regionais. Os autores apontam serem fundamentais as intervenções
educativas, o acesso aos métodos diagnósticos e os tratamentos adequados, de forma
igualitária.
As experiências dos programas de rastreamento sistemático e
planejado, nos países desenvolvidos, demonstram redução no número de casos novos
de câncer e taxa de mortalidade a ele associado. Nos países em desenvolvimento,
estes números aumentam ou permanecem invariáveis. No entanto, ainda há
desigualdades no mundo desenvolvido ao considerar mulheres da zona rural e as mais
pobres, apresentando maior risco de adoecer pelo câncer tipo invasor (OMS, 2007;
Sankaranarayanan et al., 2008).
Com relação às mulheres indígenas, no Brasil, as informações sobre
morbimortalidade por câncer do colo uterino são exíguas, bem como dados do perfil
epidemiológico dessa população. Os poucos estudos realizados, com alguns povos
indígenas, apontam para a necessidade de implementação de ações de prevenção
voltadas a esse tipo de câncer (Brito et al., 1996; Marroni, 2000; Mendes, 2000;
Taborda et al., 2000; Brito et al., 2002; Silva et al., 2003; Brito, 2004; Mendes, 2004;
Brito et al., 2005; Albring et al., 2006; Brito et al., 2006; Rodrigues et al., 2006; Silva,
2007; Speck et al., 2009; Speck et al., 2009a; Marroni et al., 2010).
Estudos sobre a presença do papilomavírus humano nas mulheres
indígenas têm sido desenvolvidos, principalmente visando a identificação dos subtipos
de alto risco oncogênico (Ong et al., 1994; Bowden et al., 1999; Brito et al., 2002;
Picconi et al., 2002; Cervantes et al., 2003; Picconi et al., 2003; Tonon et al., 2003;
Brito, 2004; Tonon et al., 2004; Brito et al., 2006; Silva, 2007; Kightlinger et al., 2010;
7
Nicita et al., 2010). Brito (2004) identificou, em mulheres da Amazônia Brasileira,
aumento na ocorrência dos casos de HPV de alto risco, de 14% para 42%, nos anos de
1993 e 2000. Tonon et al., (2003) identificaram diferença significativa na presença de
HPV de alto risco na população urbana (27,6%) e indígena Guarani (42,2%) na região
de Misiones, Argentina.
Além do HPV, as mulheres indígenas estão expostas aos cofatores
de risco para o câncer do colo uterino como: multiplicidade de parceiros sexuais, outras
infecções sexualmente transmitidas, idade precoce na primeira relação sexual,
multiparidade, baixa condição socioeconômica. Além disso, a dificuldade de acesso ao
exame preventivo para detecção e tratamento precoce do câncer e de suas lesões
precursoras contribui para aumentar o risco dessas mulheres em apresentar essa
doença (Costa et al., 1993; Brito et al., 1996; Maldonado et al., 1997; Marroni, 2000;
Mendes, 2000; Taborda et al., 2000; Hökerberg et al., 2001; Tonon et al., 2003; Brito,
2004; Mendes, 2004; Brito et al., 2005; Rodrigues et al., 2006; Silva, 2007; Poveda et
al., 2008; Marroni et al., 2010).
Estudos epidemiológicos têm mostrado forte associação entre a
multiparidade e as lesões de alto grau e carcinoma cervical. O risco quatro vezes maior
de desenvolver câncer cervical foi detectado em mulheres com sete ou mais gestações
a termo quando comparadas às nulíparas. Uma das explicações para esta relação
pode ser a manutenção da zona de transformação na ectocérvice por tempo maior,
facilitando a exposição ao HPV. Fatores hormonais, traumáticos e imunológicos
parecem ser os mecanismos biológicos que justificam tal associação (Muñoz et al.,
2002; Ribeiro, 2008; Aidé et al., 2009).
Na assistência a saúde indígena, questões relacionadas ao
isolamento geográfico, à carência de infraestrutura, à dificuldade de articulação entre
atenção básica e referência locorregional e a alta rotatividade e despreparo dos
profissionais de saúde, são fatores limitantes na prevenção do câncer do colo uterino.
Informações sobre cobertura dos exames citopatológicos nas áreas indígenas são
escassas e os dados disponíveis são preocupantes. Observa-se ineficiência na
atenção básica à saúde associada à desigualdade no acesso ao exame preventivo.
Além dos obstáculos de cunho operacional e de infraestrutura que
permeiam as ações de prevenção do câncer do colo do útero na saúde indígena,
devemos considerar também as dificuldades na relação intercultural. A deficiência na
comunicação, no entendimento ou no vínculo dos profissionais que trabalham junto à
8
população indígena pode ser desastrosa nas intervenções em saúde. As mulheres
indígenas podem sentir-se inibidas caso o exame ginecológico seja realizado por
profissional do sexo masculino. Há também situações onde os parceiros, por
desconhecerem a importância do exame, proíbem as esposas de se submeterem ao
procedimento. Essas mulheres, por desconhecimento, vergonha, crenças culturais,
desconfiança, podem se recusar a realizá-lo.
Prior (2009) entrevistou mulheres aborígines da Austrália sobre
percepções acerca do câncer do colo do útero. Para as entrevistadas, o câncer é
considerado fatal e o tratamento tem pouco valor. O corpo da mulher é considerado
sagrado não devendo ser violado por métodos invasivos de tratamento como a cirurgia.
Além disso, esta doença é resultado de maldição, de comportamento imoral e sentem
vergonha de discutir sobre saúde sexual com profissionais de saúde, pois é assunto
privado. Essas mulheres relatam dilema entre querer acesso às opções de prevenção e
tratamento, mas temem os métodos utilizados pela biomedicina que não se alinham
aos seus costumes e necessidades. Segundo o autor, são fundamentais intervenções
centradas na população, que desloque a autoridade dos serviços de saúde, dando
destaque aos valores culturais como ponto focal do controle do câncer.
Ainda sabemos pouco sobre os cuidados, tabus e regras que regem
a relação das mulheres indígenas com seu corpo. No entanto, é necessário abrirmos
os ouvidos para perceber o que se passa ao nosso redor. Em oportunidade de
conversa com mulheres indígenas de algumas etnias sobre a prevenção do câncer do
colo do útero no Ambulatório do Índio2, foram identificadas questões culturais que
merecem ser relatadas. N. Metuktire, (2009) disse que não faz o exame ginecológico
porque o ato de introduzir o espéculo na vagina levaria mais doenças para dentro do
útero. Para T. Macuxi, (2009), o canal vaginal é considerado local sagrado relacionado
ao nascimento e esse tipo de exame não é permitido na sua cultura. É fundamental que
os profissionais de saúde estabeleçam diálogo com essas mulheres para entendê-las,
respeitá-las, intervindo de forma segura e profícua.
2
O Ambulatório do Índio do Hospital São Paulo/UNIFESP, presta atendimento a pacientes indígenas referenciados de todo
território nacional para atendimento de média e alta complexidade. Neste espaço também é desenvolvido, junto às mulheres
indígenas, orientações sobre prevenção do câncer do colo do útero com coleta do exame citopatológico. Identificamos mulheres
indígenas que nunca haviam realizado o exame preventivo.
2. JUSTIFICATIVA
10
Em decorrência de cinco anos de experiência como enfermeira de
campo na atenção básica à saúde no Parque Indígena do Xingu- MT, especialmente na
área de saúde da mulher, desenvolvi interesse em aprofundar conhecimentos,
aproximando a prática da teoria, em relação à prevenção do câncer do colo do útero.
As ações de rastreamento compunham as atividades prioritárias que deveriam ser
implementadas no serviço local.
Como enfermeira responsável, desde 2005, por organizar o
programa de prevenção do câncer do colo do útero no Xingu, vivenciei difíceis
momentos e experiências exitosas no dia-a-dia que solidificaram esse trabalho ao
longo dos anos. Também pude compartilhar dúvidas, medos que as mulheres
indígenas traziam em conversas despretensiosas que aconteceram nas aldeias, mas
que apontavam para a urgência em intervir de forma mais efetiva em um programa de
prevenção.
O que marcou a necessidade de repensar a prevenção do câncer do
colo uterino no Xingu, foram os óbitos decorrentes dessa moléstia associados à
dificuldade de encaminhamento para referências especializadas, bem como demora no
retorno dos exames citopatológicos e sua baixa cobertura. Com aumento na ocorrência
da morbimortalidade no Xingu por esse tipo de câncer, tanto os profissionais de saúde,
quanto lideranças e mulheres indígenas tiveram maior preocupação com o diagnóstico,
tratamento e seguimento dos casos positivos.
Assim, a partir de 2005 ocorreram mudanças significativas no
programa de rastreamento, originados do quadro epidemiológico que se apresentava.
Esta pesquisa pretende contribuir, por meio da experiência adquirida no trabalho em
campo, no entendimento da epidemiologia desse câncer nas mulheres indígenas do
Xingu, direcionando para possibilidades factíveis de enfrentamento. Também será um
estudo norteador que possibilitará avaliar e implementar as ações de prevenção no
Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso.
Por ser uma problemática ainda pouco visível no cenário das
políticas públicas, este trabalho parte do pressuposto de que é preciso olhar e perceber
a realidade interetnica das mulheres indígenas, buscando incluí-las nos programas de
atenção à saúde da mulher de forma a respeitar suas especificidades culturais.
3. OBJETIVOS
12
3.1. Objetivo Geral
Descrever e analisar a prevenção do câncer do colo do útero
desenvolvido no Médio, Baixo e Leste Xingu pela Universidade Federal de São Paulo3
no período de 2005 a 2006.
3.2. Objetivos Específicos
1. Verificar a taxa de cobertura do exame citopatológico no período de
outubro a dezembro de 2005;
2. Analisar a prevalência das atipias citológicas cervicovaginais: células
escamosas atípicas de significado indeterminado (ASC-US), células glandulares
atípicas (AGC), células escamosas atípicas não podendo afastar lesão de alto grau
(ASC-H), lesão intraepitelial escamosa de baixo grau (LBG), lesão intraepitelial
escamosa de alto grau (LAG), carcinoma espinocelular ou adenocarcinoma (CEC ou
ACA);
3. Verificar as taxas de sensibilidade, especificidade, valor preditivo
negativo, valor preditivo positivo, falso negativo e falso positivo dos exames
citopatológicos;
4. Descrever os achados dos exames colposcópicos;
5. Analisar os resultados dos exames anatomopatológicos de biópsias
colposcopicamente dirigidas realizados em fevereiro de 2006;
6. Verificar as taxas de sensibilidade, especificidade, valor preditivo
negativo, valor preditivo positivo, falso negativo e falso positivo do exame
anatomopatológico de biópsia;
7. Analisar os resultados dos exames anatomopatológicos das peças
cirúrgicas de colo de útero obtidas por excisão da zona de transformação por ondas de
radiofrequência (CORAF), conização clássica e histerectomia realizados em maio de
2006.
3
Este trabalho foi realizado em parceria com a Fundação Nacional da Saúde (FUNASA), Ministério da Saúde.
4. REVISÃO DE LITERATURA
14
4.1. Saúde sexual e reprodutiva da mulher indígena
Nos últimos vinte anos, apesar dos avanços da literatura brasileira
com grande produção de conhecimentos sobre saúde da mulher, as investigações
tanto socioantropológicas quanto epidemiológicas, desenvolveram-se, particularmente,
em contextos urbanos. Nas pesquisas com recorte étnico, ainda existe grande lacuna
no conhecimento dos determinantes socioculturais, ambientais, biológicos da
população indígena, sobretudo a saúde sexual e reprodutiva (Coimbra Júnior et al.,
2004; Marrero, 2007).
A atenção à saúde das mulheres indígenas ainda é precária.
Embora exista uma política de atenção à saúde diferenciada para os povos indígenas,
não há garantia de cobertura satisfatória em ações básicas como pré-natal, prevenção
do câncer do colo de útero e doenças sexualmente transmissíveis (DST). Os dados
epidemiológicos disponíveis para avaliar problemas de saúde das mulheres e
adolescentes indígenas são insuficientes e apontam necessidade de políticas de saúde
direcionadas a esse grupo (Brasil, 2009).
Para os povos indígenas, o tema de saúde da mulher deve ser
ampliado para além dos conceitos de direitos reprodutivos tal como defendido pela
sociedade não indígena. Trata-se também de incluir a revitalização e valorização do
sistema dos saberes tradicionais, reivindicar atenção à saúde de forma diferenciada,
que conheça, respeite e atenda as necessidades das mulheres indígenas nas diversas
realidades (Monagas, 2006).
Dentro dos aspectos epidemiológicos da saúde reprodutiva das
mulheres indígenas, grande parte dos agravos não lhes é exclusivo, aparecendo em
diferentes graus e intensidades em mulheres de outras etnias, raças ou classes sociais.
No entanto, suas especificidades étnicas e territoriais destacam situações que diferem
dos encontrados na população feminina em geral. De acordo com os poucos estudos
disponíveis verificam-se altas taxas de fecundidade, marcadas por elevada prevalência
de DST, lesões ginecológicas de etiologias variadas, queixas ginecológicas
generalizadas como dores em baixo ventre, dispareunia e corrimento (Coimbra Júnior
et al., 2004).
Em relação às doenças do trato genital feminino, alguns estudos
identificam que o câncer do colo do útero é uma das principais causas de
15
morbimortalidade nas mulheres indígenas do Brasil (Brito et al., 1996; Marroni, 2000;
Taborda et al., 2000, Brito, 2004; Mendes, 2004; Brito, 2005; Rodrigues et al., 2006;
Marroni et al., 2010; Speck et al., 2009; Speck et al., 2009 a).
Discussões têm sido realizadas no Brasil, e em outros países, sobre
a questão da saúde da mulher indígena das Américas. Taxas de morbimortalidade
duas vezes maiores são indicadas nessas mulheres, quando comparadas às não
indígenas. Isso resulta da falta de acesso aos cuidados de saúde, de educação, de
emprego bem como discriminação racial. Ser mulher, indígena, viver em área rural,
isolada e ter insuficiência de serviços de saúde podem contribuir para crescente
incidência de HIV/AIDS, mortalidade materna, anemia, problemas ginecológicos, uso
de álcool, tabagismo, drogas, suicídio, violência, diabetes, doenças hepáticas, cirrose,
complicações no período reprodutivo, alto risco para doenças transmissíveis como
malária, cólera e alta taxa de câncer do colo uterino (Canadá, 2004; OPAS, 2004;
Clark, 2008).
A
problemática
quanto
ao
alcoolismo,
drogas
ilícitas
nas
comunidades indígenas, associada à violência contra as mulheres, têm sido tema de
encontros entre esses povos e diversas instituições que apontam sua inter-relação
(Souza et al., 2003; Monagas, 2006; Guimarães et al., 2007). Não se pode deixar de
mencioná-las, pois são questões que afetam, de alguma forma, a saúde sexual e
reprodutiva destas mulheres. Monagas (2006) mostra que as mulheres indígenas vêem
o problema da violência diretamente relacionado ao consumo de bebidas alcoólicas ou
abuso de bebidas tradicionais fortes como o “caxiri” e “pajuaru”4. O alcoolismo de
jovens e adultos é importante fator de conflito familiar sendo identificado como um dos
graves problemas dentro das comunidades, pois causa violência doméstica.
Visando
melhoria
no
acesso,
na
qualidade
e
nas
ações
diferenciadas, foram introduzidas, no Plano de Ação 2004-2007, da Política Nacional
de Atenção Integral à Saúde da Mulher, metas para implantar atenção integral à saúde
da mulher indígena em 100% dos polos base dos Distritos Sanitários Especiais
Indígenas-DSEI (Brasil, 2004). No entanto, as ações desenvolvidas ainda são
incipientes, descontínuas, sendo necessária atenção dos órgãos responsáveis pela
saúde indígena para implementar de fato, a atenção integral a saúde dessas mulheres.
4
Caxiri e pajuaru são bebidas fermentadas à base de mandioca, utilizadas em comemorações, rituais e festas pelos povos
indígenas da Amazônia.
16
Na I Conferência Nacional de Mulheres Indígenas, realizada em
Brasília (CONAMI, 2004), representantes femininas, propuseram necessidades em
relação à sua saúde:
x
Implementar programas de atenção integral à saúde da mulher,
contemplando ações de pré-natal, parto, puerpério com qualidade e desenvolvimento
de ações da saúde da criança
x
Campanha nacional para prevenção do câncer do colo uterino em
mulheres indígenas, sensibilizando para a importância da realização do exame.
x
Que a Fundação Nacional da Saúde (FUNASA) desenvolva ações
de saúde nos 34 DSEI para mulheres indígenas, dando ênfase ao atendimento à saúde
reprodutiva, prevenção, diagnóstico e tratamento das DST e AIDS; câncer do colo
uterino, de mama [...]
x
Humanização da atenção à saúde da mulher indígena.
No norte da Austrália, Bowden et al., (1999) relatam que a
incidência das DST nas mulheres indígenas de áreas remotas e rurais é
acentuadamente mais alta do que a média nacional australiana. Foram observados que
casos de Neisseria gonorrhoeae, Chlamydia trachomatis, Trichomonas vaginalis e HPV
são endêmicos nessa população. A falta de acesso aos serviços de saúde para
diagnóstico e tratamento é uma das razões para alta incidência de DST nessas áreas.
O estudo soroepidemiológico realizado em populações indígenas da
Amazônia brasileira evidenciou alta prevalência de Chlamydia sp, variando de 50 a 80
% de infectados, chegando a mais de 80 % em alguns povos dessa região (Ishak et al.,
2001). Ferri et al., (2011), analisaram o número de casos de DST na população
indígena do DSEI Mato Grosso do Sul, onde foi identificado aumento de 400% nas
notificações de AIDS nas mulheres indígenas, com 04 casos identificados em 2001 e
16 casos no 2003. Nessa população também houve acréscimo considerável no número
de casos de sífilis, Gardnerella vaginallis e Trichomonas vaginalis.
A maior exposição dos povos indígenas às DST está relacionada à
maneira como vivenciam a sexualidade, com a intensificação do contato com a
sociedade envolvente, com o aumento da freqüência e permanência desses povos nas
áreas urbanas (Brasil, 2005; Santos, 2009). O aumento no consumo de álcool tanto nas
aldeias quanto nas cidades, a presença de exploradores de recursos naturais nas
17
terras indígenas, o pouco acesso às informações e as deficiências na promoção e
prevenção à saúde contribuem para essa situação.
De acordo com o censo de 2000, a população indígena no Brasil
corresponde a 734 mil pessoas autodeclaradas, representando 0,4% da população
brasileira, congregando mais de duzentos povos diferentes. Com esta informação foi
possível traçar o perfil reprodutivo das mulheres indígenas e suas tendências. O que se
observa é uma dicotomia com níveis baixos de fecundidade (2,7 filhos) naquelas que
residem nas áreas urbanas. Enquanto nas áreas rurais específicas, onde se localiza a
maior parte dessa população, predomina e persiste nível alto de fecundidade (6,2
filhos). A metade dessas mulheres em idade fértil pertence às regiões nordeste e
sudeste (IBGE, 2009; Wong et al., 2009). Isto mostra a realidade diversa da população
indígena dependendo do maior ou menor grau de contato com a sociedade nacional
Segundo Mendonça et al., (2005) “em todas as sociedades, as
mulheres desempenham papel social fundamental de salvaguarda da cultura de
maneira geral. Elas são responsáveis pelo ensino da língua, boa parte da cultura
material, rituais, ritos de passagem, cuidados com a família, crianças, mulheres e
anciãos”.
O reconhecimento e a valorização da importância do papel social
das mulheres indígenas têm possibilitado cada vez mais sua participação em
encontros, oficinas, conferências nacionais e internacionais. Esse comportamento
corresponde à estratégia de instalar novos espaços de discussão que possibilitem
articulação, dando maior visibilidade e voz às indígenas. Sua inserção na luta pelas
necessidades de seus povos propicia fortalecimento do movimento indígena com
garantia de posse de seus territórios tradicionais, do direito à saúde e educação
diferenciadas (Sacchi, 2003; Monagas, 2006; Paula, 2008).
A diversidade cultural e as questões da saúde sexual e reprodutiva
das mulheres indígenas implicam em grandes desafios para a política de saúde no
país. Existe, ainda, ausência de dados sistemáticos e de qualidade sobre indicadores
de saúde que são fundamentais para expor o comportamento epidemiológico dessa
população e melhorar o planejamento em saúde. A implementação de políticas
públicas e propostas técnicas com olhar diferenciado, que contemple suas
especificidades, são primordiais para a inclusão dessas mulheres.
18
4.2. Mulheres indígenas do Xingu: aspectos culturais e reprodutivos
No Xingu, as atividades produtivas femininas acontecem em grupos
e são orientadas pela família nuclear, sendo os papéis sociais bastante estabelecidos.
O espaço de trabalho da mulher vai da coleta ao preparo dos alimentos a partir da
mandioca, com produção da farinha e o beiju, um dos principais alimentos do dia-a-dia.
Também são responsáveis pelo preparo do peixe, da caça e participam das atividades
da roça como o plantio e a colheita, além da confecção de artesanato e os cuidados
com a casa e filhos (Pagliaro et al., 2008).
Observa-se nas mulheres indígenas do Médio, Baixo e Leste Xingu
início precoce da vida reprodutiva, por volta dos 15 anos e em alguns casos até antes.
Como o exercício da sexualidade e concepção é precoce, o período reprodutivo destas
mulheres, em sua maior parte, dura cerca de trinta anos, com taxas elevadas de
fecundidade. Nas mulheres Kisêdjê foi encontrada média de 6,7 filhos no período de
2000-2007. Entre jovens de 12 a 14 anos, a média de idade da menarca no ano de
2007 foi de 11,3 anos. O intervalo entre menarca e primeira gestação foi de 2,6 anos
nas adolescentes de 15 a 19 anos (Pagliaro, 2005; Pagliaro et al., 2008; Pagliaro et al.,
2009).
Para as várias sociedades do Parque indígena do Xingu, cada ciclo
da vida representa um período especial sendo nominados de forma diferente e
marcados por ritos de passagem. Quando a criança nasce recebe um nome, depois
quando está adolescente outro, na fase adulta também troca de nome que perdura até
ser avô (ó). Nesta fase, deve escolher outro nome porque o seu é dado para o neto,
assim sucessivamente de acordo com as regras de cada povo.
A adolescência, em muitas culturas indígenas, é marcada por rituais
e mitos nessa fase de transição da infância para vida adulta. Nos povos indígenas do
Xingu e entre outros, geralmente acontece a reclusão pubertária, um rito de passagem.
Tem início na puberdade, onde meninos e meninas são retirados do convívio social por
meses ou até anos, dependendo da etnia, expectativa e origem familiar. Nesta fase, os
adolescentes permanecem fechados no interior da casa, com regras rígidas de
alimentação, comportamento e atividades. Ambos são preparados para assumir a vida
adulta e responsabilidades. A reclusão pubertária feminina acontece a partir da
primeira menstruação, podendo se estender até um ano ou mais. Após esse período, é
19
permitido ter relações sexuais e geralmente ocorrem casamentos que são, na maioria
das vezes, combinados entre os pais. É comum união conjugal em idades muito jovens
(Verani et al., 1991; Junqueira, 2002; Camargo et al., 2005; Junqueira et al., 2009;
Pagliaro et al., 2009).
Entretanto, observa-se no Xingu, a negligência pelos jovens de
práticas tradicionais da sua cultura como: recusa e redução do período de reclusão
pubertária, casamento, primeira gestação e parto em idades muito jovens, desrespeito
à abstinência sexual pós-parto, transgressão da dieta alimentar e aumento no consumo
de alimentos industrializados. Essas mudanças são atribuídas, em parte, ao
desinteresse dos jovens pela cultura tradicional, influenciados pela mídia, sobretudo a
televisão, a internet e a possibilidade de convivência com outros jovens fora da aldeia
(Pagliaro et al., 2009).
O casamento no Xingu e, em particular, na cultura Kamayurá, além
das funções de procriação e as de natureza sexual, pode ser influenciado, também, por
questões econômicas, decorrentes da divisão social do trabalho e políticas, como
forma de alianças. Cabe à família da moça, tomar iniciativa de entrar em contato com a
do rapaz para formalizar a união, que consiste no simples ato de transferir a rede para
a casa dela, onde ele deverá prestar serviços ao sogro. Nos primeiros anos de
casamento o marido deve viver na casa dos pais da esposa e após cumprir esse
período, tem liberdade de escolher nova residência que, em geral, é a casa de seus
pais (Junqueira, 2002; Camargo et al., 2005; Pagliaro, 2007; Junqueira et al., 2009).
A poligamia é comum, principalmente entre lideranças. O homem
pode se casar com mais de uma mulher, geralmente com duas ou mais irmãs, sendo
esta regra sinal de prestígio. Há muita liberdade de namoros múltiplos, sem punição,
desde que não se tornem públicos. Para mulheres, namoros pré-maritais costumam ser
livres, sendo os extraconjugais sujeitos à punição. A poliandria, união de uma mulher
com mais de um homem, é relatada em poucos povos, como os Yanomami ou os Zoé
(Mindlin, 1992; Junqueira, 2002; Mindlin, 2005; Valencia et al., 2008).
Quanto às normas do casamento, se houver separação do casal,
não existe restrição quanto a uma nova união. No entanto, se ocorrer morte do cônjuge
existe um período de luto, cuja duração é variada, em que o viúvo não pode casar
novamente. A liberdade de relações extraconjugais representa uma modalidade
restrita, mas relativamente difundida de relacionamento sexual (Junqueira, 2002;
Camargo et al, 2005; Pagliaro, 2005; Junqueira et al., 2009).
20
As mulheres da área estudada são caracterizadas pela sua
capacidade de gerar filhos nos primeiros anos do ciclo reprodutivo. O casamento é
considerado consumado quando nasce o primeiro filho do casal. Como a infertilidade é
um estigma e a dissolução de casais sem filhos é comum, as mulheres têm pressa em
engravidar tornando público sua fertilidade. Se, com o passar do tempo, isso não
acontecer, a fitoterapia tradicional pode ser tentada para estimular a fecundidade. Pode
ser usada tanto pela esposa quanto pelo marido (Junqueira et al., 2009).
No
período
da
gestação,
dietas
alimentares
e
regras
de
comportamento devem ser cumpridas pelo casal, pois o nascimento é importante
momento de transição na vida dos pais. Entre o povo Kisêdjê, as relações sexuais
precisam ser freqüentes, pois acreditam que o feto desenvolve-se pelo acúmulo do
sêmem. A dieta seguida corretamente pela mãe assegura desenvolvimento normal da
criança e estende-se também ao pai, que deve evitar alguns afazeres (Pagliaro, 2005;
Junqueira et al., 2009).
Os partos acontecem, em sua maioria, na aldeia em espaço isolado
dentro da casa, sendo realizado pela mãe, avó ou parente próximo. Se há complicação,
chama-se uma mulher experiente e, caso o quadro venha a agravar, convoca-se o pajé
(Pagliaro, 2005; Junqueira et al., 2009; Pagliaro et al., 2009).
Após o nascimento, os pais devem seguir regras para garantir saúde
do filho, como abster-se das relações sexuais até a criança começar andar, privar-se
de determinadas atividades de trabalho e cuidados com alimentação. No pós-parto
devem permanecer em casa por períodos determinados de acordo com cada etnia,
sendo de regra, o término do resguardo do pai com a queda do coto umbilical. Até os
seis meses a criança não pode sair de casa, pois seu espírito está susceptível de se
perder ou ser levado por aqueles ruins. Geralmente, alimentam-se somente de leite
materno até que comece a engatinhar, quando passa a comer outros alimentos como
peixe e ave que são preparados de forma especial, além de água e mingau. Continuam
a ser amamentadas por longo período de tempo, chegando até três anos. Comumente,
a criança precisa saber andar e comer sozinha para que a mãe possa ter outro filho.
Com isso a fecundidade das mulheres diminui consideravelmente neste espaço de
tempo (Pagliaro, et al., 2008).
Em diversas sociedades indígenas, e dentre elas o povo Kaiabi do
Xingu, são descritas diferentes práticas tradicionais voltadas à contracepção como
ervas que podem ter efeito temporário ou definitivo. A utilização dessa prática não é
21
livre
e indiscriminada,
devendo
ser
realizada
por
pessoa
detentora
desse
conhecimento. Para evitar a gravidez usa-se uma beberagem preparada com raízes de
plantas que a mulher ingere durante vários dias após as relações sexuais. Nos casos
de anticoncepção definitiva, é necessário auxílio do pajé que prepara outros tipos de
infusões de ervas que devem ser ingeridas pela interessada. Existem também as
práticas abortivas com auxílio de ervas para interrupção de uma gravidez indesejada
que é utilizada pela maioria dos povos do Xingu (Camargo et al., 2005; Pagliaro, 2005).
Mas, mudanças vêm ocorrendo, com a utilização cada vez mais
freqüente do uso de contraceptivos hormonais pelas mulheres do Xingu em detrimento
aos seus métodos tradicionais. O que as mulheres referem é a dificuldade de seguir as
regras e restrições para a eficiência de seus métodos, a necessidade de pagamento
dos pajés após o tratamento e a facilidade do uso dos métodos modernos. Pagliaro et
al., (2009), observaram entre as mulheres Ikpeng, no ano de 2007, que 22,9% delas
faziam uso de contraceptivos hormonais. As lideranças indígenas colocaram-se contra
o uso indiscriminado desse método. Reuniões individuais com as diferentes etnias do
Xingu definiram cada uma, regras próprias quanto à sua utilização. Orientações quanto
ao planejamento familiar devem ser discutidas de forma ampliada, pois são decisões
que, muitas vezes, envolvem toda a comunidade indígena.
5. CONTEXTO HISTÓRICO
23
5.1. O Parque Indígena do Xingu
As etnias que compõem o Parque Indígena do Xingu (PIX)
pertencem a quatro troncos ou famílias lingüísticas, a saber: Kamayurá, Yudjá, Aweti e
Kaiabi (Tupi-Guarani), Mehinako, Waujá e Yawalapiti (Aruak), Kalapalo, Ikpeng,
Kuikuro, Matipu, Nahukwá (Karib), Kisêdjê (Macro-Jê), além dos Trumai de língua
isolada (Baruzzi, 2005). A população do PIX em 2009 era de 6.152 habitantes, segundo
dados da Fundação Nacional da Saúde (FUNASA/MS), distribuídos em quatro regiões
conhecidas como Alto, Baixo, Médio e Leste Xingu (ISA, 2009).
O Parque Indígena do Xingu (PIX) foi criado em 1961, no governo
do presidente Jânio Quadros, quando a venda indiscriminada de terras pelo governo do
Mato Grosso, no país e no exterior, ameaçava estender-se a territórios ocupados por
povos indígenas desde tempos imemoriais. Amplo movimento de opinião pública para
criação do Parque foi estabelecido, envolvendo a academia, os sanitaristas, os
antropólogos e militantes da causa indígena como Darcy Ribeiro e os irmãos Villas
Bôas. Teve como objetivos, proteção física e cultural dos povos indígenas que ali
viviam, garantia da preservação ambiental e acolhimento de grupos indígenas
ameaçados de extinção (Baruzzi, 2005; Villas Bôas, 2005; Baruzzi, 2007; ISA, 2009).
O Parque está situado na região noroeste do Estado do Mato
Grosso, Brasil Central, numa área de 26.400 km² ao longo do curso inicial do rio Xingu,
desde a região dos seus formadores, ao sul, até a cachoeira de von Martius, ao norte,
próxima dos limites com o Pará (Figura 1). É caracterizada por biodiversidade muito
particular, de transição entre cerrado do Brasil Central e Floresta Amazônica com
extensa rede hidrográfica (Baruzzi, 2007).
A população do PIX, inicialmente, era composta por 14 povos
indígenas. Após alguns anos, mais três grupos passaram a integrar o Parque: os
Txicão ou Ikpeng (1967), Tapayuna ou Suyá Novo (1970) e por último os KreenAkarore ou Panará (1975) formando mosaico étnico que iria compor um ambiente de
proteção e acomodação dos 17 povos ali existentes. Isto se manteve até 1996, quando
os Panará decidiram retornar à sua terra de origem, na cabeceira do rio Iriri, no limite
dos Estados de Mato Grosso e Pará. Os Metuktire, os Tapayuna, bem como os
24
Panará, com a criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena em 19995,
passaram a integrar o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Kaiapó (MT) e os
demais povos o DSEI Xingu, Mato Grosso (Baruzzi, 2005; Villas Bôas, 2005).
Para percorrer a maioria das aldeias no PIX, utiliza-se transporte via
fluvial por meio de embarcação de pequeno porte. O tempo gasto para ir do Polo Base
à aldeia, dependendo da localização, varia de 40 minutos a 6 horas. Existem aquelas
mais distantes, onde é necessário além do barco, fazer percurso a pé, bicicleta ou
carro. Para ingressar no Xingu, demora-se em média 1hora e 15 minutos de aeronave
mono ou bimotor partindo dos municípios de Sinop-MT ou de Canarana - MT a um dos
Polos. Outra forma é percorrer trajeto de aproximadamente cinco horas de carro,
partindo de um destes municípios à beira do rio que dá acesso ao Xingu e de lá seguir
de barco com tempo estimado de 10 a 12 horas de viagem. Com aumento da abertura
de estradas, ligando aldeias às cidades próximas, torna-se cada vez mais fácil o
acesso via terrestre.
Uma das preocupações que permeiam a preservação do território
no Xingu é a constante aproximação das cidades, por meio do desmatamento.
Atualmente, são nove municípios que estão localizados próximos ao Xingu, com
facilidade de acesso para muitas aldeias. A ação ilegal de madeireiras na região, a
intensificação do agronegócio no Estado de Mato Grosso, têm trazido conseqüências
desastrosas para o meio ambiente. Outro fator importante e preocupante é que as
nascentes dos rios estão localizadas fora da demarcação do PIX e estão sendo
poluídas, além dos projetos de construção de hidrelétricas que irão afetar os principais
rios da região amazônica. Há uma ação devastadora no entorno que se aproxima cada
vez mais, cercando com áreas enormes desmatadas (Rodrigues, 2005; ISA, 2009).
5
No ano de 1999, com o Decreto no 3156/99 e a chamada “Lei Arouca” de no. 9.836/99 elaborada com base no relatório final da II
Conferência Nacional de Saúde dos Povos Indígenas é instituído o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, articulado com o
Sistema Único de Saúde (SUS). A partir de 1999 são implementados 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) em todo
país com responsabilidade de gestão sendo atribuída pelo Ministério da Saúde à FUNASA (Brasil, 2007).
25
Figura 1. Mapa do Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso
Fonte: ISA, 2002
26
5.2. A Universidade Federal de São Paulo
“O desafio não é simplesmente implantar no Parque um modelo de
assistência à saúde calcada na medicina ocidental, com mera transferência de
tecnologia e locação de recursos. O real desafio é trazer benefícios à saúde do índio
sem causar danos irreversíveis à sua cultura, sem destruir suas crenças e sua
medicina tradicional. A busca de resultados imediatistas poderia significar um dano
irreversível para essa população no decorrer do tempo, dentro do conceito amplo de
saúde definido pela OMS como estado de completo bem estar físico, mental e social”
(Baruzzi, 2005).
A Escola Paulista de Medicina (EPM)/UNIFESP desenvolve, desde
1965, o Projeto Xingu que é um programa de atenção à saúde no Parque Indígena do
Xingu (PIX), no estado de Mato Grosso, conduzido pela Unidade de Saúde e Meio
Ambiente (USMA) do Departamento de Medicina Preventiva. Inicialmente, equipes
multidisciplinares compostas por médicos, dentistas, enfermeiros e alunos da EPM
eram enviados ao PIX, pelo menos quatro vezes ao ano, para assistência à saúde,
imunização, cadastramento da população com abertura das fichas médicas individuais6
(anexo I) e colaboração também em situações epidêmicas. A imunização foi um dos
programas em que a EPM colaborou, sendo importante na redução da mortalidade
dessa população ao longo dos anos. Os índios do Xingu ainda guardam na memória
epidemias de sarampo que surgiram na década de 50 atingindo toda a população,
ocasionando muitos óbitos (Baruzzi, 2005).
O Hospital São Paulo (HSP), da Associação Paulista para o
Desenvolvimento da Medicina (SPDM), hospital escola da EPM, desde o início do
trabalho no Xingu, era retaguarda para casos que necessitavam de atendimento
especializado. Muitos indígenas do Xingu foram removidos para o HSP, que passou a
ser referência nacional para os casos de maior complexidade. Com o decorrer do
6
A introdução da ficha médica no trabalho de campo do Xingu, na década de 60, permitiu agrupar considerável acervo de
informações sobre as condições de saúde-doença da população do Xingu e de seu perfil demográfico. Pelas fichas é possível
chamar nominalmente cada pessoa, estão organizadas em aldeias e famílias, além de conter fotos periodicamente atualizadas.
Como são costumes desses povos trocarem de nomes várias vezes durante a vida, cada indivíduo recebe um número de registro
(RG) após nascimento que passa a fazer parte da sua identificação. Nessas fichas são registradas também informações
gestacionais, nascimentos, óbitos, intercorrências clínicas e dados de imunização. Esse acervo inédito possibilita realização de
muitos estudos na área da saúde, demografia e antropologia (Baruzzi, 2005; Pagliaro et al., 2005).
27
tempo
foi
criado
o
Ambulatório
do
Índio
como
apoio
no
atendimento
e
acompanhamento dos pacientes indígenas referenciados de todo o país. Esse
Ambulatório é responsável pela coordenação de cuidados a esses pacientes, sendo
porta de entrada para atendimento no hospital escola da EPM/UNIFESP.
O Projeto Xingu passou por diversas etapas, ampliando e
diversificando suas atividades para atender às novas e crescentes demandas
sanitárias, conseqüentes do contato dos povos xinguanos com a sociedade nacional. A
partir de 1989, concentrou suas atividades na estruturação de um sistema local de
saúde, tendo como estratégias principais a formação de indígenas para o trabalho e
participação social em saúde (Rodrigues, 2005; Rodrigues et al., 2005; Baruzzi, 2007).
Com a criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, pelo
Ministério da Saúde, em todo território nacional, a gestão da atenção à saúde dos
povos indígenas passou a ser responsabilidade da FUNASA, constituindo um
subsistema inserido no Sistema Único de Saúde (SUS). Coube à EPM, atendendo ao
convite de lideranças indígenas do Xingu, celebrar sucessivos convênios com a
FUNASA com objetivo de colaborar na implantação do DSEI Xingu e dar continuidade
à formação de profissionais indígenas para o trabalho em saúde (Rodrigues et al.,
2005). Um dos resultados da atuação da EPM no Xingu foi participar da formação de
16 auxiliares de enfermagem indígenas em 2001, além da formação dos agentes
indígenas de saúde e gestores indígenas, ainda em curso.
O Projeto Xingu, atualmente, é responsável pela atenção básica à
saúde e formação de recursos humanos nos Polos Pavuru, Diauarum e Wawi,
compreendendo as regiões do Médio, Baixo e Leste Xingu atendendo, em 2011, uma
população de 2.685 habitantes7. Encontram-se distribuídas nesses Polos, as etnias:
Kaiabi, Yudjá, Ikpeng, Kisêdjê, Trumai, Kamayurá, Waujá, localizadas em 35 aldeias.
7
Em 2006, ano que se refere essa pesquisa, a população do Médio, Baixo e Leste Xingu era de 2.299 habitantes.
28
5.3. Breve histórico de contato dos povos do Médio, Baixo e Leste Xingu
“Desde a invasão européia, a dependência e a opressão a que
foram submetidas as sociedades indígenas em relação à sociedade nacional são
flagrantes e variam conforme tipo de contato. Os povos indígenas foram subjugados e
desorganizados através da imposição do convívio pacífico, pela restrição do território
tribal, pela subjugação étnica e pelos efeitos dissociativos da depopulação e debilitação
física por conta de doenças e epidemias que aniquilaram vários povos ao longo dos
anos” (Mendonça, 2005).
Ao aproximarmos dos povos indígenas é fundamental conhecer sua
cultura e, principalmente, o processo de contato com a sociedade nacional, que é
determinante para entendimento da sua história. Os sete povos do Médio, Baixo e
Leste Xingu, objetos desse estudo, formam um mosaico cultural com diversidades e
saberes distintos. Esses povos vivenciaram diferentes processos de contato com a
sociedade que causaram impacto significativo na redução da população e perda do
território. Os povos Kaiabi e Ikpeng não tiveram escolha, foram transferidos para o
Parque Indígena do Xingu, deixando suas terras para evitar o contato com
exploradores que invadiram as regiões onde viviam. Os outros povos migraram para a
região do Xingu, fugindo de conflitos e das epidemias de doenças infecto-contagiosas.
O povo Kaiabi viveu até a década de 1940 em extensa região à
oeste do Rio Xingu (Pagliaro, 2005; ISA, 2009). Na metade do século XX, ocorreu
redução dessa população, resultante de décadas de conflitos com colonizadores,
seringueiros e por doenças como o sarampo, malária que os assolaram terrivelmente
em 1945 (Baruzzi, 2005; Hemming, 2005; Pagliaro, 2005; ISA, 2009). O início da
migração desse povo para o Xingu incidiu em 1952 e se estendeu até 1973, após
aceitarem o convite dos irmãos Villas Bôas para serem transferidos. Ocuparam a parte
norte do PIX em aldeias próximas ao Polo Diauarum. Esta mudança de habitat
possibilitou, depois de quase meio século, o aumento da população, preservação da
identidade cultural e evitou que fossem dizimados ou absorvidos no mercado de
trabalho rural ou urbano precarizado (Pagliaro, 2005).
Em outubro de 1964, os irmãos Villas Bôas sobrevoaram as aldeias
dos Ikpeng, situado a sudoeste do Xingu, encontrando-os em situação bastante
29
precária. Estavam doentes, subnutridos, sendo necessário intervir, pois grupos de
garimpeiros chegavam cada vez mais próximos de seu território. Diante desta situação,
em julho de 1967, foram transferidos para o Xingu, restando apenas 56 deles. A maior
parte da população era composta por crianças e adultos, estavam magros e doentes
(Baruzzi, 2005; Hemming, 2005; Villas Bôas, 2005 a). Diferente dos Kaiabi, os Ikpeng
tiveram muitas dificuldades de adaptação no novo território, permanecendo algum
tempo na região do Alto Xingu, convivendo forçadamente com seus antigos inimigos.
No final dos anos 70, mudaram-se para a região do Médio Xingu no Polo Pavuru (ISA,
2009). A população atual é de 421 habitantes segundo censo de 2011.
Os Yudjá foram contatados pelos irmãos Villas Bôas em 1948 no
baixo rio Xingu com população muito reduzida. Eles residiram anteriormente na
desembocadura do rio Xingu, no Amazonas. A partir do século XVII, os sobreviventes
do constante contato com colonizadores e doenças, migraram rio acima, sendo pouco
a pouco empurrados para o Alto Xingu (Baruzzi, 2005; Hemming, 2005). Segundo
dados de historiadores, o povo Yudjá representava 2000 pessoas em 1842; 200 em
1884; 150 em 1896; 52 em 1916 e 37 pessoas em 1950 (Baruzzi, 2005; Hemming,
2005; ISA, 2009). A maioria desse povo concentra-se na região do Polo Diauarum com
população de 260 pessoas, dados de 2011.
No século XIX, quando os Trumai chegaram ao PIX, consta que
eram bastante numerosos. Porém, em decorrência de conflitos e guerras com inimigos,
epidemias de gripe, sarampo e disenteria, ocorreu diminuição abrupta da população
que quase foi extinta. Esse povo foi o último a chegar aos formadores do rio Xingu e
teriam se originado da região do Araguaia, deixando essas terras por conflitos com
outros povos indígenas, vindo a encontrar os irmãos Villas Bôas em 1946 (Hemming,
2005; ISA, 2009). Por um longo período habitaram as proximidades do Posto Leonardo,
no Alto Xingu, depois foram se instalar na margem esquerda do rio Xingu, onde se
distribuíram em quatro pequenas aldeias situadas na abrangência do Polo Pavuru,
Médio Xingu (ISA, 2009).
As primeiras notícias sobre o povo Waujá foram registradas pelo
antropólogo Karl Von den Steinen, em 1884, na sua expedição ao Brasil Central. Mas,
existem evidências de histórias desse povo há mil anos antes. Eles seriam
descendentes diretos de vários grupos imigrados do extremo sudoeste da bacia
amazônica e estabeleceram as primeiras aldeias xinguanas a partir dos anos 800 e 900
(ISA, 2009). O povo Waujá habita duas regiões, uma localizada no Alto Xingu,
30
denominada Pyulaga, e outra, no Médio Xingu, formando a aldeia Aruak localizada nas
margens do rio Von den Steinen (ISA, 2009).
O primórdio do contato dos Kamayurá com a sociedade remonta a
1884, na expedição do antropólogo alemão Karl Von den Steinen ao Xingu, na parte sul
do Xingu. Nesta época estavam em 264 pessoas, em 1938 eram cerca de 240. As
epidemias de sarampo os reduziram a 94 pessoas no ano de 1954 (Junqueira, 2002;
ISA, 2009). A maior parte do povo Kamaiurá vive na aldeia Ipavu, localizado no Alto
Xingu. Na região central do Parque, as margens do rio Xingu, na aldeia Morená, vivem
algumas famílias que se encontram na região do Médio Xingu, Polo Pavuru (ISA,
2009).
Quanto aos Kisêdjê, não há confirmação correta da data de chegada
no Xingu. Pelo relato de alguns deles, a migração teria ocorrido na primeira metade do
século XIX. Esse povo teria vindo da região norte de Tocantins ou Maranhão, seguindo
para oeste atravessando o rio Xingu e Tapajós. Após conflitos com outros povos
passaram a se deslocar em direção ao rio Batovi, entrando em contato com o Alto
Xingu (Flemming, 2005; ISA, 2009). Após algum tempo deixaram essa região, rumo à
foz do rio Suyá- Missu, local que depararam com a expedição de Karl Von den Steinen,
em 1884 (ISA, 2009). Em 1959, a expedição dos Villas Bôas iniciou processo de
contato com esse povo que estava em constante guerra com seus inimigos Yudjá. Os
Kisêdjê, a partir de 1990, iniciaram trabalho de recuperação de sua terra tradicional no
rio Suyá – Missu, fora da delimitação do PIX, após constatarem que estava sendo
devastada pelos fazendeiros. Em 1998, conseguiram a demarcação da Terra Indígena
Wawi no limite sudeste do Parque e voltaram a ocupar a região ancestral, anterior ao
contato (ISA, 2009).
31
5.4. Programa de atenção básica à saúde no Xingu
A partir de 1999, com a nova política de saúde indígena configurada
na criação dos DSEI, iniciou-se reestruturação de uma rede de atenção básica nos
territórios indígenas que fosse capaz de atender, de forma diferenciada, as
especificidades dessa população. Nesse modelo, equipes multiprofissionais são
responsáveis pela atenção à saúde nas aldeias.
O território de atenção à saúde no Xingu está dividido em quatro
polos base, cada um com várias aldeias em sua área de abrangência. Cada polo conta
com equipe multiprofissional de saúde indígena (EMSI) formada por médico,
enfermeiro, dentista, auxiliar de enfermagem indígena (AEI) e agentes indígenas de
saúde (AIS). Os AIS estão presentes na maioria das aldeias e são imprescindíveis na
operacionalização da atenção básica na saúde indígena. Há uma coordenação técnica
que supervisiona e orienta o trabalho desenvolvido pela EPM/UNIFESP no DSEI Xingu,
capacita e norteia a EMSI na atenção à saúde. Além desses profissionais, existem os
professores indígenas que trabalham em conjunto com a EMSI nas escolas e
comunidades. Os curadores tradicionais como pajés, raizeiros e parteiras ocupam
papel fundamental no processo de tratamento e cura.
Os profissionais de saúde no Xingu cumprem escala de trinta dias em
campo e quinze dias de folga. As escalas são organizadas de maneira que permitam
cobertura contínua das aldeias. As equipes, geralmente, permanecem fixas nos polos
por determinado período, com objetivo de aumentar vínculo com a comunidade e dar
continuidade nas ações em saúde. A comunicação entre os polos e aldeias acontece
comumente via rádio. Em alguns locais existe possibilidade de se utilizar internet.
Além da EMSI, o polo base conta com equipe de apoio composta
por indígenas que colaboram na organização e operacionalização do trabalho. São
eles: coordenador de saúde, auxiliar de limpeza, cozinheiro, motorista de barco que
são contratados pela conveniada. Na cidade de Canarana-MT, então sede do
DSEI/FUNASA, existe estrutura administrativa do Projeto Xingu/EPM/UNIFESP
composta por indígenas. Eles dão apoio ao trabalho de campo, fazem articulação com
o DSEI nas demandas quanto a questões de logística, infraestrutura, manutenção de
equipamentos, estoque de medicamentos e insumos. Além disso, todas as informações
32
em saúde oriundas das aldeias e polos são organizadas e consolidadas por essa
equipe antes de serem encaminhadas ao DSEI.
No subsistema de saúde indígena, o primeiro atendimento acontece
na aldeia, sendo que cuidados iniciais são prestados pelos AEI e AIS sob orientação
dos médicos e enfermeiros (Figura 2). Quando o problema de saúde não pode ser
resolvido na aldeia, os doentes são encaminhados para Unidade Básica de Saúde
(UBS) localizada nos polos, que possui maior poder resolutivo. Se mesmo assim, não
for possível tratar o doente, a equipe de saúde encaminha para uma das Casas de
Apoio a Saúde Indígena (CASAI)8 localizadas nos municípios de Querência, Canarana
e Sinop, no estado de Mato Grosso. As CASAI fazem a interface com o SUS regional e
tem como função alojar e acompanhar os pacientes indígenas para investigação
diagnóstica e tratamento de maior complexidade (Rodrigues, 2005).
O
suporte
para
atendimento
secundário
e
terciário
é
de
responsabilidade do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena que deve se articular
com os centros de referência de média e alta complexidade. Porém, nessa
estruturação dos serviços para atender as demandas de saúde, há uma infinidade de
questões que interferem na política de atenção a saúde indígena e que dificulta a
concretude do modelo proposto. Freqüentemente, a fragilidade desse sistema tem
origem na atenção básica, refletindo em todos os níveis de atenção à saúde.
O programa de saúde desenvolvido no Xingu está organizado nas
áreas de saúde da criança, do adulto, do idoso, da mulher, da imunização, do controle
de endemias, da vigilância à saúde e do atendimento das urgências e emergências.
Dentre essas ações, destacamos o programa de saúde da mulher com enfoque no
período gravídico puerperal, queixas ginecológicas mais freqüentes como dor em baixo
ventre, DST e prevenção do câncer do colo do útero.
Um dos pilares de trabalho da EPM/UNIFESP no Xingu é a
formação dos próprios indígenas para atuar na saúde, como gestores e interlocutores
dentro e fora da aldeia. A capacitação acontece de acordo com a realidade local, por
meio de cursos modulares regulares e também de forma contínua no dia-a-dia.
8
A casa de apoio a saúde indígena (CASAI) faz parte da estrutura do subsistema de saúde indígena, os Distritos Sanitários
Especiais Indígenas (DSEI). É um local de recepção e apoio aos pacientes indígenas referenciados da aldeia/Polo Base para
tratamento na rede do sistema único de saúde - SUS. A CASAI presta assistência de enfermagem 24 horas por dia, agenda
consultas, exames complementares ou internação hospitalar, providencia acompanhamento dos pacientes nessas ocasiões e o
seu retorno à comunidade de origem, acompanhado das informações sobre o caso (Brasil, 2007).
33
Figura 2. Organização da assistência à saúde indígena
Fonte: Brasil, 2007
A formação dos agentes indígenas de saúde e auxiliares de
enfermagem indígenas foi concebida como um elo entre os serviços de saúde e a
comunidade indígena. Foi uma estratégia para garantir sua inserção no mercado de
trabalho e atuar como promotor de saúde enfatizando a integração entre as práticas de
prevenção e cura envolvidas no processo de saúde-doença. Com a profissionalização
desses indígenas, houve um salto de qualidade no serviço de saúde sendo
vislumbradas diferentes possibilidades de formação no contexto da saúde (Mendonça,
2005; Oliveira, 2005; Rodrigues, 2005).
Ao longo do tempo, a transição no perfil epidemiológico dos
indígenas do Xingu e de outros povos vem ocorrendo com emergência das doenças
crônicas não transmissíveis como obesidade, hipertensão arterial, diabetes mellitus,
câncer, além de outros agravos como a depressão, alcoolismo, suicídio e uso de
drogas. Este novo perfil de morbidade está estreitamente associado a modificações na
subsistência, dieta, atividade física, dentre outros fatores, decorrentes das mudanças
socioculturais e econômicas da interação com a sociedade nacional. Estas mudanças
têm sido um desafio para o sistema de saúde indígena, exigindo atenção especial para
ações de prevenção, diagnóstico e tratamento (Baruzzi et al., 2001; Coimbra Junior et
34
al., 2001; Cardoso et al., 2003; Santos et al., 2003; Baruzzi, 2005; Rodrigues, 2005;
Brasil, 2007; Gimeno et al., 2007; Salvo et al., 2009).
Gimeno et al., (2007) avaliaram o perfil metabólico e antropométrico
de indígenas do Xingu e evidenciaram altas porcentagens de indivíduos com excesso
de peso, dislipidemias e elevação dos níveis pressóricos. Esse perfil é decorrente das
mudanças no estilo de vida como redução de atividade física e o aumento no consumo
de alimentos industrializados.
Transcorridos
mais
de
quatro
décadas
de
atuação
da
EPM/UNIFESP no Xingu, os resultados são evidenciados pelos indicadores
demográficos e epidemiológicos. De acordo com dados levantados, a população do
PIX passou de 1.220 pessoas no ano de 1970 para 5.000 no ano de 2005. O programa
de imunização sempre foi destacado como fundamental para as melhores condições de
saúde e sobrevivência desta população. A cobertura vacinal atingiu níveis satisfatórios
no Xingu e obteve nítido progresso nos últimos anos com amplo número de vacinas
preconizadas pelo Ministério da Saúde e aquelas recomendadas aos povos indígenas
(Baruzzi, 2007).
A mortalidade infantil, no Xingu, vem se estabilizando no decorrer
dos anos, permanecendo entre 30 a 35 mortes por 1000 nascidos vivos no período de
1999 a 2005. O pano de fundo para este cenário é a falta de saneamento básico e a
desnutrição infantil que, associadas às doenças diarréicas, respiratórias e afecções
neonatais constituem as principais causas de morte entre crianças menores de um ano
de idade. Quanto à mortalidade geral, os números também estão decrescendo
conseqüente à melhoria das condições de saúde. Foi verificada no ano de 1999,
ocorrência de 22 óbitos; no ano de 2005 este valor baixou para seis casos (Rodrigues,
2005; Rodrigues et al., 2005).
Outro aspecto fundamental no desenvolvimento do trabalho da
EPM/UNIFESP no Xingu foi a constante estruturação do sistema de informações que, a
partir das fichas médicas individuais, foi possível ampliar para outros instrumentos
complementares. Com esse sistema de informações, busca-se organizar, monitorar e
planejar as ações de atenção básica, além de ser um acervo inédito no país que
possibilita comparar dados epidemiológicos e demográficos em diferentes momentos.
35
5.5. O câncer do colo do útero no Xingu
A partir da década de 1980, a prevenção do câncer do colo do útero
no Xingu foi sendo incorporada, ainda de forma incipiente, pelas equipes de saúde da
EPM em parceria com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), instituição responsável
pela saúde indígena naquele momento. A EPM realizava quatro viagens anuais para
atender essa população e em situações epidêmicas. Nesse período, o câncer do colo
do útero não era identificado como problema de saúde para os profissionais e mulheres
indígenas. Muitas outras demandas de doenças como a malária, sarampo, tuberculose,
doenças respiratórias, exigiam vigilância constante, associada às dificuldades inerentes
ao trabalho como equipe reduzida e despreparada para lidar com a realidade local.
O primeiro registro de óbito identificado por esse tipo de câncer, no
Xingu, ocorreu em 1972, que sinalizou a importância de repensar e intervir nessa
problemática de saúde. Outras mortes ocorreram nos anos 1985, 1992, 2000, 2003,
2004 que culminou em inevitável implementação de ações preventivas para seu
controle. Intervenções quanto a medidas de prevenção foram realizadas, mas não
houve impacto significativo. Ainda não havia estrutura organizada do serviço de saúde
que abarcasse as necessidades desde a prevenção, ao tratamento e monitoramento
dos casos. Em 2006 foram registrados os dois últimos óbitos, diagnosticados em 2005,
em estágio avançado da doença. Um dos casos foi encaminhado para referência
terciária regional, após muitas tentativas de acesso ao serviço, que permaneceu um
ano para realizar diagnóstico e definir tratamento. Essa situação foi marcante, expondo
realidade precária do atendimento prestado à saúde indígena. Mediante o fato, o outro
caso foi atendido no HSP/ UNIFESP, mas devido ao prognóstico ruim, a família optou
por não fazer o tratamento e a paciente faleceu na aldeia.
Esses óbitos provocaram imensa preocupação e medo nas
mulheres do Xingu. Chegaram a dizer que “antes não havia essa doença, não sabemos
como lidar com isso dentro das comunidades, queremos receber mais informações,
saber como se prevenir e receber tratamento”(N.Kisêdjê,2005). Tinham dúvidas,
pediram que a equipe de saúde retornasse à aldeia para explicar os resultados dos
exames e que fossem tratadas. As mulheres da etnia Kisêdjê, disseram em reunião:
“não é fácil para a gente fazer esse exame, temos muita vergonha, por isso queremos
dizer que vocês têm que fazer esse exame direito, tem que dizer quando a mulher está
36
doente, têm que tratar, queremos saber o resultado do exame ginecológico, vocês da
saúde não podem esconder isso da gente”.
Desde 1999, em decorrência das mudanças na política de saúde
indígena com a criação dos DSEI, ações de prevenção do câncer do colo do útero
passaram a ser implementadas na rotina da atenção básica no Xingu, mas ainda pouco
organizadas. Foram identificados diversos entraves no serviço local e regional que
dificultavam a realização das ações de prevenção e tratamento como: a pouca
aceitação das mulheres em fazer o exame ginecológico, despreparo das equipes de
saúde, baixa cobertura, demora no retorno dos exames citopatológicos, dificuldade de
acesso ao exame de colposcopia, tratamento e seguimento dos casos nas referências,
baixa resolutividade dos serviços de saúde disponíveis e aumento dos casos de lesões
precursoras desse câncer.
Diante da crescente ocorrência do número de casos de câncer do
colo uterino e de suas lesões precursoras nas mulheres do Xingu, tornou-se imperioso,
a partir do ano de 2005, a reorganização do trabalho. Como estratégia para
enfrentamento da situação, foi proposta parceria com o Núcleo de Prevenção de
Doenças
Ginecológicas
(NUPREV),
da
Disciplina
de
Ginecologia
Geral
do
Departamento de Ginecologia da UNIFESP nas ações de prevenção, tratamento e
seguimento dos casos, por meio de apoio matricial, com participação de profissionais
especializados. Também houve mudança no fluxo dos exames citopatológicos que
deixaram de ser encaminhados para rede estadual da região, sendo processados nas
dependências do Laboratório de Citopatologia da disciplina de Ginecologia Geral do
Departamento de Ginecologia da UNIFESP. A enfermeira de campo recebeu
treinamento para coleta dos exames, tornando-se responsável pela organização desse
trabalho.
Após seis anos de extensivo e vigilante acompanhamento quanto à
prevenção do câncer do colo do útero, as comunidades e mulheres indígenas do Xingu
adquiriram mais confiança e aceitação quanto à realização do exame preventivo. Esse
trabalho foi reconhecido e legitimado pelos povos do Médio, Baixo e Leste Xingu. A
participação dos AEI e AIS nas ações de prevenção e orientação da comunidade têm
corroborado para seu completo sucesso.
6. PACIENTES E MÉTODOS
38
6.1. Delineamento do estudo
Trata-se
de
estudo
observacional,
transversal,
retrospectivo,
realizado por meio de levantamento de dados, obtidos pela documentação das ações
de prevenção do câncer do colo do útero, no âmbito do Projeto Xingu/UNIFESP.
Todas as informações foram registradas e organizadas pela pesquisadora que
participou efetivamente de todo o processo de trabalho em campo.
6.2. Local e população
A pesquisa foi desenvolvida no Parque Indígena do Xingu, situado
no estado do Mato Grosso, nos Polos Pavuru, Diauarum e Wawi que compreendem as
regiões do Médio, Baixo e Leste Xingu. A população total nessa região, em janeiro de
2006, era de 2.299 habitantes.
A população do estudo foi constituída por 503 mulheres indígenas,
com idade igual ou superior a 12 anos, história de vida sexual ativa ou pregressa, que
correspondeu a 22,0% da população total. Estas mulheres pertenciam a sete etnias:
Kaiabi, Kamayurá (aldeia Morená)9, Yudjá, Kisêdjê, Ikpeng, Trumai e Waujá (aldeia
Aruak).
6.3. Critérios de inclusão e não inclusão
Foram incluídas na ação de rastreamento do câncer do colo do útero
que ocorreu no mês de outubro de 2005, mulheres indígenas com idade igual ou
superior a 12 anos e história de vida sexual, residentes nos Polos Pavuru, Diauarum e
Wawi.
Não foram incluídas as mulheres que, na época da coleta do exame
citopatológico, estavam em período menstrual ou puerpério tardio, sendo avaliadas
posteriormente nos meses de novembro e dezembro de 2005.
9
Os Kamaiurá e Waujá localizados no Alto Xingu, região não atendida pela UNIFESP, não fazem parte do estudo.
39
Para análise dos dados do estudo, foram excluídas 14 mulheres
com história de histerectomia pelo fato da pesquisa referir-se à prevenção do câncer do
colo do útero.
Quanto à participação dos sujeitos da pesquisa, após explicação do
procedimento, não houve recusa quanto à realização do exame.
6.4. Aspectos éticos
Os aspectos éticos relacionados ao desenvolvimento desta pesquisa
com seres humanos foram fundamentados de acordo com as diretrizes e normas
estabelecidas pela Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Por se
tratar de área temática especial “populações indígenas” a Resolução n. 304/00 do CNS
afirma o respeito aos direitos dos povos indígenas no que se refere ao
desenvolvimento teórico e prático da pesquisa e participação dos índios nas decisões
que os afetem (Brasil, 1996; Brasil, 2000).
Quanto à finalidade e aspectos deste estudo não ocorreram riscos
ou danos atuais ou potenciais que pudessem comprometer os sujeitos da pesquisa,
tanto individual quanto coletivamente. Esta pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética
em pesquisa (CEP) da UNIFESP sob n. 0760/08 (anexo 2) e pelo comitê nacional de
ética em pesquisa (CONEP) com n. 654/08 (anexo 3).
Ainda
para
aprovação
do
presente
estudo
foi
necessária
apresentação do projeto em Reunião do Conselho Distrital de Saúde do Xingu que foi
avaliado pelo presidente do conselho distrital e os demais presidentes do conselho
local de saúde (anexo 4). As explicações sobre a realização do projeto foram dadas
pelo coordenador do Projeto Xingu ao presidente do conselho distrital que repassou
aos demais conselheiros. Foi disponibilizada ao conselho cópia do projeto de pesquisa
e documento que esclarece sobre seus objetivos (anexo 5). Também foi necessária
autorização do coordenador do Projeto Xingu por meio de declaração aprovando a
realização da pesquisa e utilização dos dados (anexo 6).
40
6.5. Período da coleta de dados
A coleta e análise de dados foram desenvolvidas a partir de três
ações que aconteceram em diferentes períodos por tratar-se de informações relativas
às atividades de atenção básica à saúde no Xingu. A pesquisadora participou do
trabalho, juntamente com outros profissionais, sendo responsável em documentar,
organizar e arquivar todas as informações geradas nos seguintes momentos:
x Rastreamento do câncer do colo do útero: realizada no mês de
outubro de 2005 (1ª coleta) e nos meses de novembro e dezembro de 2005 (2ª coletanão realizada na primeira etapa).
x Colposcopia: realizada no mês de fevereiro de 2006
x Cirurgia por ondas de radiofreqüência (CORAF), conização
clássica e histerectomia: realizados no mês de maio de 2006
6.6. Fontes de informação
As informações iniciais necessárias à identificação e definição da
população alvo, para o rastreamento, foram obtidas a partir das fichas médicas
individuais. Os dados utilizados nesta pesquisa foram coletados pela pesquisadora nos
registros dispostos em planilhas de Excel, relatórios de trabalho em campo, nos
impressos com registro dos procedimentos que foram arquivados nos prontuários.
Também
foi
realizada
consulta
aos
laudos
dos
exames
citopatológicos,
anatomopatológicos de biópsia e peças cirúrgicas.
O trabalho em campo contou com colaboração de acadêmica de
enfermagem e médica ginecologista da UNIFESP. Também participaram outros
profissionais como enfermeiros, médicos, auxiliares de enfermagem indígenas e
agentes indígenas de saúde.
41
6.7.
Trabalho de campo
No planejamento da ação de rastreamento no ano de 2005, foram
utilizadas como instrumento de informação as fichas médicas individuais para
identificar e quantificar a população alvo inicial, ou seja, mulheres com idade igual ou
superior a 12 anos. Por meio destas fichas foi elaborada planilha contendo os
seguintes dados: número de registro (RG), nome, etnia, data de nascimento e aldeia
que foram organizadas por polos. Optou-se por incluir mulheres nesta faixa etária
devido à precocidade de início da atividade sexual e atipias citológicas já observadas
anteriormente em mulheres muito jovens. O planejamento e organização das
informações foram fundamentais no desenvolvimento do trabalho.
Elaborou-se programação referente à ação de rastreamento
contendo data, local da viagem, material e suporte necessário que foi encaminhada ao
Xingu com 45 dias de antecedência. A equipe de campo foi responsável por comunicar
as aldeias, via rádio, dar apoio logístico e definir as pessoas que ajudariam na ação. O
suporte dos AEI, AIS e mulheres indígenas foi imprescindível em todos os momentos
do trabalho.
Como a maioria das aldeias no Xingu situa-se próximas aos rios, as
viagens foram realizadas de barco. Comumente, essas viagens tinham duração de
quatro a cinco dias para ser possível visitar os locais no mesmo curso do rio. A equipe
percorreu todas as aldeias conforme programação e, dependendo da distância entre
elas, pernoitava para concluir o trabalho. Após esse período, retornavam ao polo para
organizar o próximo percurso, reabastecer com mantimentos, materiais e insumos,
sucessivamente, até completar o itinerário previsto. Nessa etapa do trabalho foram
visitadas 35 aldeias nas áreas de abrangência dos Polos Pavuru, Diauarum e Wawi em
período de um mês.
Participaram
dessa
ação
a
enfermeira
responsável
pelo
planejamento, uma aluna de graduação do curso de enfermagem da UNIFESP, além
do apoio da equipe de campo. Como a maioria dos AEI e AIS eram do sexo masculino,
seu trabalho restringiu-se na mobilização das mulheres, fazer tradução quando
necessário, organizar o espaço de trabalho e ajudar no preenchimento de fichas.
Durante o exame ginecológico retiravam-se do local por solicitação das indígenas. As
42
mulheres que exerciam função de AIS puderam acompanhar e ajudar na realização do
procedimento, sob autorização da paciente.
Grande parte das localidades dispunha de posto de saúde e
estrutura mínima de atendimento como maca, mesa, cadeira, armários, insumos e
medicamentos básicos. Este espaço era adaptado aos padrões culturais indígenas
sendo construído de forma rudimentar utilizando madeira e palha. Atualmente, com a
melhoria da infraestrutura em grande parte das aldeias, os postos de saúde estão
sendo construídos em alvenaria e equipados para o atendimento básico à saúde.
Em outras aldeias, geralmente recém construídas, distantes ou
pequenas, que ainda não havia local específico para atendimento, o ambiente de
trabalho foi improvisado nas casas da própria comunidade. O exame ginecológico, na
ausência de maca, foi realizado em mesas, bancos ou até mesmo em redes (figura 3).
Como foco de luz foi utilizado lanterna com fixação na cabeça do examinador. A
adaptação do local pela equipe possibilitou oportunizar o exame ao maior número de
mulheres.
Figura 3. Exame ginecológico realizado na aldeia e adaptado na rede
Fonte: Pereira, ER
43
Durante o atendimento, cada paciente foi orientada quanto ao
procedimento. Aquelas que não realizaram o exame no mês de outubro foram
avaliadas em novembro e dezembro de 2005 na primeira oportunidade de retorno da
equipe de saúde às aldeias.
As comunidades visitadas receberam orientações da equipe de
saúde sobre prevenção do câncer do colo uterino, por meio de conversas realizadas
nas aldeias, nos cursos de formação dos AIS, no módulo de saúde da mulher e no
Encontro de Mulheres Indígenas que acontece anualmente no PIX (figura 4).
É importante lembrar que, pelo fato da coleta ser realizada em
condições adversas, o material foi armazenado em local seguro e protegido para evitar
depósito de artefatos de poeira e contato de insetos que pudessem prejudicar a
qualidade do exame. As lâminas foram encaminhadas pela própria pesquisadora ao
Laboratório de Citopatologia do Departamento de Ginecologia da UNIFESP para
processamento e leitura.
Figura 4. Observação do colo do útero por mulher da etnia Ikpeng
Fonte: Projeto Xingu
44
Com os resultados dos exames citopatológicos, o laudo original foi
arquivado no prontuário e a cópia entregue às pacientes. A devolutiva dos exames foi
demanda das mulheres do Xingu, que gostariam de saber o resultado e tê-lo em mãos.
Esta prática, desde então, passou a fazer parte da rotina de rastreamento nos anos
subseqüentes, contribuindo de certa forma para aumentar a confiança das mulheres
indígenas na equipe de saúde.
A segunda etapa do trabalho ocorreu em fevereiro de 2006 e
consistiu na ação de colposcopia por apoio matricial com participação de médica
ginecologista do NUPREV/UNIFESP e enfermeira responsável pelo trabalho em
campo. Essa equipe partiu de São Paulo com destino à Goiânia, por via aérea, munida
de materiais e aparelho colposcópico. De Goiânia percorreram 12 horas de ônibus à
cidade de Canarana, Mato Grosso, de onde embarcaram em aeronave monomotor
rumo ao PIX.
As mulheres indígenas que apresentaram atipias nos resultados dos
exames citopatológicos foram organizadas em planilhas e distribuídas por polos,
facilitando a logística do trabalho. Aquelas com idade superior a 45 anos tiveram
indicação de fazer uso de estrogênio, via oral, 10 dias antes do exame. A programação
foi encaminhada à equipe de campo que organizou o serviço e garantiu remoção das
pacientes das aldeias aos polos Pavuru, Diaurum e Wawi.
O aparelho colposcópico utilizado foi da marca DF Vasconcelos com
lentes de aumento de 6 a 40 vezes, filtros azul e verde. Como fonte de energia utilizouse motor gerador à gasolina. A média de permanência da equipe em cada polo foi de
três dias, tempo suficiente para concluir o trabalho. Foi realizada biópsia dirigida por
colposcopia quando houve indicação. Todas as pacientes submetidas ao procedimento
foram orientadas, não havendo recusa. Os materiais foram organizados na sala de
ginecologia da Unidade Básica de Saúde (UBS) dos polos. Os AEI e AIS foram
fundamentais na organização e conversa com as mulheres indígenas. Também foi
oportuno, pois puderam conhecer e aprender mais sobre o procedimento. A descrição
do exame colposcópico foi realizada em impresso próprio e arquivada no prontuário
das pacientes.
Em maio de 2006, após resultados dos exames anatomopatológicos
da biópsia colpodirigida, programou-se a terceira etapa do trabalho para tratamento por
meio da excisão da zona de transformação por cirurgia com ondas de radiofreqüência
(CORAF). Da mesma forma, foi elaborada e encaminhada programação para equipe de
45
campo no PIX contendo nome das pacientes que seriam submetidas a tratamento
cirúrgico e orientações. Nesta ação foram necessários dois aparelhos de colposcopia,
da mesma marca descrita, e duas unidades geradoras com eletrodos para realização
da CORAF.
Outra equipe composta por três médicas ginecologistas do
NUPREV/UNIFESP, um médico e uma enfermeira do Projeto Xingu seguiram o mesmo
itinerário até a cidade de Canarana-MT. As pacientes que haviam indicação de cirurgia
foram removidas dos Polos Pavuru, Diauarum e Wawi por via aérea e fluvial.
Realizaram exames pré-operatórios com exames de coagulação sanguínea, tempo de
sangramento (TS) e de coagulação (TC), exames sorológicos para hepatite B e C,
sífilis e HIV e teste de gravidez com dosagem de gonadotrofina coriônica (Beta- HCG),
bem como o tratamento das vaginites infecciosas e atróficas e uso de estrogênio,
naquelas com indicação. Foi estabelecida parceria com o município que cedeu espaço
no seu ambulatório. Em contrapartida a equipe da UNIFESP realizou atendimento de
duas munícipes com indicação de CORAF.
Optou-se por não realizar o procedimento cirúrgico no Xingu pelo
fato de ser observado, nessas mulheres, intercorrências como excessivo sangramento
do colo do útero após excisão da zona de transformação por ondas de radiofreqüência.
E, neste contexto, havia retaguarda hospitalar, caso necessário. Após a cirurgia as
pacientes permaneceram na CASAI de Canarana, retornando à aldeia sob alta médica.
Todas foram acompanhadas por familiares que foram orientados quanto ao
procedimento e cuidados no pós-operatório. Dois casos foram encaminhados para
tratamento cirúrgico, conização clássica e histerectomia, em São Paulo no
HSP/UNIFESP por se tratar de suspeita de lesão invasora de maior gravidade.
As informações desta ação foram documentadas e os resultados
dos exames anatomopatológicos das peças cirúrgicas foram arquivados no prontuário.
As pacientes submetidas às cirurgias foram acompanhadas pela equipe de
ginecologistas do NUPREV no PIX, a cada seis meses, por um período de dois anos,
sendo submetidas à colheita de citologia oncótica cervicovaginal e colposcopia, com
biópsia quando necessário. Após este período, aquelas que não apresentaram
alterações nesses exames, foram seguidas por citologia oncótica anual, até o presente
momento.
46
6.8. Métodos
6.8.1. Coleta do exame citopatológico
Realizou-se inspeção da vulva seguido da introdução delicada do
espéculo vaginal descartável, sem lubrificantes, com exposição adequada do colo
uterino. Foi observado aspecto das paredes vaginais, colo uterino durante realização
do exame. Nos casos onde houve presença de conteúdo vaginal aumentado foi
removido o excesso de secreção, de forma delicada, antes da coleta do material por
meio de pinça Cheron e gaze. Procedeu-se a coleta tríplice de células esfoliadas do
fundo de saco vaginal, da ectocérvice e da endocérvice. O material foi depositado em
lâmina única de vidro histológica, devidamente identificada com as iniciais do nome e
número de registro (RG). Esse material foi fixado com solução aerosol e acondicionado
em caixa porta lâmina individual.
Descrição do exame:
a) Fundo de saco vaginal: com a parte arredondada da espátula de
madeira descartável tipo Ayre foi removido células do local e
depositadas longitudinalmente na primeira porção da lâmina,
próxima a região fosca.
b) Ectocérvice: com a outra extremidade da espátula de madeira
descartável com reentrância, foi realizado raspado periorificial da
ectocérvice, com movimento rotatório de 360 graus e de forma firme.
Esse material foi depositado de forma longitudinal na parte central
da lâmina.
c) Endocérvice:
com uma
escova
endocervical
descartável
foi
introduzido no canal cervical com movimento rotatório de 360
graus. O material foi depositado verticalmente na última porção
livre da lâmina.
A classificação dos exames citológicos obedeceu aos critérios
adotados pelo sistema Bethesda, 2001 (quadro 1).
47
Quadro 1. Classificação de Bethesda, 2001
1. Tipo de amostra:
4. Interpretação/Resultado
Esfregaço convencional, citológico em x Negativo para lesão intraepitelial
meio líquido ou outros
escamosa ou malignidade
x Alterações das células epiteliais
2. Adequação da amostra:
ƒ Células escamosas
o Células escamosas atípicas
x Satisfatória
para
avaliação
- de significado indeterminado
(descrever presença ou ausência de
- não é possível excluir lesão
componentes endocervicais/zona de
intra-epitelial
escamosa de alto grau
transformação e quaisquer outros
o Lesão intra-epitelial escamosa
indicadores
de
qualidade,
por
de baixo grau (abrangendo
exemplo, parcialmente obscurecido
HPV/displasia
por sangue, inflamação etc.)
o Atípicas
- células endocervicais,
x Insatisfatória para avaliação
possivelmente neoplásicas
(especificar o motivo)
- células glandulares,
possivelmente neoplásicas
x Amostra rejeitada/não processada
o Adenocarcinoma endocervical
(especificar o motivo)
in situ
o Adenocarcinoma:
- endocervical
x Amostra processada e avaliada,
- endometrial
mas insatisfatória para avaliação de
- extra-uterino
anormalidade
epitelial
porque
- sem outras especificações
(especificar o motivo)
(SOE)
3. Categorização geral (opcional):
5. Outras neoplasias malignas
(especificar)
x Negativo para lesão intraepitelial 6. Testes auxiliares
Fornecer uma breve descrição do método do
ou malignidade
teste e relatar o resultado de modo a ser
facilmente compreendido pelo clínico
x Outras: ver interpretação/resultado 7. Revisão automatizada
(por ex., células endometriais em Se o caso for avaliado com um equipamento
automatizado, especificar o equipamento e o
mulheres >= 40 anos de idade)
resultado
x Alteração celular epitelial: ver
interpretação/resultado (especificar
“escamoso” ou “glandular”, quando
apropriado
Fonte: Stiepcich, 2008.
8. Notas educativas e sugestões
(opcionais)
As sugestões devem ser concisas e
consistentes com orientações do
acompanhamento clínico publicadas por
organizações profissionais (referências
quanto as publicações relevantes podem ser
incluídas).
48
6.8.2. Colposcopia
a) Após posicionar a paciente foi realizada inspeção macroscópica da
vulva, intróito vaginal e, posteriormente, introduzido espéculo
vaginal descartável, cuidadosamente.
b) Procedeu-se
a
inspeção
macroscópica
da
vagina,
colo
e
secreções.
c) Visualização, limpeza e avaliação do colo com utilização de
algodão embebido em solução fisiológica. Foi utilizado filtro verde
do colposcópio para observar os vasos sanguíneos e junção
escamocolunar (JEC).
d) Aplicação da solução de ácido acético a 3% no colo de forma
cuidadosa e repetida, lavando-o. Após um minuto foi inspecionado
de maneira sistemática observando todo o colo e paredes vaginais.
e) Em
seguida
foi
aplicado
teste
iodado
de
Schiller
para
visualização de alterações no epitélio.
f) Concluindo o exame vaginal, o espéculo foi removido lento e
parcialmente fechado, banhando paredes vaginais anterior e
posterior com solução de Schiller, buscando possíveis lesões.
g) Após completa remoção do espéculo, aplicou-se solução de
ácido
acético a 5% para avaliação da vulva, sulcos inguinocrurais,
monte pubiano, região perineal e perianal.
h) Para
o
registro
terminologia
de
achados
estabelecida
pela
colposcópicos
Federação
utilizou-se
Internacional
a
de
Colposcopia e Patologia Cervical (IFCPC) de Barcelona, 2002
(Quadro 2).
i) Na presença de achado colposcópico anormal, procedeu-se a
realização de biópsia com pinça de Gaylor-Medina de 4 ou 5 mm.
Após, utilizou-se solução hemostática à base de percloreto férrico a
50% (Hemogin®). O fragmento obtido foi fixado em frasco com
solução de formol a 10% e encaminhado ao Departamento de
Anatomia Patológica da UNIFESP. Os resultados dos exames
anatomopatológicos obedeceram a classificação de Richart, 1990
(Quadro 3).
49
Quadro 2. Terminologia colposcópica, Barcelona (IFCPC, 2002)
1. Achados colposcópicos normais:
4. Colposcopia insatisfatória:
Epitélio escamoso original
Junção escamocolunar não visível
Epitélio colunar
Inflamação severa, atrofia severa, trauma
Zona de transformação
Colo do útero não visível
2.
Achados colposcópicos anormais:
5. Miscelânia:
Epitélio acetobranco plano
Condiloma
Epitélio acetobranco denso
Queratose
Mosaico fino
Erosão
Mosaico grosseiro
Inflamação
Pontilhado fino
Atrofia
Pontilhado grosseiro
Deciduose
Iodo parcialmente positivo
Pólipo
Iodo negativo
Vasos atípicos
3. Alterações colposcópicas sugestivas
de câncer invasivo
Fonte: Walker et al., 2003; Netto et al., 2008.
Quadro 3. Classificação histológica de Richart,1990
Classificação
Normal
Atipias
NIC I/HPV, baixo grau
NIC II, NIC III, alto grau, carcinoma in situ
Carcinoma escamoso invasor
Adenocarcinoma
Fonte: Carvalho et al., 2007
Legenda: NIC: neoplasia intraepitelial cervical, HPV: papilomavírus humano
50
6.8.3. Cirurgia por ondas de radiofreqüência (CORAF)
Para realizar a CORAF, foi necessária avaliação ginecológica
utilizando espéculo vaginal com saída para aspiração e exame colposcópico para
confirmação e delimitação da lesão e estabelecimento do número de fragmentos a
serem retirados de acordo com a extensão da neoplasia. Utilizou-se para este
procedimento eletrodo dispersivo (placa neutra) sob a paciente antes de iniciar o
procedimento cirúrgico.
a) Após delimitação da lesão no colo, foi aplicada infiltração de
anestésico com vasoconstritor em 3, 6, 9 e 12 horas próxima às
margens externas da zona de transformação.
b) O aparelho gerador foi programado para utilizar ondas de corte
de 40 watts. Selecionou-se eletrodo em alça do tamanho adequado
à extensão da lesão e acionado aspirador de fumaça com filtro
biológico.
c) Após o corte e retirada das peças cirúrgicas, o gerador foi
reprogramado para ondas de coagulação com 80 watts, utilizando-se
eletrodo em esfera para realizar hemostasia.
d) Aplicou-se camada de gel à base de percloreto férrico a 50%
(Hemogin ®) no colo do útero e utilização de tampão vaginal.
e) A peça cirúrgica foi fixada em placa de isopor previamente
identificada com marcação de 12 horas para o correto estudo
anatomopatológico
e
depositada
em
frasco
contendo
formol a 10%.
f) A
paciente
foi
orientada
quanto
aos
cuidados
pós-
operatórios.
g) O material foi encaminhado ao Departamento de Anatomia
Patológica da UNIFESP.
51
6.9. Métodos estatísticos
Utilizou-se o pacote estatístico SPSS- Statistical Package for Social
Sciences (v 16.0) para avaliar os dados referentes aos resultados do estudo. Para
comparação estatística de variáveis qualitativas, ou seja, freqüências e proporções
foram empregadas o Teste Exato de Fisher. Os valores de Sensibilidade,
Especificidade, Valor Preditivo Positivo e Negativo foram calculados utilizando o pacote
estatístico interativo JavaStat (Interactive online JavaStat statistical software package),
disponível online (http://statpages.org/ctab2x2.html). O valor de significância estatística
foi estabelecido em 5% ou p=<0,05.
7. RESULTADOS
53
Do total de 505 mulheres indígenas, representantes de sete etnias
(Kaiabi, Yudjá, Ikpeng, Kisêdjê, Trumai, Kamayurá, Waujá), do Médio, Baixo e Leste
Xingu, com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, 503 (99,6%)
foram submetidas ao exame citopatológico. Destas, 443 mulheres foram rastreadas no
mês de outubro de 2005 e 60 no período de novembro a dezembro de 2005. Os
motivos que levaram a não realizar o exame, na primeira vez, foram: estar em período
menstrual, fora da aldeia ou puerpério tardio. Apenas duas mulheres, do total, não
realizaram exame por estarem fora da aldeia e não haviam retornado até janeiro de
2006.
A população era predominantemente jovem com 309 mulheres
(61,4%) na faixa etária dos 12 aos 29 anos, aquelas acima de 50 anos somam-se 62
(12,4%). A idade das pacientes variou de 12 a 75 anos com média de 30 anos,
mediana de 25 anos e moda entre 15 e 16 anos. Dos sete povos que compõem o
presente estudo, as mulheres da etnia Kaiabi representaram 231 (45,9%). As mulheres
Kisêdjê eram em número de 68 (13,5%), as Yudjá e Ikpeng, 63 (12,5%) cada uma. A
representatividade daquelas da etnia Kamayurá foi de 34 (6,8%), Trumai de 20 (4,0%),
Waujá de 14 (2,8%) e outras, representaram 10 (2,0%). Estas, não especificadas,
relacionam-se às mulheres Aweti, Mehinako, Yawalapiti, Nambiquara, Panará e
Tapirapé, oriundas de outros locais, que moravam na região e eram cônjuges de
indivíduos das sete etnias estudadas.
Quanto aos resultados dos exames citopatológicos, verificou-se que
a maioria, 444 (88,3%) foi negativa para câncer do colo do útero e suas lesões
precursoras e 59 (11,7%) apresentaram atipias citológicas (Quadro 4).
54
Quadro 4. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo faixa etária, etnia e exame citopatológico, no
período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu
N
%
12 a 19
20 a 29
30 a 39
40 a 49
50 a 59
> 60
142
167
77
55
31
31
28,2
33,2
15,3
10,9
6,2
6,2
Kaiabi
Kisêdjê
Yudjá
Ikpeng
Kamayurá
Trumai
Waujá
Outras*
231
68
63
63
34
20
14
10
45,9
13,5
12,5
12,5
6,8
4,0
2,8
2,0
Negativo
Atipia citológica
444
59
503
88,3
11,7
100,0
Variável
Faixa Etária (anos)
Etnia
Exame citopatológico
Total
Legenda: * Aweti, Mehinako, Yawalapiti, Nambiquara, Panará, Tapirapé
No quadro 5, identifica-se a distribuição das 59 atipias citológicas de
acordo com expressão de menor para maior complexidade. Observamos cifras de 15
casos (25,4%) de células escamosas atípicas de significado indeterminado (ASC-US),
12 casos (20,3 %) de células escamosas atípicas não podendo afastar lesão de alto
grau (ASC-H), 7 casos (11,9%) de células glandulares atípicas (AGC), 15 casos
(25,4%) de lesão intraepitelial escamosa de baixo grau (LBG) e 8 casos (13,6 %) de
lesão intraepitelial escamosa de alto grau (LAG). Dois casos (3,4%) foram identificados
como positivos para carcinoma espinocelular e adenocarcinoma (CEC e ACA).
Quando distribuímos as 59 (11,7%) atipias citológicas em relação ao
total de exames citopatológicos realizados, encontramos o seguinte resultado: 3,0% de
ASC-US, 2,3% de ASC-H, 1,4% de AGC, 3,0% de LBG, 1,6% de LAG, 0,2% de CEC e
0,2% de ACA.
55
Das 59 mulheres portadoras de exames citopatológicos com atipias,
58 foram submetidas a exame colposcópico. A única paciente que não realizou o
exame não mais residia na área indígena avaliada, sendo informado o resultado do
exame ao DSEI na qual se encontrava. Na colposcopia foram encontrados 43 casos
(72,9%) com aspectos anormais, 14 casos (23,7%) referenciados como sem alterações
colposcópicas. Um caso foi considerado colposcopia insatisfatória por apresentar
processo inflamatório intenso, sendo indicado tratamento com posterior avaliação.
Quadro 5. Distribuição das 59 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, portadoras de atipias citológicas e achados
colposcópicos, no período de outubro de 2005 a fevereiro de 2006, residentes no
Médio, Baixo e Leste Xingu
Variável
N
%
ASC-US
ASC-H
AGC
LBG
LAG
CEC
ACA
15
12
7
15
8
1
1
25,4
20,3
11,9
25,4
13,6
1,7
1,7
Normal
Anormal
Insatisfatória
Não Realizado
14
43
1
1
59
23,7
72,9
1,7
1,7
100,0
Atipias citológicas
Achados colposcópicos
Total
Legenda: ASC-US: Células escamosas atípicas de significado indeterminado; ASC-H: Células escamosas atípicas não podendo
afastar lesão de alto grau; AGC: Células glandulares atípicas; LBG: Lesão intraepitelial escamosa de baixo grau; LAG: Lesão
intraepitelial escamosa de alto grau; CEC: Carcinoma espinocelular; ACA: Adenocarcinoma
Os achados colposcópicos anormais podem ser observados no
quadro 6, onde predomina o aspecto epitélio acetobranco em 35 (81,4%) casos em
diferentes apresentações e associações. Dos 43 casos com achados colposcópicos
anormais e biopsiados, 24 (55,8%) apresentaram lesão intraepitelial escamosa de
baixo e de alto grau e 19 casos (44,2%) cervicite crônica nos exames
anatomopatológicos.
56
Quadro 6. Distribuição das 43 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo achados colposcópicos anormais e
anatomopatológicos de biópsia, no período de fevereiro de 2006, residentes no Médio,
Baixo e Leste Xingu
Variável
N
%
Epitélio acetobranco
Imagens associadas
35
8
81,4
18,6
Cervicite crônica
LBG
LAG
19
11
13
43
44,2
25,6
30,2
100,0
Achados colposcópicos anormais
Anatomopatológico (Biópsia)
Total
Legenda: LBG: Lesão intraepitelial escamosa de baixo grau; LAG: Lesão intraepitelial escamosa de alto grau
Na tabela 1, encontramos distribuídos os resultados dos exames
citopatológicos de acordo com as etnias. Apesar de não ter sido encontrada
significância estatística, há tendência de maior ocorrência de atipias citológicas nas
mulheres das etnias Kaiabi, 30 casos (50,8%) e Ikpeng, 12 casos (20,3%).
Tabela 1. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo etnias e resultado do exame citopatológico, no
período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu
Etnia
Kaiabi
Kisêdjê
Yudjá
Ikpeng
Kamayurá
Trumai
Waujá
Outras*
Total
Exame citopatológico
Negativo
Atipias
%
N
%
N
201
45,3
30
50,8
64
14,4
4
6,8
58
13,1
5
8,5
51
11,5
12
20,3
31
7,0
3
5,1
18
4,1
2
3,4
13
2,9
1
1,7
8
1,8
2
3,4
444
100,0
59
100,0
Total
N
231
68
63
63
34
20
14
10
503
%
45,9
13,5
12,5
12,5
6,8
4,0
2,8
2,0
100,0
Legenda: * Aweti, Mehinako, Yawalapiti, Nambiquara, Panará, Tapirapé
Teste exato de Fisher-p= 0.322
Na Tabela 2, estão dispostos os resultados dos exames
citopatológicos relacionando-os com as diferentes faixas etárias. Foi maior o
contingente de atipias citológicas nas faixas etárias de 12 a 39 anos de idade (74,5%).
57
O resultado negativo foi maior nas faixas etárias mais jovens de 12 a 29 anos (62,9%).
Apesar das observações encontradas, não houve significância estatística para a
relação faixa etária e atipias citológicas, mas há forte tendência para maior presença
dessas atipias nas faixas etárias de 20 a 39 anos.
Tabela 2. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12
anos e história de vida sexual, segundo faixa etária e resultado do exame
citopatológico, no período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo
e Leste Xingu
Exame citopatológico
Negativo
Atipias
%
N
%
N
130
29,3
12
20,3
149
33,6
18
30,5
63
14,2
14
23,7
48
10,8
7
11,9
29
6,5
2
3,4
25
5,6
6
10,2
444
100,0
59
100,0
Faixa Etária
12 a 19
20 a 29
30 a 39
40 a 49
50 a 59
> 60
Total
Total
N
142
167
77
55
31
31
503
%
28,2
33,2
15,3
10,9
6,2
6,2
100,0
Teste exato de Fisher-p= 0.204
Por outro lado, quando analisamos a tabela 3 onde foram
distribuídas as faixas etárias por tipo de atipias citológicas, encontramos associação
estatisticamente significante. Esses dados mostram que 66,7% de ASC-US e 80,0% de
LBG estão presentes nas faixas etárias mais jovens de 12 a 29 anos. Na faixa etária de
20 a 49 anos é mais freqüente ASC-H com 66,7% e LAG com 100,0%. A atipia AGC
apareceu na faixa etária de 30 a 39 anos com 71,4%. Chama atenção seis resultados
atípicos obtidos em mulheres com idade superior a 60 anos, sendo dois casos de ASCH, um caso de ASC-US, um caso de LBG, um caso de carcinoma escamoso invasivo e
um caso de adenocarcinoma.
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