ÉRICA RIBEIRO PEREIRA PREVENÇÃO DO CÂNCER DO COLO DO ÚTERO EM POPULAÇÃO FEMININA DO PARQUE INDÍGENA DO XINGU, MATO GROSSO Tese apresentada à Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, para obtenção do Título de Doutor em Ciências. São Paulo 2011 ÉRICA RIBEIRO PEREIRA PREVENÇÃO DO CÂNCER DO COLO DO ÚTERO EM POPULAÇÃO FEMININA DO PARQUE INDÍGENA DO XINGU, MATO GROSSO Tese apresentada à Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, para obtenção do Título de Doutor em Ciências. Orientador: Profa. Dra. Neila Maria de Góis Speck Coorientador: Profa. Dra. Julisa Chamorro Lascasas Ribalta São Paulo 2011 Pereira, Erica Ribeiro Prevenção do câncer do colo do útero em população feminina do Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso. / Erica Ribeiro Pereira. -- São Paulo, 2011. xi, 118f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Ginecologia. Título em inglês: Prevention of cervical cancer in female population Xingu Indigenous Park, Mato Grosso. 1. Neoplasias do colo do útero/prevenção e controle. 2. Programas de rastreamento 3. Saúde indígena. 4. Índios Sul- Americanos. 5. Saúde da mulher. 6. Atenção à Saúde. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA DEPARTAMENTO DE GINECOLOGIA Chefe do Departamento: Prof. Dr. Afonso Celso Pinto Nazário Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Prof. Dr. Manoel João Batista Castello Girão iii ÉRICA RIBEIRO PEREIRA PREVENÇÃO DO CÂNCER DO COLO DO ÚTERO EM POPULAÇÃO FEMININA DO PARQUE INDÍGENA DO XINGU, MATO GROSSO Presidente da banca: Profa. Dra. Neila Maria de Góis Speck Banca examinadora: Prof. Dr. Roberto Geraldo Baruzzi Prof. Dr. José Focchi Prof. Dr. Luiz Carlos Zeferino Profa. Dra. Thais Heinke iv Dedicatória Dedico esta tese às mulheres indígenas do Xingu que me receberam com carinho nos anos que lá estive. Fonte: Projeto Xingu, 2003 v Agradecimentos À Deus por me guiar e dar esperança nos momentos difíceis. Aos meus pais, dedico mais esta trajetória em minha vida com eterno agradecimento. Ao meu companheiro Rafael, pelo carinho e compreensão incondicional. À orientadora Profa. Dra. Neila Maria de Góis Speck e coorientadora Profa. Dra. Julisa Chamorro Lascasas Ribalta, profissionais dedicadas e parceiras nesse trabalho junto às mulheres indígenas. Obrigada por me acompanharem nessa longa jornada, pela oportunidade, apoio e confiança durante todo este tempo de convívio. Ao Prof. Dr. Roberto Baruzzi, por me acolher e orientar no início desta caminhada. Ao Dr. Douglas Rodrigues, pela oportunidade de experimentar e ampliar meu trabalho na saúde indígena. Agradeço o carinho que se dedicou à leitura desta tese. À Dra. Lavínia Santos de Souza Oliveira, pelo incentivo, apoio e dedicação proporcionados ao longo do meu trabalho no Projeto Xingu. À Dra. Sofia Beatriz Mendonça, pelo carinho e incentivo constante. Ao Dr. Marcos Schaper dos Santos Júnior, pelo envolvimento e apoio neste trabalho junto às mulheres do Xingu. À Dra. Heloísa Pagliaro, pelo tempo e carinho dedicados (in memorian). Sinceros agradecimentos aos meus eternos mestres: Dr. Baruzzi, Dr. Douglas, Dra. Sofia e Dra. Lavínia, pessoas iluminadas, altruístas e precursoras na saúde indígena. Aos amigos e companheiros de trabalho do Projeto Xingu e Ambulatório do Índio do Departamento de Medicina Preventiva/Unidade de Saúde e Meio Ambiente/UNIFESP, que compartilham os mesmos ideais. vi A equipe da Casa de Saúde do Índio de Sinop-MT e Canarana-MT que me recebeu com carinho, em especial à Marly. Aos alunos de graduação e residentes da Universidade Federal de São Paulo que colaboraram com nosso trabalho no Xingu. À equipe do Núcleo de Prevenção de Doenças Ginecológicas-NUPREV, em especial às pós-graduandas: Valéria, Ana Carolina, Wany, Pabline, Fernanda, Daiene, Márcia que se dispuseram a viajar para o Xingu, contribuindo na continuidade desse projeto junto às mulheres indígenas. Ao Departamento de Medicina Preventiva da UNIFESP por ter me recebido como aluna do Programa de Pós-Graduação durante período probatório. Ao Departamento de Ginecologia da UNIFESP por ter me recebido como aluna do Programa de Pós-Graduação, possibilitando minha titulação. A Karim pelas orientações e apoio. À equipe do Laboratório de Citopatologia do Departamento de Ginecologia da UNIFESP, em especial a Dra. Célia Regina Sakano que se dedicou ao processamento e leitura das lâminas, pelo envolvimento e responsabilidade. À equipe do Departamento de Anatomia Patológica da UNIFESP, em especial ao Dr. Gustavo Rubino de Azevedo Focchi pela dedicação e apoio neste trabalho. Ao Manoel Schimidt por dedicar-se à tradução do resumo da tese. Às comunidades, lideranças e mulheres indígenas do Xingu. Aos agentes indígenas de saúde e auxiliares de enfermagem indígenas que muito me ensinaram. Em especial às agentes indígenas de saúde: Sula Kamayurá, Mahin Waurá, Tsaulu Trumai, Kaiulu Trumai, Araci Kaiabi, Quareaiup Kaiabi, Põan Kaiabi. vii Sumário Dedicatória........................................................................................................................v Agradecimentos...............................................................................................................vi Listas de figuras e quadros..............................................................................................ix Lista de tabelas.................................................................................................................x Lista de abreviaturas........................................................................................................xi Resumo...........................................................................................................................xii 1. INTRODUÇÃO..........................................................................................................01 2. JUSTIFICATIVA........................................................................................................09 3. OBJETIVOS..............................................................................................................11 4. REVISÃO DE LITERATURA....................................................................................13 4.1. Saúde sexual e reprodutiva da mulher indígena ...................................................14 4.2. Mulheres indígenas do Xingu: aspectos culturais e reprodutivos..........................18 5. CONTEXTO HISTÓRICO.........................................................................................22 5.1. O Parque Indígena do Xingu..................................................................................23 5.2. A Universidade Federal de São Paulo ..................................................................26 5.3. Breve histórico de contato dos povos do Médio, Baixo e Leste Xingu..................28 5.4. Programa de atenção básica à saúde no Xingu ...................................................31 5.5. O câncer do colo do útero no Xingu.......................................................................35 6. PACIENTES E MÉTODOS.......................................................................................37 6.1. Delineamento do estudo........................................................................................38 6.2. Local e população..................................................................................................38 6.3. Critérios de inclusão e não inclusão......................................................................38 6.4. Aspectos éticos......................................................................................................39 6.5. Período da coleta de dados...................................................................................40 6.6. Fontes de informação............................................................................................40 6.7. Trabalho de campo................................................................................................41 6.8. Métodos.................................................................................................................46 6.8.1. Coleta do exame citopatológico............................................................................46 6.8.2. Colposcopia..........................................................................................................48 6.8.3. Cirurgia por ondas de radiofreqüência (CORAF).................................................50 6.9. Métodos estatísticos..............................................................................................51 7. RESULTADOS..........................................................................................................52 8. DISCUSSÃO.............................................................................................................63 9. CONCLUSÕES.........................................................................................................80 10. ANEXOS..................................................................................................................82 11. REFERÊNCIAS .......................................................................................................98 Abstract Bibliografia consultada viii Lista de figuras Figura 1. Mapa do Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso...................................25 Figura 2. Organização da assistência à saúde indígena..........................................33 Figura 3. Exame ginecológico realizado na aldeia e adaptado na rede...................42 Figura 4. Observação do colo do útero por mulher da etnia Ikpeng.........................43 Lista de quadros Quadro 1. Classificação de Bethesda, 2001..............................................................47 Quadro 2. Terminologia colposcópica, Barcelona (IFCPC, 2002)..............................49 Quadro 3. Classificação histológica de Richart, 1990................................................49 Quadro 4. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo faixa etária, etnia e exame citopatológico, no período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu...54 Quadro 5. Distribuição das 59 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, portadoras de atipias citológicas e achados colposcópicos, no período de outubro de 2005 a fevereiro de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu............................................................................................55 Quadro 6. Distribuição das 43 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo achados colposcópicos anormais e anatomopatológicos de biópsia, no período de fevereiro de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu........................................................................................................56 Quadro 7. Distribuição das 22 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual que realizaram cirurgia, segundo resultados da citopatologia, colposcopia, anatomopatológico de biópsia, indicação e anatomopatológico de peça cirúrgica, no período de outubro de 2005 a maio de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu.....................................................................62 Quadro 8. Distribuição dos exames citopatológicos relativos à flora vaginal, período de outubro a dezembro de 2005, Médio, Baixo e Leste Xingu.......................................95 Quadro 9. Distribuição dos exames citopatológicos relativos à microbiologia, período de outubro a dezembro de 2005, Médio, Baixo e Leste Xingu.......................................95 Quadro 10. Distribuição dos exames citopatológicos quanto à presença de Gardnerella vaginalis segundo etnias, período de outubro a dezembro de 2005, Médio, Baixo e Leste Xingu........................................................................................................96 Quadro 11. Distribuição das 59 atipias citológicas, segundo resultado dos exames citopatológico, colposcópico e anatomopatológico de biópsia, período de outubro de 2005 a fevereiro de 2006, Médio, Baixo e Leste Xingu..................................................96 ix Lista de tabelas Tabela 1. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo etnias e resultado do exame citopatológico, no período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu...............................................................................................................................56 Tabela 2. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo faixa etária e resultado do exame citopatológico, no período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu..................................................................................................................57 Tabela 3. Distribuição das 59 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo faixa etária e atipias citológicas, no período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu...............................................................................................................................58 Tabela 4. Distribuição das 59 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo grupo etário e atipias citológicas, no período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu...............................................................................................................................58 Tabela 5. Distribuição das 43 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo faixa etária e exame anatomopatológico de biópsia, no período de fevereiro de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu...............................................................................................................................59 Tabela 6. Distribuição das 43 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo grupo etário e exame anatomopatológico de biópsia, no período de fevereiro de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu...............................................................................................................................59 Tabela 7. Distribuição das 43 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo resultado do exame citopatológico e anatomopatológico de biópsia, no período de fevereiro de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu........................................................................................................60 Tabela 8. Distribuição das 22 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo resultado do exame anatomopatológico de biópsia e peças cirúrgicas, no período de maio de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu.....................................................................................................................61 x Lista de abreviaturas ACA AEI AIS AGC ASC-H ASC-US CAF CASAI CEC CEP CNS CONEP CORAF DIU DSEI DST EMSI EPM FUNAI FUNASA HPV HIV HSIL HSP IFCPC INCA JEC LAG LBG LSIL MS MT NIC NUPREV OMS PIX PNCCU RG SIASI SISCOLO SOE SPSS SUS UBS UNIFESP USMA Adenocarcinoma Auxiliar de enfermagem indígena Agente indígena de saúde Células glandulares atípicas Células escamosas atípicas não podendo afastar lesão de alto grau Células escamosas atípicas de significado indeterminado Cirurgia de alta freqüência Casa de Apoio a Saúde Indígena Carcinoma espinocelular Comitê de ética em pesquisa Conselho Nacional de Saúde Comitê nacional de ética em pesquisa Cirurgia por ondas de radiofreqüência Dispositivo intrauterino Distrito Sanitário Especial Indígena Doenças sexualmente transmissíveis Equipe multiprofissional de saúde indígena Escola Paulista de Medicina Fundação Nacional do Índio Fundação Nacional da Saúde Papilomavírus humano Vírus da Imunodeficiência Humana High grade squamous intraepitelial lesion Hospital São Paulo Federação Internacional de Colposcopia e Patologia Cervical Instituto Nacional do Câncer Junção escamocolunar Lesão intraepitelial escamosa de alto grau Lesão intraepitelial escamosa de baixo grau Low grade squamous intraepitelial lesion Ministério da Saúde Mato Grosso Neoplasia intraepitelial cervical Núcleo de prevenção de doenças ginecológicas Organização Mundial da Saúde Parque Indígena do Xingu Programa Nacional de Controle do Câncer do Colo do Útero e Mama Registro Sistema de informação da atenção à saúde indígena Sistema de informações de combate ao câncer do colo do útero Sem outras especificações Statistical Package for Social Sciences Sistema Único de Saúde Unidade Básica de Saúde Universidade Federal de São Paulo Unidade de Saúde e Meio Ambiente xi Resumo Objetivo: Descrever e analisar a prevenção do câncer do colo do útero no Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso, no período de 2005 a 2006. Métodos: Trata-se de estudo observacional, transversal, retrospectivo realizado por meio da coleta de dados das ações de prevenção do câncer do colo do útero no âmbito do Projeto Xingu da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). O universo da população foi de 503 mulheres indígenas, com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, pertencentes a sete etnias que residiam nas regiões do Médio, Baixo e Leste Xingu. A coleta e análise de dados foram desenvolvidas a partir de três ações: rastreamento do câncer do colo do útero realizado no mês de outubro a dezembro de 2005, colposcopia em fevereiro de 2006 e cirurgia por ondas de radiofreqüência (CORAF), conização clássica e histerectomia em maio de 2006. Resultados: A cobertura do exame citopatológico no Xingu, no ano de 2005, foi de 99,6%. A idade das pacientes variou de 12 a 75 anos, mediana de 25 anos com predominância (61,4%) de jovens na faixa etária dos 12 aos 29 anos. Foram identificados 59 casos (11,7%) com atipias citológicas, assim distribuídas: 3,0% de células escamosas atípicas de significado indeterminado (ASC-US), 2,3% de células escamosas atípicas não podendo afastar lesão de alto grau (ASC-H), 1,4% de células glandulares atípicas (AGC), 3,0% de lesão intraepitelial escamosa de baixo grau (LBG), 1,6% de lesão intraepitelial escamosa de alto grau (LAG), 0,2% de carcinoma espinocelular (CEC) e 0,2% de adenocarcinoma (ACA). Nos 58 exames colposcópicos, houve predominância do epitélio acetobranco (81,4%). Identificou-se nos 43 exames anatomopatológicos de biópsia colposcopicamente dirigidas, 13 casos (30,2%) de LAG, 11 casos (25,6%) de LBG e 19 casos (44,2%) como cervicite crônica. Houve predomínio da LAG (92,3%) na faixa etária de 20 a 49 anos, LBG (36,4%) de 12 a 19 anos e acima de 60 anos. Foi indicada excisão da zona de transformação por CORAF em 20 casos (44,2%). Em 2 casos (4,6%) indicouse conização clássica e histerectomia. O exame citopatológico mostrou sensibilidade de 54%; especificidade de 97%, valor preditivo positivo de 88% e valor preditivo negativo com 83%. A sensibilidade do exame anatomopatológico de biópsia foi de 72,2%, especificidade de 100%, valor preditivo positivo de 100% e valor preditivo negativo com 44,4. Conclusões: Os resultados do programa organizado de prevenção do câncer do colo do útero no Xingu foram: aumento da cobertura e qualidade dos exames citopatológicos, detecção precoce das lesões intraepiteliais cervicais, garantia de tratamento e seguimento de 100 % dos casos detectados, aumento da resolutividade, redução significativa na ocorrência do câncer do colo do útero e suas lesões precursoras. A participação de profissionais da UNIFESP com apoio matricial foi fundamental no êxito deste trabalho. xii 1. INTRODUÇÃO 2 No Brasil, de acordo com dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA), a estimativa para o ano de 2010 e válida para o ano de 2011, mostra a ocorrência de 489.270 casos novos de câncer, sendo mais incidentes os tumores de próstata e pulmão no sexo masculino, de mama e de colo do útero no sexo feminino, não se incluindo o de pele não-melanoma (INCA, 2009). O câncer do colo do útero é o segundo mais comum entre as mulheres no mundo, com aproximadamente 500.000 mil casos novos por ano. Em alguns dos países em desenvolvimento, ocupa a primeira posição na prevalência dos cânceres entre as mulheres, enquanto nos desenvolvidos, situa-se em sexto lugar. As mais altas taxas de incidência no mundo são registradas, por ordem de freqüência, no Zimbábue, Uganda, Brasil, Mali, Argentina, Gâmbia, Colômbia, Equador, Vietnã, Índia e Tailândia. O número esperado de casos novos, no Brasil, para 2010 é de 18.430, com um risco estimado de 18 casos a cada 100 mil mulheres. A região norte apresenta a maior incidência com 23 casos a cada 100 mil mulheres (Ribeiro, 2008; INCA, 2009; Brasil, 2010). Essa neoplasia é responsável pelo óbito de aproximadamente 230.000 mulheres por ano em todo o mundo. No Brasil, seu coeficiente de mortalidade variou de 4,6 a 5,0/100.000 mulheres no período de 2002 a 2008. A região norte apresenta a maior incidência, com taxa de 7,1/100.000 mulheres em 2008 (Martins et al., 2005; INCA 2009). Dentre todos os tipos de cânceres, o do colo uterino é o que oferece um dos mais altos potenciais de prevenção, sendo passível de cura se detectado precocemente. Na faixa etária de 20 a 29 anos torna-se evidente a freqüência desse câncer e o risco aumenta entre 45 a 49 anos (INCA, 2002; Brasil, 2006; INCA, 2009). No Brasil, cerca de 70% dos casos de câncer do colo do útero são diagnosticados em fase avançada, portanto, com prognóstico bastante reservado. Apesar deste tipo de câncer ter evolução lenta e ser prevenível, as questões culturais, associadas à problemas de acesso, mau funcionamento e precariedade dos serviços de saúde à mulher, podem explicar, em parte, porque continua sendo a segunda causa de morte por câncer no sexo feminino em nosso país (INCA, 2008). A característica marcante na sua incidência é a ocorrência de 80 % dos casos nos países em desenvolvimento, associado ao baixo nível socioeconômico, ou seja, acomete grupos com maior vulnerabilidade social. Nesses grupos concentram- 3 se as maiores barreiras de acesso à rede de serviços para detecção e tratamento das lesões precursoras (INCA, 2002; Brasil, 2006). O principal agente causal é o papilomavírus humano (HPV) que ocasiona a infecção sexualmente transmitida mais comum em todo o mundo, atingindo aproximadamente de 5 a 44 % das mulheres com vida sexual. Essa infecção é comum em mulheres jovens, na primeira década de atividade sexual. Na maioria dos casos a infecção é intermitente e transitória. Naquelas de infecção persistente, o risco de desenvolver câncer do colo do útero é maior. As infecções virais persistentes promovem modificações celulares que resultam na ocorrência e progressão das lesões pré-cancerosas, neoplasias intraepiteliais cervicais (NIC), em neoplasia invasiva (Guanilo et al., 2006; Schiffman et al., 2007; Ribeiro, 2008; Sankaranarayanan et al., 2008; Rosa et al., 2009 ). Nas últimas décadas, foram identificados mais de 100 tipos de HPV, onde 40 deles têm predileção pelos epitélios da região anogenital. Aproximadamente, 18 apresentam potencial oncogênico, a saber: 16, 18, 26, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 53, 56, 58, 59, 63, 66, 68 e 82. Os tipos 16 e 18 são responsáveis por 70% dos cânceres cervicais. Aqueles considerados de baixo risco oncogênico, como o 6 e 11 estão associados a 90% das verrugas anogenitais (Guanilo et al., 2006; Ribeiro, 2008; Sankaranarayanan et al., 2008; Rosa et al., 2009 ). A persistência do HPV é condição necessária para o desenvolvimento, manutenção e progressão das lesões intraepiteliais de alto grau e ocorrência de câncer invasivo do colo uterino. Vários cofatores de risco têm sido estudados quanto à associação com o desenvolvimento desse câncer, mas ainda permanecem obscuros seus verdadeiros papéis. São eles: multiplicidade de parceiros sexuais, tabagismo, coinfecção por agentes infecciosos como o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e Chlamydia trachomatis, uso prolongado de contraceptivos orais, iniciação sexual precoce, multiparidade, baixa ingestão de nutrientes antioxidantes como vitaminas A e E, baixa condição socioeconômica, imunossupressão, higiene íntima inadequada e história familiar de câncer do colo do útero (Aldrighi et al., 2002; INCA, 2002; Pinto et al., 2002; Uchimura et al., 2005; Brasil, 2006; Parellada, 2006; Silva et al., 2006; Appleby et al., 2007; Ribeiro, 2008; Rosa et al.,2009; INCA, 2009). As estratégias na prevenção do câncer do colo do útero consistem no diagnóstico precoce de lesões pré-malignas antes de evoluírem para lesões 4 invasivas, por meio de técnicas de rastreamento. O exame citopatológico cervicovaginal, comumente conhecido como Papanicolaou, é o método de detecção mais efetivo e eficiente a ser aplicado em programas de rastreamento (Pinho et al., 2003). No Brasil, segundo as diretrizes estabelecidas pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA, 2011), do Ministério da Saúde (MS), a periodicidade desse exame deve ser: após os dois primeiros exames consecutivos negativos, com intervalo anual, deve-se realizá-lo a cada três anos. Quanto à população a ser rastreada, orienta-se o início em mulheres de 25 anos de idade, que já tiveram atividade sexual, estendendose até os 64 anos de idade, podendo ser interrompido, após esta idade, caso tenham dois exames negativos consecutivos nos últimos cinco anos. Nas mulheres com mais de 64 anos de idade, que nunca realizaram o exame citopatológico, indica-se realizar dois exames com intervalo de um a três anos. Caso os exames forem negativos, orienta-se dispensá-las de exames adicionais, salvo se houver história prévia de lesões precursoras do câncer do colo uterino (INCA, 2002; INCA, 2002a; Brasil 2006; INCA, 2008; INCA, 2009; INCA, 2010; INCA, 2011). Com a descoberta da estreita relação entre o HPV e o câncer do colo uterino, outras atitudes têm sido desenvolvidas na promoção e prevenção da saúde como o controle da infecção do HPV por meio da vacinação, além dos programas de rastreamento. O objetivo da vacina profilática é impedir infecção por tipos mais prevalentes do HPV. Atualmente duas vacinas profiláticas estão sendo comercializadas: uma bivalente contra os HPV 16 e 18 e outra tetravalente contra os HPV 6, 11, 16 e 18. São indicadas para mulheres entre 9 e 26 anos de idade1 sendo administradas em três doses por via intramuscular. Entretanto, apesar da grande eficácia clínica da vacina contra o HPV, seu alto custo impossibilita sua utilização na saúde pública, principalmente nos países em desenvolvimento (Sankaranarayanan et al., 2008; Villa, 2008; Silva et al., 2009). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2007), as estratégias na luta contra o câncer do colo do útero estão relacionadas à prevenção primária, que é impedir a infecção pelo HPV e os cofatores que incrementam o risco de desenvolver tal doença. A prevenção secundária, com detecção precoce por meio de programas de rastreamento sistemático; a prevenção terciária com diagnóstico, 1 A vacina bivalente é indicada para mulheres na faixa etária de 10 a 25 anos de idade e a tetravalente de 9 a 26 anos de idade. 5 tratamento, seguimento dos casos positivos e cuidados paliativos na doença avançada. Na prevenção primária além da vacinação, o uso de preservativo nas relações sexuais deve ser estimulado, pois diminui a possibilidade de transmissão do HPV. O Ministério da Saúde do Brasil, por meio do INCA, assinou em 1996, protocolo de intenções para implementar ações objetivando detecção precoce e o controle do câncer do colo do útero. Foi criado o Programa Viva Mulher-Programa Nacional de Controle do Câncer do Colo do Útero e Mama (PNCCU) que, inicialmente, envolveu cinco capitais brasileiras e o Estado de Sergipe para testar a viabilidade de sua execução (Brasil, 2001). Em 1998, as ações do Programa “Viva Mulher” foram estendidas a todos os municípios brasileiros por meio de campanha nacional, passando de 7 para 10,3 milhões de exames citopatológicos processados por ano (Martins et al., 2005). Em 1999, o PNCCU estabeleceu normas e recomendações para monitoramento das ações de rastreamento em exames realizados pelos laboratórios. Foi implantado, a partir de janeiro de 2000, o Sistema de Informações de Combate ao Câncer do Colo do Útero (SISCOLO) formando banco de dados a nível estadual, que possibilita aos gestores municipal, estadual e federal acompanhar as ações de rastreamento (Lago, 2004; Maeda et al., 2004). Apesar da implementação das ações de prevenção e controle, a persistência de taxas de incidência e mortalidade relativamente altas por essa doença revela não serem suficientes as medidas adotadas para efetividade dos programas (Pinho et al., 2003). Entre os fatores relacionados ao baixo impacto dos programas de rastreamento, figura o uso tardio dos serviços de saúde pelas mulheres consideradas de risco (Dias-da-Costa et al., 2003; Oliveira et al., 2006). Segundo a OMS (2007) o fracasso dos programas de rastreamento do câncer do colo do útero, em certos países, decorre de barreiras que dificultam a redução da sua incidência e mortalidade. Assim, barreiras políticas como ausência de prioridade na saúde sexual e reprodutiva para mulheres, a carência de diretrizes apropriadas e de políticas nacionais são consideradas importantes. Da mesma forma são barreiras da comunidade e individuais como: falta de conhecimento, de atitudes, de idéias e crenças que impedem o falar sobre doenças do aparelho genital; além das barreiras representadas pela baixa condição socioeconômica. Importam ainda as barreiras técnicas e de organização impostas pela infraestrutura sanitária deficiente e sistemas de saúde mal organizados. 6 No Sul do Brasil, apesar do aumento geral de cobertura do exame citopatológico, constatou-se a não melhora em grupos de mulheres mais vulneráveis: mulheres de classe econômica mais baixa, idosas, não brancas, viúvas ou solteiras (Dias-da-Costa et al., 2003; Hackenhaar et al., 2006). No município de Campinas-SP, foi menor a proporção de mulheres referidas como pretas ou pardas dentre aquelas submetidas ao exame rastreador, bem como as de menor escolaridade ou de nível socioeconômico mais precário. Isso sugere desigualdade racial no acesso ao programa de rastreamento (Cesar et al., 2003; Amorin et al., 2006). No Brasil, Martins et al., (2005), mostram poucas estimativas sobre cobertura dos exames de prevenção. A maioria são estudos transversais realizados nas regiões Sul e Sudeste do país, correspondentes às grandes cidades, indicando diferenças regionais. Os autores apontam serem fundamentais as intervenções educativas, o acesso aos métodos diagnósticos e os tratamentos adequados, de forma igualitária. As experiências dos programas de rastreamento sistemático e planejado, nos países desenvolvidos, demonstram redução no número de casos novos de câncer e taxa de mortalidade a ele associado. Nos países em desenvolvimento, estes números aumentam ou permanecem invariáveis. No entanto, ainda há desigualdades no mundo desenvolvido ao considerar mulheres da zona rural e as mais pobres, apresentando maior risco de adoecer pelo câncer tipo invasor (OMS, 2007; Sankaranarayanan et al., 2008). Com relação às mulheres indígenas, no Brasil, as informações sobre morbimortalidade por câncer do colo uterino são exíguas, bem como dados do perfil epidemiológico dessa população. Os poucos estudos realizados, com alguns povos indígenas, apontam para a necessidade de implementação de ações de prevenção voltadas a esse tipo de câncer (Brito et al., 1996; Marroni, 2000; Mendes, 2000; Taborda et al., 2000; Brito et al., 2002; Silva et al., 2003; Brito, 2004; Mendes, 2004; Brito et al., 2005; Albring et al., 2006; Brito et al., 2006; Rodrigues et al., 2006; Silva, 2007; Speck et al., 2009; Speck et al., 2009a; Marroni et al., 2010). Estudos sobre a presença do papilomavírus humano nas mulheres indígenas têm sido desenvolvidos, principalmente visando a identificação dos subtipos de alto risco oncogênico (Ong et al., 1994; Bowden et al., 1999; Brito et al., 2002; Picconi et al., 2002; Cervantes et al., 2003; Picconi et al., 2003; Tonon et al., 2003; Brito, 2004; Tonon et al., 2004; Brito et al., 2006; Silva, 2007; Kightlinger et al., 2010; 7 Nicita et al., 2010). Brito (2004) identificou, em mulheres da Amazônia Brasileira, aumento na ocorrência dos casos de HPV de alto risco, de 14% para 42%, nos anos de 1993 e 2000. Tonon et al., (2003) identificaram diferença significativa na presença de HPV de alto risco na população urbana (27,6%) e indígena Guarani (42,2%) na região de Misiones, Argentina. Além do HPV, as mulheres indígenas estão expostas aos cofatores de risco para o câncer do colo uterino como: multiplicidade de parceiros sexuais, outras infecções sexualmente transmitidas, idade precoce na primeira relação sexual, multiparidade, baixa condição socioeconômica. Além disso, a dificuldade de acesso ao exame preventivo para detecção e tratamento precoce do câncer e de suas lesões precursoras contribui para aumentar o risco dessas mulheres em apresentar essa doença (Costa et al., 1993; Brito et al., 1996; Maldonado et al., 1997; Marroni, 2000; Mendes, 2000; Taborda et al., 2000; Hökerberg et al., 2001; Tonon et al., 2003; Brito, 2004; Mendes, 2004; Brito et al., 2005; Rodrigues et al., 2006; Silva, 2007; Poveda et al., 2008; Marroni et al., 2010). Estudos epidemiológicos têm mostrado forte associação entre a multiparidade e as lesões de alto grau e carcinoma cervical. O risco quatro vezes maior de desenvolver câncer cervical foi detectado em mulheres com sete ou mais gestações a termo quando comparadas às nulíparas. Uma das explicações para esta relação pode ser a manutenção da zona de transformação na ectocérvice por tempo maior, facilitando a exposição ao HPV. Fatores hormonais, traumáticos e imunológicos parecem ser os mecanismos biológicos que justificam tal associação (Muñoz et al., 2002; Ribeiro, 2008; Aidé et al., 2009). Na assistência a saúde indígena, questões relacionadas ao isolamento geográfico, à carência de infraestrutura, à dificuldade de articulação entre atenção básica e referência locorregional e a alta rotatividade e despreparo dos profissionais de saúde, são fatores limitantes na prevenção do câncer do colo uterino. Informações sobre cobertura dos exames citopatológicos nas áreas indígenas são escassas e os dados disponíveis são preocupantes. Observa-se ineficiência na atenção básica à saúde associada à desigualdade no acesso ao exame preventivo. Além dos obstáculos de cunho operacional e de infraestrutura que permeiam as ações de prevenção do câncer do colo do útero na saúde indígena, devemos considerar também as dificuldades na relação intercultural. A deficiência na comunicação, no entendimento ou no vínculo dos profissionais que trabalham junto à 8 população indígena pode ser desastrosa nas intervenções em saúde. As mulheres indígenas podem sentir-se inibidas caso o exame ginecológico seja realizado por profissional do sexo masculino. Há também situações onde os parceiros, por desconhecerem a importância do exame, proíbem as esposas de se submeterem ao procedimento. Essas mulheres, por desconhecimento, vergonha, crenças culturais, desconfiança, podem se recusar a realizá-lo. Prior (2009) entrevistou mulheres aborígines da Austrália sobre percepções acerca do câncer do colo do útero. Para as entrevistadas, o câncer é considerado fatal e o tratamento tem pouco valor. O corpo da mulher é considerado sagrado não devendo ser violado por métodos invasivos de tratamento como a cirurgia. Além disso, esta doença é resultado de maldição, de comportamento imoral e sentem vergonha de discutir sobre saúde sexual com profissionais de saúde, pois é assunto privado. Essas mulheres relatam dilema entre querer acesso às opções de prevenção e tratamento, mas temem os métodos utilizados pela biomedicina que não se alinham aos seus costumes e necessidades. Segundo o autor, são fundamentais intervenções centradas na população, que desloque a autoridade dos serviços de saúde, dando destaque aos valores culturais como ponto focal do controle do câncer. Ainda sabemos pouco sobre os cuidados, tabus e regras que regem a relação das mulheres indígenas com seu corpo. No entanto, é necessário abrirmos os ouvidos para perceber o que se passa ao nosso redor. Em oportunidade de conversa com mulheres indígenas de algumas etnias sobre a prevenção do câncer do colo do útero no Ambulatório do Índio2, foram identificadas questões culturais que merecem ser relatadas. N. Metuktire, (2009) disse que não faz o exame ginecológico porque o ato de introduzir o espéculo na vagina levaria mais doenças para dentro do útero. Para T. Macuxi, (2009), o canal vaginal é considerado local sagrado relacionado ao nascimento e esse tipo de exame não é permitido na sua cultura. É fundamental que os profissionais de saúde estabeleçam diálogo com essas mulheres para entendê-las, respeitá-las, intervindo de forma segura e profícua. 2 O Ambulatório do Índio do Hospital São Paulo/UNIFESP, presta atendimento a pacientes indígenas referenciados de todo território nacional para atendimento de média e alta complexidade. Neste espaço também é desenvolvido, junto às mulheres indígenas, orientações sobre prevenção do câncer do colo do útero com coleta do exame citopatológico. Identificamos mulheres indígenas que nunca haviam realizado o exame preventivo. 2. JUSTIFICATIVA 10 Em decorrência de cinco anos de experiência como enfermeira de campo na atenção básica à saúde no Parque Indígena do Xingu- MT, especialmente na área de saúde da mulher, desenvolvi interesse em aprofundar conhecimentos, aproximando a prática da teoria, em relação à prevenção do câncer do colo do útero. As ações de rastreamento compunham as atividades prioritárias que deveriam ser implementadas no serviço local. Como enfermeira responsável, desde 2005, por organizar o programa de prevenção do câncer do colo do útero no Xingu, vivenciei difíceis momentos e experiências exitosas no dia-a-dia que solidificaram esse trabalho ao longo dos anos. Também pude compartilhar dúvidas, medos que as mulheres indígenas traziam em conversas despretensiosas que aconteceram nas aldeias, mas que apontavam para a urgência em intervir de forma mais efetiva em um programa de prevenção. O que marcou a necessidade de repensar a prevenção do câncer do colo uterino no Xingu, foram os óbitos decorrentes dessa moléstia associados à dificuldade de encaminhamento para referências especializadas, bem como demora no retorno dos exames citopatológicos e sua baixa cobertura. Com aumento na ocorrência da morbimortalidade no Xingu por esse tipo de câncer, tanto os profissionais de saúde, quanto lideranças e mulheres indígenas tiveram maior preocupação com o diagnóstico, tratamento e seguimento dos casos positivos. Assim, a partir de 2005 ocorreram mudanças significativas no programa de rastreamento, originados do quadro epidemiológico que se apresentava. Esta pesquisa pretende contribuir, por meio da experiência adquirida no trabalho em campo, no entendimento da epidemiologia desse câncer nas mulheres indígenas do Xingu, direcionando para possibilidades factíveis de enfrentamento. Também será um estudo norteador que possibilitará avaliar e implementar as ações de prevenção no Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso. Por ser uma problemática ainda pouco visível no cenário das políticas públicas, este trabalho parte do pressuposto de que é preciso olhar e perceber a realidade interetnica das mulheres indígenas, buscando incluí-las nos programas de atenção à saúde da mulher de forma a respeitar suas especificidades culturais. 3. OBJETIVOS 12 3.1. Objetivo Geral Descrever e analisar a prevenção do câncer do colo do útero desenvolvido no Médio, Baixo e Leste Xingu pela Universidade Federal de São Paulo3 no período de 2005 a 2006. 3.2. Objetivos Específicos 1. Verificar a taxa de cobertura do exame citopatológico no período de outubro a dezembro de 2005; 2. Analisar a prevalência das atipias citológicas cervicovaginais: células escamosas atípicas de significado indeterminado (ASC-US), células glandulares atípicas (AGC), células escamosas atípicas não podendo afastar lesão de alto grau (ASC-H), lesão intraepitelial escamosa de baixo grau (LBG), lesão intraepitelial escamosa de alto grau (LAG), carcinoma espinocelular ou adenocarcinoma (CEC ou ACA); 3. Verificar as taxas de sensibilidade, especificidade, valor preditivo negativo, valor preditivo positivo, falso negativo e falso positivo dos exames citopatológicos; 4. Descrever os achados dos exames colposcópicos; 5. Analisar os resultados dos exames anatomopatológicos de biópsias colposcopicamente dirigidas realizados em fevereiro de 2006; 6. Verificar as taxas de sensibilidade, especificidade, valor preditivo negativo, valor preditivo positivo, falso negativo e falso positivo do exame anatomopatológico de biópsia; 7. Analisar os resultados dos exames anatomopatológicos das peças cirúrgicas de colo de útero obtidas por excisão da zona de transformação por ondas de radiofrequência (CORAF), conização clássica e histerectomia realizados em maio de 2006. 3 Este trabalho foi realizado em parceria com a Fundação Nacional da Saúde (FUNASA), Ministério da Saúde. 4. REVISÃO DE LITERATURA 14 4.1. Saúde sexual e reprodutiva da mulher indígena Nos últimos vinte anos, apesar dos avanços da literatura brasileira com grande produção de conhecimentos sobre saúde da mulher, as investigações tanto socioantropológicas quanto epidemiológicas, desenvolveram-se, particularmente, em contextos urbanos. Nas pesquisas com recorte étnico, ainda existe grande lacuna no conhecimento dos determinantes socioculturais, ambientais, biológicos da população indígena, sobretudo a saúde sexual e reprodutiva (Coimbra Júnior et al., 2004; Marrero, 2007). A atenção à saúde das mulheres indígenas ainda é precária. Embora exista uma política de atenção à saúde diferenciada para os povos indígenas, não há garantia de cobertura satisfatória em ações básicas como pré-natal, prevenção do câncer do colo de útero e doenças sexualmente transmissíveis (DST). Os dados epidemiológicos disponíveis para avaliar problemas de saúde das mulheres e adolescentes indígenas são insuficientes e apontam necessidade de políticas de saúde direcionadas a esse grupo (Brasil, 2009). Para os povos indígenas, o tema de saúde da mulher deve ser ampliado para além dos conceitos de direitos reprodutivos tal como defendido pela sociedade não indígena. Trata-se também de incluir a revitalização e valorização do sistema dos saberes tradicionais, reivindicar atenção à saúde de forma diferenciada, que conheça, respeite e atenda as necessidades das mulheres indígenas nas diversas realidades (Monagas, 2006). Dentro dos aspectos epidemiológicos da saúde reprodutiva das mulheres indígenas, grande parte dos agravos não lhes é exclusivo, aparecendo em diferentes graus e intensidades em mulheres de outras etnias, raças ou classes sociais. No entanto, suas especificidades étnicas e territoriais destacam situações que diferem dos encontrados na população feminina em geral. De acordo com os poucos estudos disponíveis verificam-se altas taxas de fecundidade, marcadas por elevada prevalência de DST, lesões ginecológicas de etiologias variadas, queixas ginecológicas generalizadas como dores em baixo ventre, dispareunia e corrimento (Coimbra Júnior et al., 2004). Em relação às doenças do trato genital feminino, alguns estudos identificam que o câncer do colo do útero é uma das principais causas de 15 morbimortalidade nas mulheres indígenas do Brasil (Brito et al., 1996; Marroni, 2000; Taborda et al., 2000, Brito, 2004; Mendes, 2004; Brito, 2005; Rodrigues et al., 2006; Marroni et al., 2010; Speck et al., 2009; Speck et al., 2009 a). Discussões têm sido realizadas no Brasil, e em outros países, sobre a questão da saúde da mulher indígena das Américas. Taxas de morbimortalidade duas vezes maiores são indicadas nessas mulheres, quando comparadas às não indígenas. Isso resulta da falta de acesso aos cuidados de saúde, de educação, de emprego bem como discriminação racial. Ser mulher, indígena, viver em área rural, isolada e ter insuficiência de serviços de saúde podem contribuir para crescente incidência de HIV/AIDS, mortalidade materna, anemia, problemas ginecológicos, uso de álcool, tabagismo, drogas, suicídio, violência, diabetes, doenças hepáticas, cirrose, complicações no período reprodutivo, alto risco para doenças transmissíveis como malária, cólera e alta taxa de câncer do colo uterino (Canadá, 2004; OPAS, 2004; Clark, 2008). A problemática quanto ao alcoolismo, drogas ilícitas nas comunidades indígenas, associada à violência contra as mulheres, têm sido tema de encontros entre esses povos e diversas instituições que apontam sua inter-relação (Souza et al., 2003; Monagas, 2006; Guimarães et al., 2007). Não se pode deixar de mencioná-las, pois são questões que afetam, de alguma forma, a saúde sexual e reprodutiva destas mulheres. Monagas (2006) mostra que as mulheres indígenas vêem o problema da violência diretamente relacionado ao consumo de bebidas alcoólicas ou abuso de bebidas tradicionais fortes como o “caxiri” e “pajuaru”4. O alcoolismo de jovens e adultos é importante fator de conflito familiar sendo identificado como um dos graves problemas dentro das comunidades, pois causa violência doméstica. Visando melhoria no acesso, na qualidade e nas ações diferenciadas, foram introduzidas, no Plano de Ação 2004-2007, da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, metas para implantar atenção integral à saúde da mulher indígena em 100% dos polos base dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas-DSEI (Brasil, 2004). No entanto, as ações desenvolvidas ainda são incipientes, descontínuas, sendo necessária atenção dos órgãos responsáveis pela saúde indígena para implementar de fato, a atenção integral a saúde dessas mulheres. 4 Caxiri e pajuaru são bebidas fermentadas à base de mandioca, utilizadas em comemorações, rituais e festas pelos povos indígenas da Amazônia. 16 Na I Conferência Nacional de Mulheres Indígenas, realizada em Brasília (CONAMI, 2004), representantes femininas, propuseram necessidades em relação à sua saúde: x Implementar programas de atenção integral à saúde da mulher, contemplando ações de pré-natal, parto, puerpério com qualidade e desenvolvimento de ações da saúde da criança x Campanha nacional para prevenção do câncer do colo uterino em mulheres indígenas, sensibilizando para a importância da realização do exame. x Que a Fundação Nacional da Saúde (FUNASA) desenvolva ações de saúde nos 34 DSEI para mulheres indígenas, dando ênfase ao atendimento à saúde reprodutiva, prevenção, diagnóstico e tratamento das DST e AIDS; câncer do colo uterino, de mama [...] x Humanização da atenção à saúde da mulher indígena. No norte da Austrália, Bowden et al., (1999) relatam que a incidência das DST nas mulheres indígenas de áreas remotas e rurais é acentuadamente mais alta do que a média nacional australiana. Foram observados que casos de Neisseria gonorrhoeae, Chlamydia trachomatis, Trichomonas vaginalis e HPV são endêmicos nessa população. A falta de acesso aos serviços de saúde para diagnóstico e tratamento é uma das razões para alta incidência de DST nessas áreas. O estudo soroepidemiológico realizado em populações indígenas da Amazônia brasileira evidenciou alta prevalência de Chlamydia sp, variando de 50 a 80 % de infectados, chegando a mais de 80 % em alguns povos dessa região (Ishak et al., 2001). Ferri et al., (2011), analisaram o número de casos de DST na população indígena do DSEI Mato Grosso do Sul, onde foi identificado aumento de 400% nas notificações de AIDS nas mulheres indígenas, com 04 casos identificados em 2001 e 16 casos no 2003. Nessa população também houve acréscimo considerável no número de casos de sífilis, Gardnerella vaginallis e Trichomonas vaginalis. A maior exposição dos povos indígenas às DST está relacionada à maneira como vivenciam a sexualidade, com a intensificação do contato com a sociedade envolvente, com o aumento da freqüência e permanência desses povos nas áreas urbanas (Brasil, 2005; Santos, 2009). O aumento no consumo de álcool tanto nas aldeias quanto nas cidades, a presença de exploradores de recursos naturais nas 17 terras indígenas, o pouco acesso às informações e as deficiências na promoção e prevenção à saúde contribuem para essa situação. De acordo com o censo de 2000, a população indígena no Brasil corresponde a 734 mil pessoas autodeclaradas, representando 0,4% da população brasileira, congregando mais de duzentos povos diferentes. Com esta informação foi possível traçar o perfil reprodutivo das mulheres indígenas e suas tendências. O que se observa é uma dicotomia com níveis baixos de fecundidade (2,7 filhos) naquelas que residem nas áreas urbanas. Enquanto nas áreas rurais específicas, onde se localiza a maior parte dessa população, predomina e persiste nível alto de fecundidade (6,2 filhos). A metade dessas mulheres em idade fértil pertence às regiões nordeste e sudeste (IBGE, 2009; Wong et al., 2009). Isto mostra a realidade diversa da população indígena dependendo do maior ou menor grau de contato com a sociedade nacional Segundo Mendonça et al., (2005) “em todas as sociedades, as mulheres desempenham papel social fundamental de salvaguarda da cultura de maneira geral. Elas são responsáveis pelo ensino da língua, boa parte da cultura material, rituais, ritos de passagem, cuidados com a família, crianças, mulheres e anciãos”. O reconhecimento e a valorização da importância do papel social das mulheres indígenas têm possibilitado cada vez mais sua participação em encontros, oficinas, conferências nacionais e internacionais. Esse comportamento corresponde à estratégia de instalar novos espaços de discussão que possibilitem articulação, dando maior visibilidade e voz às indígenas. Sua inserção na luta pelas necessidades de seus povos propicia fortalecimento do movimento indígena com garantia de posse de seus territórios tradicionais, do direito à saúde e educação diferenciadas (Sacchi, 2003; Monagas, 2006; Paula, 2008). A diversidade cultural e as questões da saúde sexual e reprodutiva das mulheres indígenas implicam em grandes desafios para a política de saúde no país. Existe, ainda, ausência de dados sistemáticos e de qualidade sobre indicadores de saúde que são fundamentais para expor o comportamento epidemiológico dessa população e melhorar o planejamento em saúde. A implementação de políticas públicas e propostas técnicas com olhar diferenciado, que contemple suas especificidades, são primordiais para a inclusão dessas mulheres. 18 4.2. Mulheres indígenas do Xingu: aspectos culturais e reprodutivos No Xingu, as atividades produtivas femininas acontecem em grupos e são orientadas pela família nuclear, sendo os papéis sociais bastante estabelecidos. O espaço de trabalho da mulher vai da coleta ao preparo dos alimentos a partir da mandioca, com produção da farinha e o beiju, um dos principais alimentos do dia-a-dia. Também são responsáveis pelo preparo do peixe, da caça e participam das atividades da roça como o plantio e a colheita, além da confecção de artesanato e os cuidados com a casa e filhos (Pagliaro et al., 2008). Observa-se nas mulheres indígenas do Médio, Baixo e Leste Xingu início precoce da vida reprodutiva, por volta dos 15 anos e em alguns casos até antes. Como o exercício da sexualidade e concepção é precoce, o período reprodutivo destas mulheres, em sua maior parte, dura cerca de trinta anos, com taxas elevadas de fecundidade. Nas mulheres Kisêdjê foi encontrada média de 6,7 filhos no período de 2000-2007. Entre jovens de 12 a 14 anos, a média de idade da menarca no ano de 2007 foi de 11,3 anos. O intervalo entre menarca e primeira gestação foi de 2,6 anos nas adolescentes de 15 a 19 anos (Pagliaro, 2005; Pagliaro et al., 2008; Pagliaro et al., 2009). Para as várias sociedades do Parque indígena do Xingu, cada ciclo da vida representa um período especial sendo nominados de forma diferente e marcados por ritos de passagem. Quando a criança nasce recebe um nome, depois quando está adolescente outro, na fase adulta também troca de nome que perdura até ser avô (ó). Nesta fase, deve escolher outro nome porque o seu é dado para o neto, assim sucessivamente de acordo com as regras de cada povo. A adolescência, em muitas culturas indígenas, é marcada por rituais e mitos nessa fase de transição da infância para vida adulta. Nos povos indígenas do Xingu e entre outros, geralmente acontece a reclusão pubertária, um rito de passagem. Tem início na puberdade, onde meninos e meninas são retirados do convívio social por meses ou até anos, dependendo da etnia, expectativa e origem familiar. Nesta fase, os adolescentes permanecem fechados no interior da casa, com regras rígidas de alimentação, comportamento e atividades. Ambos são preparados para assumir a vida adulta e responsabilidades. A reclusão pubertária feminina acontece a partir da primeira menstruação, podendo se estender até um ano ou mais. Após esse período, é 19 permitido ter relações sexuais e geralmente ocorrem casamentos que são, na maioria das vezes, combinados entre os pais. É comum união conjugal em idades muito jovens (Verani et al., 1991; Junqueira, 2002; Camargo et al., 2005; Junqueira et al., 2009; Pagliaro et al., 2009). Entretanto, observa-se no Xingu, a negligência pelos jovens de práticas tradicionais da sua cultura como: recusa e redução do período de reclusão pubertária, casamento, primeira gestação e parto em idades muito jovens, desrespeito à abstinência sexual pós-parto, transgressão da dieta alimentar e aumento no consumo de alimentos industrializados. Essas mudanças são atribuídas, em parte, ao desinteresse dos jovens pela cultura tradicional, influenciados pela mídia, sobretudo a televisão, a internet e a possibilidade de convivência com outros jovens fora da aldeia (Pagliaro et al., 2009). O casamento no Xingu e, em particular, na cultura Kamayurá, além das funções de procriação e as de natureza sexual, pode ser influenciado, também, por questões econômicas, decorrentes da divisão social do trabalho e políticas, como forma de alianças. Cabe à família da moça, tomar iniciativa de entrar em contato com a do rapaz para formalizar a união, que consiste no simples ato de transferir a rede para a casa dela, onde ele deverá prestar serviços ao sogro. Nos primeiros anos de casamento o marido deve viver na casa dos pais da esposa e após cumprir esse período, tem liberdade de escolher nova residência que, em geral, é a casa de seus pais (Junqueira, 2002; Camargo et al., 2005; Pagliaro, 2007; Junqueira et al., 2009). A poligamia é comum, principalmente entre lideranças. O homem pode se casar com mais de uma mulher, geralmente com duas ou mais irmãs, sendo esta regra sinal de prestígio. Há muita liberdade de namoros múltiplos, sem punição, desde que não se tornem públicos. Para mulheres, namoros pré-maritais costumam ser livres, sendo os extraconjugais sujeitos à punição. A poliandria, união de uma mulher com mais de um homem, é relatada em poucos povos, como os Yanomami ou os Zoé (Mindlin, 1992; Junqueira, 2002; Mindlin, 2005; Valencia et al., 2008). Quanto às normas do casamento, se houver separação do casal, não existe restrição quanto a uma nova união. No entanto, se ocorrer morte do cônjuge existe um período de luto, cuja duração é variada, em que o viúvo não pode casar novamente. A liberdade de relações extraconjugais representa uma modalidade restrita, mas relativamente difundida de relacionamento sexual (Junqueira, 2002; Camargo et al, 2005; Pagliaro, 2005; Junqueira et al., 2009). 20 As mulheres da área estudada são caracterizadas pela sua capacidade de gerar filhos nos primeiros anos do ciclo reprodutivo. O casamento é considerado consumado quando nasce o primeiro filho do casal. Como a infertilidade é um estigma e a dissolução de casais sem filhos é comum, as mulheres têm pressa em engravidar tornando público sua fertilidade. Se, com o passar do tempo, isso não acontecer, a fitoterapia tradicional pode ser tentada para estimular a fecundidade. Pode ser usada tanto pela esposa quanto pelo marido (Junqueira et al., 2009). No período da gestação, dietas alimentares e regras de comportamento devem ser cumpridas pelo casal, pois o nascimento é importante momento de transição na vida dos pais. Entre o povo Kisêdjê, as relações sexuais precisam ser freqüentes, pois acreditam que o feto desenvolve-se pelo acúmulo do sêmem. A dieta seguida corretamente pela mãe assegura desenvolvimento normal da criança e estende-se também ao pai, que deve evitar alguns afazeres (Pagliaro, 2005; Junqueira et al., 2009). Os partos acontecem, em sua maioria, na aldeia em espaço isolado dentro da casa, sendo realizado pela mãe, avó ou parente próximo. Se há complicação, chama-se uma mulher experiente e, caso o quadro venha a agravar, convoca-se o pajé (Pagliaro, 2005; Junqueira et al., 2009; Pagliaro et al., 2009). Após o nascimento, os pais devem seguir regras para garantir saúde do filho, como abster-se das relações sexuais até a criança começar andar, privar-se de determinadas atividades de trabalho e cuidados com alimentação. No pós-parto devem permanecer em casa por períodos determinados de acordo com cada etnia, sendo de regra, o término do resguardo do pai com a queda do coto umbilical. Até os seis meses a criança não pode sair de casa, pois seu espírito está susceptível de se perder ou ser levado por aqueles ruins. Geralmente, alimentam-se somente de leite materno até que comece a engatinhar, quando passa a comer outros alimentos como peixe e ave que são preparados de forma especial, além de água e mingau. Continuam a ser amamentadas por longo período de tempo, chegando até três anos. Comumente, a criança precisa saber andar e comer sozinha para que a mãe possa ter outro filho. Com isso a fecundidade das mulheres diminui consideravelmente neste espaço de tempo (Pagliaro, et al., 2008). Em diversas sociedades indígenas, e dentre elas o povo Kaiabi do Xingu, são descritas diferentes práticas tradicionais voltadas à contracepção como ervas que podem ter efeito temporário ou definitivo. A utilização dessa prática não é 21 livre e indiscriminada, devendo ser realizada por pessoa detentora desse conhecimento. Para evitar a gravidez usa-se uma beberagem preparada com raízes de plantas que a mulher ingere durante vários dias após as relações sexuais. Nos casos de anticoncepção definitiva, é necessário auxílio do pajé que prepara outros tipos de infusões de ervas que devem ser ingeridas pela interessada. Existem também as práticas abortivas com auxílio de ervas para interrupção de uma gravidez indesejada que é utilizada pela maioria dos povos do Xingu (Camargo et al., 2005; Pagliaro, 2005). Mas, mudanças vêm ocorrendo, com a utilização cada vez mais freqüente do uso de contraceptivos hormonais pelas mulheres do Xingu em detrimento aos seus métodos tradicionais. O que as mulheres referem é a dificuldade de seguir as regras e restrições para a eficiência de seus métodos, a necessidade de pagamento dos pajés após o tratamento e a facilidade do uso dos métodos modernos. Pagliaro et al., (2009), observaram entre as mulheres Ikpeng, no ano de 2007, que 22,9% delas faziam uso de contraceptivos hormonais. As lideranças indígenas colocaram-se contra o uso indiscriminado desse método. Reuniões individuais com as diferentes etnias do Xingu definiram cada uma, regras próprias quanto à sua utilização. Orientações quanto ao planejamento familiar devem ser discutidas de forma ampliada, pois são decisões que, muitas vezes, envolvem toda a comunidade indígena. 5. CONTEXTO HISTÓRICO 23 5.1. O Parque Indígena do Xingu As etnias que compõem o Parque Indígena do Xingu (PIX) pertencem a quatro troncos ou famílias lingüísticas, a saber: Kamayurá, Yudjá, Aweti e Kaiabi (Tupi-Guarani), Mehinako, Waujá e Yawalapiti (Aruak), Kalapalo, Ikpeng, Kuikuro, Matipu, Nahukwá (Karib), Kisêdjê (Macro-Jê), além dos Trumai de língua isolada (Baruzzi, 2005). A população do PIX em 2009 era de 6.152 habitantes, segundo dados da Fundação Nacional da Saúde (FUNASA/MS), distribuídos em quatro regiões conhecidas como Alto, Baixo, Médio e Leste Xingu (ISA, 2009). O Parque Indígena do Xingu (PIX) foi criado em 1961, no governo do presidente Jânio Quadros, quando a venda indiscriminada de terras pelo governo do Mato Grosso, no país e no exterior, ameaçava estender-se a territórios ocupados por povos indígenas desde tempos imemoriais. Amplo movimento de opinião pública para criação do Parque foi estabelecido, envolvendo a academia, os sanitaristas, os antropólogos e militantes da causa indígena como Darcy Ribeiro e os irmãos Villas Bôas. Teve como objetivos, proteção física e cultural dos povos indígenas que ali viviam, garantia da preservação ambiental e acolhimento de grupos indígenas ameaçados de extinção (Baruzzi, 2005; Villas Bôas, 2005; Baruzzi, 2007; ISA, 2009). O Parque está situado na região noroeste do Estado do Mato Grosso, Brasil Central, numa área de 26.400 km² ao longo do curso inicial do rio Xingu, desde a região dos seus formadores, ao sul, até a cachoeira de von Martius, ao norte, próxima dos limites com o Pará (Figura 1). É caracterizada por biodiversidade muito particular, de transição entre cerrado do Brasil Central e Floresta Amazônica com extensa rede hidrográfica (Baruzzi, 2007). A população do PIX, inicialmente, era composta por 14 povos indígenas. Após alguns anos, mais três grupos passaram a integrar o Parque: os Txicão ou Ikpeng (1967), Tapayuna ou Suyá Novo (1970) e por último os KreenAkarore ou Panará (1975) formando mosaico étnico que iria compor um ambiente de proteção e acomodação dos 17 povos ali existentes. Isto se manteve até 1996, quando os Panará decidiram retornar à sua terra de origem, na cabeceira do rio Iriri, no limite dos Estados de Mato Grosso e Pará. Os Metuktire, os Tapayuna, bem como os 24 Panará, com a criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena em 19995, passaram a integrar o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Kaiapó (MT) e os demais povos o DSEI Xingu, Mato Grosso (Baruzzi, 2005; Villas Bôas, 2005). Para percorrer a maioria das aldeias no PIX, utiliza-se transporte via fluvial por meio de embarcação de pequeno porte. O tempo gasto para ir do Polo Base à aldeia, dependendo da localização, varia de 40 minutos a 6 horas. Existem aquelas mais distantes, onde é necessário além do barco, fazer percurso a pé, bicicleta ou carro. Para ingressar no Xingu, demora-se em média 1hora e 15 minutos de aeronave mono ou bimotor partindo dos municípios de Sinop-MT ou de Canarana - MT a um dos Polos. Outra forma é percorrer trajeto de aproximadamente cinco horas de carro, partindo de um destes municípios à beira do rio que dá acesso ao Xingu e de lá seguir de barco com tempo estimado de 10 a 12 horas de viagem. Com aumento da abertura de estradas, ligando aldeias às cidades próximas, torna-se cada vez mais fácil o acesso via terrestre. Uma das preocupações que permeiam a preservação do território no Xingu é a constante aproximação das cidades, por meio do desmatamento. Atualmente, são nove municípios que estão localizados próximos ao Xingu, com facilidade de acesso para muitas aldeias. A ação ilegal de madeireiras na região, a intensificação do agronegócio no Estado de Mato Grosso, têm trazido conseqüências desastrosas para o meio ambiente. Outro fator importante e preocupante é que as nascentes dos rios estão localizadas fora da demarcação do PIX e estão sendo poluídas, além dos projetos de construção de hidrelétricas que irão afetar os principais rios da região amazônica. Há uma ação devastadora no entorno que se aproxima cada vez mais, cercando com áreas enormes desmatadas (Rodrigues, 2005; ISA, 2009). 5 No ano de 1999, com o Decreto no 3156/99 e a chamada “Lei Arouca” de no. 9.836/99 elaborada com base no relatório final da II Conferência Nacional de Saúde dos Povos Indígenas é instituído o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, articulado com o Sistema Único de Saúde (SUS). A partir de 1999 são implementados 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) em todo país com responsabilidade de gestão sendo atribuída pelo Ministério da Saúde à FUNASA (Brasil, 2007). 25 Figura 1. Mapa do Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso Fonte: ISA, 2002 26 5.2. A Universidade Federal de São Paulo “O desafio não é simplesmente implantar no Parque um modelo de assistência à saúde calcada na medicina ocidental, com mera transferência de tecnologia e locação de recursos. O real desafio é trazer benefícios à saúde do índio sem causar danos irreversíveis à sua cultura, sem destruir suas crenças e sua medicina tradicional. A busca de resultados imediatistas poderia significar um dano irreversível para essa população no decorrer do tempo, dentro do conceito amplo de saúde definido pela OMS como estado de completo bem estar físico, mental e social” (Baruzzi, 2005). A Escola Paulista de Medicina (EPM)/UNIFESP desenvolve, desde 1965, o Projeto Xingu que é um programa de atenção à saúde no Parque Indígena do Xingu (PIX), no estado de Mato Grosso, conduzido pela Unidade de Saúde e Meio Ambiente (USMA) do Departamento de Medicina Preventiva. Inicialmente, equipes multidisciplinares compostas por médicos, dentistas, enfermeiros e alunos da EPM eram enviados ao PIX, pelo menos quatro vezes ao ano, para assistência à saúde, imunização, cadastramento da população com abertura das fichas médicas individuais6 (anexo I) e colaboração também em situações epidêmicas. A imunização foi um dos programas em que a EPM colaborou, sendo importante na redução da mortalidade dessa população ao longo dos anos. Os índios do Xingu ainda guardam na memória epidemias de sarampo que surgiram na década de 50 atingindo toda a população, ocasionando muitos óbitos (Baruzzi, 2005). O Hospital São Paulo (HSP), da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), hospital escola da EPM, desde o início do trabalho no Xingu, era retaguarda para casos que necessitavam de atendimento especializado. Muitos indígenas do Xingu foram removidos para o HSP, que passou a ser referência nacional para os casos de maior complexidade. Com o decorrer do 6 A introdução da ficha médica no trabalho de campo do Xingu, na década de 60, permitiu agrupar considerável acervo de informações sobre as condições de saúde-doença da população do Xingu e de seu perfil demográfico. Pelas fichas é possível chamar nominalmente cada pessoa, estão organizadas em aldeias e famílias, além de conter fotos periodicamente atualizadas. Como são costumes desses povos trocarem de nomes várias vezes durante a vida, cada indivíduo recebe um número de registro (RG) após nascimento que passa a fazer parte da sua identificação. Nessas fichas são registradas também informações gestacionais, nascimentos, óbitos, intercorrências clínicas e dados de imunização. Esse acervo inédito possibilita realização de muitos estudos na área da saúde, demografia e antropologia (Baruzzi, 2005; Pagliaro et al., 2005). 27 tempo foi criado o Ambulatório do Índio como apoio no atendimento e acompanhamento dos pacientes indígenas referenciados de todo o país. Esse Ambulatório é responsável pela coordenação de cuidados a esses pacientes, sendo porta de entrada para atendimento no hospital escola da EPM/UNIFESP. O Projeto Xingu passou por diversas etapas, ampliando e diversificando suas atividades para atender às novas e crescentes demandas sanitárias, conseqüentes do contato dos povos xinguanos com a sociedade nacional. A partir de 1989, concentrou suas atividades na estruturação de um sistema local de saúde, tendo como estratégias principais a formação de indígenas para o trabalho e participação social em saúde (Rodrigues, 2005; Rodrigues et al., 2005; Baruzzi, 2007). Com a criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, pelo Ministério da Saúde, em todo território nacional, a gestão da atenção à saúde dos povos indígenas passou a ser responsabilidade da FUNASA, constituindo um subsistema inserido no Sistema Único de Saúde (SUS). Coube à EPM, atendendo ao convite de lideranças indígenas do Xingu, celebrar sucessivos convênios com a FUNASA com objetivo de colaborar na implantação do DSEI Xingu e dar continuidade à formação de profissionais indígenas para o trabalho em saúde (Rodrigues et al., 2005). Um dos resultados da atuação da EPM no Xingu foi participar da formação de 16 auxiliares de enfermagem indígenas em 2001, além da formação dos agentes indígenas de saúde e gestores indígenas, ainda em curso. O Projeto Xingu, atualmente, é responsável pela atenção básica à saúde e formação de recursos humanos nos Polos Pavuru, Diauarum e Wawi, compreendendo as regiões do Médio, Baixo e Leste Xingu atendendo, em 2011, uma população de 2.685 habitantes7. Encontram-se distribuídas nesses Polos, as etnias: Kaiabi, Yudjá, Ikpeng, Kisêdjê, Trumai, Kamayurá, Waujá, localizadas em 35 aldeias. 7 Em 2006, ano que se refere essa pesquisa, a população do Médio, Baixo e Leste Xingu era de 2.299 habitantes. 28 5.3. Breve histórico de contato dos povos do Médio, Baixo e Leste Xingu “Desde a invasão européia, a dependência e a opressão a que foram submetidas as sociedades indígenas em relação à sociedade nacional são flagrantes e variam conforme tipo de contato. Os povos indígenas foram subjugados e desorganizados através da imposição do convívio pacífico, pela restrição do território tribal, pela subjugação étnica e pelos efeitos dissociativos da depopulação e debilitação física por conta de doenças e epidemias que aniquilaram vários povos ao longo dos anos” (Mendonça, 2005). Ao aproximarmos dos povos indígenas é fundamental conhecer sua cultura e, principalmente, o processo de contato com a sociedade nacional, que é determinante para entendimento da sua história. Os sete povos do Médio, Baixo e Leste Xingu, objetos desse estudo, formam um mosaico cultural com diversidades e saberes distintos. Esses povos vivenciaram diferentes processos de contato com a sociedade que causaram impacto significativo na redução da população e perda do território. Os povos Kaiabi e Ikpeng não tiveram escolha, foram transferidos para o Parque Indígena do Xingu, deixando suas terras para evitar o contato com exploradores que invadiram as regiões onde viviam. Os outros povos migraram para a região do Xingu, fugindo de conflitos e das epidemias de doenças infecto-contagiosas. O povo Kaiabi viveu até a década de 1940 em extensa região à oeste do Rio Xingu (Pagliaro, 2005; ISA, 2009). Na metade do século XX, ocorreu redução dessa população, resultante de décadas de conflitos com colonizadores, seringueiros e por doenças como o sarampo, malária que os assolaram terrivelmente em 1945 (Baruzzi, 2005; Hemming, 2005; Pagliaro, 2005; ISA, 2009). O início da migração desse povo para o Xingu incidiu em 1952 e se estendeu até 1973, após aceitarem o convite dos irmãos Villas Bôas para serem transferidos. Ocuparam a parte norte do PIX em aldeias próximas ao Polo Diauarum. Esta mudança de habitat possibilitou, depois de quase meio século, o aumento da população, preservação da identidade cultural e evitou que fossem dizimados ou absorvidos no mercado de trabalho rural ou urbano precarizado (Pagliaro, 2005). Em outubro de 1964, os irmãos Villas Bôas sobrevoaram as aldeias dos Ikpeng, situado a sudoeste do Xingu, encontrando-os em situação bastante 29 precária. Estavam doentes, subnutridos, sendo necessário intervir, pois grupos de garimpeiros chegavam cada vez mais próximos de seu território. Diante desta situação, em julho de 1967, foram transferidos para o Xingu, restando apenas 56 deles. A maior parte da população era composta por crianças e adultos, estavam magros e doentes (Baruzzi, 2005; Hemming, 2005; Villas Bôas, 2005 a). Diferente dos Kaiabi, os Ikpeng tiveram muitas dificuldades de adaptação no novo território, permanecendo algum tempo na região do Alto Xingu, convivendo forçadamente com seus antigos inimigos. No final dos anos 70, mudaram-se para a região do Médio Xingu no Polo Pavuru (ISA, 2009). A população atual é de 421 habitantes segundo censo de 2011. Os Yudjá foram contatados pelos irmãos Villas Bôas em 1948 no baixo rio Xingu com população muito reduzida. Eles residiram anteriormente na desembocadura do rio Xingu, no Amazonas. A partir do século XVII, os sobreviventes do constante contato com colonizadores e doenças, migraram rio acima, sendo pouco a pouco empurrados para o Alto Xingu (Baruzzi, 2005; Hemming, 2005). Segundo dados de historiadores, o povo Yudjá representava 2000 pessoas em 1842; 200 em 1884; 150 em 1896; 52 em 1916 e 37 pessoas em 1950 (Baruzzi, 2005; Hemming, 2005; ISA, 2009). A maioria desse povo concentra-se na região do Polo Diauarum com população de 260 pessoas, dados de 2011. No século XIX, quando os Trumai chegaram ao PIX, consta que eram bastante numerosos. Porém, em decorrência de conflitos e guerras com inimigos, epidemias de gripe, sarampo e disenteria, ocorreu diminuição abrupta da população que quase foi extinta. Esse povo foi o último a chegar aos formadores do rio Xingu e teriam se originado da região do Araguaia, deixando essas terras por conflitos com outros povos indígenas, vindo a encontrar os irmãos Villas Bôas em 1946 (Hemming, 2005; ISA, 2009). Por um longo período habitaram as proximidades do Posto Leonardo, no Alto Xingu, depois foram se instalar na margem esquerda do rio Xingu, onde se distribuíram em quatro pequenas aldeias situadas na abrangência do Polo Pavuru, Médio Xingu (ISA, 2009). As primeiras notícias sobre o povo Waujá foram registradas pelo antropólogo Karl Von den Steinen, em 1884, na sua expedição ao Brasil Central. Mas, existem evidências de histórias desse povo há mil anos antes. Eles seriam descendentes diretos de vários grupos imigrados do extremo sudoeste da bacia amazônica e estabeleceram as primeiras aldeias xinguanas a partir dos anos 800 e 900 (ISA, 2009). O povo Waujá habita duas regiões, uma localizada no Alto Xingu, 30 denominada Pyulaga, e outra, no Médio Xingu, formando a aldeia Aruak localizada nas margens do rio Von den Steinen (ISA, 2009). O primórdio do contato dos Kamayurá com a sociedade remonta a 1884, na expedição do antropólogo alemão Karl Von den Steinen ao Xingu, na parte sul do Xingu. Nesta época estavam em 264 pessoas, em 1938 eram cerca de 240. As epidemias de sarampo os reduziram a 94 pessoas no ano de 1954 (Junqueira, 2002; ISA, 2009). A maior parte do povo Kamaiurá vive na aldeia Ipavu, localizado no Alto Xingu. Na região central do Parque, as margens do rio Xingu, na aldeia Morená, vivem algumas famílias que se encontram na região do Médio Xingu, Polo Pavuru (ISA, 2009). Quanto aos Kisêdjê, não há confirmação correta da data de chegada no Xingu. Pelo relato de alguns deles, a migração teria ocorrido na primeira metade do século XIX. Esse povo teria vindo da região norte de Tocantins ou Maranhão, seguindo para oeste atravessando o rio Xingu e Tapajós. Após conflitos com outros povos passaram a se deslocar em direção ao rio Batovi, entrando em contato com o Alto Xingu (Flemming, 2005; ISA, 2009). Após algum tempo deixaram essa região, rumo à foz do rio Suyá- Missu, local que depararam com a expedição de Karl Von den Steinen, em 1884 (ISA, 2009). Em 1959, a expedição dos Villas Bôas iniciou processo de contato com esse povo que estava em constante guerra com seus inimigos Yudjá. Os Kisêdjê, a partir de 1990, iniciaram trabalho de recuperação de sua terra tradicional no rio Suyá – Missu, fora da delimitação do PIX, após constatarem que estava sendo devastada pelos fazendeiros. Em 1998, conseguiram a demarcação da Terra Indígena Wawi no limite sudeste do Parque e voltaram a ocupar a região ancestral, anterior ao contato (ISA, 2009). 31 5.4. Programa de atenção básica à saúde no Xingu A partir de 1999, com a nova política de saúde indígena configurada na criação dos DSEI, iniciou-se reestruturação de uma rede de atenção básica nos territórios indígenas que fosse capaz de atender, de forma diferenciada, as especificidades dessa população. Nesse modelo, equipes multiprofissionais são responsáveis pela atenção à saúde nas aldeias. O território de atenção à saúde no Xingu está dividido em quatro polos base, cada um com várias aldeias em sua área de abrangência. Cada polo conta com equipe multiprofissional de saúde indígena (EMSI) formada por médico, enfermeiro, dentista, auxiliar de enfermagem indígena (AEI) e agentes indígenas de saúde (AIS). Os AIS estão presentes na maioria das aldeias e são imprescindíveis na operacionalização da atenção básica na saúde indígena. Há uma coordenação técnica que supervisiona e orienta o trabalho desenvolvido pela EPM/UNIFESP no DSEI Xingu, capacita e norteia a EMSI na atenção à saúde. Além desses profissionais, existem os professores indígenas que trabalham em conjunto com a EMSI nas escolas e comunidades. Os curadores tradicionais como pajés, raizeiros e parteiras ocupam papel fundamental no processo de tratamento e cura. Os profissionais de saúde no Xingu cumprem escala de trinta dias em campo e quinze dias de folga. As escalas são organizadas de maneira que permitam cobertura contínua das aldeias. As equipes, geralmente, permanecem fixas nos polos por determinado período, com objetivo de aumentar vínculo com a comunidade e dar continuidade nas ações em saúde. A comunicação entre os polos e aldeias acontece comumente via rádio. Em alguns locais existe possibilidade de se utilizar internet. Além da EMSI, o polo base conta com equipe de apoio composta por indígenas que colaboram na organização e operacionalização do trabalho. São eles: coordenador de saúde, auxiliar de limpeza, cozinheiro, motorista de barco que são contratados pela conveniada. Na cidade de Canarana-MT, então sede do DSEI/FUNASA, existe estrutura administrativa do Projeto Xingu/EPM/UNIFESP composta por indígenas. Eles dão apoio ao trabalho de campo, fazem articulação com o DSEI nas demandas quanto a questões de logística, infraestrutura, manutenção de equipamentos, estoque de medicamentos e insumos. Além disso, todas as informações 32 em saúde oriundas das aldeias e polos são organizadas e consolidadas por essa equipe antes de serem encaminhadas ao DSEI. No subsistema de saúde indígena, o primeiro atendimento acontece na aldeia, sendo que cuidados iniciais são prestados pelos AEI e AIS sob orientação dos médicos e enfermeiros (Figura 2). Quando o problema de saúde não pode ser resolvido na aldeia, os doentes são encaminhados para Unidade Básica de Saúde (UBS) localizada nos polos, que possui maior poder resolutivo. Se mesmo assim, não for possível tratar o doente, a equipe de saúde encaminha para uma das Casas de Apoio a Saúde Indígena (CASAI)8 localizadas nos municípios de Querência, Canarana e Sinop, no estado de Mato Grosso. As CASAI fazem a interface com o SUS regional e tem como função alojar e acompanhar os pacientes indígenas para investigação diagnóstica e tratamento de maior complexidade (Rodrigues, 2005). O suporte para atendimento secundário e terciário é de responsabilidade do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena que deve se articular com os centros de referência de média e alta complexidade. Porém, nessa estruturação dos serviços para atender as demandas de saúde, há uma infinidade de questões que interferem na política de atenção a saúde indígena e que dificulta a concretude do modelo proposto. Freqüentemente, a fragilidade desse sistema tem origem na atenção básica, refletindo em todos os níveis de atenção à saúde. O programa de saúde desenvolvido no Xingu está organizado nas áreas de saúde da criança, do adulto, do idoso, da mulher, da imunização, do controle de endemias, da vigilância à saúde e do atendimento das urgências e emergências. Dentre essas ações, destacamos o programa de saúde da mulher com enfoque no período gravídico puerperal, queixas ginecológicas mais freqüentes como dor em baixo ventre, DST e prevenção do câncer do colo do útero. Um dos pilares de trabalho da EPM/UNIFESP no Xingu é a formação dos próprios indígenas para atuar na saúde, como gestores e interlocutores dentro e fora da aldeia. A capacitação acontece de acordo com a realidade local, por meio de cursos modulares regulares e também de forma contínua no dia-a-dia. 8 A casa de apoio a saúde indígena (CASAI) faz parte da estrutura do subsistema de saúde indígena, os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). É um local de recepção e apoio aos pacientes indígenas referenciados da aldeia/Polo Base para tratamento na rede do sistema único de saúde - SUS. A CASAI presta assistência de enfermagem 24 horas por dia, agenda consultas, exames complementares ou internação hospitalar, providencia acompanhamento dos pacientes nessas ocasiões e o seu retorno à comunidade de origem, acompanhado das informações sobre o caso (Brasil, 2007). 33 Figura 2. Organização da assistência à saúde indígena Fonte: Brasil, 2007 A formação dos agentes indígenas de saúde e auxiliares de enfermagem indígenas foi concebida como um elo entre os serviços de saúde e a comunidade indígena. Foi uma estratégia para garantir sua inserção no mercado de trabalho e atuar como promotor de saúde enfatizando a integração entre as práticas de prevenção e cura envolvidas no processo de saúde-doença. Com a profissionalização desses indígenas, houve um salto de qualidade no serviço de saúde sendo vislumbradas diferentes possibilidades de formação no contexto da saúde (Mendonça, 2005; Oliveira, 2005; Rodrigues, 2005). Ao longo do tempo, a transição no perfil epidemiológico dos indígenas do Xingu e de outros povos vem ocorrendo com emergência das doenças crônicas não transmissíveis como obesidade, hipertensão arterial, diabetes mellitus, câncer, além de outros agravos como a depressão, alcoolismo, suicídio e uso de drogas. Este novo perfil de morbidade está estreitamente associado a modificações na subsistência, dieta, atividade física, dentre outros fatores, decorrentes das mudanças socioculturais e econômicas da interação com a sociedade nacional. Estas mudanças têm sido um desafio para o sistema de saúde indígena, exigindo atenção especial para ações de prevenção, diagnóstico e tratamento (Baruzzi et al., 2001; Coimbra Junior et 34 al., 2001; Cardoso et al., 2003; Santos et al., 2003; Baruzzi, 2005; Rodrigues, 2005; Brasil, 2007; Gimeno et al., 2007; Salvo et al., 2009). Gimeno et al., (2007) avaliaram o perfil metabólico e antropométrico de indígenas do Xingu e evidenciaram altas porcentagens de indivíduos com excesso de peso, dislipidemias e elevação dos níveis pressóricos. Esse perfil é decorrente das mudanças no estilo de vida como redução de atividade física e o aumento no consumo de alimentos industrializados. Transcorridos mais de quatro décadas de atuação da EPM/UNIFESP no Xingu, os resultados são evidenciados pelos indicadores demográficos e epidemiológicos. De acordo com dados levantados, a população do PIX passou de 1.220 pessoas no ano de 1970 para 5.000 no ano de 2005. O programa de imunização sempre foi destacado como fundamental para as melhores condições de saúde e sobrevivência desta população. A cobertura vacinal atingiu níveis satisfatórios no Xingu e obteve nítido progresso nos últimos anos com amplo número de vacinas preconizadas pelo Ministério da Saúde e aquelas recomendadas aos povos indígenas (Baruzzi, 2007). A mortalidade infantil, no Xingu, vem se estabilizando no decorrer dos anos, permanecendo entre 30 a 35 mortes por 1000 nascidos vivos no período de 1999 a 2005. O pano de fundo para este cenário é a falta de saneamento básico e a desnutrição infantil que, associadas às doenças diarréicas, respiratórias e afecções neonatais constituem as principais causas de morte entre crianças menores de um ano de idade. Quanto à mortalidade geral, os números também estão decrescendo conseqüente à melhoria das condições de saúde. Foi verificada no ano de 1999, ocorrência de 22 óbitos; no ano de 2005 este valor baixou para seis casos (Rodrigues, 2005; Rodrigues et al., 2005). Outro aspecto fundamental no desenvolvimento do trabalho da EPM/UNIFESP no Xingu foi a constante estruturação do sistema de informações que, a partir das fichas médicas individuais, foi possível ampliar para outros instrumentos complementares. Com esse sistema de informações, busca-se organizar, monitorar e planejar as ações de atenção básica, além de ser um acervo inédito no país que possibilita comparar dados epidemiológicos e demográficos em diferentes momentos. 35 5.5. O câncer do colo do útero no Xingu A partir da década de 1980, a prevenção do câncer do colo do útero no Xingu foi sendo incorporada, ainda de forma incipiente, pelas equipes de saúde da EPM em parceria com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), instituição responsável pela saúde indígena naquele momento. A EPM realizava quatro viagens anuais para atender essa população e em situações epidêmicas. Nesse período, o câncer do colo do útero não era identificado como problema de saúde para os profissionais e mulheres indígenas. Muitas outras demandas de doenças como a malária, sarampo, tuberculose, doenças respiratórias, exigiam vigilância constante, associada às dificuldades inerentes ao trabalho como equipe reduzida e despreparada para lidar com a realidade local. O primeiro registro de óbito identificado por esse tipo de câncer, no Xingu, ocorreu em 1972, que sinalizou a importância de repensar e intervir nessa problemática de saúde. Outras mortes ocorreram nos anos 1985, 1992, 2000, 2003, 2004 que culminou em inevitável implementação de ações preventivas para seu controle. Intervenções quanto a medidas de prevenção foram realizadas, mas não houve impacto significativo. Ainda não havia estrutura organizada do serviço de saúde que abarcasse as necessidades desde a prevenção, ao tratamento e monitoramento dos casos. Em 2006 foram registrados os dois últimos óbitos, diagnosticados em 2005, em estágio avançado da doença. Um dos casos foi encaminhado para referência terciária regional, após muitas tentativas de acesso ao serviço, que permaneceu um ano para realizar diagnóstico e definir tratamento. Essa situação foi marcante, expondo realidade precária do atendimento prestado à saúde indígena. Mediante o fato, o outro caso foi atendido no HSP/ UNIFESP, mas devido ao prognóstico ruim, a família optou por não fazer o tratamento e a paciente faleceu na aldeia. Esses óbitos provocaram imensa preocupação e medo nas mulheres do Xingu. Chegaram a dizer que “antes não havia essa doença, não sabemos como lidar com isso dentro das comunidades, queremos receber mais informações, saber como se prevenir e receber tratamento”(N.Kisêdjê,2005). Tinham dúvidas, pediram que a equipe de saúde retornasse à aldeia para explicar os resultados dos exames e que fossem tratadas. As mulheres da etnia Kisêdjê, disseram em reunião: “não é fácil para a gente fazer esse exame, temos muita vergonha, por isso queremos dizer que vocês têm que fazer esse exame direito, tem que dizer quando a mulher está 36 doente, têm que tratar, queremos saber o resultado do exame ginecológico, vocês da saúde não podem esconder isso da gente”. Desde 1999, em decorrência das mudanças na política de saúde indígena com a criação dos DSEI, ações de prevenção do câncer do colo do útero passaram a ser implementadas na rotina da atenção básica no Xingu, mas ainda pouco organizadas. Foram identificados diversos entraves no serviço local e regional que dificultavam a realização das ações de prevenção e tratamento como: a pouca aceitação das mulheres em fazer o exame ginecológico, despreparo das equipes de saúde, baixa cobertura, demora no retorno dos exames citopatológicos, dificuldade de acesso ao exame de colposcopia, tratamento e seguimento dos casos nas referências, baixa resolutividade dos serviços de saúde disponíveis e aumento dos casos de lesões precursoras desse câncer. Diante da crescente ocorrência do número de casos de câncer do colo uterino e de suas lesões precursoras nas mulheres do Xingu, tornou-se imperioso, a partir do ano de 2005, a reorganização do trabalho. Como estratégia para enfrentamento da situação, foi proposta parceria com o Núcleo de Prevenção de Doenças Ginecológicas (NUPREV), da Disciplina de Ginecologia Geral do Departamento de Ginecologia da UNIFESP nas ações de prevenção, tratamento e seguimento dos casos, por meio de apoio matricial, com participação de profissionais especializados. Também houve mudança no fluxo dos exames citopatológicos que deixaram de ser encaminhados para rede estadual da região, sendo processados nas dependências do Laboratório de Citopatologia da disciplina de Ginecologia Geral do Departamento de Ginecologia da UNIFESP. A enfermeira de campo recebeu treinamento para coleta dos exames, tornando-se responsável pela organização desse trabalho. Após seis anos de extensivo e vigilante acompanhamento quanto à prevenção do câncer do colo do útero, as comunidades e mulheres indígenas do Xingu adquiriram mais confiança e aceitação quanto à realização do exame preventivo. Esse trabalho foi reconhecido e legitimado pelos povos do Médio, Baixo e Leste Xingu. A participação dos AEI e AIS nas ações de prevenção e orientação da comunidade têm corroborado para seu completo sucesso. 6. PACIENTES E MÉTODOS 38 6.1. Delineamento do estudo Trata-se de estudo observacional, transversal, retrospectivo, realizado por meio de levantamento de dados, obtidos pela documentação das ações de prevenção do câncer do colo do útero, no âmbito do Projeto Xingu/UNIFESP. Todas as informações foram registradas e organizadas pela pesquisadora que participou efetivamente de todo o processo de trabalho em campo. 6.2. Local e população A pesquisa foi desenvolvida no Parque Indígena do Xingu, situado no estado do Mato Grosso, nos Polos Pavuru, Diauarum e Wawi que compreendem as regiões do Médio, Baixo e Leste Xingu. A população total nessa região, em janeiro de 2006, era de 2.299 habitantes. A população do estudo foi constituída por 503 mulheres indígenas, com idade igual ou superior a 12 anos, história de vida sexual ativa ou pregressa, que correspondeu a 22,0% da população total. Estas mulheres pertenciam a sete etnias: Kaiabi, Kamayurá (aldeia Morená)9, Yudjá, Kisêdjê, Ikpeng, Trumai e Waujá (aldeia Aruak). 6.3. Critérios de inclusão e não inclusão Foram incluídas na ação de rastreamento do câncer do colo do útero que ocorreu no mês de outubro de 2005, mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, residentes nos Polos Pavuru, Diauarum e Wawi. Não foram incluídas as mulheres que, na época da coleta do exame citopatológico, estavam em período menstrual ou puerpério tardio, sendo avaliadas posteriormente nos meses de novembro e dezembro de 2005. 9 Os Kamaiurá e Waujá localizados no Alto Xingu, região não atendida pela UNIFESP, não fazem parte do estudo. 39 Para análise dos dados do estudo, foram excluídas 14 mulheres com história de histerectomia pelo fato da pesquisa referir-se à prevenção do câncer do colo do útero. Quanto à participação dos sujeitos da pesquisa, após explicação do procedimento, não houve recusa quanto à realização do exame. 6.4. Aspectos éticos Os aspectos éticos relacionados ao desenvolvimento desta pesquisa com seres humanos foram fundamentados de acordo com as diretrizes e normas estabelecidas pela Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Por se tratar de área temática especial “populações indígenas” a Resolução n. 304/00 do CNS afirma o respeito aos direitos dos povos indígenas no que se refere ao desenvolvimento teórico e prático da pesquisa e participação dos índios nas decisões que os afetem (Brasil, 1996; Brasil, 2000). Quanto à finalidade e aspectos deste estudo não ocorreram riscos ou danos atuais ou potenciais que pudessem comprometer os sujeitos da pesquisa, tanto individual quanto coletivamente. Esta pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética em pesquisa (CEP) da UNIFESP sob n. 0760/08 (anexo 2) e pelo comitê nacional de ética em pesquisa (CONEP) com n. 654/08 (anexo 3). Ainda para aprovação do presente estudo foi necessária apresentação do projeto em Reunião do Conselho Distrital de Saúde do Xingu que foi avaliado pelo presidente do conselho distrital e os demais presidentes do conselho local de saúde (anexo 4). As explicações sobre a realização do projeto foram dadas pelo coordenador do Projeto Xingu ao presidente do conselho distrital que repassou aos demais conselheiros. Foi disponibilizada ao conselho cópia do projeto de pesquisa e documento que esclarece sobre seus objetivos (anexo 5). Também foi necessária autorização do coordenador do Projeto Xingu por meio de declaração aprovando a realização da pesquisa e utilização dos dados (anexo 6). 40 6.5. Período da coleta de dados A coleta e análise de dados foram desenvolvidas a partir de três ações que aconteceram em diferentes períodos por tratar-se de informações relativas às atividades de atenção básica à saúde no Xingu. A pesquisadora participou do trabalho, juntamente com outros profissionais, sendo responsável em documentar, organizar e arquivar todas as informações geradas nos seguintes momentos: x Rastreamento do câncer do colo do útero: realizada no mês de outubro de 2005 (1ª coleta) e nos meses de novembro e dezembro de 2005 (2ª coletanão realizada na primeira etapa). x Colposcopia: realizada no mês de fevereiro de 2006 x Cirurgia por ondas de radiofreqüência (CORAF), conização clássica e histerectomia: realizados no mês de maio de 2006 6.6. Fontes de informação As informações iniciais necessárias à identificação e definição da população alvo, para o rastreamento, foram obtidas a partir das fichas médicas individuais. Os dados utilizados nesta pesquisa foram coletados pela pesquisadora nos registros dispostos em planilhas de Excel, relatórios de trabalho em campo, nos impressos com registro dos procedimentos que foram arquivados nos prontuários. Também foi realizada consulta aos laudos dos exames citopatológicos, anatomopatológicos de biópsia e peças cirúrgicas. O trabalho em campo contou com colaboração de acadêmica de enfermagem e médica ginecologista da UNIFESP. Também participaram outros profissionais como enfermeiros, médicos, auxiliares de enfermagem indígenas e agentes indígenas de saúde. 41 6.7. Trabalho de campo No planejamento da ação de rastreamento no ano de 2005, foram utilizadas como instrumento de informação as fichas médicas individuais para identificar e quantificar a população alvo inicial, ou seja, mulheres com idade igual ou superior a 12 anos. Por meio destas fichas foi elaborada planilha contendo os seguintes dados: número de registro (RG), nome, etnia, data de nascimento e aldeia que foram organizadas por polos. Optou-se por incluir mulheres nesta faixa etária devido à precocidade de início da atividade sexual e atipias citológicas já observadas anteriormente em mulheres muito jovens. O planejamento e organização das informações foram fundamentais no desenvolvimento do trabalho. Elaborou-se programação referente à ação de rastreamento contendo data, local da viagem, material e suporte necessário que foi encaminhada ao Xingu com 45 dias de antecedência. A equipe de campo foi responsável por comunicar as aldeias, via rádio, dar apoio logístico e definir as pessoas que ajudariam na ação. O suporte dos AEI, AIS e mulheres indígenas foi imprescindível em todos os momentos do trabalho. Como a maioria das aldeias no Xingu situa-se próximas aos rios, as viagens foram realizadas de barco. Comumente, essas viagens tinham duração de quatro a cinco dias para ser possível visitar os locais no mesmo curso do rio. A equipe percorreu todas as aldeias conforme programação e, dependendo da distância entre elas, pernoitava para concluir o trabalho. Após esse período, retornavam ao polo para organizar o próximo percurso, reabastecer com mantimentos, materiais e insumos, sucessivamente, até completar o itinerário previsto. Nessa etapa do trabalho foram visitadas 35 aldeias nas áreas de abrangência dos Polos Pavuru, Diauarum e Wawi em período de um mês. Participaram dessa ação a enfermeira responsável pelo planejamento, uma aluna de graduação do curso de enfermagem da UNIFESP, além do apoio da equipe de campo. Como a maioria dos AEI e AIS eram do sexo masculino, seu trabalho restringiu-se na mobilização das mulheres, fazer tradução quando necessário, organizar o espaço de trabalho e ajudar no preenchimento de fichas. Durante o exame ginecológico retiravam-se do local por solicitação das indígenas. As 42 mulheres que exerciam função de AIS puderam acompanhar e ajudar na realização do procedimento, sob autorização da paciente. Grande parte das localidades dispunha de posto de saúde e estrutura mínima de atendimento como maca, mesa, cadeira, armários, insumos e medicamentos básicos. Este espaço era adaptado aos padrões culturais indígenas sendo construído de forma rudimentar utilizando madeira e palha. Atualmente, com a melhoria da infraestrutura em grande parte das aldeias, os postos de saúde estão sendo construídos em alvenaria e equipados para o atendimento básico à saúde. Em outras aldeias, geralmente recém construídas, distantes ou pequenas, que ainda não havia local específico para atendimento, o ambiente de trabalho foi improvisado nas casas da própria comunidade. O exame ginecológico, na ausência de maca, foi realizado em mesas, bancos ou até mesmo em redes (figura 3). Como foco de luz foi utilizado lanterna com fixação na cabeça do examinador. A adaptação do local pela equipe possibilitou oportunizar o exame ao maior número de mulheres. Figura 3. Exame ginecológico realizado na aldeia e adaptado na rede Fonte: Pereira, ER 43 Durante o atendimento, cada paciente foi orientada quanto ao procedimento. Aquelas que não realizaram o exame no mês de outubro foram avaliadas em novembro e dezembro de 2005 na primeira oportunidade de retorno da equipe de saúde às aldeias. As comunidades visitadas receberam orientações da equipe de saúde sobre prevenção do câncer do colo uterino, por meio de conversas realizadas nas aldeias, nos cursos de formação dos AIS, no módulo de saúde da mulher e no Encontro de Mulheres Indígenas que acontece anualmente no PIX (figura 4). É importante lembrar que, pelo fato da coleta ser realizada em condições adversas, o material foi armazenado em local seguro e protegido para evitar depósito de artefatos de poeira e contato de insetos que pudessem prejudicar a qualidade do exame. As lâminas foram encaminhadas pela própria pesquisadora ao Laboratório de Citopatologia do Departamento de Ginecologia da UNIFESP para processamento e leitura. Figura 4. Observação do colo do útero por mulher da etnia Ikpeng Fonte: Projeto Xingu 44 Com os resultados dos exames citopatológicos, o laudo original foi arquivado no prontuário e a cópia entregue às pacientes. A devolutiva dos exames foi demanda das mulheres do Xingu, que gostariam de saber o resultado e tê-lo em mãos. Esta prática, desde então, passou a fazer parte da rotina de rastreamento nos anos subseqüentes, contribuindo de certa forma para aumentar a confiança das mulheres indígenas na equipe de saúde. A segunda etapa do trabalho ocorreu em fevereiro de 2006 e consistiu na ação de colposcopia por apoio matricial com participação de médica ginecologista do NUPREV/UNIFESP e enfermeira responsável pelo trabalho em campo. Essa equipe partiu de São Paulo com destino à Goiânia, por via aérea, munida de materiais e aparelho colposcópico. De Goiânia percorreram 12 horas de ônibus à cidade de Canarana, Mato Grosso, de onde embarcaram em aeronave monomotor rumo ao PIX. As mulheres indígenas que apresentaram atipias nos resultados dos exames citopatológicos foram organizadas em planilhas e distribuídas por polos, facilitando a logística do trabalho. Aquelas com idade superior a 45 anos tiveram indicação de fazer uso de estrogênio, via oral, 10 dias antes do exame. A programação foi encaminhada à equipe de campo que organizou o serviço e garantiu remoção das pacientes das aldeias aos polos Pavuru, Diaurum e Wawi. O aparelho colposcópico utilizado foi da marca DF Vasconcelos com lentes de aumento de 6 a 40 vezes, filtros azul e verde. Como fonte de energia utilizouse motor gerador à gasolina. A média de permanência da equipe em cada polo foi de três dias, tempo suficiente para concluir o trabalho. Foi realizada biópsia dirigida por colposcopia quando houve indicação. Todas as pacientes submetidas ao procedimento foram orientadas, não havendo recusa. Os materiais foram organizados na sala de ginecologia da Unidade Básica de Saúde (UBS) dos polos. Os AEI e AIS foram fundamentais na organização e conversa com as mulheres indígenas. Também foi oportuno, pois puderam conhecer e aprender mais sobre o procedimento. A descrição do exame colposcópico foi realizada em impresso próprio e arquivada no prontuário das pacientes. Em maio de 2006, após resultados dos exames anatomopatológicos da biópsia colpodirigida, programou-se a terceira etapa do trabalho para tratamento por meio da excisão da zona de transformação por cirurgia com ondas de radiofreqüência (CORAF). Da mesma forma, foi elaborada e encaminhada programação para equipe de 45 campo no PIX contendo nome das pacientes que seriam submetidas a tratamento cirúrgico e orientações. Nesta ação foram necessários dois aparelhos de colposcopia, da mesma marca descrita, e duas unidades geradoras com eletrodos para realização da CORAF. Outra equipe composta por três médicas ginecologistas do NUPREV/UNIFESP, um médico e uma enfermeira do Projeto Xingu seguiram o mesmo itinerário até a cidade de Canarana-MT. As pacientes que haviam indicação de cirurgia foram removidas dos Polos Pavuru, Diauarum e Wawi por via aérea e fluvial. Realizaram exames pré-operatórios com exames de coagulação sanguínea, tempo de sangramento (TS) e de coagulação (TC), exames sorológicos para hepatite B e C, sífilis e HIV e teste de gravidez com dosagem de gonadotrofina coriônica (Beta- HCG), bem como o tratamento das vaginites infecciosas e atróficas e uso de estrogênio, naquelas com indicação. Foi estabelecida parceria com o município que cedeu espaço no seu ambulatório. Em contrapartida a equipe da UNIFESP realizou atendimento de duas munícipes com indicação de CORAF. Optou-se por não realizar o procedimento cirúrgico no Xingu pelo fato de ser observado, nessas mulheres, intercorrências como excessivo sangramento do colo do útero após excisão da zona de transformação por ondas de radiofreqüência. E, neste contexto, havia retaguarda hospitalar, caso necessário. Após a cirurgia as pacientes permaneceram na CASAI de Canarana, retornando à aldeia sob alta médica. Todas foram acompanhadas por familiares que foram orientados quanto ao procedimento e cuidados no pós-operatório. Dois casos foram encaminhados para tratamento cirúrgico, conização clássica e histerectomia, em São Paulo no HSP/UNIFESP por se tratar de suspeita de lesão invasora de maior gravidade. As informações desta ação foram documentadas e os resultados dos exames anatomopatológicos das peças cirúrgicas foram arquivados no prontuário. As pacientes submetidas às cirurgias foram acompanhadas pela equipe de ginecologistas do NUPREV no PIX, a cada seis meses, por um período de dois anos, sendo submetidas à colheita de citologia oncótica cervicovaginal e colposcopia, com biópsia quando necessário. Após este período, aquelas que não apresentaram alterações nesses exames, foram seguidas por citologia oncótica anual, até o presente momento. 46 6.8. Métodos 6.8.1. Coleta do exame citopatológico Realizou-se inspeção da vulva seguido da introdução delicada do espéculo vaginal descartável, sem lubrificantes, com exposição adequada do colo uterino. Foi observado aspecto das paredes vaginais, colo uterino durante realização do exame. Nos casos onde houve presença de conteúdo vaginal aumentado foi removido o excesso de secreção, de forma delicada, antes da coleta do material por meio de pinça Cheron e gaze. Procedeu-se a coleta tríplice de células esfoliadas do fundo de saco vaginal, da ectocérvice e da endocérvice. O material foi depositado em lâmina única de vidro histológica, devidamente identificada com as iniciais do nome e número de registro (RG). Esse material foi fixado com solução aerosol e acondicionado em caixa porta lâmina individual. Descrição do exame: a) Fundo de saco vaginal: com a parte arredondada da espátula de madeira descartável tipo Ayre foi removido células do local e depositadas longitudinalmente na primeira porção da lâmina, próxima a região fosca. b) Ectocérvice: com a outra extremidade da espátula de madeira descartável com reentrância, foi realizado raspado periorificial da ectocérvice, com movimento rotatório de 360 graus e de forma firme. Esse material foi depositado de forma longitudinal na parte central da lâmina. c) Endocérvice: com uma escova endocervical descartável foi introduzido no canal cervical com movimento rotatório de 360 graus. O material foi depositado verticalmente na última porção livre da lâmina. A classificação dos exames citológicos obedeceu aos critérios adotados pelo sistema Bethesda, 2001 (quadro 1). 47 Quadro 1. Classificação de Bethesda, 2001 1. Tipo de amostra: 4. Interpretação/Resultado Esfregaço convencional, citológico em x Negativo para lesão intraepitelial meio líquido ou outros escamosa ou malignidade x Alterações das células epiteliais 2. Adequação da amostra: Células escamosas o Células escamosas atípicas x Satisfatória para avaliação - de significado indeterminado (descrever presença ou ausência de - não é possível excluir lesão componentes endocervicais/zona de intra-epitelial escamosa de alto grau transformação e quaisquer outros o Lesão intra-epitelial escamosa indicadores de qualidade, por de baixo grau (abrangendo exemplo, parcialmente obscurecido HPV/displasia por sangue, inflamação etc.) o Atípicas - células endocervicais, x Insatisfatória para avaliação possivelmente neoplásicas (especificar o motivo) - células glandulares, possivelmente neoplásicas x Amostra rejeitada/não processada o Adenocarcinoma endocervical (especificar o motivo) in situ o Adenocarcinoma: - endocervical x Amostra processada e avaliada, - endometrial mas insatisfatória para avaliação de - extra-uterino anormalidade epitelial porque - sem outras especificações (especificar o motivo) (SOE) 3. Categorização geral (opcional): 5. Outras neoplasias malignas (especificar) x Negativo para lesão intraepitelial 6. Testes auxiliares Fornecer uma breve descrição do método do ou malignidade teste e relatar o resultado de modo a ser facilmente compreendido pelo clínico x Outras: ver interpretação/resultado 7. Revisão automatizada (por ex., células endometriais em Se o caso for avaliado com um equipamento automatizado, especificar o equipamento e o mulheres >= 40 anos de idade) resultado x Alteração celular epitelial: ver interpretação/resultado (especificar “escamoso” ou “glandular”, quando apropriado Fonte: Stiepcich, 2008. 8. Notas educativas e sugestões (opcionais) As sugestões devem ser concisas e consistentes com orientações do acompanhamento clínico publicadas por organizações profissionais (referências quanto as publicações relevantes podem ser incluídas). 48 6.8.2. Colposcopia a) Após posicionar a paciente foi realizada inspeção macroscópica da vulva, intróito vaginal e, posteriormente, introduzido espéculo vaginal descartável, cuidadosamente. b) Procedeu-se a inspeção macroscópica da vagina, colo e secreções. c) Visualização, limpeza e avaliação do colo com utilização de algodão embebido em solução fisiológica. Foi utilizado filtro verde do colposcópio para observar os vasos sanguíneos e junção escamocolunar (JEC). d) Aplicação da solução de ácido acético a 3% no colo de forma cuidadosa e repetida, lavando-o. Após um minuto foi inspecionado de maneira sistemática observando todo o colo e paredes vaginais. e) Em seguida foi aplicado teste iodado de Schiller para visualização de alterações no epitélio. f) Concluindo o exame vaginal, o espéculo foi removido lento e parcialmente fechado, banhando paredes vaginais anterior e posterior com solução de Schiller, buscando possíveis lesões. g) Após completa remoção do espéculo, aplicou-se solução de ácido acético a 5% para avaliação da vulva, sulcos inguinocrurais, monte pubiano, região perineal e perianal. h) Para o registro terminologia de achados estabelecida pela colposcópicos Federação utilizou-se Internacional a de Colposcopia e Patologia Cervical (IFCPC) de Barcelona, 2002 (Quadro 2). i) Na presença de achado colposcópico anormal, procedeu-se a realização de biópsia com pinça de Gaylor-Medina de 4 ou 5 mm. Após, utilizou-se solução hemostática à base de percloreto férrico a 50% (Hemogin®). O fragmento obtido foi fixado em frasco com solução de formol a 10% e encaminhado ao Departamento de Anatomia Patológica da UNIFESP. Os resultados dos exames anatomopatológicos obedeceram a classificação de Richart, 1990 (Quadro 3). 49 Quadro 2. Terminologia colposcópica, Barcelona (IFCPC, 2002) 1. Achados colposcópicos normais: 4. Colposcopia insatisfatória: Epitélio escamoso original Junção escamocolunar não visível Epitélio colunar Inflamação severa, atrofia severa, trauma Zona de transformação Colo do útero não visível 2. Achados colposcópicos anormais: 5. Miscelânia: Epitélio acetobranco plano Condiloma Epitélio acetobranco denso Queratose Mosaico fino Erosão Mosaico grosseiro Inflamação Pontilhado fino Atrofia Pontilhado grosseiro Deciduose Iodo parcialmente positivo Pólipo Iodo negativo Vasos atípicos 3. Alterações colposcópicas sugestivas de câncer invasivo Fonte: Walker et al., 2003; Netto et al., 2008. Quadro 3. Classificação histológica de Richart,1990 Classificação Normal Atipias NIC I/HPV, baixo grau NIC II, NIC III, alto grau, carcinoma in situ Carcinoma escamoso invasor Adenocarcinoma Fonte: Carvalho et al., 2007 Legenda: NIC: neoplasia intraepitelial cervical, HPV: papilomavírus humano 50 6.8.3. Cirurgia por ondas de radiofreqüência (CORAF) Para realizar a CORAF, foi necessária avaliação ginecológica utilizando espéculo vaginal com saída para aspiração e exame colposcópico para confirmação e delimitação da lesão e estabelecimento do número de fragmentos a serem retirados de acordo com a extensão da neoplasia. Utilizou-se para este procedimento eletrodo dispersivo (placa neutra) sob a paciente antes de iniciar o procedimento cirúrgico. a) Após delimitação da lesão no colo, foi aplicada infiltração de anestésico com vasoconstritor em 3, 6, 9 e 12 horas próxima às margens externas da zona de transformação. b) O aparelho gerador foi programado para utilizar ondas de corte de 40 watts. Selecionou-se eletrodo em alça do tamanho adequado à extensão da lesão e acionado aspirador de fumaça com filtro biológico. c) Após o corte e retirada das peças cirúrgicas, o gerador foi reprogramado para ondas de coagulação com 80 watts, utilizando-se eletrodo em esfera para realizar hemostasia. d) Aplicou-se camada de gel à base de percloreto férrico a 50% (Hemogin ®) no colo do útero e utilização de tampão vaginal. e) A peça cirúrgica foi fixada em placa de isopor previamente identificada com marcação de 12 horas para o correto estudo anatomopatológico e depositada em frasco contendo formol a 10%. f) A paciente foi orientada quanto aos cuidados pós- operatórios. g) O material foi encaminhado ao Departamento de Anatomia Patológica da UNIFESP. 51 6.9. Métodos estatísticos Utilizou-se o pacote estatístico SPSS- Statistical Package for Social Sciences (v 16.0) para avaliar os dados referentes aos resultados do estudo. Para comparação estatística de variáveis qualitativas, ou seja, freqüências e proporções foram empregadas o Teste Exato de Fisher. Os valores de Sensibilidade, Especificidade, Valor Preditivo Positivo e Negativo foram calculados utilizando o pacote estatístico interativo JavaStat (Interactive online JavaStat statistical software package), disponível online (http://statpages.org/ctab2x2.html). O valor de significância estatística foi estabelecido em 5% ou p=<0,05. 7. RESULTADOS 53 Do total de 505 mulheres indígenas, representantes de sete etnias (Kaiabi, Yudjá, Ikpeng, Kisêdjê, Trumai, Kamayurá, Waujá), do Médio, Baixo e Leste Xingu, com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, 503 (99,6%) foram submetidas ao exame citopatológico. Destas, 443 mulheres foram rastreadas no mês de outubro de 2005 e 60 no período de novembro a dezembro de 2005. Os motivos que levaram a não realizar o exame, na primeira vez, foram: estar em período menstrual, fora da aldeia ou puerpério tardio. Apenas duas mulheres, do total, não realizaram exame por estarem fora da aldeia e não haviam retornado até janeiro de 2006. A população era predominantemente jovem com 309 mulheres (61,4%) na faixa etária dos 12 aos 29 anos, aquelas acima de 50 anos somam-se 62 (12,4%). A idade das pacientes variou de 12 a 75 anos com média de 30 anos, mediana de 25 anos e moda entre 15 e 16 anos. Dos sete povos que compõem o presente estudo, as mulheres da etnia Kaiabi representaram 231 (45,9%). As mulheres Kisêdjê eram em número de 68 (13,5%), as Yudjá e Ikpeng, 63 (12,5%) cada uma. A representatividade daquelas da etnia Kamayurá foi de 34 (6,8%), Trumai de 20 (4,0%), Waujá de 14 (2,8%) e outras, representaram 10 (2,0%). Estas, não especificadas, relacionam-se às mulheres Aweti, Mehinako, Yawalapiti, Nambiquara, Panará e Tapirapé, oriundas de outros locais, que moravam na região e eram cônjuges de indivíduos das sete etnias estudadas. Quanto aos resultados dos exames citopatológicos, verificou-se que a maioria, 444 (88,3%) foi negativa para câncer do colo do útero e suas lesões precursoras e 59 (11,7%) apresentaram atipias citológicas (Quadro 4). 54 Quadro 4. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo faixa etária, etnia e exame citopatológico, no período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu N % 12 a 19 20 a 29 30 a 39 40 a 49 50 a 59 > 60 142 167 77 55 31 31 28,2 33,2 15,3 10,9 6,2 6,2 Kaiabi Kisêdjê Yudjá Ikpeng Kamayurá Trumai Waujá Outras* 231 68 63 63 34 20 14 10 45,9 13,5 12,5 12,5 6,8 4,0 2,8 2,0 Negativo Atipia citológica 444 59 503 88,3 11,7 100,0 Variável Faixa Etária (anos) Etnia Exame citopatológico Total Legenda: * Aweti, Mehinako, Yawalapiti, Nambiquara, Panará, Tapirapé No quadro 5, identifica-se a distribuição das 59 atipias citológicas de acordo com expressão de menor para maior complexidade. Observamos cifras de 15 casos (25,4%) de células escamosas atípicas de significado indeterminado (ASC-US), 12 casos (20,3 %) de células escamosas atípicas não podendo afastar lesão de alto grau (ASC-H), 7 casos (11,9%) de células glandulares atípicas (AGC), 15 casos (25,4%) de lesão intraepitelial escamosa de baixo grau (LBG) e 8 casos (13,6 %) de lesão intraepitelial escamosa de alto grau (LAG). Dois casos (3,4%) foram identificados como positivos para carcinoma espinocelular e adenocarcinoma (CEC e ACA). Quando distribuímos as 59 (11,7%) atipias citológicas em relação ao total de exames citopatológicos realizados, encontramos o seguinte resultado: 3,0% de ASC-US, 2,3% de ASC-H, 1,4% de AGC, 3,0% de LBG, 1,6% de LAG, 0,2% de CEC e 0,2% de ACA. 55 Das 59 mulheres portadoras de exames citopatológicos com atipias, 58 foram submetidas a exame colposcópico. A única paciente que não realizou o exame não mais residia na área indígena avaliada, sendo informado o resultado do exame ao DSEI na qual se encontrava. Na colposcopia foram encontrados 43 casos (72,9%) com aspectos anormais, 14 casos (23,7%) referenciados como sem alterações colposcópicas. Um caso foi considerado colposcopia insatisfatória por apresentar processo inflamatório intenso, sendo indicado tratamento com posterior avaliação. Quadro 5. Distribuição das 59 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, portadoras de atipias citológicas e achados colposcópicos, no período de outubro de 2005 a fevereiro de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu Variável N % ASC-US ASC-H AGC LBG LAG CEC ACA 15 12 7 15 8 1 1 25,4 20,3 11,9 25,4 13,6 1,7 1,7 Normal Anormal Insatisfatória Não Realizado 14 43 1 1 59 23,7 72,9 1,7 1,7 100,0 Atipias citológicas Achados colposcópicos Total Legenda: ASC-US: Células escamosas atípicas de significado indeterminado; ASC-H: Células escamosas atípicas não podendo afastar lesão de alto grau; AGC: Células glandulares atípicas; LBG: Lesão intraepitelial escamosa de baixo grau; LAG: Lesão intraepitelial escamosa de alto grau; CEC: Carcinoma espinocelular; ACA: Adenocarcinoma Os achados colposcópicos anormais podem ser observados no quadro 6, onde predomina o aspecto epitélio acetobranco em 35 (81,4%) casos em diferentes apresentações e associações. Dos 43 casos com achados colposcópicos anormais e biopsiados, 24 (55,8%) apresentaram lesão intraepitelial escamosa de baixo e de alto grau e 19 casos (44,2%) cervicite crônica nos exames anatomopatológicos. 56 Quadro 6. Distribuição das 43 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo achados colposcópicos anormais e anatomopatológicos de biópsia, no período de fevereiro de 2006, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu Variável N % Epitélio acetobranco Imagens associadas 35 8 81,4 18,6 Cervicite crônica LBG LAG 19 11 13 43 44,2 25,6 30,2 100,0 Achados colposcópicos anormais Anatomopatológico (Biópsia) Total Legenda: LBG: Lesão intraepitelial escamosa de baixo grau; LAG: Lesão intraepitelial escamosa de alto grau Na tabela 1, encontramos distribuídos os resultados dos exames citopatológicos de acordo com as etnias. Apesar de não ter sido encontrada significância estatística, há tendência de maior ocorrência de atipias citológicas nas mulheres das etnias Kaiabi, 30 casos (50,8%) e Ikpeng, 12 casos (20,3%). Tabela 1. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo etnias e resultado do exame citopatológico, no período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu Etnia Kaiabi Kisêdjê Yudjá Ikpeng Kamayurá Trumai Waujá Outras* Total Exame citopatológico Negativo Atipias % N % N 201 45,3 30 50,8 64 14,4 4 6,8 58 13,1 5 8,5 51 11,5 12 20,3 31 7,0 3 5,1 18 4,1 2 3,4 13 2,9 1 1,7 8 1,8 2 3,4 444 100,0 59 100,0 Total N 231 68 63 63 34 20 14 10 503 % 45,9 13,5 12,5 12,5 6,8 4,0 2,8 2,0 100,0 Legenda: * Aweti, Mehinako, Yawalapiti, Nambiquara, Panará, Tapirapé Teste exato de Fisher-p= 0.322 Na Tabela 2, estão dispostos os resultados dos exames citopatológicos relacionando-os com as diferentes faixas etárias. Foi maior o contingente de atipias citológicas nas faixas etárias de 12 a 39 anos de idade (74,5%). 57 O resultado negativo foi maior nas faixas etárias mais jovens de 12 a 29 anos (62,9%). Apesar das observações encontradas, não houve significância estatística para a relação faixa etária e atipias citológicas, mas há forte tendência para maior presença dessas atipias nas faixas etárias de 20 a 39 anos. Tabela 2. Distribuição das 503 mulheres indígenas com idade igual ou superior a 12 anos e história de vida sexual, segundo faixa etária e resultado do exame citopatológico, no período de outubro a dezembro de 2005, residentes no Médio, Baixo e Leste Xingu Exame citopatológico Negativo Atipias % N % N 130 29,3 12 20,3 149 33,6 18 30,5 63 14,2 14 23,7 48 10,8 7 11,9 29 6,5 2 3,4 25 5,6 6 10,2 444 100,0 59 100,0 Faixa Etária 12 a 19 20 a 29 30 a 39 40 a 49 50 a 59 > 60 Total Total N 142 167 77 55 31 31 503 % 28,2 33,2 15,3 10,9 6,2 6,2 100,0 Teste exato de Fisher-p= 0.204 Por outro lado, quando analisamos a tabela 3 onde foram distribuídas as faixas etárias por tipo de atipias citológicas, encontramos associação estatisticamente significante. Esses dados mostram que 66,7% de ASC-US e 80,0% de LBG estão presentes nas faixas etárias mais jovens de 12 a 29 anos. Na faixa etária de 20 a 49 anos é mais freqüente ASC-H com 66,7% e LAG com 100,0%. A atipia AGC apareceu na faixa etária de 30 a 39 anos com 71,4%. Chama atenção seis resultados atípicos obtidos em mulheres com idade superior a 60 anos, sendo dois casos de ASCH, um caso de ASC-US, um caso de LBG, um caso de carcinoma escamoso invasivo e um caso de adenocarcinoma.