Neuroplasticidade

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Os Caminhos da Neuroplasticidade
Do disco rígido à meditação
Gislaine Teixeira
Outubro / 2010
Disciplina de Neurociências e Corpo
Pós Graduação em Metodologia AngelVianna
Prof. Marcos Vinícius Machado
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O termo neuroplasticidade refere-se à capacidade do sistema nervoso de alterar
algumas das suas propriedades morfológicas e funcionais em resposta à alterações externas ou
internas, de forma permanente ou pelo menos prolongada. Trata-se de uma adaptação e
reorganização da dinâmica do sistema nervoso frente as experiências vividas.
Mas nem sempre se pensou assim. Por muito tempo a ciência acreditou que o cérebro
possuía uma constituição rígida e inalterável, considerando a genética como totalmente
determinante no desenvolvimento do ser. É sobre essa trajetória de pesquisas e descobertas sobre a
natureza e fisiologia das conexões nervosas (sinapses), que trata o presente trabalho.
Foi o americano William James, considerado o pai da psicologia experimental nos
Estados Unidos, quem primeiro introduziu a palavra “plasticidade” nos estudos sobre o cérebro.
Em 1890, afirmou que “a matéria orgânica, especialmente o tecido nervoso, parece provida de um
extraordinário grau de plasticidade”, “uma estrutura fraca o suficiente para submeter-se a uma
influência”. Na época, suas especulações não receberam muito crédito, principalmente porque
James era um psicólogo e não um neurologista.
O pensamento da ciência naquele período acreditava que o cérebro adulto era fixo,
tanto em forma como em função. Essa convenção se fortaleceu em 1913 com a influente opinião
de Santiago Ramón y Cajal, renomado neuroanatomista espanhol, Prêmio Nobel de Fisiologia ou
Medicina sete anos antes, que declarou que “em centros adultos, os caminhos dos nervos são algo
fixo, concluído e imutável”. Esse dogma prevaleceu na neurociência durante quase um século.
Já faz algumas décadas que os cientistas reconhecem que o cérebro passa por algumas
mudanças reais e físicas, já que processa o aprendizado e a memória, e suas manifestações
fisiológicas se dão através da formação de novas sinapses (pontos de conexão entre neurônios) e
do fortalecimento ou enfraquecimento de sinapses já existentes. Apesar disso, o formato do
cérebro não sofreria grandes alterações e cada parte exercia sua função específica em local
determinado. O córtex visual, localizado na parte posterior, se encarregava das percepções visuais,
o córtex motor detinha um local específico para cada parte do corpo, como nos livros, para todas as
pessoas, fixo. Sua capacidade de mudar as estruturas e funções de forma significativa estava
perdida na infância.
Mas o dogma se provou errado. Nos últimos anos (recente como a década de 90) se
descobriu que o cérebro mantém uma impressionante plasticidade, que realmente pode ter seus
circuitos alterados, expandir as áreas relacionadas a determinadas partes do corpo de acordo com o
uso e se reorganizar depois de uma lesão. Regiões que antes desempenhavam determinada função,
podem assumir uma nova tarefa, como áreas que antes viam, podem passar a sentir ou ouvir.
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Essas descobertas trouxeram uma grande revolução para a nossa maneira de pensar o
cérebro adulto e as pesquisas não param, caminhando para explicar como isso acontece.
Nossas ações podem literalmente expandir ou contrair áreas corticais do cérebro de
acordo com as atividades que desempenhamos, ou seja, somos diretamente influenciados pelas
nossas escolhas e pelo que experimentamos no mundo. Em pianistas, se descobriu que a área no
cérebro relacionada com os dedos das mãos, ocupa um espaço muito maior do que em não
pianistas. Outro exemplo observado foi que em taxistas, a área relacionada com a percepção
espacial tende a ser bem mais desenvolvida (reorganização cortical dependente-do-uso).
E ainda se foi mais além. Hoje sabe-se que as alterações no cérebro também podem
acontecer independentemente do mundo exterior, de acordo com nossos pensamentos e atividade
mental. Simplesmente pensar em tocar piano leva a uma mudança física perceptível no córtex
motor do cérebro, e pensar de determinadas maneiras pode restaurar a saúde mental.
As descobertas desencadeadas no cérebro tanto por interferência externa quanto
interna, abrem grandes portais para a reabilitação e a cura de vários desequilíbrios tanto por lesões
físicas (AVC, lesões nervosas periféricas e centrais) como mentais (depressão,TOC, fobias), como
também indica mecanismos de como podemos desenvolver nossas capacidades para a empatia, a
compaixão e a felicidade.
Esta última afirmação é alvo de particular interesse do sistema filosófico budista, que
encontra em seu expoente e líder religioso, Dalai Lama, um persistente encourajador da pesquisa e
da ciência como forma de compreender e validar muitos pensamentos e práticas milenares do povo
tibetano. Segundo o Budismo, acredita-se que a saúde mental não se refere somente a ausência de
doenças, mas à um estado de bem-estar e felicidade duradouros.
A psicologia ocidental, na sua corrente cognitivo-comportamental, tem avançado nas
pesquisas sempre em relação as psicopatologias, como depressão crônica, introversão extrema e
outras doenças mentais. Ainda não demonstrou grande interesse em cultivar atributos positivos na
mente de indivíduos que não têm distúrbios mentais.
“Os cientistas ocidentais têm uma suposição básica de que não se
pode querer ir além do normal, e que o excepcional é apenas para santos, algo
que não pode ser cultivado. Nós no ocidente moderno, nos acostumamos à
suposição de que a mente ‘normal’, no sentido de uma mente livre de doenças
mentais clínicas, é uma mente saudável. Mas uma ‘mente normal’ ainda é objeto
de muitos tipos de sofrimento mental, incusive depressão, ansiedade, frustração,
inquietação, tédio e ressentimento”. Explica o estudioso budista Allan Wallace
Muitos cientistas de “cabeça mais aberta” estão interessados em cruzar informações
neste campo e aprofundar o conhecimento do potencial da mente como interferência nos processos
neuroquímicos. Um encontro particularmente importante nesta direção ocorreu em 1983, quando o
Dalai Lama conheceu o neurocientista FranciscoVarela numa conferência sobre Consciência, na
Áustria. Houve um entendimento imediato entre os dois, sendo o próprio Varela praticante do
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budismo desde 1974. A partir daí, foram organizados vários eventos reunindo o líder espiritual e os
mais renomados neurocientistas (primeiro ocorreu em 1987) que resultou na criação do Instituto
Mente e Vida. Este se dedica a investigar cientificamente os efeitos das meditação e do
treinamento mental sobre o cérebro.
Talvez seja importante nesse momento lembrar o que é mente e o que é cérebro.
O cérebro é a estrutura física, com um pouco mais de 1kg de tecido biológico situado
dentro do crânio. A mente é o resultado do funcionamento do cérebro: os pensamentos, os
sentimentos e as emoções. A mente pode modelar o cérebro porque os pensamentos e as emoções,
produzidos por ele, são capazes de agir de volta sobre océrebro e afetar suas conexões, funções e
estruturas.(2)
A melhor compreensão de como a neurociência chegou até aqui, está ricamente
documentado, pesquisa por pesquisa, no livro “Treine a Mente, Mude o Cérebro” da jornalista
especializada em neurociências, Sharon Begley.
O que parece ser interessante colocar, são os mecanismos neurofisiológicos
resultantes destas inúmeras descobertas, que hoje nos são ricamente detalhados. Para isso se faz
necessário o conhecimento prévio do neurônio, seus componentes anatômicos, a natureza das
conexões sinápticas e a organização das áreas cerebrais.
Na ilustração abaixo revemos a dinâmica de funcionamento das conexões sinápticas e
o texto a seguir se deterá em suas formas de plasticidade.
Sabe-se hoje que os neurônios têm grande capacidade de modificação não somente na
infância, mas durante toda vida e que a plasticidade nervosa não ocorre apenas em processos
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patológicos, mas assume também funções extremamente importantes no funcionamento normal do
indivíduo.
Um dos grandes concensos é de que a plasticidade neural varia com a faixa etária.
Durante o desenvolvimento ontogenético, o sistema nervoso é mais plástico (plasticidade axônica
ontogenética), momento da vida em que tudo se constrói de acordo com o genoma e as influências
do meio. Os axônios crescem e regridem numa ação cooperativa para uma modelagem neural.
Mesmo nessa fase, existem épocas de maior suscetibilidade às interferências do meio,
denominadas de períodos críticos. Áreas específicas do cérebro tem momentos críticos diferentes,
e de forma mais limitada continuam por toda a vida. No adulto, se observou o fenômeno de
brotamento colateral, aparecimento de brotos colaterais nos axônios de regiões preservadas
circunvinhas à areas que tinham sofrido lesão, crescendo em direção das regiões cerebrais inativas.
Muito comum nos casos de amputação.
A plasticidade axônica regenerativa, que consiste no recrescimento dos axônios
lesados é mais comum no sistema nervoso periférico, quando o soma permanece intacto e existe
um microambiente propício ao crescimento dos axônios nas redondezas das fibras nervosas. O
oposto acontece nas lesões dos axônios centrais, quando a maioria dos corpos celulares é atingida.
Fatores de regeneração axônica não são liberados, pelo contrário, são produzidas moléculas
inibidoras da regeneração. E também existe uma grande proliferação de células gliais em torno da
lesão, como uma cicatriz, que dificulta mecanicamente a proliferação de axônios regenerantes. Isso
significa que lesões nos nervos periféricos têm grande possibilidade de se refazerem,
espontâneamente em casos de lesão parcial ou cirurgicamente, nas rupturas totais.
A plasticidade sináptica consiste em aumentar ou diminuir de forma prolongada ou
permanente a eficácia das conexões. Pode explicar certos tipos de aprendizagem e memória através
dos processos de habituação, sensibilização e condicionamento clássico. Aprender significa ativar
sinapses normalmente não utilizadas. O que é usado permanece, o que deixa de ser necessário
enfraquece e desaparece.
Na plasticidade dendrítica pode-se ter alterações no número, no comprimento, na
disposição espacial e na densidade das espinhas dendríticas; ocorre principalmente nas fases
iniciais do desenvolvimento, mas no adulto está presente restritamente às espinhas, regiões
fundamentais para o estabelecimento e consolidação da memória.
A plasticidade somática é a capacidade de regular a proliferação e a morte de células
nervosas. Até pouco tempo não se acreditava nessa possibilidade, mas hoje sabe-se que há regiões
no sistema nervoso central do adulto (áreas em torno dos ventrículos laterais) que mantem a
capacidade de proliferar e substituir neurônios que morrem. São as chamadas células-tronco,
capazes de se diferenciar em diferentes tipos celulares, tanto glia como neurônio.
Como se percebe, os mecanismos são variados e ainda existe muito a ser estudado e
explicado.
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Para concluir, os pesquisadores estão convencidos de que a neuroplasticidade é nosso
estado cerebral normal, padrão – desde a infância até a velhice. Segundo Alvaro Pascual-Leone e seus
colegas de Harvard em 2005, “em resposta ao sinais que os sentidos trazem do mundo externo, e a
produção de pensamento ou movimentos que ele envia de volta para o mundo, o cérebro passa por
mudanças contínuas. O comportamento levará a mudanças nos circuitos do cérebro, assim como
mudanças nos circuitos do cérebro levarão à modificações no comportamento”.
A neuroplasticidade faz um remapeamento das conexões entre as células nervosas o
que mantém nossa capacidade de continuamente aprender e desenvolver novas habilidades, e de
nos re-inventar a todo momento.
Durante os períodos de leitura para a confecção do presente trabalho, percebi minha
constante surpresa com a resistência da comunidade científica em receber pesquisas realmente
novas. Cada vez que surge uma possibilidade muito revolucionária de rever os conceitos do
funcionamento neural, as pesquisas são interrompidas, cientistas correm risco de perder o
laboratório e até mesmo o emprego. (2)
O questionamento ficou mais intenso porque estamos falando de uma círculo de
curiosos, comunidade que se dedica completamente a descobrir o novo, mas quando ele aparece,
também são os primeiros a refutá-lo.
Tais reflexões, talvez incentivadas pelas práticas das outras disciplinas do curso de
Pós-graduação em Metodologia Angel Vianna, voltaram seu foco para outro universo, diverso dos
neurocientistas. Fiz uma observação da minha própria postura como estudante de um curso pago,
onde livremente escolhi frequentar para ampliar meus conhecimentos, e percebi comportamento
semelhante. Ao ouvir proposições e linhas de pensamento muito diversas das minhas próprias, tive
muitas vezes, uma imediata reação em objetá-las. Mas não é essa a mesma razão que escolhemos
fazer um curso? Aprender o que ainda não sabemos? Conhecer um universo diverso do nosso?
Numa proporção diferenciada, percebo a reação do indivíduo em modificar sua forma de pensar,
cientista ou não, como se isso lhe trouxesse alguma forma de ameaça.
Também se fala nas adversidades da neuroplasticidade, quando ela não “dá certo”.
Todo tecido muito plástico, também pode ser muito vulnerável, as mudanças podem “dar errado”,
não serem benéficas como melhor interface para o sujeito, podendo produzir funções mal
adaptativas ou patológicas. Será essa uma das explicações para nossas resistências às mudanças?
Outra reflexão suscitada pela leitura é de que se toda nossa rede neural pode se
modificar estruturalmente, e o faz, ao longo da vida, o que permanece do “eu”? O que me faz ser o
mesmo apesar disso? Como conhecer o que se tem de singular?
Talvez seja pertinente um olhar para a impermanência de que tanto fala o budismo; de
que não existe uma realidade e de que tudo é criado pela mente a cada momento.
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Longe de responder essas questões, fico satisfeita em levantar tais discussões. O que é
certo é que o provérbio português “Pau que nasce torto nunca se endireita”, parece estar com os
dias contados. A ciência, enfim, provou que tal determinismo não se aplica; mas podemos
substituí-lo pelo ditado alemão, que acolhe muito bem essa nova abordagem: “Prepara-te para o
que quiseres ser.”
Bibliografia:
1. LENT, Robert. Cem Bilhões de Neurônios (Cap. 5). Vieira & Lent Casa Editorial.2002
2. BEGLEY, Sharon. Treine aMente, Mude o Cérebro. Ed. Fontanar. 2007
3.
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5.
6.
RATEY, Dr. John J. Cérebro: Manual para o Usuário. Ed Objetiva
RELVAS, Marta Pires.Fundamentos Biológicos da Educação. Ed.Uak
IZQUIERDO, Iván. A Arte de Esquecer. Ed Artmed.
GUERREIRO, Tania e CALDAS, Célia Pereira. Memória e Demência: (re)conhecimento e
cuidado. UnAti – UERJ - 2001
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