IMIGRAÇÃO E ACESSO À SAÚDE: UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE BOLIVIANOS EM SÃO PAULO (BRASIL) E BRASILEIROS EM BOSTON (EUA) Segundo a Organização Internacional pelas Migrações, estima-se que existam hoje cerca de 214 milhões de pessoas vivendo em outros lugares do mundo que não seus Estados natais, o que representa cerca de 3,1% da população mundial 1. Em 1910 esse número era de 33 milhões de pessoas. Enquanto a população do mundo cresceu quase quatro vezes durante esse período, os fluxos migratórios cresceram seis vezes. A intensificação das migrações internacionais tem colocado em xeque a base da maior parte dos direitos sociais desenvolvidos historicamente pelos Estados democráticos: a cidadania. Diversos autores (BENHABIB, 2007; SOYSAL, 1994; SASSEN, 1998) apontam para a necessidade de mudar sua a instituição e seu significado. Se historicamente ela esteve associada à nacionalidade – afinal quem era cidadão era cidadão de algum estado específico - a presença cada vez maior de indivíduos “nãonacionais” vivendo de forma permanente ou temporária dentro do território de outro Estado, passou a questioná-la. Afinal, quem deve ser contado como membro da comunidade, desfrutando os privilégios do governo? Como os governos devem tratar indivíduos que não são nacionais de seus estados, mas que contribuem para a economia, são necessários ao funcionamento e manutenção de sua sociedade, participam do sistema de educação pública entre outras coisas? O questionamento é ainda maior quando se atenta para o fato que, negar-lhes direitos que são oferecidos aos nacionais do Estado, é incompatível com outras normas amplamente aceitas no plano internacional, como os direitos de saúde, educação, liberdade de expressão, direitos políticos, entre outros. O trabalho buscará refletir sobre essa questão: o acesso pelos imigrantes documentados ou não – aos direitos sociais consagrados pelas sociedades liberais e garantidos pelas principais pactos internacionais sobre direitos humanos fundamentais. De forma específica, nos propomos a investigar a questão do acesso à saúde pública. Para tal, vamos realizar um estudo comparativo entre os imigrantes bolivianos que vivem em São Paulo (Brasil) e os imigrantes brasileiros que vivem em Boston (Estados Unidos), de forma a compreender como diferentes estruturas institucionais impactam no acesso à saúde pública. Brasil e EUA foram escolhidos por se diferenciarem em três aspectos cruciais: (1) arcabouço legal: enquanto no Brasil a saúde é um direito de todos - inclusive estrangeiros residentes em território brasileiro - e dever do Estado, nos EUA, mesmo após a reforma que buscou universalizar o acesso à saúde, cerca de 12.4 milhões de imigrantes – legais (LPR - Legal Permanent Residents) e ilegais, não possuem esse direito, excetuando-se casos emergenciais; (2) Estrutura dos sistemas de saúde: o Sistema Único de Saúde brasileiro é universal e baseado no financiamento estatal; já o sistema de saúde americano baseia-se nos planos de seguros privados; (3) Contexto social: enquanto os imigrantes no Brasil representam menos de 1% da população brasileira (MARTES, 2009), os imigrantes vivendo nos EUA representam quase 13% da população americana2, o que impacta significativamente na percepção da imigração como um problema social pela opinião pública americana, o que é amenizado no Brasil. 1 Fonte: http://www.iom.int/jahia/Jahia/about-migration/facts-and-figures/lang/en Disponível em: O8/04/2011 2 United Nations, Department of Economic and Social Affairs, Population Division (2009). Trends in International Migrant Stock: The 2008 Revision (United Nations database, POP/DB/MIG/Stock/Rev.2008). Para entender como se dá o acesso e os cuidados com a saúde, realizaremos uma pesquisa qualitativa. Aplicaremos entrevistas em profundidade, a partir de um roteiro semi-estruturado, com os imigrantes brasileiros e bolivianos que vivem em Boston (EUA) e São Paulo (Brasil), respectivamente. Boston é a segunda área que mais concentra imigrantes brasileiros nos EUA, enquanto São Paulo é a cidade que mais concentra imigrantes bolivianos no Brasil. Para compreender a forma como o desenho institucional dos serviços de saúde do Brasil e EUA impactam nesse acesso será realizada um levantamento bibliográfico sobre o tema. Escolhemos analisar o acesso à saúde por entender a importância primordial deste direito para que um indivíduo possa usufruir plenamente todas as suas capacidades. Se, por um lado, movimentos sociais que atuam internacionalmente têm tido relativo sucesso quando tentam expandir a defesa do acesso universal à saúde, transformando a saúde em direito fundamental aceito não só no plano internacional como presente na maior parte das constituições nacionais, por outro, em várias partes do mundo constata-se que esse direito ainda está ancorado à cidadania o que inviabiliza o acesso dos imigrantes à esses direitos. Além disso, e talvez mais importante, a presença de uma lei que garanta o acesso não implica no acesso real à saúde, promovido por políticas públicas que promovam, efetivamente, a saúde enquanto direito de todos, independentemente da classe social, raça e etnicidade, origem nacional ou ainda do status legal de trabalho e residência. Do ponto de vista da oferta de serviços governamentais, a linguagem jurídica confusa ou ambígua sobre o tema, ou a falta de disseminação de informações sobre os direitos dos imigrantes entre a burocracia de nível de rua dos hospitais e postos de saúde, deixa amplo espaço para discricionariedade destes atores na decisão sobre permitir ou negar o acesso à imigrantes, especialmente os não documentados. Do ponto de vista da demanda dos imigrantes por tratamentos de saúde, em geral, os autores acentuam que o perfil sócio-demográfico da população migrante ajuda a explicar a baixa utilização dos sistemas públicos de saúde, já que os imigrantes são predominantemente jovens, saudáveis, em idade economicamente ativa. No entanto, quando necessário, o acesso é dificultado pela falta de informação por parte dos imigrantes, o medo de serem questionados quanto ao seu status legal, a ausência de tratamentos gratuitos, a falta de recursos financeiros, quando é necessário algum copagamento, problemas com a linguagem e comunicação com os médicos e diferenças culturais relativas ao comportamento em relação à doenças e à necessidade de tratamentos (ROMERO-ORTUÑO, 2004; LECLERE, JENSEN e BIDDLECOM,1994). Ao analisar as entrevistas, buscaremos entender de que forma seus resultados se aproximam aos achados de pesquisa de autores que estudam a temática. Portes, Kyle e Eaton (1992) procuram explicar os fatores que possibilitam e/ou facilitam o acesso aos tratamentos de saúde. Diferentemente das pesquisas sobre padrões de acesso e uso dos sistemas de saúde com foco no indivíduo, deve-se também reconhecer a relevância de fatores contextuais, presentes tanto nos locais de origem, quanto nas estruturas de incorporação dos imigrantes no país de recepção. Nesse sentido, a presença de uma comunidade co-étnica, o apoio dos parentes já na chegada, a etnia dos colegas de trabalho e de supervisores podem influenciar o acesso a informações, à recursos e às redes de tratamentos formais e informais. Messias (2010) e White (2010) utilizam o conceito de práticas transnacionais de saúde para explicar as estratégias utilizadas pelos imigrantes para acessar tratamentos de saúde que ultrapassam as fronteiras dos países receptores, seja pelo contato com médicos via telefone, pela busca de informações sobre doenças nos países de origem ou pelo envio de medicamentos específicos por correio, especialmente daqueles não disponíveis no país de recepção. Esses padrões de circulação de informações, recursos ou práticas possibilitariam o acesso a tratamentos de saúde no país receptor, especialmente quando existem barreiras institucionalizadas ao acesso de tratamentos formais nestes. Por fim, buscaremos entender como os sistemas de saúde brasileiro e americano se aproximam de atitudes mais humanistas ou utilitaristas, conforme denominação utilizada por Romero-Ortuño (2004), impactando no acesso à saúde pelos imigrantes. Para este autor, entre os dois principais tipos de sistemas de saúde existentes, os baseados em seguros sociais costumam ter atitudes mais utilitaristas que aqueles baseados em um sistema nacional de saúde, como é o caso brasileiro, resultado em piores padrões de acesso e tratamento. Entre os fatores citados pelo autor para explicar esse padrão está a incerteza quanto ao reembolso pelo governo dos custos de atender um imigrante ilegal, que podem então recair sobre o médico ou a instituição privada. Nos sistemas nacionais de saúde, em geral, os médicos ganham o mesmo independente do status legal do paciente, o que favoreceria atitudes mais humanistas.