Territorialidade e ambiente em Minas Gerais durante a crise do

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III ENCONTRO DA ANPPAS
23 a 26 de maio de 2006
Brasília-DF
Territorialidade em Minas Gerais Durante a Crise do Sistema
Colonial.
Haruf Salmen Espindola – Universidade Vale do Rio Doce
Resumo
Em busca de um conceito de território
O capitalismo, desde sua etapa de formação operou tendo a “escala mundial por limite”.1
De um lado, foi capaz de produzir a desestruturação e dominar antigas civilizações, não
deixando nada do que era sólido no ar
2
e, de outro, de promover a ocupação de vazios
econômicos, isto é, de introduzir obras de infra-estrutura e determinar a organização espacial,
pela localização seletiva de grandes investimentos de capital, de instituições e de pessoas em
áreas do planeta ocupadas por populações cuja base econômica são a caça e coleta ou a
agricultura de subsistência. Desta forma, o espaço pode ser transformado pelo capital e
incorporado à economia capitalista mundial, como foram os casos do oeste norte-americano,
dos pampas argentinos, do oeste do Estado de São Paulo, entre outros.
O espaço não é em sua natureza nem em sua extensão vantagem ou inconveniente. O
que determina o valor são sua organização e utilização ou a possibilidade de organizá-lo e
utilizá-lo.
3
O espaço é mais do que o suporte físico, também é forma social que recebe seu
sentido dos processos sociais que se expressam por meio dele. 4 O povoamento e a introdução
de atividades econômicas no espaço introduzem estruturas e promovem modificações que lhe
conformam e, consequentemente, produzem a dimensão espacial das relações sociais. 5
O espaço é a condição de existência dos objetos físicos e, consequentemente, é uma
determinação inseparável dos corpos e dos processos físicos. 6 Os corpos têm como propriedade
a relação de espacialidade entre eles, isto é, o momento categorial de todo o corpóreo real:
abarca os momentos da extensão (forma, posição, distância, direção e diversidade de direção),
bem como os movimentos e as conexões que se estabelecem entre os corpos. Logo, o conceito
de configuração espacial se refere aos suportes físicos e não às relações sociais.
Entretanto, a espacialidade somente adquire significado a partir do conhecimento das
leis que regulam os fenômenos sociais que lhe correspondente. A produção do território é o
resultado do processo de configuração espacial, ou seja, é uma organização espacial
determinada e sustentada por processo social que lhe reforça e conserva. Isso significa que tem
característica de processo, porque possui seqüência de ciclo recorrente, repetições, regularidade
e reprodução.
A configuração natural pré-existente é um fator, que dentro de um dado processo social,
contribui para especificar a configuração territorial concreta dos fenômenos sociais, mas não
significa de nenhuma maneira que produza esta configuração espacial. As relações sociais
requerem suportes físicos que são constitutivamente espaciais, mas como as categorias de forma
e configuração espacial se referem aos ditos suportes e não às relações sociais, a espacialidade
dos fenômenos sociais é apenas indireta. Por conseguinte, são os processos sociais que
produzem, modificam, sustentam, reforçam e conservam determinado território. 7
O território abarca um conjunto de relações entre atores, contidas em diversas
categorias, tais como Estado, mercado, circulação, trocas materiais e intercâmbios imateriais,
hábitos, tradição, entre outras, que expressam um processo de territorialidade que lhe foi
particular e, desta forma, transformou aquele espaço em um âmbito territorial de processos
sociais. Portanto, são os processos sociais, o grau e modalidade do desenvolvimento das forças
produtivas, o sistema político, a correlação das forças sociais e as teias de interesses mercantis e
as mentalidades que dão sentidos e alcance a um determinado território.
Portanto, o conceito de território não expressa apenas um espaço geográfico nem é
apenas expressão de um domínio geográfico de um ente estatal. Na segunda metade do século
XVIII, para a monarquia lusitana a questão do território estava circunscrita pela crise do antigo
sistema colonial e pela necessidade de manter o domínio dos Bragança sobre o Reino e os
extensos domínios ultramarinos. O conceito de território ganha sentido a partir das
circunstâncias históricas que, no caso específico de Portugal, foi forjado pelas diretrizes
políticas de Sebastião José de Carvalho e Melo, Marques de Pombal, ministro de D. José I.
Essas diretrizes tiveram prosseguimento no governo de D. Maria I e de D. João VI, bem como
tiveram continuidade no Brasil, após a Independência.
Entre o último quartel do século XVIII e a primeira metade do século seguinte, o
território foi conhecimento da geografia do espaço, dos seus elementos naturais, dos seus
marcos referenciais, das vias que permitem seu devassamento, ou seja, domínio político e
domínio “científico” (viagens filosóficas, expedições de exploração, comissões científicas,
percursos naturalistas, definição de marcos fronteiriços, elaboração de mapas, apresentação de
memórias, estabelecimento de presídios militares etc.). Nesse sentido, nas circunstâncias
2
históricas vividas por Portugal, o território expressa uma estratégia de apropriação do espaço,
que pode ser encontrada tanto na política para a Amazônia como para o Sertão do Rio Doce.
Território e territorialidade: algumas considerações sobre a historiografia brasileira
O sistema de capitanias hereditárias utilizado para a colonização por Portugal das terras
que lhe cabia na América pelo Tratado de Tordesilhas, depois de 15 anos sofre modificação
significativa, com a criação do Governo Geral, instalado na Bahia, em 1549. O Regimento,
documento que ordena e define as atribuições do Governo Geral, pode ser considerado o
primeiro documento “tendente à unificação territorial e jurisdicional, já com os elementos aptos
para uma colonização progressiva”. 8 Também inaugura a questão que estará presente, ao longo
do período colonial, estendendo-se por toda a primeira metade do século XIX: o confronto entre
a tendência centralizadora e a tendência autonomista. Este conflito foi exaustivamente tratado
pela historiografia brasileira, com nítidas simpatias por uma ou outros. Dois autores são
expressivos destas duas tendências: Raimundo Faoro9 e Sérgio Buarque de Holanda10,
respectivamente. Outra abordagem, no qual se filiam autores tendentes a fugir deste dilema, foi
estabelecida por Caio Prado Júnior, ao incorporar uma interpretação marxista, fundamentada na
noção de antigo sistema colonial. 11
Para Sérgio Buarque de Holanda, os governadores gerais e depois os vice-reis não
exerceram poderes centralizados, desde a inicial reação do capitão-donatário de Pernambuco,
aceita pelo Rei, como pode ser visto explicitamente no Regimento de 1671, no qual a Coroa
lembra ao governador geral que os governos de Pernambuco e do Rio de Janeiro não estavam
sob sua jurisdição em diversos assuntos de Estado.12 Entretanto, para Raimundo Faoro o
Regimento indica que a Coroa toma para si, por meio do Governador Geral a autoridade antes
transferida para os capitães donatários e de que “a obra, empreendida no papel, correspondeu,
em grande parte, à execução na realidade”.13 Deixando de lado a interpretação na linha de Caio
Prado Júnior, a estas duas tendência se filiaram os autores que trataram da questão,
particularmente no momento decisivo do processo de separação do Brasil de Portugal, que
podemos localizar entre o último quartel do século XVIII e a primeira metade do século XIX.14
Jurandir Malerba apresentou no Centre for Brasilian Studies da University of Oxford um
Esboço crítico da recente historiografia sobre independência do Brasil (desde c.1980), no qual
analise uma extensa produção bibliográfica (livros, capítulos de livro, artigos, dissertações e
teses). Segundo o autor, as “questões que hoje levantam os historiadores da Independência do
Brasil são virtualmente as mesmas que se tem feito há 180 anos, e que diversas gerações, com
maior ou menor sucesso, respondem a seu modo.”
15
Na relação das questões listadas pelo
3
autor, sobressaem as preocupações de natureza político, social e cultural. Entretanto, entre as 17
questões listadas não encontramos qualquer preocupação que reporte a questão do território e da
territorialidade da formação do Estado Brasileiro.
Entre 1996 e 2000, investigando o processo de ocupação do Sertão do Rio Doce, percebi
que estavam presentes os elementos característicos do processo de territorialidade do Estado
português definido na gestão do Marquês de Pombal para as colônias portuguesas da América.16
A própria temática era similar: a idéia de Império, a questão da navegação fluvial, o acesso ao
mercado mundial, a relação com povos nativos e o domínio do sertão. Na concepção de
Pombal, a construção de um império atlântico era considerada indispensável para a defesa e
garantia do domínio português resultante da expansão lusitana, do qual dependia a monarquia e
o Reino.
As categorias de território e territorialidade são centrais no momento histórico vivido
pelo Brasil e Minas Gerais, particularmente nas áreas de floresta tropical, entre o último quartel
do século XVIII e o primeiro do XIX. Entretanto os estudos historiográficos mais tradicionais
não deram atenção a estas categorias, utilizando-a claramente como uma premissa dada e aceita
naturalmente nos termos como se encontra na matriz ratzeliana do conceito.17 Os estudos mais
recentes estão fortemente influenciados pela história cultural e centram a análise nos aspectos
ligados à representação, à mentalidade e ao simbólico. Entretanto, “o Brasil não foi apenas
inventado simbolicamente, mas materialmente construído, através de processos militares,
políticos, econômicos e que certos fatos dessa construção não podem cair na vala comum da
história...”
18
Os trabalhos historiográficos que abordam a questão territorial são os estudos de
história regional, que, entretanto, não tem a abordagem territorial como categoria de analise,
num sentido epistemológico.19
Os conceitos de território e territorialidade determinam a necessidade de considerar na
análise histórica que a parte é um momento particular da totalidade, como indicada por
SANTOS 20, de forma a estabelecer as circunstâncias históricas que marcam a sua produção e
demarcam o lugar de onde os atores sociais produzem os processos sociais, os ordenamentos
jurídicos, as representações, os conceitos e o conhecimento sobre o espaço. A análise histórica
deve permitir perceber o nexo entre a totalidade (território Brasil) e a parte (territorialidade
Minas Gerais), tendo como contraponto a idéia de sertão como se colocava no final do século
XVIII.
A configuração natural pré-existente é um fator que deve ser levado em conta na
análise, na medida em que contribui para especificar a configuração territorial. Entretanto, este
não é o centro da análise, pois outras categorias desempenham papel central, entre as quais se
4
destaca o Estado, o grau e modalidade do desenvolvimento das forças produtivas, o sistema
político, a correlação das forças sociais e as teias de interesses mercantis e as mentalidades que
dão sentidos e alcance a um determinado território.
A categoria território implica o controle/poder exercido sobre as variáveis da extensão
(forma, posição, distância, direção e diversidade de direção), bem como sobre os movimentos e
as conexões entre atores e estruturas. Nesse sentido, o território tem um caráter de
exclusividade, produto do poder de delimitar um espaço, mas a delimitação não cria
homogeneidade ou uma qualidade única dentro do território nem gera um único território.
Podem coexistir e sobrepor-se vários territórios, em conformidade com a conjuntura histórica, o
grau e modalidade do desenvolvimento das forças produtivas, o sistema político, a correlação
das forças sociais, os hábitos e tradições, expressas em consensos, tensões e conflitos.
Por outro lado, a territorialidade, que no sentido mais geral indica o que faz parte do
território. A territorialidade pode ser entendida com a “totalidade das questões concretas e
abstratas, objetivas e subjetivas, materiais e imateriais, emotivas e perceptivas... A
territorialidade é composta por três elementos: senso de identidade espacial, senso de
exclusividade e compartimentação da interação humana no espaço.” A compreensão do
território exige o conhecimento de sua territorialidade, que “estão imbricadas na subjetividade
dos sujeitos”. Portanto, “um território é composto por várias territorialidades”.21
Desta forma, se for estabelecido o nexo entre a totalidade (território Brasil) e a parte
(territorialidade Minas Gerais), tendo como contraponto a idéia de sertão, pode-se compreender
o lugar ocupado pelo Sertão do Rio Doce na conjuntura da crise do antigo sistema colonial.
O mito da totalidade pré-existente: a Ilha Brasil
As capitanias do Brasil ocupavam uma posição central na estratégia do Marquês de
Pombal. Entretanto, era preciso vencer o desafio geopolítico de manter o domínio sobre tão
grande extensão de fronteiras e litorais, tendo em vista que nem todos habitantes de Portugal e
das ilhas Atlânticas seriam suficientes para ocupar e produzir toda a extensão dos domínios
lusitanos na América. A alternativa foi ocupar os pontos estratégicos junto às fronteiras e aos
cursos dos rios navegáveis. Para isso, o “conhecimento do terreno”, que constitui uma das
componentes fundamentais da abordagem a partir da categoria de estratégia, se encontra
presente no empenho da Coroa para que fosse produzido o máximo de conhecimento sobre a
geografia, a botânica, a zoologia, os povos nativos, a economia e a população das áreas
civilizadas e dos sertões. Esta duas ordens de fatores, conhecer e ocupar, consta nas instruções
dadas pelo Marquês de Pombal aos governadores enviados para o Brasil, tais como ao Marquês
5
do Lavradio, Morgado de Mateus e Conde de Valadares, respectivamente das capitanias da
Bahia, São Paulo e Minas Gerais.
22
Esta estratégia está fundamentada no mito geográfico da
Ilha Brasil, que unificava litoral e sertão.
Este mito permitia entender o lugar central do domínio político como poder capaz de
delimitar e produzir juridicamente o território antes que este fosse produzido historicamente
pelos processos sociais. O desdobramento da expansão européia, iniciada no século XVI, com a
perda da primazia por Portugal e pela Espanha, fragilizou os alicerces que sustentavam o
domínio colonial ibérico. No século XVIII, a fragilidade lusitana foi decisiva na discussão do
Tratado de Madri, sendo resolvida pelo princípio do uti possidetis, evocado por Alexandre de
Gusmão. Por este princípio, a terra deve pertencer a quem de fato a ocupa. O verbo ocupar no
sentido de aproveitar, usar, utilizar e fixar-se remete à colonização como povoamento e
implantação de atividades produtivas. Entretanto, o sentido político-militar remete a estratégia,
na medida em que ocupar também é tomar posse, conquistar, residir e habitar. O segundo
sentido estabelece o lugar central do domínio político sobre o espaço, como produtor do
território como direito de ter ou possuí-lo por convenção.
Portanto, a questão central que preocupava Pombal era a de estabelecer a ocupação que
delimitasse um território por convenção, independente que dentro desse domínio fosse preciso
ainda estabelecer a ocupação no sentido do uso, da utilização, da fixação de população e de
atividades econômicas. 23 A questão exigiu um enfrentamento estratégico que foi respondido por
Pombal, de forma a conciliar o mito geográfico e o princípio do uti possidetis.
Segundo Raimundo Faoro, os mapas da colônia traziam implícito estes dois princípios.
Segundo Manoel Fernandes de Souza Neto, tratava-se de incorporar novas terras por meio do
conhecimento/informações que poderiam elaborar as representações cartográficas. Para isso
contribuiu o trabalho de cronistas que, “a serviço dos reis, eram os responsáveis por relatar o
que havia nas possessões territoriais conquistadas. Aos cronistas cabia, na realidade, inventariar
a natureza com fins à sua ulterior exploração. Era com base nessas informações que as decisões
geopolíticas eram tomadas. Por sua vez, tais decisões imprimiam ao trabalho dos geógrafoscartógrafos um importante papel na delimitação de fronteiras, no arranjo dos limites naturais,
nos desenhos do território e, logo, nas concepções que se passaria a ter sobre eles.” 24
No Brasil, a manutenção das colônias por Portugal foi em grande medida uma estratégia
de domínio territorial e dela decorre a base da configuração atual do território brasileiro. Na
segunda metade do século XVIII, no Norte, consolidou-se a política de domínio do Rio
Amazonas, com o delta amazônico e o Rio Tocantins desempenhando papeis táticos
fundamentais. Ao Sul, estabeleceu-se o enfrentamento com os espanhóis pelo controle do
6
estuário platino, estendendo taticamente pelos rios Paraná e Paraguai. No interior deste conjunto
formado pelo litoral, entre o delta amazônico e o estuário do Prata, a Coroa procurou estender a
soberania aos caminhos fluviais dependentes das duas grandes bacias e, ao mesmo tempo, unir
os rios Tietê, Paraíba do Sul e São Francisco. Nesse sentido, pode-se afirmar que o Brasil préexiste como totalidade territorial, resultado da estratégia político-militar de domínio, fundada no
controle tático de nós estratégicos fundamentais para a definição por convenção jurídica
internacional dessa totalidade.
Segundo Demétrio Magnoli, a força do mito geográfico da ilha Brasil25 subverte o
princípio diplomático do Tratado de Tordesilhas ao invocar a crença de que o território préexiste, com contornos definidos e constituindo-se como uma unidade indivisível. Este todo,
demarcado pelos rios Amazonas e Prata, já existia antes da descoberta como mito e o domínio
sobre ele, antes de ser o fruto da conquista e exploração era uma herança recebida. 26
Na opinião de Raimundo Faoro, a Coroa via o Brasil, desde o primeiro momento da
conquista, como uma entidade geográfica envolvida no mito geográfico da Ilha Brasil, que lhe
orientou a política, mais do que o mundo da verdade. Para o autor, os interesses econômicos
funcionalizaram o mito. Segundo Jaime Cortesão, a efetiva ocupação do interior significou a
destruição da parte ilusória, mas teria sido esta que permitiu atingir a realidade.
27
Com
Alexandre de Cusmão e a assinatura do Tratado de Madri (1850), o mito da Ilha-Brasil torna-se
território representado catograficamente e reconhecido diplomaticamente, mesmo que sua
consolidação definitiva tenha exigido o Tratado de Santo Ildefonso (1777) e pequenos acertos
tenham se estendido até o Tratado de Petrópolis (1903).
Para a Monarquia lusitana, o Brasil ocupava uma posição de alta prioridade, durante o
XVIII e início do XIX, no contexto marcado pela preocupação em consolidar o império
Atlântico, pela menor estatura de Portugal no concerto das nações, o seu atraso econômico
quando comparado com a Inglaterra e França e o conturbado ambiente político e intelectual da
época.28 No século XIX, o mesmo mito geográfico estará presente, na opinião de Manoel
Fernandes de Souza Neto: o Estado Brasileiro, construído durante os oitocentos, valeu-se do
mito geográfico da intocabilidade territorial para manter, em torno da figura do Imperador,
uma forte centralização política. 29
É nesta lógica que se enquadra o controle sobre as áreas cobertas de floresta tropical nas
capitanias de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia (vales dos rios Doce, Mucuri e
Jequitinhonha), fechando as únicas aberturas naturais que davam acesso aos centros auríferos do
interior. Estes caminhos fluviais eram os pontos fracos que permitiriam penetrar na fortaleza
natural que era Minas Gerais, segundo as palavras de João Camilo de Oliveira Torres. Minas era
7
uma fortaleça natural, na medida que estava separada do litoral pela serra do Mar, pelo fosso do
vale do Paraíba do Sul, pela serra da Mantiqueira e pelo Caparaó. Entretanto, os rios Doce, São
Mateus, Mucuri e Jequitinhonha eram pontos frágeis dessa linha de defesa natural, ao
representarem aberturas que poderiam conduzir ao interior. 30
Minas Gerais e o Sertão do Rio Doce
Pode-se afirmar que a orientação política territorial na construção do domínio português
na América foi prolongada e consolidada no período do Império brasileiro. Esta mesma política
se manifesta concretamente nas decisões e ações dirigidas aos Sertões do Rio Doce.
31
Nesse
caso particular, a crise do antigo sistema colonial se manifesta de forma aguda, em função do
declínio da produção do ouro em Minas Gerais.
Nos séculos XVI e XVII, saindo de Porto Seguro e de Vitória, expedições entraram pelo
interior das capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo, em busca de uma Serra das
Esmeraldas, supostamente localizada onde se encontra o divisor das bacias dos rios
Jequitinhonha, Doce e Mucuri. O caminho das esmeraldas pelo rio Doce acabou sendo
abandonado pela alternativa paulista (Bandeira de Fernão Dias, em 1672). Com a descoberta do
ouro foi estabelecido o controle sobre as rotas que desciam para o litoral, de forma a isolar os
sertões que ficavam a Leste dos núcleos urbanos ligados a mineração, em Minas Gerais, tanto
para evitar o contrabando do ouro, como para impedir uma possível invasão estrangeira.
Diversos atos legais proibiram o acesso ao litoral do Espírito Santo, Norte do Rio de Janeiro e
do Sul da Bahia pelos rios ou caminhos que atravessassem os sertões cobertos de matos gerais
que ficavam a Leste da região mineradora.
32
Pela tradição e legislação portuguesa, entrar pelo
sertão exigiria a autorização do soberano, na medida em que esse lhe pertencia como domínio. 33
Entretanto, com o declínio do ouro, particularmente, entre o último quartel do século
XVIII e a primeira metade do XIX, a região foi vista como alternativa para a crise, ou seja, o
controle sobre os rios agora deveria servir a um processo de territorialidade, dando-lhe um uso
que possibilitasse produzir riquezas e aumentar as rendas do Estado. Na primeira metade do
século XIX, a navegação fluvial, o acesso ao mercado mundial, a incorporação de território de
floresta e a guerra aos índios ocuparam espaço significativo na pauta do governo central (de D.
João VI, D. Pedro I e D. Pedro II) e dos governos de Minas e do Espírito Santo.
A idéia do sertão como objeto da conquista está presente desde o início da colonização:
“Um passo mais era, todavia, necessário: a conquista do sertão, com o domínio do gentio feroz,
da natureza hostil, dos bichos e terrores que habitavam a floresta. Este passo coube,
8
inicialmente, à iniciativa oficial, diretamente voltada, no primeiro lance, aos sertões do São
Francisco, ricos de opulências sonhadas pelas lendas e referências da crendice”.34
A palavra “sertão” é de origem portuguesa e a encontramos, pela primeira vez
relacionada ao Brasil, na Carta de Pero Vaz de Caminha.35 Essa categoria, que pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística designa o semi-árido Nordestino, está fortemente presente
no pensamento social e na literatura brasileira.36 No Brasil, a categoria sertão, em síntese, foi
utilizada, até o início do século XX, para indicar terras desconhecidas, no sentido dado por
Vieira Couto.37 A idéia de sertão aparece como um outro mar ignoto, que somente poderia ser
devassado pela audácia de novos conquistadores. Assim a encontramos em Euclides da Cunha:
sertão ignoto, que nos mapas é assinalado apenas com uma “franja de serra” ou um “trecho de
rio”, que nada dizem. 38 A idéia de que seria um vazio, um não-lugar longínquo aparece na fala
de um dos personagens de Guimarães Rosa: Remei vida solta. Sertão: estes seus vazios. No
romance Grande Sertão Veredas o sertão é do tamanho do mundo; é aonde manda quem é forte,
quem tem astúcias; é o sozinho; é um sem lugar. 39
O sentido de distância não esta relacionado à categoria do espaço, como um momento
do extenso, mas à do território como categoria político-cultural, ou seja, ignorado e vazio da
presença da “civilização”, da “fé cristã” e, consequentemente, do controle do aparato estatal
(administrativo, jurídico e militar) e eclesiástico. 40 Neste sentido, está longe da Civilização e do
Estado, sendo este entendido como poder ordenador e benfeitor, ou seja, é uma parte do
domínio do soberano que se recusa a gozar “dos bens permanentes de uma sociedade pacífica, e
doce debaixo das justas, e humanas leis, que regem os meus povos”.
41
O sertão é a porção de
espaço que está dentro do domínio da Coroa, mas que ainda não foi ordenado pelo Estado nem
sofreu o processo de territorialidade. O fato de o sertão ser um direito territorial considerado
desocupado possibilita sua territorialidade pela conquista, ocupação e exploração econômica.
Portanto, sertão é uma categoria que possui elementos relacionados às idéias de fronteira, de
provisório e de passageiro, nos sentidos espacial, temporal e simbólico, mas que podem ser
transformado pelo processo de territorialidade do Estado em lugares habitados, conhecidos,
regidos pela lei e tributados.
As terras que ficavam a Leste dos núcleos urbanos mineiros, no século XVIII, não eram
distantes e nem estavam vazias, mas se referir a elas como sertões tinha duplo sentido: por um
lado indicava que nelas estavam ausentes a propriedade, a atividade agrícola e a relação com o
mercado; por outro lado, essa ausência poderia ser resolvida pela ação do Estado.
9
Processo de territorialidade do Sertão do Rio Doce
Em 13 de maio de 1808, pouco depois da chegada do príncipe regente ao Rio de Janeiro,
foi expedida a Carta Régia com a declaração de guerra ofensiva aos botocudos e a outros índios
habitantes da zona de florestas da província de Minas Gerais, bem com determinou a formação
da Junta de Conquista e Civilização dos Índios e da Navegação do Rio Doce. 42 O Sertão do Rio
Doce foi dividido em circunscrições militares e, para cada uma delas, foi constituído uma
Divisão Militar do Rio Doce (DMRD). As sete divisões militares se distribuíram entre os vales
dos rios Pomba (bacia do Paraíba do Sul) e, mais setentrional, no médio Jequitinhonha, tendo as
principais forças na bacia do rio Doce. As divisões foram utilizadas para liberar o território para
a penetração de populações luso-brasileiras e, ao mesmo tempo, para intermediar a relação
dessas populações com os índios, no sentido de incorporar os grupos indígenas à sociedade
nacional.
Se na primeira fase de guerra ofensiva (1808-1818), os índios botocudos foram vistos
como inimigos terríveis e poderosos, contra quem a única solução seria a guerra ofensiva, logo
se percebeu que formavam sociedades frágeis, que rapidamente se desagregavam, depois dos
primeiros contatos, principalmente ao ser introduzida a aguardente. Dois elementos foram
fundamentais no processo de atração e atuaram como principal força de aculturação das
sociedades indígenas: a introdução de ferramentas e de novos hábitos alimentares. Com o
abandono da estratégia ofensiva, as divisões criaram uma rede de postos militares e
aldeamentos que se constituíram na origem da maioria das cidades e vilas da região. Elas
passaram a desempenhar o papel estatal de proteção ao índio e de promoção da sua integração à
sociedade envolvente. 43
Negociantes de poaia44, fazendeiros e garimpeiros interessados em livrar-se da presença
de determinada tribo, contratavam jagunços conhecidos como “matadores de aldeia” para
chacinar grupos indígenas. Genocídios dessa natureza contaram com a participação de exsoldados índios das divisões ou tiveram esses soldados como os próprios comandantes dessas
operações. Durante o período de atuação das divisões militares (1808-1839), todos os grupos da
margem meridional do rio Doce foram atraídos e também quase todos da parte setentrional o
foram, somente permanecendo arredias as tribos da nação Jiporok e, desconhecidas, as da nação
Gutkrak, no norte do Espírito Santo.
O processo de ocupação demográfica não tomou a direção pretendida pela Carta Régia
de 13 de maio de 1808, apesar dos incentivos concedidos e das sesmarias distribuídas nas
margens do rio Doce. O objetivo maior de fazer com que o povoamento funcionasse para
10
viabilizar a navegação não se concretizou. Esperava-se que a ocupação das margens garantisse
mão-de-obra para o serviço das canoas e, principalmente, propiciasse passageiros e produtos
para serem transportados. A presença luso-brasileira se restringiu praticamente aos postos das
divisões militares, com pequenas exceções. O principal fator de devassamento da região foi a
extração da poaia, que envolveu negociantes, intermediários, agenciadores, militares, coletores
luso-brasileiros e índios.
Entretanto, a ocupação e o controle das áreas de floreta pelas forças divisionárias foram
fundamentais para incorporar aquele espaço como território e abri-lo para o povoamento lusobrasileiro, incluindo os negociantes de poaia, fazendeiros e garimpeiros. O ritmo do
povoamento foi lento e constante, a partir do alto rio Doce e das partes altas dos seus afluentes
mais importantes, tendo contribuído para isso o movimento de dispersão demográfica
espontânea provocada pelo declínio da antiga região mineradora. A partir dessas áreas, a
população foi avançando gradativamente, derrubando a floresta e se estabelecendo próxima aos
pequenos cursos d’água, porém, até metade do século XIX, isso estava apenas no início.
Entretanto, o controle sobre o território havia sido estabelecido pelo Estado, por meio das
divisões militares.
A atividade econômica que sustentava a fixação da população era a agricultura itinerante
de subsistência, não se desenvolvendo atividade mercantil de importância. O objetivo de
exportar o algodão de Minas Novas, pelo rio Doce, não passou de uma primeira experiência, da
mesma forma que não se repetiu o transporte de gado para Vitória, pelo caminho terrestre,
aberto pela 3ª DMRD, ligando Ouro Preto ao litoral, pois em nenhum dos dois casos
encontraram-se compradores para os produtos.45
A idéia de que a navegação do rio Doce estimularia o desenvolvimento da atividade
comercial não se concretizou e, ao mesmo tempo, a ausência de uma produção mercantil e a
inexistência de mercado comprador no Espírito Santo, a pobreza dessa província e as
dificuldades encontradas no curso dos rios criaram impedimentos para a navegação superar o
estágio rudimentar. A navegação foi essencialmente uma atividade de natureza militar e de
controle dos cursos d’águas e dos pontos estratégicos dentro do território. A iniciativa privada
restringiu-se a um comércio de sal feito por canoeiros particulares, porém em pequena escala,
com grande risco e aproveitando os preços especulativos que a escassez do produto provocava.
O governo concentrou seus esforços no processo de contato e atração dos povos
indígenas para garantir o controle sobre o território e liberar terras para o avanço luso-brasileiro.
O índio era parte importante da estratégia de ocupação, na medida em que serviriam pelo
processo de miscigenação para aumentar a população. Também fora utilizado como canoeiros e
11
soldados no policiamento do curso dos rios, na segurança dos locais onde o rio era interrompido
por cachoeiras ou corredeiras e na abertura de estradas e construções de pontes.
Os gastos governamentais referentes à promoção da navegação fluvial, na verdade,
concentraram-se nesses campos, sendo que o maior montante foi despendido com a manutenção
das divisões e com o trabalho de atração dos índios, base do controle sobre o território. O
povoamento e a economia seriam atribuições dos particulares, que paulatinamente iriam se
estabelecer no sertão. De um modo geral, pode-se afirmar que o governo limitou-se a abrir
caminho para os particulares e, para a navegação, contando que uma companhia viabilizaria seu
projeto de navegação fluvial.
A ocupação territorial da zona de floresta pelas divisões militares do rio Doce abriu
caminho a uma crescente atividade de extrativismo, principalmente de poaia. Este produto
resultava em ganhos expressivos para Minas Gerais. Este avanço sobre o sertão fazia aumentar
os choques entre índios e luso-brasileiros, conseqüência de uma mudança drástica da relação
anterior, isto é, o receio ao botocudo deu lugar à agressão continuada, à exploração de sua mãode-obra e à prostituição. Em 1825, a parte meridional do rio Doce encontrava-se liberada para
ser ocupada pelos brasileiros. Entre Peçanha e o Salto Grande do Jequitinhonha, uma extensa
linha na forma de um crescente, tendo Minas Novas no centro, começou a avançar sobre os
territórios indígenas, provocando violentos conflitos com os Nacknanuk e Jiporok. As divisões
militares cumpriram o papel de mediação, dando apoio aos fazendeiros, posseiros, garimpeiros,
aventureiros, negociantes e coletores das drogas do sertão, ao mesmo tempo em que
procuravam proteger os índios, especialmente contra os matadores de aldeia.
A maior parte da população que se dispunha a enfrentar o território sertanejo era
formada de mestiços (pardos) e negros pobres, vivendo de culturas de subsistência, da caça,
pesca e coleta. Gente ambiciosa também devassou as matas e se enriqueceu com o comércio de
poaia, drogas do sertão, peles e animais vivos, tornando-se fazendeiros abastados. Aventureiros,
oportunistas de todo tipo, jagunços, garimpeiros, prostitutas, fabricantes de aguardente,
taberneiros, canoeiros do comércio de sal, tropeiros, entre outros, juntaram-se aos praças das
divisões militares, aos índios aculturados na saga do sertão. À medida que se intensificava o
povoamento de determinada área, entravam em cena os especuladores de terras, gente que
conseguia sesmarias ou abria posse com o único objetivo de, posteriormente, vendê-las por um
preço especulativo.
Muitos foram povoar as brenhas do sertão a contra gosto, forçados pelo degredo
político, social ou judicial. Desafetos políticos, vadios e criminosos se juntavam àqueles que
escolhiam se embrenhar nos matos para fugir do recrutamento forçado para as guerras no Sul do
12
Brasil. A maioria dos praças das divisões era recrutada pela força, ou estava servindo devido à
punição judicial ou política. Outros foram residir nas matas para fugir da justiça: ladrões,
salteadores, assassinos, contrabandistas. Também buscaram os sertões negros quilombolas, que
aprenderam a conviver com os grupos indígenas e com eles se misturaram. Todos viviam numa
terra de estrutura social indefinida e distante do poder, onde imperava a violência dos matadores
de aldeia, de jagunços de aluguel, de capitães do mato e das divisões militares.
O Sertão do Rio Doce mais do que um território real delimitava um espaço imaginário
de riquezas fáceis, guardadas pela floresta e “índios bravos”. Nessa terra “distante”, que fazia de
100 quilômetros uma jornada de semanas, morria-se muito facilmente de malária, febre
amarela, varíola, tuberculose, sífilis, gonorréia, ferimentos, naufrágios, assassinatos e outras
coisas.46 Nesse espaço “de ninguém”, à medida que o temor dos luso-brasileiros pelos índios
deu lugar ao desdém, o invasor sentiu-se com direito ilimitado sobre o território, cresceu-lhe a
vontade de extermínio, mantendo uma especial predileção por adotar crianças índias arrancadas
dos pais. Essa negação do outro se estendia a todo o sertão, pois apoderar-se dele era
essencialmente modificá-lo até que deixasse de ser o que era.
O invasor não possuía apreço pela natureza circundante, que via como paisagem
terrivelmente opressora. O seu número era pequeno e insuficiente para poder fazê-la curvar-se
as seus desígnios, por isso convivia numa relação conflituosa, adaptava-se, tornava-se meio
índio, embrutecia-se para suportar o meio ambiente adverso. Se o índio estava bem equipado
para o meio, o forasteiro tinha capacidade de adaptação, era portador de bactérias e vírus
mortais, tinha a retaguarda do Estado. Estas vantagens permitiram que ele submetesse o índio,
tomasse seus filhos, casasse com suas mulheres, se apoderasse dos seus territórios, abrindo
caminho para as práticas de genocídio.
O Estado desempenhou o papel de mediador entre a sociedade luso-brasileira e os
habitantes da floresta, tendo ele objetivos próprios: definir um território que incorporasse as
populações nativas e recebesse as populações luso-brasileiras, particularmente os vadios, e que
fosse aberto à penetração da agricultura e, com isso, propiciasse o aumento das receitas da
fazenda pública. A Coroa buscou incorporar o índio como brasileiro agricultor, obediente e
cumpridor dos ritos religiosos e, para isso, buscou controlar o poder privado de fazendeiros e
negociantes de poaia.
A existência de uma doutrina estatal de proteção ao índio funcionou como um
importante freio para conter o interesse particular contrário. A relação conflituosa, resultante do
choque do sertão com a sociedade envolvente, foi mediada pelas divisões militares. Até 1834,
prevaleceu o controle da Coroa, a quem os comandantes das divisões militares estavam
13
subordinados, porém, a partir daí, as divisões militares passaram a sofrer crescente oposição das
forças políticas mineiras, até que foram dissolvidas e no lugar criaram-se as companhias de
pedestres, passando o Sertão do Rio Doce para a esfera do governo provincial.
Os comandantes das divisões militares se empenharam com vigor para realizar toda a
racionalidade proposta pela Coroa com o projeto de ocupar o Sertão do Rio Doce, colhendo
mais frustrações do que êxitos. Entretanto, foram suficientemente capazes de dar continuidade à
ação político-militar, herdada da doutrina estatal da monarquia portuguesa, principalmente a da
geração do Marquês de Pombal. Os comandantes muito podiam contra negros, mestiços, índios
e brancos pobres, mas pouco contra os poderosos. Com o fim das divisões militares e sua
substituição pela companhia de pedestres, aquela doutrina desapareceu, a presença do governo
central diminuiu, resultando em crescente violência privada. Para contornar a situação, a Coroa
recorreu, na década de 1850, aos frades capuchinhos italianos, transferindo-lhes a tutela sobre
os índios.
A resistência dos índios à invasão dos seus territórios, os ataques às plantações
realizados por índios encurralados pela fome, as agressões de alguns grupos indígenas
desesperados para obter alguma peça de ferro, foram situações que serviram para reforçar o
clichê que exagerava o obstáculo real que estes representavam para o processo de ocupação. A
ferocidade e antropofagia atribuídas aos botocudos alimentavam o ódio no imaginário popular.
A população indígena demonstrava ser impotente diante do invasor, logo no primeiro
contato. Eles foram contatados e atraídos com ferramentas e plantações, tornaram-se
conhecidos, descobriu-se que eram poucos e divididos entre si. Os índios foram sendo sempre
mais pressionados pela sociedade abrangente, que lhes reduziam o território e o acesso aos
meios de subsistência próprios, tornando-os um povo necessitado, faminto, cheio de penúria,
doenças e miséria. O índio passou a sofrer o desprezo, a viver a situação de pária e muitos
caíram no alcoolismo crônico. O contato produziu epidemias, fome, prostituição, degeneração e
desaparecimento étnico. Eles foram eliminados não pela guerra ofensiva, mas pela integração
com a sociedade luso-brasileira.
O Estado representava o momento da razão no processo de domínio das populações
nativas. Era ele o detentor da capacidade de legislar e de fazer a mediação dos interesses em
jogo, mantendo tudo dentro da ordem e da subordinação ao princípio da lei. Somente ao estado
cabia deliberar, ordenar e executar, sendo-lhe privativo o poder da força e o uso da violência. A
legislação e as decisões das autoridades estavam imbuídas desse desejo de ordenar e
racionalizar o processo de ocupação, fazendo com que ele se enquadrasse nos princípios da
civilização e dos valores cristãos. Seus mentores eram herdeiros da época pombalina. A
14
civilização pode ser traduzida por comércio, por abertura das vias de comunicação, por
navegação fluvial, por agricultura de exportação, fontes de riqueza dos indivíduos e do Estado.
Os valores cristãos seriam realizados na catequese e civilização dos índios, que os
incorporassem, através do batizado, do casamento monogâmico, da freqüência à missa e da vida
sedentária, como brasileiros agricultores pacíficos.
Frente às diferentes motivações dos agentes sociais, coube ao Estado garantir sua
presença e, na medida do possível, ordenar o processo pelo qual o Sertão do Rio Doce era
absorvido enquanto território e desaparecia.
A crítica à mineração e a valorização da
agricultura como fonte de riqueza serviram de pano de fundo para o projeto de apossamento do
sertão. Entretanto, no território delimitado pelas Divisões Militares, produzia-se uma
territorialidade sustentada pela atividade agrícola de subsistência, base real para a ocupação. No
lugar de culturas de exportação, as roças de pobre avançaram sobre a floresta, seguindo as
divisões militares, penetrando pelas margens dos rios, pelos caminhos abertos na floresta,
seguindo os negociantes de poaia, os quilombos, os posseiros. A fertilidade dos solos depois da
derrubada da mata e da sua queima, independente das suas propriedades intrínsecas, era o fator
principal que impulsionava a ocupação. Saint-Hilaire criticou essa prática com veemência: “o
terreno que se acaba de semear só apresenta a imagem da destruição e do caos”.
47
Para o
viajante, “toda a sabedoria do lavrador consiste em queimar as matas e semear na época
favorável”.48
Se isso estava distante do que desejada as elites, por outro lado, também conservava a
maior parte do território para futuro uso. Se a conquista do seu território e a absorção das
populações nativas dentro de uma nova lógica, uma nova territorialidade abria caminho à
penetração dos “pobres”; por outro lado, a alta incidência de malária e febre amarela impunha
limites a essa penetração e guardava as terras de floresta para um uso futuro. Referindo-se, a
década de 1940, quando ainda sobrevivia a maior parte da floresta, porém já havia desaparecido
dos textos oficiais e da memória social o Sertão do Rio Doce. Minhas pesquisas confirmam as
restrições que as doenças endêmicas representaram, até que o capital penetrasse na região do
Rio Doce e, nos trinta anos seguintes, mudasse aquela realidade.
Não há restrição à penetração do capital, pois nenhuma lei do
espaço impede que ele, trazendo consigo os trabalhadores, entre de forma
maciça num determinado lugar. Isso aconteceu com o território da Região
do Rio Doce, cuja temporalidade lenta foi acelerada pela sua presença. A
relação era de pouca modificação do espaço num extenso período de
tempo, à medida que o homem, escasso em quantidade, possuía reduzido
15
poder sobre um meio ambiente florestal inóspito, particularmente, pela
presença da malária. O capital modifica essa relação, produzindo
drásticas mudanças no espaço num período de tempo breve, cerca de trinta
anos.49
O fracasso do projeto de navegação do rio Doce não impediu o poder provincial de
persistir no propósito de ocupar a região. O sonho de que o sertão do rio Doce pudesse
proporcionar para Minas uma nova fase de prosperidade, em parte não deixou de ser real,
quando se toma a Zona da Mata com suas lavouras de café, na segunda metade do século XIX.
A partir da década de 1840, também foi ocupado mais intensamente o Jequitinhonha e ocorreu a
colonização do vale do rio Mucuri. Entretanto, a zona do rio Doce, onde eram depositadas todas
as esperanças, em 1800, tornou-se secundária aos interesses oficiais. À medida que não deu
certo como projeto, ficou como fronteira agrícola para gente negra e mestiça, para grupos
indígenas cada vez mais encurralados, ou seja, como espaço sertanejo que se desfazia frente ao
processo de territorialidade. A insalubridade e as doenças endêmicas (malária e febre amarela)
eram fatores que limitavam a fixação da população. Entretanto, a insalubridade foi
negligenciada pelos contemporâneos como fator impeditivo.
Saint-Hilaire, foi uma exceção, pois ele via as febres intermitentes como elemento
proibitivo central para o sucesso do esforço oficial de ocupação, afinal toda sua comitiva foi
contaminada na viagem ao rio Doce: “É incontestável que as terras da Província de Minas
banhadas pelo rio Doce são insalubres, como já disse; é incontestável, também, que chegando à
embocadura do rio, os estrangeiros são quase sempre atacados pelas febres...”
50
Em 1828, o
comandante das divisões militares, Guido Thomaz Marlière, reconheceu que o sertão era
formado de “terras doentias e esse era o principal motivo para o fracasso dos esforços oficiais.51
Essas foram opiniões isoladas que não refletem o ponto de vista dominante da documentação
produzida no período. A malária foi o grande obstáculo à efetiva ocupação das margens do rio
Doce e de muito de seus afluentes, até meados do século XX.52
Conclusão
Se o espaço é a condição categorial do extenso, que abarca as variáveis de forma,
posição, distância, direção, diversidade de direção e as conexões existentes, pode-se afirmar que
o controle dessas variáveis permite estabelecer o controle do espaço. O Sertão do Rio Doce, no
final do século XVIII, era um bioma de floresta tropical, com populações indígenas de baixa
densidade demográfica. O controle desse espaço foi um processo de territorialidade que fez do
sertão
(espaço
territorial
genérico)
território
particularizado.
Isso
não
implicou,
16
necessariamente, a realização do aproveitamento projetado, que serviu de justificativa para os
investimentos estatais. O controle do espaço, que o territorializa, foi um ato político-jurídico
que funcionou como meio de reservá-lo para um uso futuro. Com o início da produção cafeeira
no Brasil, não podemos desconsiderar que as terras cobertas de florestas adquiriram grande
valor, pois era uma reserva decisiva para expansão futura dos cafezais.
1
Cf. Cf. E. J. Hobsbawm. A Era dos Impérios 1875-1914.2ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 66.
A frase “Tudo que é sólido desmancha no ar” é de Marx e Engels. Ela foi utilizada como título da obra de Marshall Berman.
Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar. A Aventura da Modernidade. São Paulo, Global, 1984.
3 REYNAUD, ALAIN et al.O espaço interdisciplinar. S. Paulo, Nobel, 1986.
4 SANTOS, Milton. Sociedade e espaço: a formação social como teoria e como método.
Boletim Paulista de Geografia, São Paulo: AGB, 1977.
5 Alain Lipietz. O capital e seu espaço. São Paulo: Nobel, 1988, p. 105.
6 Utilizo como referência José L. Coraggio. Sobre la espacialidad social y el concepto de región. In: Territorios en transición.
Crítica a la planificación regional en América Latina, Quito, Ciudad, 1987.
7 Cf. José Luis Corraggio. Territórios em transicion y la planificacion regional em América Latina. Quito, Ciudad, 1987, p.
34.
8 Raymundo Faoro. Os donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2 ed. Porto Alegre, Globo; São Paulo,
EDUSP, 1975, v. 1., p. 144.
9 Raymundo Faoro. Idem.
10 Sergio Buarque de Holanda. A herança colonial – sua desagregação. In.: História Geral da Civiliação Brasileira. O Brasil
Monárquico. O processo de emancipação. Tomo II. V. 1. 6ª ed. São Paulo, Bertrand Brasil, 1993, pp. 09-39.
11 Caio Prado Júnior. Formação do Brasil Contemporâneo. 23 ed., São Paulo, Brasiliense, 1995 .
12 Cf. Sérgio Buarque de Holanda. Op. Cit., p. 20.
13
Raymundo Faoro. Op. Cit., p. 146,
14 A historiografia, a partir dos anos oitenta, não deu continuidade a estas interpretações clássicas, pelo próprio abandono das
macro-interpretações em proveito da micro-história.
15 Visiting Research Fellow at the Centre For Brazilian Studies, University of Oxford (January – July 2003) and Pesquisador
Associado ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Cf. http://www.brazil.ox.ac.uk/workingpapers/Malerba45.pdf, em
25 de outubro de 2005.
16 Cf. Haruf Salmen Espindola. Sertão do Rio Doce. Bauru, EDUSC, 2005.
17 O alemão Friedrich Ratzel, na segunda metade do século XIX, introduziu a noção de território na Geografia, retirando-a
das ciências naturais. A Geografia Clássica, que prevaleceu até os anos de 1960, tem o centro de atenção no território
associado ao Estado-Nacional. Neste sentido, reconhece apenas uma única instância territorial e, portanto, uma única
categoria de análise. É o poder do Estado-Nacional que define a territorialidade do espaço. Cf. Mônica Sampaio Machado.
Geografia e Epistemologia: Um Passeio pelos Conceitos de Espaço, Território e Territorialidade. In.:
http://www2.uerj.br/~dgeo/geouerj1h/monica.htm, em 25 de outubro de 2005.
18 Manoel Fernandes de Souza Neto. A ciência geográfica e a construção do Brasil. Terra Livre, 2000, nº 15, pp. 9-20. In.:
http://www.cibergeo.org/agbnacional/adobepdf/Neto.pdf, em 25 de outubro de 2005.
19 Cf. José Reis. Uma epistemologia do território. In.: http://www.ces.fe.uc.pt/publicacoes/oficina/226/226.pdf, em 25 de
outubro de 2005.
20 Milton Santos. Op. cit. p.40-41.
21 Isabel Castanha Gil. Territorialidade e Desenvolvimento Contemporâneo. Revista NERA, Presidente Prudente, Ano 7, n. 4,
p.5-19, jan/jul., 2004. Cf. http://www2.prudente.unesp.br/dgeo/nera/Revista/Arq_4/01_Izabel.pdf, 20/03/2006, p. 6.
Cf. Sérgio Buarque de Holanda. Monções. 3.ed., São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 37. Para um estudo completo sobre o
assunto, veja Heloísa Liberalli Bellotto. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do morgado de Mateus em São
Paulo. (1765-1775). São Paulo: Conselho Estadual de Arte e Ciências Humanas, 1979.
23 O Márquez de Pombal assumiu exatamente no mesmo ano da assinatura desse Tratado (1750).
24 Segundo o autor, os mapas são armas no processo de dominação territorial e, ao mesmo tempo, representam construções
ideológicas altamente eficientes. Cf. Manoel Fernandes de Souza Neto. A ciência geográfica e a construção do Brasil. Terra
Livre, 2000, nº 15, pp. 9-20. In.: http://www.cibergeo.org/agbnacional/adobepdf/Neto.pdf, em 25 de outubro de 2005, p. 1.
2
22
25
O mito da Ilha Brasil dizia que no interior do território delimitado pelo oceano e pelos rios da Prata e Amazonas, tinha, ao
centro, no lugar do nascimento das duas grandes correntes, um vasto lago.
26 Cf. MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria. São Paulo, Moderna, 1997, p. 47.
27 Cf. Jaime Cortesão. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil. Lisboa, Portugália, 1966, p. 42 e 43, v. 1. Aput.
Raimundo Faoro. Op. cit., p. 157.
28 Cf. Kenneth Maxwell. Marquês de Pombal. Paradoxo do Iluminismo. 2. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. p. 48
29 Cf. Manoel Fernandes de Souza Neto. Op. cit., p. 4.
17
30
Cf. Cf. TORRES, João Camilo de Oliveira. História de Minas Gerais. 3ed., Belo Horizonte, LEMI; Brasília, INL, 1980: A
parte dedicada ao período colonial ocupa o 1º volume e parte do 2º.
31 ESPINDOLA, Haruf Salmen. Sertão do Rio Doce. Op. cit.
32 “Matos gerais” era a denominação dada aos espaços cobertos por florestas, nos quais não existiam porções de campo ou
descontinuidades, ou seja, áreas de predomínio da floresta pluvial tropical.
33 Cf. Raymundo Faoro. Op. cit. p. 145.
34 Cf. Idem., p. 154;
35 “ Não duvido que por esses sertão haja muitas aves”. Na origem, indicava o interior e longe do litoral, principalmente em
relação a Lisboa. Com a expansão ultramarina, Portugal passa a ter o domínio de vastos sertões. No Brasil o termo sofre
modificações e ganha o plural “sertões” e o adjetivo “sertanejo”. Cf. Emanuel Araújo. Tão vasto, tão ermo, tão longe: o
sertão e o sertanejo nos tempos coloniais. In.: Mary Del Priore. Revisão do Paraíso. Rio de Janeiro, Campus, 2000, p. 79-84.
36 Cf. Jonaína Amado. Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 8, pp. 145-151.
37 “Chamam-se sertões nesta capitania (Minas Gerais) as terras que ficam pelo seu interior desviadas das povoações de
Minas, e onde não existe mineração”.Cf. José Vieira Couto. Memória sobre as Minas da Capitania de Minas Gerais. In.:
Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM), Belo Horizonte, v. 10, p. 60-166, 1904, p. 111. José Vieira Couto publicou a
obra, em 1779. A Fundação João Pinheiro reeditou a obra em 1994, com o título Memória sobre a Capitania de Minas
Gerais: seu território, clima e produções metálicas – 1749, com estudo crítico de Júnia Ferreira Furtado.
38 Euclides da Cunha escreve: Daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho do sertão quase um deserto - quer se aperte entre as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados
grandes... Cf. Euclides da Cunha. Os Sertões. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 23.
39 Cf. João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. 13 ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
40 Cf. Ivone Cordeiro Barbosa. Sertão: um lugar-incomum . O sertão do Ceará na literatura do século XIX. São Paulo, 1998.
Tese (Doutorado). Orient. Marcos A. Silva, FFLCH da Universidade de São Paulo, p. 27-8.
41 Cf. Carta Régia de 13 de maio de 1808. In.: Manuela Carneiro da Cunha (org.). Legislação indigenista no Século XIX. São
Paulo: Edusp: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992, p. 57.
42 Cf. Carta Régia de 13 de maio de 1808. In.: Manuela Carneiro da Cunha (org.). Legislação indigenista no Século XIX. Ed.
cit., 57-60.
43 Cf. Haruf Salmen Espindola. Sertão do Rio Doce. Op. Cit., p. 413.
44 Poaia é a Ipecacuanha (Cephaelis Ipecacuanha Brot.), da família das Rubiaceae. Essa droga do sertão possui diversos
nomes populares, tais como Ipeca e Poaia. Na primeira metade do século XIX, adquiriu importância na pauta de exportações,
principalmente para Minas Gerais. Tem múltiplas terapêuticas: modificador das secreções, emética, expectorante, antidisentérica, sedativa, diaforética, hemostática, anti-hemorrágica, anti-parasitária; tratamento da difteria, envenenamento,
cólica, inflamação da mucosas da via respiratória, infeção intestinal, disenteria amebiana, entre muitas outras. Cf.
http:www.ciagri.usp.br/planmedi/pm0395.htm
45 Haruf S. Espindola. Sertão do Rio Doce. Op. Cit., pp. 296-303.
46 Cf. Idem, pp. 190-202.
47 Cf. Auguste de Saint-Hilaire. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ed. cit., p. 90.
48 Cf. Idem., p. 106.
49 Haruf Salmen Espindola. Práticas econômicas e meio ambiente na ocupação do sertão do Rio Doce. Caderno de Filosofia
e Ciências Humanas, Belo Horizonte, v. 8, n. 14, p. 67-75, 2000, p.
50 Cf. Auguste de Saint-Hilaire. Viagem ao Espírito Santo e rio Doce. Ed. cit., p. 86.
51 Cf. Relatório de Marlière ao governo provincial, de 28 de março de 1828, RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 529.
52 Cf. Haruf Salmen Espindola. A história de uma formação sócio-econômica urbana: Governador Valadares. Ed. cit., p. 155.;
_______. Associação Comercial: sessenta anos de história. Ed. cit., p. 27-28.
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