A HETEROGENEIDADE DA ESCRITA NA GRAMÁTICA FRADIQUEANA Lázaro Carlsson – IEL/UNICAMP No Brasil, do final do século XIX até a atualidade, tem sido exacerbado o número de obras gramaticais que tentam normatizar a língua portuguesa com metodologias extremamente arcaicas e que reforçam, cada vez mais, uma concepção tradicional e errônea de homogeneidade das modalidades do oral e escrito. Toda a nossa educação sobre língua materna se baseia, inicialmente, na aprendizagem por convivência social e depois, principalmente, através de livros didáticos, utilizados durante a escolarização e exigentes por um retorno conteudista em futuras produções textuais, devendo ser livres de erros gramaticais. Talvez, a instituição escolar pretenda nos formar literatos ao longo dos onze anos em que ficamos nela. Este processo de padronização iniciou-se no período (da estética literária) realista, quando o país assumiu seu papel significativo de nação independente nos moldes positivistas. Essa tradição gramatical fundou-se como um manual norteador de um povo usuário da língua portuguesa, mas ainda sem identidade sociocultural constituída, influenciando o imaginário lingüístico do mesmo. Autores, como Augusto Freire da Silva (1883), Eduardo C. Pereira (1907) e João Ribeiro (1908), produziram suas gramáticas (antecessoras das atuais que se denonimam “novas” e “modernas”) sem nenhuma pesquisa e/ou análise lingüística profunda do português falado na época, a não ser um estudo filológico mimetizado das publicações lusitanas que, por sua vez, retomavam obras latinas advindas das alexandrinas, há mais de 2.000 atrás. Esse fato é confirmado pelas palavras de Perini (2001), apontando que “os estudos de gramática portuguesa tendem atualmente a reduzir-se ao exame da literatura anterior (que, por sua vez, muitas vezes se limita a repetir ou parafrasear a literatura ainda mais antiga), complementando, ocasionalmente, com opiniões muito justificadas. Observa-se em alguns casos, uma tentativa, sempre muito tímida, de lançar mão de dados da língua atual”. Entretanto, ainda em 1928, inserido no período de ruptura sociocultural conhecido como 1ª Geração Modernista, Mendes Fradique 1 publica sua Gramática Portuguesa pelo Método Confuso 2, causando talvez a primeira trinca nessa tradição gramatical que, até hoje, permeia nossa cultura enunciativa com dicotomias lingüísticas preconceituosas. A obra também contem, fora as tantas páginas destinadas a sua gramática (parodiada de outras da mesma época), um apêndice antológico dedicado a quarenta e nove autores dispostos, em sua maioria, em ordem alfabética. Mas o método confuso também atua nessa parte da obra, que não receberá a nossa atenção nesse trabalho. Observemos as palavras de Fradique em seu prefácio: “Aos que quizerem aprender grammatica, ahi vae este compendio d’ella, ao que juntei uma farta colleção de excertos de autores classicos e contemporaneos, pois, como é sabido, nada há que mais illustre os estudiosos e mais lhe enriqueça o conhecimento da lingua do que a leitura dos bons autores”. (p. 6) Com seu estilo humorístico e irônico, o autor apresenta a seus leitores uma gramática bastante distinta e refletora de seu imaginário modernista, que não “vingou” como clássico e nem gerou polêmica entre os gramáticos por seu caráter confuso e associável ao movimento cultural, possivelmente transitório e efêmero, no qual se encontrava o país. Além disso, entre referências incorretas, conceituações literais ou inesperadas, mistura de critérios, sua sátira engendra uma paródia com diversos elementos como: (A) desestruturação da ideologia gramatical tradicional observada no silogismo das páginas iniciais: 1 Pseudônimo de José Madeira de Freitas (3/4/1893-1944), um médico capixaba, autor de muitas obras, como História do Brasil pelo Método Confuso (1922). 2 O uso desse termo é explicado por Raimundo de Menezes, que afirma ser retirado por Fradique de uma das crônicas de João do Rio, e pelo autor, comentando ter se baseado em publicação de Tomás Delfino. “Grammatica é a arte de fallar e escrever incorrectamente um lingua. Segundo affirmam os grammaticos, a grammatica é o conjunto de regras tiradas do modo pelo qual um povo falla usualmente uma lingua. Ora, o povo falla sempre muito mal, e escreve ainda peiormente: logo, logo, não é de estranhar que seja a grammatica a arte de fallar e escrever incorrectamente uma lingua”. (p. 7) (B) presença marcante de intertextualidade: “São vivas as linguas que estão em uso actual e vulgar entre os homens”. São semi-mortas as linguas que, embora não estejam verdadeiramente mortas, passam, todavia, annos, lustros e decennios, sem que dêm sequer um ar de sua graça. São mortas as que já se não fallam entre as collectividades nacionaes, mas apenas atravancam as estantes dos letrados e as prateleiras das mercearias”. (p. 11) “As pessoas grammaticaes mais conhecidas são cinco: Mario Barreto João Ribeiro Laudelino Freire Assis Cintra No Telefone, a primeira pessôa é a que fala; a segunda é a que não ouve; e a terceira é a Light (Tercius Gaudet)”. (p. 64) (C) técnicas visuais difundidas nas décadas de 50 e 60: X XXX XXX XXXXX XXX XXXXXXXXXXXXXXXXX XXXXXXXXXXXXXXXXX XX XX X X X X X X X X X X XX XX XXXXXXXXXXXXXXXXX XXXX XXXX XXX XXX X X XXXXXXXXXXXXX X XX X X XX X X X X X X X X X X XXX X XXX XX X XX XX X XX X X X X X X XX XX XX (p. 51) Essa obra extemporânea, mesmo se autodenominando confusa, não se orienta somente por uma critica contra a norma padrão e suas gramatiquices, mas também pela relação entre o oral/escrito, o que nos interessa mais. Em diversos pontos dessa gramática, que segue o mesmo procedimento da gramática padrão em sua época, podemos encontrar traços que apontam para uma escrita heterogênea, teorizada por Corrêa (1997) ao analisar as redações de vestibulandos da década de 90. Esse lingüista procura ruir com a ideologia de uma escrita homogênea, pura, sem interferências do oral em sua constituição, pois existe uma mixagem de modalidades em seu interior. E esse modo heterogêneo da escrita pode ser observado, segundo ele, em qualquer produção textual. Por isso, atentamos para essa publicação do século passado. Seguindo os princípios de Correa (1997), através de três eixos fundamentados no imaginário do enunciador – no nosso caso, Fradique – tentaremos suscitar a existência desta heterogeneidade numa gramática arquitetada pelo método confuso. Porém, seu método exótico também segue uma racionalidade discursiva. Vejamos abaixo esses eixos: (1) “modo de constituição da escrita em sua suposta gênese”: o autor, ao se apoderar da escrita, utiliza-a meramente como uma ferramenta de transcodificação fidedigna da modalidade oral para a modalidade escrita. Em seu imaginário, Fradique faz uso de uma escrita convencionalizada, que acredita ser a representante fiel dos sons produzidos pelos falantes da língua materna, a fim de produzir seu discurso textual. E é com essa escrita regrada, entre outras normas, pela ortografia e pela acentuação vigente no começo do século XX (em momento algum ele agride as normas ortográficas) que ele cria sua paródia e desfere suas criticas à(s): - Fonologia: (1a) “Prothese é a parte do curso odonthologico em a qual se estuda e pratica a fabricação de dentaduras, bridges, corôas, pivots e todas as demais porcarias architectonicas que os dentistas plantam na bocca aberta dos clientes. Encontra-se tambem na cirurgia o recurso frequente á prothese, como nos casos de resecção de maxilares, nas orthoplastias, etc.“ (p. 20) (1b) “Na linguagem a prothese é um recurso da ignorancia. Pela prothese se faz o acrescimo de syllabas ao começo as palavras. Ex.: arrecebo em logar de recebo desinquieto “ “ “ inquieto arraia “ “ “ raia arrevirar “ “ “ revirar” (p. 20) - Morfologia: (1c) “A lexicologia3 é a parte mais cacête da grammatica: estuda a classificação do vocabulos, como si fosse isso preciso ou mesmo util aos interesses vitaes do genero humano.” (p. 52) - Sintaxe: (1d) “A Sintaxe, segundo define Alfredo Gomes, é a parte da grammatica que (ca-que) (*)4 ensina a concordância das palavras e orações, a bôa escolha dos adjunctos, etc. 3 Antiga designação dada à Morfologia. Esta definição serve indistinctamente para syntaxe ou para director de Instrucção Publica, pois a esta autoridade incube egualmente a escolha de adjunctos e de adjunctas de 1ª, 2ª e 3ª classe.” (p. 76) - Figuras de Linguagem: (1e) “Chamam-se figuras de sintaxe as modificações da ordem ou da estructura normaes da phrase, tendentes ao embellezamento da linguagem.” (p. 86) - Vícios de Linguagem: (1f) “Vicios de linguagem são a consequencia dessa burrice consuctudinaria, em que respiram os falladores de um lingua indefesa.” (p. 88) - Sociedade e suas instituições públicas e privadas. (2) “a apropriação da escrita em seu estatuto de código institucionalizado”: diferente do eixo acima, o autor assume a escrita como autônoma, auto-suficiente, expondo sua perspectiva de língua escolarizada na maneira de representar a oralidade. Ele sobreleva a escrita padrão e, conseqüentemente, a sua própria produção textual, pois acredita numa escrita como código prestigiado, constituído e translúcido. Na sua crítica, Fradique insere o método confuso na gramática tradicional (já cheia de barafundas), mas não se usa de construções agramaticais em sua dissertação. Isso revela claramente um escrevente cônscio de sua condição como usuário de um código institucionalizado. Os exemplos citados em (1) podem ser reutilizados na ilustração desse eixo, contudo, vejamos outros trechos no intuito de nos aprofundarmos no estilo da gramática fradiqueana: (2a) “SUBSTANTIVO é a palavra que designa o ser. Ex.: Pedro, tinta, gato As vezes designa o não ser. Ex.: nada, zero” (p. 53) (...) “O substantivo póde ser primitivo ou derivado. É primitivo quando já se não usa mais. Ex.: roupa feminina, cabellos pentaveis, decencia choreographica, probidade politica, direito de voto, tilbury, bacamarte, pudor literário, pão ao domingo, café de café, peixe fresco, vassoura, etc. É derivado quando procede de outro substantivo. Ex.: queijo, que deriva de leite.” Nesse asterisco, Fradique notifica que “é cacophonico, mas vae assim mesmo”. Entretanto, na maioria das notas de rodapé, ele simplesmente não executa nenhum elo de referência com o texto corrente. Suas citações direcionam-se para receitas culinárias (“CREME DE MILHO VERDE - rala-se milho verde bem novo em um côco, mistura-se tudo e mexe-se bem, passa-se num guardanapo, adoça-se, junta-se uma colher de manteiga, leva-se ao fogo até engrossar, não muito, sem deixar ferver. Tira-se, depois de deixar esfriar um pouco, e põe-se numa fôrma com manteiga. Cozinha-se em banho-maria no forno.”), medicinais (“Para a dôr, o cansaço, a inchação dos pés, depois de umas grande caminhada ou de um baile, banhal-os com agua quente e sabão, depois friccional-os bem com um mistura de alcool e succo de limão em partes eguaes .”) ou observações curiosas (“Se as toalhas e guardanapos estão manchados com chá, podem ser tiradas essas nódoas applicando-lhes glycerina. Um pouco da melhor glycerina deve ser esfregada nas nódoas antes de serem mandadas para lavagem as peças.”) para solucionar problemas do cotidiano. 4 (p. 55) Observe a relação que o autor faz quanto ao gênero dos substantivos: (2b) “As palavras que, no masculino, terminam em ão, fazem o feminino em ella: cão cadela boião tijella portão cancella furacão procella lampião vella” (p. 57) (2c) “As palavras que, no masculino, terminam em el, fazem o feminino em ôa: batel canôa laurel corôa coronel patrôa pastel brôa” (p. 58) (2d) “As palavras que, no masculino, terminam em eito, fazem o feminino em ama: leito cama peito mamma conceito fama sujeito dama Exceptuam-se direito que faz chicana e prefeito faz Light.” (p. 59) (3) “a circulação do e4screvente pelo imaginário sobre o modo de constituição da escrita”: ao longo do discurso do autor, elementos bakhtinianos, como dialogia e polissemia (Bakhtin, 1992), vão se apresentando claramente por estar sempre se referindo àquilo que, segundo Corrêa (1997), já foi: - falado: (3a)“Ex.: O que em portuguez seria: INDEPENDENCIA OU MORTE! Seria em chinez: Ti-chiu-fu Ti – independência; chiu – ou; fu – morte.“ (p. 11) - ouvido: (3b)“A lettra F é, phonologicamenre, um P furado, um P com escapamento. Ex.: Pneu Si se lhe dér um furo, faz FFFFFFFFF” (p. 35) - escrito: (3c)“E – segunda vogal. Emprega-se frequentemente como iniciaes dos annuncios de Empresta-se dinheiro, etc.” (p. 25) - lido: (3d)“Esta endelechia se intitula: O PORQUE DE TODAS AS COISAS ou ENDELECHIA DA PHILOSOPHIA Natural e Moral contendo todos os problemas de Aristotoles, etc., etc. LISBOA Na Typographia Rolandiana 1818 Com licença da mesa de desembargo do Paço.” (p. 10) Através desses trechos e de outros, notamos resgates freqüentes das experiências orais e/ou escritas contidas no imaginário fradiqueano, além de ser perceptível a inter-relação com outros enunciados e outras vozes nessa paródia gramatical. As maiores exemplificações desses traços são justamente algumas notas de rodapé, onde Mendes Fradique expõe seus conhecimentos populares ou como profissional da área médica. Tais notas podem até ser úteis como conselhos aos leitores possivelmente desinteressados no seu conteúdo irônico. Com isso, elas também podem remover conscientemente a real intenção de seu livro para um campo de confusões, seguindo o próprio método, e de futilidades. Se a crítica não “pega”, pelo menos seus conselhos de rodapé servirão para alguma coisa. Contudo, o autor formula uma obra pioneira, obtendo um resultado inovador dentro das críticas à estrutura padrão e prestigiada da língua portuguesa. Atualmente, a gramática fradiqueana adquire sua relevância dentro da lingüística e dentro das reflexões que se desenvolve sobre nossa língua materna. As pesquisas que se construirão em relação à obra formularão uma lógica plausível para toda a confusão proposital de Fradique. Referências Bibliográficas: AUTHIER-REVUZ, J. (1998): Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Campinas, SP: Editora da UNICAMP. BAGNO, M. (2001): Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa. São Paulo, SP: Parábola. __________ (2002): Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo, SP: Parábola. BAKHTIN, M. (1992): Estética da criação verbal. São Paulo, SP: Martins Fontes. CASTILHO, A. T. (org.) (2002): Gramática do português falado. 4ª ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP. V. 1 CORRÊA, M. L. G. (1997): “O modo heterogêneo da constituição da escrita”. Campinas, SP: Tese (Doutorado em Lingüística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. FRADIQUE, M. (1985): Gramática portuguesa pelo método confuso. 4ª ed. Vitória, ES: Rocco/Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES. MARCUSCHI, L. A. (2001): Da fala para e escrita: atividades de retextualização. 3ª ed. São Paulo, SP: Cortez. PERINI, M. A. (2001): Gramática descritiva do português. 4ª ed. São Paulo, SP: Ática.