artigo - Metodista

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ETAPA IV
APOIO AO PROFESSOR
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Filosofia:uma janela aberta
O pedido para que se defina a palavra filosofia ou que se indique qual
é a sua tarefa, não raro, remete à ideia de um interesse pelo saber e uma
atividade que tem gosto pela crítica. Por isto mesmo a filosofia seria capaz
identificar o fundamento daquilo que investiga, chegar ao que sustenta o
saber, as ideias, os hábitos, os modos de ser, portanto, de chegar à raiz que
alimenta de seiva o que se vive. Desta perspectiva, a filosofia se assemelha ao
que diz a poetisa: “gosto de ir até o fundo da cisterna e revirar o lodo, tirar
ele com a mão, me emporcalhar bastante, só pra depois ver a água minando
clarinha de novo.” (PRADO, 2006, p. 71)
Em que pese que os saberes filosóficos e aquela curiosa postura do exercício filosófico confiram a ela certa singularidade, é certo dizer que isto não
é um privilégio ou exclusividade da filosofia. Seguramente, os saberes da literatura, da matemática, da história, enfim, de outras áreas do conhecimento
também podem realizar esta empreitada.
Parece, todavia, que a filosofia e o seu exercício apontam para algo mais
profundo e que sustentaria a curiosidade ou a crítica: ela é um insistente
convite para manter a disponibilidade para espantar-se, admirar-se, de se
deixar envolver com o mundo.
Dirá Merleau-Ponty que “a verdadeira filosofia é reaprender a ver o
mundo, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo com
tanta “profundidade” quanto um tratado de filosofia.” (1999, p. 19) Aqui a
referência é ao procedimento fenomenológico de retornar às coisas mesmas
(redução eidética), de se voltar uma vez mais para o mesmo mundo como se
o víssemos pela primeira vez, reconhecendo que a relação dos corpos com
o mundo sempre poderá se configurar de outros modos e suscitar outros
sentidos, novos saberes, jeitos diferentes de organizar o viver.
Retomando o pensamento de São Tomás de Aquino e Aristóteles, Josef Piper dirá que o princípio do filosofar é a admiração (PIEPER, 2007, p.
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Wesley Adriano
Martins Dourado possui
graduação em Filosofia
pela Universidade
Metodista de São Paulo
(2000), graduação em
Teologia pela Faculdade
de Teologia da Igreja
Metodista (1997);
mestrado em Educação
pela Universidade
Metodista de São Paulo
(2003) e doutorando
em educação pela
mesma Universidade.
Atualmente é professor
auxiliar da Universidade
Metodista de São
Paulo, coordenador do
curso de filosofia desta
Universidade e professor
titular de filosofia da
Escola Municipal de
Ensino Alcina Dantas
Feijão.
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a filosofia e o seu exercício apontam para
algo mais profundo e que sustentaria
a curiosidade ou a crítica: ela é um
insistente convite para manter a
disponibilidade para espantar-se, admirarse, de se deixar envolver com o mundo
17)1, que se sustenta na experiência de não-conclusividade (p. 12), de saber-se como inacabado, como forjador de si mesmo e que, por isto
mesmo, recusa reduzir a vida ao que é necessário,
ao que é útil (p. 08), afirmando a incomensurabilidade da filosofia (p.09), e a possibilidade que
ela, juntamente com a poesia, com a proximidade
da morte, com o Eros, tem de, abalando o nosso
existir (p.12), colaborar para o ultrapassamento
do mundo cotidiano do trabalho.
A admiração, como princípio do filosofar,
caracteriza a filosofia em sua condição de liberdade, “de não se deixar usar, de não ser disponível para um fim. Filosofia não é um saber de
funcionário (...)” (p. 17) e, por isso, a sua validade não decorre da utilidade ou aplicação.
Por esta razão que Pieper afirma, à semelhança de Merleau-Ponty, que o “filosofar é a
forma mais pura do theorein, do speculari, do
puro olhar receptivo sobre a realidade, no qual
as coisas dão as medidas e a alma é exclusiva1 Cf. PIEPER, Josef. Que é Filosofar? São Paulo: Loyola, 2007, para
acompanhar os detalhes da argumentação do filósofo sobre a
relação entre a admiração e a filosofia.
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livros
Nem sempre é fácil distinguir entre boas propostas e
opiniões infundadas, entre verdades e preconceitos, principalmente se analisarmos as peculiaridades das diferentes sociedades ao longo de nossa história. Para auxiliar
docentes e estudantes nessa tarefa, os professores de
fi losofia Bruno Guimarães, Guaracy Araújo e Olímpio
Pimenta lançam, pela Autêntica Editora, o livro “Filosofia como esclarecimento”, que funciona como um
manual que acompanha o desenvolvimento da relação
entre o exercício da razão e a conquista da liberdade, sem
perder de vista os pensadores e suas motivações originais,
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contextualizadas na época em que viveram e atuaram.
Os principais aspectos da reflexão dos pensadores
e das correntes fi losóficas examinados foram a concepção de razão e as práticas de vida efetivas propostas em
cada caso. “Evitamos a tentação – recorrente entre os
fi lósofos – de buscar soluções universais para suas preocupações, o que facilmente resvala para o dogmatismo,
inimigo perigoso de toda postura crítica. Associada ao
conformismo e à falta de coragem, a atitude dogmática
impede o mais importante: a conquista da autonomia
por comunidades e indivíduos que se voltam para seu
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mente receptora destas”. (PIEPER,
2007, p. 19)
O espanto, a admiração, olhar novamente o que nos cerca, a veneração do
mundo (p. 20) é a possibilidade mesma
da filosofia. “Se o mundo não é mais
visto como criação, então não pode haver mais theoria em sentido pleno”. (p.
21) A admiração, como o princípio do
filosofar, que recupera a visão do mundo como criação, devolve à filosofia a
capacidade de perceber a singularidade
das coisas no seu entrelaçamento com a
totalidade2 do mundo.
Filosofar significa justamente
isto: experimentar que o meio ambiente próximo, determinado pelos
fins vitais imediatos, pode ser abalado, mais, deve ser abalado reiteradamente por meio do chamado inquietante do “mundo”, da realidade
total que espelha as eternas essências das coisas. Filosofar significa
(...) ultrapassar o meio restrito do
mundo do trabalho na direção do
vis-à-vis de l’univers. Trata-se de
um passo que conduz à amplidão
das estrelas, que não são um teto
sobre a nossa cabeça. Um passo que
2 Cf. PIEPER, Josef. Abertura para o Todo: a Chance
da Universidade. Disponível em: http://www.hottopos.
com.br/mirand9/abertu.htm. Último acesso: dezembro
de 2016.
se mantém constantemente aberto
para o retorno, pois o homem não
pode viver assim por muito tempo.
(PIEPER, 2007, p 36)
COTIDIANO
É este envolvimento com o mundo,
esta “miração” do cotidiano, como disse
Adélia Prado3, que sustenta a afinidade
da filosofia com o “mirandum”. E quando a filosofia se distancia da possibilidade de transcendência, de ampliação do
sentido, para usar a linguagem fenomenológica, ela se converte em pseudofilosofia (PIEPER, 2007, p. 14). Aqui não
há ultrapassamento do mundo cotidiano do trabalho, da utilidade comum.
Dito de modo poético, tal como
o faz Adélia Prado no poema Paixão
(1978, p.75):
De vez em quando Deus me
tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
E, por isto mesmo, é preciso se
postar no alpendre da vida para olhar
o mesmo jardim, as mesmas pessoas, o
mesmo mundo se se quiser seguir com
o filosofar.
3 Cf. DOURADO, W. A. M. Os prados de Adélia:
considerações sobre o cotidiano e a educação.
Disponível em: http://www.hottopos.com/rih40/93110Wesley.pdf. Último acesso: dezembro de 2016
esclarecimento”, afirmam os autores na apresentação.
Em seis capítulos, abordam o esclarecimento grego, com os adversários
de opinião Sócrates e Platão, passam pelo Renascimento e chegam ao Iluminismo e suas influências nos pensadores Kant e Nietzsche, visitando também
Hegel, Marx e os filósofos da Escola de Frankfurt Adorno e Horkheimer,
bem como o debate entre Foucault e Habermas, já no século XX. A obra
pretende assim acompanhar as metamorfoses da razão em seu devir histórico.
A obra integra a Coleção Práticas Docentes, que busca fazer a mediação
entre o conhecimento produzido no ensino universitário e as práticas educacionais dos professores da educação básica, em suas três etapas: educação
infantil, ensino fundamental e ensino médio.
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Sem os trevos no jardim,
não sei se escreveria esta escritura,
ninguém sabe o que é um dom.
Permaneço no alpendre olhando a rua,
vigiando o céu entristecer de crepúsculo.
Desta perspectiva o filosofar é um desafiador convite para abrir a
janela e/ou para nela se postar e ver as coisas ordinárias do cotidiano
em sua relação com a totalidade das coisas.
Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração. (PRADO, 2012, p. 105)
líticos
A admiração evidencia um não saber que move na direção do
mundo, posto que se está tomado de um anseio por saber. (PIEPER,
2007, p.46) “Só pode se admirar quem “ainda não” sabe. (p. 47)
A filosofia é um postar-se na varanda para olhar a rua. A filosofia
é uma janela, para o mundo aberta.
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quando a
filosofia se
distancia da
possibilidade de
transcendência,
de ampliação do
sentido, para
usar a linguagem
fenomenológica,
ela se
converte em
pseudofilosofia
REFERÊNCIAS
Neste mesmo poema a poeta diz:
MERLEAU-PONTY, Maurice.
Fenomenologia da Percepção. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
PIEPER, Josef. Que é Filosofar? São Paulo:
Loyola, 2007
PRADO, Adélia. O coração disparado.
Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1978, 2ª
edição.
____________. Bagagem. Rio de Janeiro:
Record, 2012. (1976)
____________. Solte os Cachorros. Rio de
Janeiro: Record, 2006.
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