psiquiatria REVISTA Ano 2 • n°6 • Nov/Dez 2012 ISSN 2236-918X DEBATES EM Publicação destinada exclusivamente aos médicos www.abp.org.br ARTIGOS Saúde Mental da Mulher: transtornos psiquiátricos relacionados ao ciclo reprodutivo Intervenção pró ativa em Psiquiatria [Ensino da psiquiatria] O Programa de Apoio ao Dependente Químico em ação: descrição, análise e dificuldades Espiritualidade e Saúde Mental: o que as evidências mostram? Cérebros, Máquinas e Psiquiatria [Psiquiatria Computacional] Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 1 1 12/11/12 11:30 3:36 PM ////////////// EDITORIAL OPINIÃO Prestígio consolidado A Revista Debates em Psiquiatria consolida-se a cada número, e já é uma das mais lidas pelos psiquiatras associados da ABP e mesmo por profissionais de outras áreas. Escrita para o psiquiatra no exercício de sua especialidade, serve assim em seu propósito de auxiliar o clínico na sua prática e na sua educação continuada. Neste número temos o artigo de Rennó e colaboradores sobre transtornos psiquiátricos na mulher, relacionados ao seu ciclo reprodutivo. O assunto foi um dos mais concorridos no XXX Congresso Brasileiro de Psiquiatria, especialmente na delicada questão do tratamento farmacológico, e, além disso, a saúde da mulher é hoje assunto prioritário em políticas de saúde coletiva no país. Moreira-Almeida e Stroppa trazem outro artigo igualmente concorrido nos recentes congressos da ABP, que é o delicado assunto sobre o papel da espiritualidade e religiosidade na saúde mental. Assunto este para o qual muitos psiquiatras se sentem desconfortáveis em abordá-lo com seus pacientes ou simplesmente o ignora. Os autores mostram a importância do tema na vida de pacientes esquizofrênicos e com transtorno do humor bipolar, por exemplo, em uma bem cuidada revisão. ANTONIO GERALDO DA SILVA EDITOR Outro tema de impacto na psiquiatria nacional é o problema da dependência química, que tem suscitado polêmicas ante a reatividade do poder publico face ao aumento da escalada das drogas em nossa sociedade. Borges e colaboradores nos mostram um modelo de apoio ao dependente químico instituído pelo governo do Distrito Federal, um ano após sua im­ plantação. A experiência dos autores é de grande valor para se avaliar futuras instituições de programas semelhantes no país. Márcia Gonçalves relata em seu artigo uma experiência com o ensino da psiquiatria clínica a estudantes de medicina em Taubaté. Ele apresenta um plano de ensino em que os estudantes aprendem a abordar psíquica e socialmente os pacientes, a usar questionários de triagem populacional de sintomas psiquiátricos de depressão e ansiedade, e correlacioná-los com qualidade de vida dos doentes. Ela também mostra como no hospital geral a depressão e a intenção suicida são subdiagnosticadas, e o risco que isso traz para os que procuram por esse serviço. Por fim, um artigo instigante sobre os fundamentos teóricos da computabilidade e seu uso como modelo em psiquiatria é apresentado por Portela Câmara. O autor, psiquiatra e mate­ mático, considera o modelo computacional como o mais adequado ao entendimento dos transtornos maiores da psiquiatria, e propõe marcos referenciais que podem ser uteis à definição de causalidade nas doenças mentais, bem como para uma delimitação epistemológica do campo da ação psiquiátrica. A interdisciplinaridade da matéria e sua atualidade é também um projeto ideal para a modernização do ensino da psiquiatria. JOÃO ROMILDO BUENO EDITOR Os editores Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 3 3 12/11/12 11:30 //////////// EXPEDIENTE EDITORES Antônio Geraldo da Silva João Romildo Bueno DIRETORIA EXECUTIVA Presidente: Antonio Geraldo da Silva - DF Vice-Presidente: Itiro Shirakawa - SP 1º Secretário: Luiz Illafont Coronel - RS 2º Secretário: Mauricio Leão - MG 1º Tesoureiro: João Romildo Bueno - RJ 2º Tesoureiro: Alfredo Minervino - PB SECRETÁRIOS REGIONAIS Norte: Paulo Leão - PA Nordeste: José Hamilton Maciel Silva Filho - SE Centro-Oeste: Salomão Rodrigues Filho - GO Sudeste: Marcos Alexandre Gebara Muraro - RJ Sul: Cláudio Meneghello Martins - RS CONSELHO FISCAL Titulares: Emmanuel Fortes - AL Francisco Assumpção Júnior - SP Helio Lauar de Barros - MG Suplentes: Geder Ghros - SC Fausto Amarante - ES Sérgio Tamai - SP ABP - Rio de Janeiro Secretaria Geral e Tesouraria Av. Rio Branco, 257 – 13º andar salas 1310/15 –Centro CEP: 20040-009 – Rio de Janeiro - RJ Telefax: (21) 2199.7500 Rio de Janeiro - RJ E-mail: [email protected] Publicidade: [email protected] 4 revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 4 EDITORES ASSOCIADOS Itiro Shirakawa Alfredo Minervino Luiz Carlos Illafont Coronel Maurício Leão Fernando Portela Camara CONSELHO EDITORIAL Almir Ribeiro Tavares Júnior - MG Ana Gabriela Hounie - SP Analice de Paula Gigliotti - RJ Carlos Alberto Sampaio Martins de Barros - RS Carmita Helena Najjar Abdo - SP Cássio Machado de Campos Bottino - SP César de Moraes - SP Elias Abdalla Filho - DF Érico de Castro e Costa - MG Eugenio Horácio Grevet - RS Fausto Amarante - ES Fernando Portela Câmara - RJ Flávio Roithmann - RS Francisco Baptista Assumpção Junior - SP Helena Maria Calil - SP Humberto Corrêa da Silva Filho - MG Irismar Reis de Oliveira - BA Jair Segal - RS João Luciano de Quevedo - SC José Alexandre de Souza Crippa - SP José Cássio do Nascimento Pitta - SP José Geraldo Vernet Taborda - RS Josimar Mata de Farias França - AL Marco Antonio Marcolin - SP Marco Aurélio Romano Silva - MG Marcos Alexandre Gebara Muraro - RJ Maria Alice de Vilhena Toledo - DF Maria Dilma Alves Teodoro - DF Maria Tavares Cavalcanti - RJ Mário Francisco Pereira Juruena - SP Paulo Belmonte de Abreu - RS Paulo Cesar Geraldes - RJ Sergio Tamai - SP Valentim Gentil Filho - SP Valéria Barreto Novais e Souza - CE William Azevedo Dunningham - BA CONSELHO EDITORIAL INTERNACIONAL Antonio Pacheco Palha (Portugal), Marcos Teixeira (Portugal), José Manuel Jara (Portugal), Pedro Varandas (Portugal), Pio de Abreu (Portugal), Maria Luiza Figueira (Portugal), Julio Bobes Garcia (Espanha), Jerónimo Sáiz Ruiz (Espanha), Celso Arango López (Espanha), Manuel Martins (Espanha), Giorgio Racagni (Italia), Dinesh Bhugra (Londres), Edgard Belfort (Venezuela) Jornalista Responsável: Lucia Fernandes Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica e Ilustração: Lavinia Góes Produção Editorial: Luan Comunicação Impressão: Gráfica Editora Pallotti 12/11/12 11:30 //////////////////// ÍNDICE NOV/DEZ 2012 6/artigo Saúde Mental da Mulher: transtornos psiquiátricos relacionados ao ciclo reprodutivo por JOEL RENNÓ JR, RENATA DEMARQUE, HEWDY RIBEIRO LOBO, JULIANA PIRES CAVALSAN e ANTONIO GERALDO DA SILVA 14/artigo Intervenção pró ativa em Psiquiatria [Ensino da psiquiatria] por MÁRCIA GONÇALVES 24/artigo O Programa de Apoio ao Dependente Químico em ação: descrição, análise e dificuldades por KARINNE TAVARES BORGES, SONIA GERHARDT REZENDE, MARCELA FAVARINI NUNES e FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA 34/artigo Espiritualidade e Saúde Mental: o que as evidências mostram? por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA e ANDRÉ STROPPA 42/artigo Cérebros, Máquinas e Psiquiatria [Psiquiatria Computacional] por FERNANDO PORTELA CÂMARA * As opiniões dos autores são de exclusiva responsabilidade dos mesmos Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 5 5 12/11/12 11:30 ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO por JOEL RENNÓ JR1, RENATA DEMARQUE2, HEWDY RIBEIRO LOBO2, JULIANA PIRES CAVALSAN2 E ANTONIO GERALDO DA SILVA3 SAÚDE MENTAL DA MULHER: TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS RELACIONADOS AO CICLO REPRODUTIVO WOMEN’S MENTAL HEALTH: PSYCHIATRIC DISORDERS RELATED TO REPRODUCTIVE CYCLE Resumo A saúde mental, antes focada principalmente na patologia psi­ quiá­trica, tem como objeto de estudo todo o contexto biopsicossocial no qual o sujeito está inserido. Além disso, mais recentemente, tem surgido maior interesse na investigação das possíveis diferenças entre gêneros. Sobre a mente feminina, é imprescindível que os profissionais da saúde tenham a atenção e o conhecimento necessários sobre os transtornos psíquicos associados ao ciclo reprodutivo, devido tamanha repercussão que causam não somente à paciente. Diversas questões ainda estão em aberto no que se refere a um tema tão amplo quanto à saúde mental da mulher. Neste artigo traremos um breve panorama histórico, atualidades e perspectivas. Palavras-chave: Mulher; Cuidado; Saúde Mental. Abstract Mental health, formerly focused on the psychiatric pathology, has as main goal of study the biopsychosocial context in which the patient lives. Also, more recently, there has been a greater interest in the investigation of the possible implications of the gender in mental health. Regarding the women’s mind, it’s crucial that health carers pay attention to the mental disorders related to the reproductive cycle, and its repercussions over the patients and those near her. Several issues regarding women´s mental health remain open to discussion and studies. In this article a brief introduction is made on its historical facts, current concepts and future perspectives Keywords: Woman; Care; Mental Health. INTRODUÇÃO A partir da menarca até após a menopausa, algumas mulheres sofrem de transtornos específicos, incluindo transtorno disfórico pré-menstrual, depressão perina­ tal e perimenopáusica, blues e psicose puerperal, as­ sim como transtornos do humor e de ansiedade associados à infertilidade e gestações abortadas, além de maior incidência de transtornos ansiosos, alimentares, doenças auto-imunes e quadros álgicos1,2. Não somente o dobro de mulheres sofre de depressão em comparação aos homens, mas também possuem índice maior de comorbidades, tanto físicas quanto mentais1,3. As mulheres estão mais expostas a fatores estressores como violências, abuso e estupro, a partir de uma idade precoce, po­ rém nem todas as mulheres que se deparam com tais situa­ ções desenvolvem transtornos4. Desta forma, a interação entre vulnerabilidade genética, fatores ambientais, fisiológicos e psicosso­ ciais, funcionamento neurotransmissor e neuroendócrino, além da própria resiliência, desempenham um importante papel em suas patogêneses4,5,6,7. Entendendo melhor como se dá a relação de equilíbrio entre estes eventos, futuramente poderemos talvez apontar o caminho para tratamentos específicos por gênero, tanto para mulheres quanto para homens com transtornos mental4,8. HISTÓRICO A loucura já foi interpretada de diversas maneiras ao longo da História, sendo a loucura feminina costumeiramente associada à sexualidade. Registros do Egito Antigo atribuíam ao interior do corpo da mulher uma condição de malignidade pela presença do útero que, ao “deslocar-se”, produziria sintomas semelhantes ao quadro de histeria9,10. Na Idade Média, a caça às bruxas pelo Movimento Inquisitor 6 revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 6 12/11/12 11:30 JOEL RENNÓ JR 1 Médico Psiquiatra. Diretor do Programa de Saúde Mental da Mulher (Pró-Mulher) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. forta­leceu a associação entre mulheres e loucura. As chamadas bruxas apre­sentavam “condutas estranhas”, muitas se asseme­ lhando a quadros atualmente descritos como psicose, histeria, ma­ nia, depressão ou ansiedade9. Uma outra caracterização acontecia através da prática da prostituição, adultério e aborto11. Ao longo da Idade Moderna, difundiu-se pela Europa a relação entre o útero e a regulação da saúde mental da mulher. Junto a isso, corria a idéia de inferioridade da mulher frente ao homem, tanto psíquica quanto fisicamente, já que ela permanecia escrava desta fisiologia, sob a ordem dos seus órgãos genitais. Entre o final do século XVII e início do XVIII, emergiu tanto a figura do médico na identificação da loucura, como a prática de in­ternação nos grandes asilos, estabelecida como a base da psiquiatria nascente9. No Brasil, a preocupação com a saúde mental da mulher tem sofrido mudanças nos últimos anos. O conceito de controle de natalidade deu lugar ao de saúde reprodutiva, que compreende seus direitos, a saúde física e mental da mulher, desde a adolescência à terceira idade. A política governamental, exceto alguns esforços no sentido contrário, organiza principalmente campanhas_não menos importantes, mas não suficientes_ focadas em problemas isolados enfrentados pelas mulheres, como câncer cervical, câncer de mama e doenças sexualmente transmissíveis. No entanto, já há alguns serviços acadêmicos de excelência que procuram promover atenção multidisciplinar de saúde à mulher, durante os diferentes estágios do ciclo reprodutivo feminino12. TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS DO PERÍODO PRÉ-MENSTRUAL Transtorno Disfórico Pré-menstrual Muitas mulheres em idade reprodutiva apresentam sintomas físicos e psíquicos relacionados ao ciclo menstrual. Apesar do questionamento sobre essas queixas serem resultantes da vida moderna estressante, Hipócrates (600 a.C.), no tratado A doença das virgens, já descrevia as alterações de comportamento, as idéias de morte, as alucinações e os delírios resultantes da “retenção do fluxo menstrual”. A entidade clínica Síndrome Pré-Menstrual (SPM) surgiu na 9ª Classificação Internacional de Doenças (CID-9) e no CID-10 ainda se mantém restrita ao capítulo destinado às doenças ginecológicas, codificada em N 94. Em 1994, houve revisão e nova denominação no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana (DSM-IV), acrescida de critérios diag­nós­ ticos operacionais para o transtorno (Quadro 1) que passou a ser no­­meado Transtorno Disfórico Pré-Menstrual (TDPM), como um subtipo de transtorno afetivo, considerado o padrão-ouro para pesquisa e adotado pelo Food and Drug Administration Neuro­ pharmacology Advisory Comittee para regular as pesquisas e tratamentos propostos13,14. O TDPM apresenta prevalência de 1.6 a 6.4%, com início no período pré-menstrual e alívio logo após início da menstruação. O pico de incidência ocorre entre 25 e 35 anos de idade. Embora pos­sam existir os sintomas físicos, as queixas psíquicas são as mais rele­vantes, causando graves prejuízos na vida destas mulheres15,16. Diversas teorias já foram propostas para explicar a etiopatogenia do TDPM, porém esta ainda não está totalmente esclarecida. A prin­cipal hipótese vigente é que algumas mulheres são mais sujei­ tas a alterações de humor no período pré-menstrual, por uma sensibilidade cerebral às flutuações hormonais presentes no ciclo menstrual feminino, ou seja, um mecanismo psiconeuroendócrino desencadeado pelo ciclo ovariano normal17. Essas mulheres, mesmo com níveis adequados dos hormônios gonadais, teriam maior propensão a alterações no sistema nervoso central, principalmente na via serotoninérgica, com as oscilações hormonais. A interação entre esses sistemas é multifatorial e complexa, sendo improvável que um fator etiológico simples e único explique os sintomas do TDPM. Além disso, é necessário distinguir TDPM de exacerbações de trans­tornos psiquiátricos prévios e possíveis diagnósticos dife­ ren­ciais (quadro 2). O tratamento do TDPM exige participação de equipe multipro­ fis­sional, para a adequada triagem e avaliação diagnóstica. Os inibi­ dores seletivos da recaptação de serotonina são importantes para o tratamento, sendo a fluoxetina e a sertralina os mais estu­dados e efetivos tanto para sintomas físicos quanto psíquicos. A prescrição de anticoncepcionais orais de forma contínua, im­plan­tes hormonais subcutâneos, adesivos transdérmicos ou mesmo injeções mensais ou trimestrais, com o propósito de promover amenorréia e, assim evitar a oscilação cíclica de este­ róides, tem mostrado bons resultados16;17. TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS NA GESTAÇÃO E PUERPÉRIO Por mais contraditório que possa parecer, muitas mulheres apresentam tristeza, ansiedade e até sintomas psicóticos em vez da mais serena felicidade nessas fases da vida. Apesar da gestação Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 7 7 12/11/12 11:30 ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO por JOEL RENNÓ JR1, RENATA DEMARQUE2, HEWDY RIBEIRO LOBO2, JULIANA PIRES CAVALSAN2 E ANTONIO GERALDO DA SILVA3 e chegada da maternidade serem socialmente considerados momentos de bem-estar emocional na vida da mulher, o período perinatal não a protege dos transtornos psiquiátricos 2,18. Disforia puerperal ou Maternity blues É considerada a forma mais leve dos quadros depressivos puer­ perais e chega acometer até 85% das mulheres. Sintomas como choro fácil, labilidade afetiva, irritabilidade e comportamento hos­ til para com familiares e acompanhantes são transitórios e insu­ ficientes para causar prejuízo funcional à paciente. Geralmente se iniciam nos primeiros dias após parto, atingem pico ao redor do quinto dia e remitem de forma espontânea em até duas semanas. Em alguns casos, poderá persistir além do período puerperal inicial, levando a um transtorno do humor mais grave 2,18. O oferecimento de adequado suporte emocional, compreensão e auxílio nos cuidados com o bebê deve ser intensificado para essas mulheres, principalmente por parte dos familiares18. Depressão perinatal Estima-se uma prevalência de depressão na gravidez da ordem de 7,4% no primeiro trimestre, 12,8% no segundo e 12% no terceiro trimestre. A depressão pós-parto propriamente dita é uma condição comum que afeta 10% a 15% das mulheres no puerpério e pode persistir até por cerca de um ano em 40% dos casos 2,18. Os sintomas depressivos perinatais se assemelham aos trans­ tor­ nos depressivos vivenciados em outros períodos da vida, com algumas peculiaridades, como falta de interesse da mãe (ou preocupação excessiva) por assuntos relacionados ao bebê, sentimentos negativos em relação ao cônjuge, sentimentos de inca­pacidade em relação à maternidade e temor do ciúme dos outros filhos em relação à criança, no caso de multíparas. Sintomas como hipersonia, aumento de apetite, fadigabilidade fácil, diminui­ ção da libido e queixas álgicas são de pouco utilidade para o diagnóstico de depressão perinatal, pois podem ser confundidos com situações normais do período 2,18,19,20. A disseminação do conceito de depressão perinatal reduz o es­­tigma e permite que as mulheres com transtornos mentais re­ conheçam que estão doentes e procurem ajuda. A morbidade e mortalidade maternas não são, é claro, as únicas razões pelas quais ação efetiva na depressão perinatal se faz necessária, visto que pode ter efeitos pervasivos na família, levando à reduzida interação com a criança e à irritabilidade mal direcionada a ela, com risco de maus-tratos e, em algumas situações, até infanticídio 2,18,19,20. Resultados de alguns estudos sugerem que tanto o pós-parto quanto a vivência da adoção de um bebê podem levar a mulher a 8 apresentar sintomas depressivos, porém as mães adotivas experi­ mentam mais sintomas ansiosos. Embora variações biológicas e psicossociais associadas aos sintomas depressivos sejam parcial­ mente distintos, ambas têm importante vulnerabilidade aos trans­tornos de humor. Enquanto fatores biológicos relacionados ao parto não influenciam sintomas depressivos entre mães ado­ tivas, grande parte destas tem um histórico de infertilidade e conseqüente repetidas tentativas de exaustivos tratamentos de fertilização e abortamentos 2,18,19,20,21. O tratamento da depressão em mulheres planejando gestação, grávidas ou puérperas requer cuidadosa avaliação dos riscos e be­nefícios à mãe, ao feto e ao bebê. Medicações antidepressivas devem sempre ser consideradas na presença de sintomas mode­ rados a graves. Psicose puerperal Sua prevalência é de 1 caso para cada 500 a 1.000 nascimentos, com claro risco de recorrência em puerpérios subseqüentes. O início é abrupto (primeiros dias e até 2 a 3 semanas após o par­ to) e quadro bastante polimórfico, com presença de delírios en­­ volvendo seus filhos, pensamentos de provocar-hes danos, alu­ cinações, estado confusional, sintomas depressivos, maniformes ou associados. O psiquiatra deve saber que estas mulheres po­ dem evoluir para o transtorno afetivo bipolar no decorrer do se­ gui­mento, além disso, síndromes cerebrais orgânicas devem ser descartadas. Mulheres diagnosticadas com transtorno afetivo bipolar apresentam risco elevado de psicose puerperal quando comparadas a mulheres saudáveis 2,18,22. Devido gravidade do transtorno, risco de suicídio e infanticídio, intervenção hospitalar muitas vezes é necessário. Transtorno do relacionamento mãe-criança Apesar de controverso conceito, pois ainda não é reconhecido nas classificações diagnósticas atuais, o transtorno do relacionamento mãe-criança é freqüente em 10 a 25% das mulheres encaminhadas aos psiquiatras no pós-parto. Sintoma essencial é a resposta emo­ cional patológica da mãe à criança, incluindo aversão e raiva, po­ dendo ocorrer sem quaisquer sintomas depressivos 2. Transtorno de estresse pós-traumático A tocofobia relacionada a trabalhos de parto prévios dolorosos (ou até mesmo pela própria experiência subjetiva de cada mu­ lher em relação ao que seria um parto traumático, doloroso) e à recorrência de tensão, pesadelos e memórias negativas são sinto­ mas que podem se manter até um próximo trabalho de parto, revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 8 12/11/12 11:30 RENATA DEMARQUE, HEWDY RIBEIRO LOBO, JULIANA PIRES CAVALSAN 2 Médico Psiquiatra. Colaborador do Programa de Saúde Mental da Mulher (Pró-Mulher) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. necessitando de tratamento psicológico específico para que possa haver melhora dos efeitos negativos das memórias traumáticas 2. Obsessões de machucar bebê A mulher experimenta impulsos infanticidas extravagantes, jun­tamente com fantasias de horror da família, gerando grande estresse e contato reduzido com o bebê. Além de seguimento psicoterápico e uso de medicações, equipe deve fortalecer os sentimentos maternos positivos já existentes 2. TRANSTORNOS MENTAIS DO CLIMATÉRIO, PERIMENOPAUSA E MENOPAUSA O climatério pode ser definido como período de transição entre fase reprodutiva ou menacma e fase não-reprodutiva ou senilidade. Em países industrializados, inicia-se em torno dos 40 anos de idade e termina ao redor dos 65 anos; durante esse pe­ ríodo ocorre a menopausa 2. A menopausa é definida pela Organização Mundial de Saúde como a parada permanente da menstruação, sendo necessário período de pelo menos 12 meses de amenorréia para que seja confirmado o diagnóstico. A perda definitiva da atividade folicular ovariana ocorre em torno dos 48 anos a 52 anos de idade. O termo perimenopausa é utilizado para definir o período que se inicia os primeiros sintomas de aproximação da menopausa e vai até 12 meses após esta. Durante várias décadas, o uso de terapias hormonais foi con­ siderado o tratamento ideal para diversos sintomas da peri e da pós-menopausa, incluindo sintomas vasomotores e distúrbios do sono. Estudos também apontaram resultados positivos com o uso de estrógenos e/ou progestágenos no manejo de quadros depressivos e qualidade de vida em mulheres na menopausa. En­tretanto, desde a publicação de ensaios clínicos controlados realizados no EUA pelo Women’s Health Initiative detectaram aumento de risco relativo de tromboembolismo, acidente vascular cerebral, infarto agudo do miocárdio e câncer de mama no acom­pa­nhamento de pacientes tomando hormônio (no caso, estrógeno eqüino conjugado), quando comparadas ao grupo placebo, pacientes e médicos tornaram-se mais relutantes em utilizar terapias com estrógenos em longo prazo, particularmente para mulheres que já apresentem risco maior para transtornos cardiovasculares ou câncer de mama. Sendo assim, houve aumento da procura por terapias não-hormonais para o manejo desses sintomas, incluindo medicações não controladas, antidepressivos e terapias comportamentais 2,23. CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma perspectiva de gênero não é apenas útil porque a fenomenologia, curso da doença e metabolização de medica­ mentos podem diferir, mas também porque a vida reprodutiva pode influenciar no curso e tratamento da moléstia24. Os transtornos psiquiátricos na mulher são mais comuns do que se imagina e muitos casos ainda não são diagnosticados e até minimizados pelo próprio profissional da saúde mental. Tem-se dado importância crescente ao tema principalmente porque os danos que essas patologias podem ocasionar não atingem apenas à mulher, mas também trazem repercussões ao desenvolvimento do feto, no trabalho de parto, na saúde do bebê, nos familiares, além do envolvimento em questões laborais e judiciais. QUADROS Quadro 1. Critérios diagnósticos do transtorno disfórico pré-menstrual segundo DSM-IV TR A. Os sintomas devem ocorrer durante a semana anterior à menstruação e remitirem poucos dias após o início desta. 5 dos seguintes sintomas devem estar presentes e pelo menos UM deles deve ser o de número 1, 2, 3 ou 4: 1. Humor deprimido, sentimentos de falta de esperança ou pensamentos autodepreciativos. 2. Ansiedade acentuada, tensão. 3. Significativa instabilidade afetiva. 4. Raiva ou irritabilidade persistente e conflitos interpessoais aumentados. 5. Interesse diminuído pelas atividades habituais. 6. Sentimento subjetivo de dificuldade em se concentrar. 7. Letargia, fadiga fácil ou acentuada falta de energia. 8. Alteração acentuada de apetite, excessos alimentares ou avidez por determinados alimentos. Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 9 9 12/11/12 11:30 ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO por JOEL RENNÓ JR1, RENATA DEMARQUE2, HEWDY RIBEIRO LOBO2, JULIANA PIRES CAVALSAN2 E ANTONIO GERALDO DA SILVA3 9. Hipersonia ou insônia. 10. Sentimentos subjetivos de descontrole emocional. Referências 11. Outros sintomas físicos, como sensibilidade ou inchaço das mamas, cefaléia, dor articular ou muscular, sensação de “ganho de peso”. • B. Os sintomas devem interferir ou trazer prejuízo no trabalho, na escola, nas atividades cotidianas ou nos relacionamentos. • C. Os sintomas não devem ser apenas exacerbação de outras doenças. D. Os critérios A, B e C devem ser confirmados por anotações prospectivas em diário durante pelo menos 2 ciclos consecutivos. • • Quadro 2. TDPM – Diagnóstico Diferencial • Desordens Autoimunes Anemias • Hipotireoidismo • Dismenorréia Endometriose Cefaléia Síndrome do colo irritável • Epilepsia Uso abusivo de etílicos e substâncias ilícitas Transtornos psiquiátricos (principalmente transtorno depressivo, transtorno afetivo bipolar, transtorno ansioso e transtornos de personalidade) Agradecimentos Agradecemos à Associação Brasileira de Psiquiatria pelo apoio e esforços empregados na divulgação da Saúde Mental da Mulher. Não há conflitos de interesses. Endereço para correspondência: Dr. Joel Rennó Jr Rua Teodoro Sampaio, 352 – conj 127 05406-000 - São Paulo – SP [email protected] 10 • • • • 1. Justo LP, Calil HM. Depressão: o mesmo acometimento para homens e mulheres? Rev Psiq Clín. 2006; 33(2):74-9. 2.. Rennó Jr J, Soares CN. Transtornos mentais associados ao ciclo reprodutor feminino in_Louza Neto MR, Elkis E. Psiquiatria Básica. Porto Alegre, Artmed, 2 ed, 2007, 418-28. 3. Toffol E, Koponen P, Partonen T. 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Houve uma relação inversamente proporcional entre qualidade de vida e altos escores de depressão e ansiedade. Os pacientes com altos escores nas escalas Beck-Depressão e Beck­ -Ansiedade foram encaminhados para tratamento psiquiátrico. Palavras chaves: epidemiologia – pacientes internos – sintomas depressivos – sintomas de ansiedade. Abstract The present work was done in order to get a better evaluation of psychiatric diagnostics in medical general clinics and a better comprehension for medical students of psychiatrist symptoms. Me­ thods: Medicine students carried out psychiatrics interviews with inpatients of the medical general clinic in the University Hospital of Taubaté. Four interviews were done: Beck depression inventory, Beck anxiety inventory, and WHO’s quality of life questionnaires Results: High scores were found (>13- BDI, 8-BAI and 91- WHOQOL) on 27%, 36%, e 32% patients of the study, respectively. The inverse proportional relation between quality of life and high scores of de­ pression and anxiety was observed. The inpatients with high scores of depression and anxiety on the Beck-Depression and Beck-Anxiety were sent to psychiatric treatment . Keywords: epidemiology - inpacients - depressive symptoms anxiety simptoms. 14 INTRODUÇÃO E ste trabalho aborda campos que se entrelaçam entre a clinica e a psiquiatria, a saber: educação médica, epide­ miologia, sub-diagnóstico em psiquiatria, e psiquiatria na prática médica. Nós, professores de medicina temos que trabalhar pedagogi­ca­ mente orientando técnicas, teorias, casos clínicos práticos, atenção e respeito ao paciente, além de lidar com inseguranças próprias de cada idade e de cada estágio. 1 O ensino de graduação atualmente está alicerçado nas mais di­ ver­sas modalidades de tecnologias de informática, e teremos cada vez mais aulas virtuais, Bibliotecas virtuais e Laboratórios virtuais. Estas ferramentas de comunicação como chats, fóruns, facebook, redes sociais, hiperlinks, etc. Já estão sendo utilizadas no cotidiano do aluno. Comunicações de sala, notas provas rapidamente são divulgadas pelos novos meios comunicação e redes sociais.1,2 Na prática da Aprendizagem estas novas tecnologias contribuem para formação da formação de grupos heterogêneos, diversidade cul­­tural e articulação de enorme quantidade de pontos de vista di­ferentes auxiliando na formação da critica e ética. O papel atual da Internet pode ser considerado um pilar para a democratização do saber, com sua diversidade e pluralidade. 1 A Psiquiatria no contexto pedagógico do ensino médico A psiquiatria hoje tem visibilidade e ultrapassa os limites da disciplina. Ela participa de reuniões anatomopatológicas, discus­ sões de casos clínicos, interconsultas, interagindo com as demais especialidades médicas. 2,3,4 O Curso de Graduação em Medicina tem como perfil do for­ mando egresso/profissional o médico, uma formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado para atuação e atender em diferentes níveis de atenção. 5 Em psiquiatria, esta exigência se torna fundamental, pois a história da medicina mostra que os quadros psiquiátricos sempre revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 14 12/11/12 11:30 MÁRCIA GONÇALVES 1 Psiquiatra (ABP/AMB), Coordenadora da disciplina de Psiquiatria UNITAU fizeram uma interface com quadros clínicos (ex- infecções , Lues, quadros mentais orgânicos, etc.), que apresentam ainda hoje alta morbidade, e isso torna o clinico um agente fundamental no seu diagnóstico e manejo. 6 Dentro do enfoque comunitário o ensino de psiquiatria hoje na graduação, contribui para atender os principais problemas de saúde da população, e o psiquiatra atualmente está presente nos serviços de emergência, em enfermarias, e realiza orientação na relação medico-paciente. 2 Na formação do clinico geral, os objetivos educacionais na gra­ duação de medicina, foram direcionados para uma nova meto­do­ logia de ensino, onde as aulas práticas e o contato do estudante desde os primeiros anos com o paciente é privilegiada. Isso auxilia a desenvolver a sensibilidade com o sofrimento humano, além de facilitar o entendimento, a subjetividade e a maneira como a doença repercute na vida do paciente.2,3 Um aspecto que é importantíssimo e não deve ser negligen­ ciado pelos professores é a supervisão dos problemas da relação medico-paciente durante o internato, quando o aluno sentirá vi­­ven­cialmente esta relação, já que estará exposto a uma rotina aca­dêmica com algum nível de responsabilidade. E mais ainda, o ensino de psiquiatria não pode esquecer aspectos éticos humani­ tários que podem ser observados e enfatizados durante a interação do aluno com o paciente. 4 Para o clinico geral o sintoma não pode ser visto de forma sim­ plista. As emoções dos pacientes devem ser observadas (raiva, atra­ção sexual, paixão, insegurança), e o médico precisa aprender a lidar com elas. 2 Com relação à prática psiquiátrica nos hospitais gerais, as inter­ con­sultas e os quadros psiquiátricos nas diversas especialidades, como UTI, etc, estão sendo privilegiados e já possuem atenção especial.4 Nesta linha de raciocínio, no fim do curso de medicina os alunos devem ser capazes de reconhecer sintomas psiquiátricos e físicos relevantes e nomear os sintomas encontrados, além de saber obter uma história psiquiátrica complexa.5 O médico recém-formado deve conhecer as prevalências dos transtornos mentais nos diversos serviços médicos. 5 Ao final do curso de medicina os alunos devem ser capazes de aprender a conduzir e redigir uma anamnese psiquiátrica, usar a historia e o exame psíquico para identificar a psicopatologia, saber fazer um diagnóstico diferencial e sobretudo saber avaliar e manejar as emergências psiquiátricas mais comuns.5 Não é incomum os alunos de medicina carregarem no bojo de sua formação cultural crenças equivocadas da psiquiatria, como acreditar que o tratamento não é eficaz, ou que as doenças são muito abstratas e que a psiquiatria lida com situações de vida consideradas “íntimas” e pouco aceitas socialmente. Para minimizar as crenças equivocadas Délia propõe como uma possível solução, a maior exposição dos alunos com os pacientes. 2 As vertentes epidemiológicas do ensino Do ponto de vista comunitário temos que abordar os aspectos epidemiológicos mais relevantes da população em que os alunos estão inseridos. Nos serviços de saúde públicos, por exemplo, os alunos devem promover medidas preventivas. 6,7 Para atingir este objetivo temos que conhecer a situação social local e regional, identificar problemas, investigar problemas e pro­ por soluções compatíveis. 9 O Médico no contexto comunitário deve identificar e entender o agente causal de doenças, estabelecer metas e estratégias de con­tro­le definir as medidas preventivas mais adequadas. Isso au­ xi­liar o planejamento e desenvolvimento de serviços de saúde. 9 Dados epidemiológicos e diagnóstico em psiquiatria Com relação ao diagnóstico em psiquiatria, uma meta-análise em dez países (50 mil pacientes) mostrou que somente 47% dos casos de depressão são diagnosticados no atendimento, e que há falso diagnóstico em cerca de 20% dos casos. (Lancet). “O deprimido não procura um psiquiatra, até por preconceito. Ele vai ao clínico, ao neurologista...” 10 No Brasil, estes dados estão sendo valorizados até mesmo na mídia. Segundo Juliane Silveira, da Folha de São Paulo, estima-se que cerca de 12% dos homens e 20% das mulheres terão algum nível de depressão em alguma fase da vida.10 Fica evidenciado que a detecção de sintomas psiquiátricos ainda é uma grande dificuldade do clínico-geral, pois existe pouca per­cepção do clínico da associação de sinais de uma possível depressão ou transtornos de ansiedade, e estes sinais e sintomas (dores, cansaço, falta de ar e de energia) serem creditados à outras doenças.3 Um estudo com 316 pacientes e 19 clínicos-gerais do Hospital das Clínicas de São Paulo salienta que a lentidão, cansaço e falta de concentração são os sintomas de depressão mais difíceis de serem identificados pelo clínico. Sub diagnóstico em psiquiatria e suicídio Outro fator muito sério no sub-diagnóstico de doenças psiquiá­ tricas é o suicídio. Não é incomum ouvirmos frases do tipo: “Ele estava tão bem, Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 15 15 12/11/12 11:30 ARTIGO ORIGINAL por MÁRCIA GONÇALVES1 nos últimos meses... não se estressava, não reclamava, ficou calmo de repente, as preocupações deixaram de incomodá-lo, e ele dimi­ nuiu os rompantes emocionais… ele estava tão bem, e se matou não sei porque”... Facilmente fica nítido que era um quadro de depressão não diagnosticada.11,12 Mais de 90% dos suicídios ocorrem no contexto de doença psiquiátrica. E em torno de 15% dos doentes com depressão maior cometem suicídio.12 Os índices elevados de suicídio são importantes indicadores do sub-diagnóstico e sub-tratamento da depressão, pois 40% dos indivíduos que cometem suicídio consultaram um médico nas quatro semanas anteriores à passagem ao ato suicida e apenas 10% dos doentes deprimidos recebem cuidados adequados.11 Metodologia Foram realizadas 74 Entrevistas em pacientes hospitalizados na enfermaria de clinica médica do HUT. Todos os pacientes que tinham condição de comunicação foram entrevistados indistintamente, num período de 4 meses. A técnica da entrevista foi a seguinte. Os alunos, na beira do leito das enfermarias, entrevistavam os pacientes que estavam aptos Escala Beck para depressão a res­ ponder, e após consen­ timento livre e esclarecido, res­ Escore Interpretação pon­ diam três questionários e Sem uma entrevista psicossocial. Os <13 Depressão ques­ tionários escolhidos foram: n = 58 (73%) Escala Beck para Depressão, Es­ cala Beck para Ansiedade e Escala >13 Com de Qualidade de Vida da OMS Depressão (WHOQOL). n = 16 (27%) Essas entrevistas visavam a de­ tec­ ção e sintomas psiquiátricos nos pacientes internados, e o esta­belecimento de diagnóstico pos­ terior quando os valores respondidos excediam os pontos de corte internacionalmente estabelecidos na literatura médica. Uma anamnese psiquiátrica foi posteriormente realizada nos pacientes com altos escores nas entrevistas. Também foi avaliada a correlação dos sintomas dos questionários de depressão e ansiedade com a quantificação da qualidade de vida, e para isso foram aplicados questionários de qualidade de vida. (WHOQOL) Posteriormente uma comunicação foi realizada para os médicos clínicos responsáveis pelo paciente nos leitos que apresentaram altos valores quantificados nas entrevistas. Os pacientes com 16 altos escores nas respostas aos questionários tiveram tratamento já iniciado no leito da enfermaria, e quando não foi possível a intervenção imediata, estes pacientes foram encaminhados para serviços de psiquiatria. Denominamos esta forma de avaliação de Intervenção Próativa. Resultados: Os resultados da intervenção pró-ativa em relação aos questionários estão resumidos na tabela 1. Dos entrevistados, 73% não apresentaram sintomas de depressão pela Escala Beck para Depressão, e 64% não apresentarma sintomas de ansiedade pela Escala Beck para Ansiedade. Contudo, 36% destes pacientes apresentaram altos escores de ansiedade, o que torna esse grupo vulnerável a piora de sintomas clínicos. Cerca de dois terços dos pacientes tinham uma boa qualidade de vida, segundo a Escala WHOOL. Tabela 1. Resultado das aplicações dos questionários após a intervenção pro-ativa. Escala Beck para Ansiedade Escala de Qualidade de vida WHOQOL-26 Escore Interpretação Escore Interpretação <8 Sem Ansiedade n = 57 (64%) <91 Boa n = 56 (68%) >8 Com Ansiedade n = 21 (36%) >91 Moderada/ Ruim n = 18 (32%) A figura 1 mostra a relação entre ansiedade e qualidade de vida, e a figura 2 mostra a relação entre qualidade de vida, com os dados da tabela 1. Note que há uma inversão nos números de casos: maior o escore de ansiedade ou depressão, menor o escore de qualidade de vida. Discussão Nosso trabalho encontrou sintomas depressivos com escores acima de 13 na BDI em 27% dos pacientes internados, o que demonstra que existe um déficit na detecção destes sintomas em pacientes internados. revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 16 12/11/12 11:30 Os motivos do sub-diagnóstico e sub-tratamento podem ser detectados em déficits dos profissionais, falta de conhecimentos, sub-valorização da gravidade dos sintomas.11,12 Os dados epidemiológicos sobre transtornos mentais exibem va­lo­res surpreendentes: Segundo Cepoiu13, os transtornos psiquiá­ tricos giram em torno de 13% da sobrecarga de doenças no mun­do e existe uma imensa lacuna entre oferta e demanda de assistência em saúde mental. De 25% a 50% dos pacientes que procuram médico em centros primário, apresentam pelo menos um transtorno psiquiátrico ou neurológico.13 Dados alarmantes podem ser verificados como, por exemplo, a não detecção dos casos pode chegar a 55% para diagnóstico de depressão, e a 77% para transtorno de ansiedade generalizada. As estratégias para modificação deste quadro passam pela utilização de instrumentos de rastreamento de sintomas psiquiátricos.14 Segundo Fleck15, a morbi-mortalidade associada à depressão pode ser prevenida em torno de 70% com o tratamento correto.15 Também pacientes com problemas cardiológicos estão incluídos entre os pacientes com sub-diagnóstico de doenças psiquiátricas. Quadros de depressão grave pode acometer 16 a 27% das pessoas que sofreram infarto do miocárdio recente.16 Foi encontrada uma correlação proporcionalmente inversa, ou seja, pacientes com sintomas psiquiátricos apresentavam pior qualidade de vida pela WHOQOL (32%). A ansiedade é outra patologia psiquiátrica que tem sérios problemas de sub-diagnóstico. Boughton17 realizou um trabalho e concluiu que sobreviventes do câncer de ovário continuam por 5 anos apresentando um sub-diagnóstico de ansiedade quanto à possibilidade de recorrência. 60º Encontro Clínico Anual do Congresso Americano de Ginecologia e Obstetrícia.17 Foram encontrados altos escores de sintomas de ansiedade avaliados pela BAI (36%) nos pacientes internados, e uma corre­ lação inversamente proporcional para qualidade de vida, ou seja, quanto maior os escores de sintomas de ansiedade avaliados pela BAI, menores escores de qualidade de vida avaliados pela WHOQOL (32%). O sub-diagnóstico de depressão pode levar à uma considerável perda de qualidade de vida em pacientes com patologias clínicas. psiquiátrico, contato com o paciente, sendo esta abordagem uma forma ética, eficiente, e que contribui tanto para auxiliar os internos a detectarem quadros psiquiátricos em pacientes internados em clinica médica, e mostrou-se como uma forma eficiente de contribuir para reduzir os índices de sub-diagnóstico, bem como na oferta e disponibilização de um tratamento adequado dos quadros psiquiátricos sub-diagnosticados. Podemos também através desta avaliação pró–ativa, somar esforços às estratégias para a melhoria da qualidade de vida em pacientes internados com quadros clínicos graves. Figura 1. Correlação entre qualidade de vida (linha vermelha), avaliados pela Escala WHOOL-26, e sintomas de ansiedade (linha azul), avaliados pela Escala Beck. CONCLUSÃO A intervenção pró-ativa como metodologia de ensino para graduação de psiquiatria demonstrou ser uma técnica que aborda diferentes enfoques pedagógicos, como treino na percepção de sintomas psicopatológicos, facilitação na elaboração de diagnóstico Figura 2. Relação entre qualidade e vida (linha vermelha), medida pela Escala WHOQOL, e sintomas depressivos (linha azul) pela Escala Beck. Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 17 17 12/11/12 11:30 ARTIGO ORIGINAL por MÁRCIA GONÇALVES Agradecimentos: Agradeço aos alunos de medicina da Universidade de Taubaté, à comissão científica da Associação brasileira de Psiquiatria (ABP), ao Dr. Fernando Portela Câmara. Este trabalho não apresenta conflitos de interesse. Márcia Gonçalves Rua Conego Ribeiro 726 - Taubaté SP. 12100000 [email protected] Referências • • • • • • • • • 18 1.Levy Pierre – Principais Idéias: http://pt.shvoong. com/humanities/165960 0 -pierre-l%C3%A8vyprincipais-id%C3%A9ias, (acesso 21/10/2101) 2. Arruda PCV, D’Elia G. Interesse na área de Psiquiatria entre alunos de Medicina. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, 1999 3.Kaplan HI, Sadock BJ, Grebb JA. Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica. 7º edição. São Paulo: Artes Médicas, 1997, Cap. 10, pp.324-348. 4.Botega N. Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência. São Paulo: Artmed, 2002, Cap. 13, pp. 176-191. 5.Resolução CNE/CES nº 4, de 7 de – MEC portal. mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES04.pdf (acesso 2110/2012) 6.Akiskal HS. “Mood Disorders: Clinical Features. In BJ Sadock, VA Sadock (ed), Kaplan & Sadock’s Comprehensive Textbook of Psychiatry, Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005. 7. 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VID.12.I.184 - Produzido em outubro de 2012 Informações: www.cbpabp.org.br 2 5:03 PM Curitiba Cidade planejada e premiada internacionalmente em gestão urbana, meio ambiente e transporte público. revista debates-12.indd 23 12/11/12 11:30 ARTIGO ORIGINAL por KARINNE TAVARES BORGES1, SONIA GERHARDT REZENDE2, MARCELA FAVARINI NUNES3 E FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4 O PROGRAMA DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO EM AÇÃO: DESCRIÇÃO, ANÁLISE E DIFICULDADES THE CHEMICALLY DEPENDENT SUPPORT PROGRAM IN PRACTICE: DESCRIPTION, ANALYSIS AND DIFFICULTIES Resumo A Dependência Química no trabalho, por provocar prejuízos ao usuário, ao funcionamento da equipe e à instituição como um todo, desperta a necessidade da elaboração de políticas voltadas ao restabelecimento da saúde mental do trabalhador. O Governo do Distrito Federal, por meio do Programa de Atenção ao Dependente Químico, oportuniza tratamento especializado aos servidores de­ pendentes químicos. A equipe multiprofissional do Programa reali­ za acompanhamento psiquiátrico, atendimento psicoterápico indi­ vidual e em grupo, avaliação biopsicossocial, informações gerais aos respectivos familiares e orientação aos gestores dos servidores em temas como prevenção, detecção precoce da dependência química no ambiente laboral e condutas adequadas de intervenção. O pre­ sente trabalho tem por objetivo descrever o Programa de Atenção ao Dependente Químico após um ano de publicação da portaria que o instituiu e apresentar o perfil dos servidores que foram nele recepcionados, assim como as dificuldades encontradas e as novas diretrizes traçadas a partir da experiência com esse grupo. Descritores: Política de Saúde, Álcool, Trabalho Abstract The Chemical Dependence on the workplace, by causing damage to the user, the functioning of the teamwork and the institution as a whole, highlight the need for the policies aimed at the restoration of workers’ mental health. The Government of the Federal District, through the Program of Attention to the Chemical Dependent, deli­ vering specialized treatment to chemical dependents. A multidisci­ plinary team conducts follow-up psychiatric and psychotherapeutic care individual and group, biopsychosocial assessment, general in­ formation to their respective families and guidance to managers in topics such as prevention, early detection of chemical dependence in the work environment and conducting appropriate intervention. The purpose of this study is to describe the Program of Attention to the Chemical dependent after a year of publication of the ordinance which created and present the profile of employee that were in it 24 approved, as well as the difficulties encountered and the new guide­ lines drawn from the experience with this group. Keywords: Health Policy, Alcohol, Work Introdução A Subsecretaria de Saúde, Segurança e Previdência dos Servidores - Subsaúde, órgão da Secretaria de Estado de Administração Pública - SEAP, do Governo do Distrito Federal - GDF, cumprindo seu papel institucional de prevenção, promoção e vigilância em saúde, vem fortalecer a Política Integrada de Atenção à Saúde do Servidor do Distrito Federal1 oferecendo alternativas institucionais à problemática da Dependência Química (DQ). A dependência química no trabalho provoca prejuízos ao próprio servidor usuário, ao funcionamento do ambiente laboral e à instituição como um todo. Já em 1990, a Associação dos Estudos do Álcool e outras Drogas - ABEAD estimou uma variação entre 3% e 10% da população adulta com prevalência no alcoolismo e o apontou como o terceiro motivo para absenteísmo no trabalho. O absenteísmo é caracterizado por faltas de curta duração, com ou sem atestado médico de afastamento, faltas frequentes nas segundas nas segundas e sextas-feiras e nos dias que antecedem ou sucedem feriados, ou mesmo por faltas por doenças vagas como resfriado, gripes e enxaquecas². O abuso causa ainda outras lacunas institucionais, como ausências no período da jornada de trabalho, com atrasos excessivos após o almoço, saídas antecipadas ou saídas frequentes do posto de trabalho; queda na produtividade e qualidade no trabalho, o que inclui maior perda de tempo, material, equipamentos, memória para novas instruções e restrição para atividades complexas; mudança nos hábitos pessoais, vindo ao trabalho em condições anormais e mesmo com higiene precária e por fim relacionamento ruim com colegas, pois pode reagir exageradamente às criticas e apresentar estados emocionais revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 24 12/11/12 11:30 KARINNE TAVARES BORGES 1 Médica formada pela Universidade de Brasília, com especialização em psiquiatra pelo Hospital Universitário Professor Edgar Santos da Universidade Federal da Bahia, com título de Psiquiatra Geral pela Associação Brasileira de Psiquiatria, atua na Secretaria de Administração Pública do Governo do Distrito Federal como psiquiatra da equipe de Gerência de Saúde Mental e Preventiva. variados, conduta de evitação e ressentimentos irreais2. Por outro lado, fatores como desconhecimento da dinâmica da dependência, estruturas familiares disfuncionais, estereótipos sociais, entre outros, se opõem ao trato da patologia, agravando casos crônicos e criando uma cultura distanciada do restabelecimento da saúde. O II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas no Brasil3 destaca o uso de álcool comparativamente com o de outras drogas em âmbito nacional, conforme quadro comparativo abaixo: Uso de álcool Uso de outras drogas Na vida 74,6% 22,8% No ano 49,8% 10,3% No mês 38,3% 4,5% Esses dados reforçam a necessidade de uma atenção diferenciada ao grupo de alcoolistas. O I Levantamento Nacional Sobre os Padrões de Consumo do Álcool4 cita que na América Latina cerca de 16% dos anos de vida útil são perdidos em função do uso do álcool, enquanto a média mundial tem um índice quatro vezes menor (4%); também nota-se que 12,3% dos brasileiros tiveram diagnóstico de dependência alcoólica, enquanto os usuários de outras drogas psicoativas, excluindo-se o tabaco, somaram 2,1%1. Alguns organismos internacionais como a OMS - Organização Mundial de Saúde, no Programa de Abuso de Substâncias, a International Labour Organization e a United Nation International Drug Control Programme privilegiam ações de prevenção ao consumo de substâncias psicoativas no trabalho a partir da constatação de que 70% a 80% desse público encontra-se empregado. Nos Estados Unidos, cada vez mais recorre-se ao Employment Assistance Program – EAP (Programa de Assistência ao Funcionário), direcionado à saúde mental e aconselhamento, ajudando a tratar, inclusive, de problemas do uso de álcool e outras drogas. “O ambiente de trabalho é o espaço privilegiado para definir uma política de prevenção, uma vez que é onde o trabalhador passa grande parte de seu tempo e estabelece uma rede de relacionamento capaz de lhe conferir identidade social e profissional”5. Descrição do funcionamento do PADQ A constatação de que é mais vantajoso implantar medidas preventivas do que meramente substituir o funcionário de uma determinada empresa, arcando-se com os custos de demissão, recrutamento, seleção e treinamento do novo funcionário, determinou a adaptação na gestão de pessoas e induziu empresas, principalmente as de grande porte, a desenvolver programas de prevenção e tratamento de álcool e drogas no local de trabalho. Na Subsaúde, a observação do número crescente de licenças médicas, aposentadorias precoces ou inassiduidade habitual em consequência de alcoolismo demandou a criação de um programa que oferecesse aos órgãos do GDF uma referência nos casos de DQ. O Programa de Atenção ao Dependente Químico - PADQ foi instituído pela Portaria nº48 de 26 de maio de 20116 e tem como responsável por sua execução a Gerência de Saúde Mental e Preventiva - GESM, subordinada à Coordenação de Saúde e Segurança do Trabalho - COSST. A equipe interdisciplinar do PADQ é composta por psiquiatra, psicólogos, enfermeira e técnica de enfermagem. Além desses, há o suporte de uma assistente social quando necessário. O Programa inclui acompanhamento psiquiátrico, atendimento psicoterápico individual e em grupo, avaliação e suporte biopsicossocial, encaminhamento a instituições externas, orientação aos familiares e orientação aos gestores em temas como prevenção, detecção precoce da dependência química no ambiente laboral e condutas adequadas de intervenção. O presente trabalho tem por objetivo relatar ações, limitações e diretrizes do PADQ, assim como avaliar os progressos alcançados em um ano da publicação da portaria que o instituiu. Os servidores ingressam ao Programa por demanda espontânea ou encaminhados por gestores, médicos das Gerências de Perícia Médica e de Promoção à Saúde do Servidor ou pela Comissão Permanente de Readaptação Profissional. O acolhimento é feito em entrevista de triagem com questionário elaborado pela GESM e obtém informações como: dados epidemiológicos, padrão de consumo, histórico familiar, comorbidades, informações relativas ao trabalho, aspectos da vida social e interesses do servidor. O questionário, além de avaliar o comprometimento clínico, avalia se o servidor é eleito para o PADQ. Durante a entrevista de triagem são fornecidas informações sobre normas, atividades e critérios de participação no Programa. A partir disso, o servidor é encaminhado de acordo com uma das modalidades de tratamento a seguir: a) Acompanhamento Psiquiátrico: é realizada uma investigação para outras comorbidades psiquiátricas comumente associadas à dependência química como depressão e ansiedade e instaurado tratamento farmacológico específico para os sintomas-alvo. A periodicidade das consultas depende da avaliação da gravidade do caso; b) Atendimento Individual: é realizado por psicólogo em sessões continuadas e periódicas. Os eleitos para essa modalidade de atendimento apresentam alguma característica, ou mesmo psicoNov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 25 25 12/11/12 11:30 ARTIGO ORIGINAL por KARINNE TAVARES BORGES1, SONIA GERHARDT REZENDE2, MARCELA FAVARINI NUNES3 E FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4 patologia, que não os elege para o atendimento em grupo; c) Atendimento em Grupo: com frequência semanal, é o atendimento privilegiado no programa para minimizar a sensação de isolamento em relação à patologia e lidar com a exclusão e a discriminação em que vivem os dependentes; d) Avaliação Biopsicossocial: é realizada na área médica, psicológica e social, de modo a contextualizar o quadro apresentado pelo servidor. Durante essa avaliação, são feitas visitas técnicas às famílias, ao local de trabalho, a clínicas de recuperação ou qualquer outro lugar pertinente, de modo a observar o universo em que o servidor se encontra; e) Suporte Biopsicossocial Orientação aos familiares: sensibilizá-los sobre o seu papel na recuperação da saúde do servidor e informá-los sobre os tratamentos específicos existentes nas atuais redes de apoio, tanto para familiares como para os próprios servidores; Orientação aos gestores: aliados na problemática da dependência química, a equipe do PADQ dá atenção especial aos gestores, legitimando-os no cumprimento de seu papel e auxiliando-os no encaminhamento do servidor dependente. Há palestras, orientações por contato telefônico, o Curso de Orientação a Gestores de Dependente Químico e a Cartilha de Orientação aos Gestores sobre Dependência Química7, que será apresentada adiante; f) Encaminhamento a Instituições Externas Redes de apoio: instituições como os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas/CAPS-ad, Alcoólicos Anônimos/AA e Narcóticos Anônimos/NA são indicadas em duas situações: associado à assistência da Subsaúde, como forma de intensificar o tratamento ou na impossibilidade de comparecimento do servidor na sede da Subsaúde; Internação: é recomendada para os casos crônicos, com abuso intenso e longevo, onde há dificuldade de reestruturação da rotina do paciente. Idealmente, as clínicas com equipe multidisciplinar são as mais indicadas. No entanto, verifica-se que os casos crônicos trazem, como coadjuvante, comprometimento financeiro do servidor, fazendo-os migrar principalmente para comunidades terapêuticas, com quadro de pessoal mais limitado; Monitoramento: acompanhamento do servidor internado ou que frequenta alguma instituição da rede de apoio. Essa modalidade permite ao profissional verificar a capacidade de adesão ao tratamento indicado e inclui contato com o gestor para que seja verificada a frequência do servidor ao trabalho, assim como sua produtividade. Nos casos de internação são feitas visitas técnicas, que também têm função de subsidiar homologação de licença médica. 26 Cartilha de Orientação aos Gestores sobre Dependência Química7 A Cartilha surgiu após uma série de palestras com a exposição de dados gerais da dependência química e da técnica denominada Passo a Passo, que buscava auxiliar o gestor na tarefa de conduzir o servidor a tratamento sem desviar-se de seu papel institucional. Identificou-se nesses encontros a dificuldade do gestor em assimilar todo o procedimento sem um material impresso que pudesse ampará-lo no encaminhamento do servidor dependente. A previsão é de que a Cartilha seja usada no âmbito da Administração Direta, Autárquica e Fundacional do Distrito Federal8. Seu conteúdo está disponível no sítio eletrônico da SEAP para acesso dos gestores. O material é distribuído tanto aos órgãos de Gestão de Pessoas quanto aos gestores de servidores dependentes químicos que participam da palestra “Lidando com o Alcoolismo no Ambiente de Trabalho”. O Curso de Orientação a Gestores de Dependente Químico tem como base a apresentação da Cartilha aos gestores que encaminham o servidor dependente. A cartilha tem proposta dinâmica, onde o gestor pode seguir a sequência de ações que objetivam conscientizar o servidor sobre seu grau de dependência, bem como responsabilizá-lo pelos prejuízos. O Passo a Passo orienta o gestor em cada etapa, da identificação ao encaminhamento para o PADQ, finalizando com a persistência necessária para que não mude sua postura frente a eventuais recaídas do servidor. “Persistir é não desistir de conter os efeitos do uso no ambiente laboral. O trabalho tem a capacidade de promover fatores de proteção, pois fortalece a autoestima através da satisfação pessoal.”7 Perfil Sociodemográfico da População do PADQ O PADQ tem uma peculiaridade no quesito população. Na ocasião da publicação da Portaria que instituiu o Programa, os servidores já atendidos na gerência migraram para o PADQ e, após um ano de publicação, outros foram encaminhados ou vieram por demanda espontânea ao Programa, totalizando 67 servidores. Desses servidores, 43% não chegaram a ser triados, seja por não demonstrarem interesse em agendar a entrevista, seja por agendarem seguidas vezes sem nunca concretizar o encontro. Os dados aqui apresentados representam os servidores que compareceram revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 26 12/11/12 11:30 SONIA GERHARDT REZENDE 2 Psicóloga pela Universidade Federal Fluminense, atua na Secretaria de Administração Pública do Governo do Distrito Federal como psicóloga da Gerência de Saúde Mental e Preventiva e desde 2007 na área de dependência química, responsável pelo Programa de Apoio ao Dependente Químico do Governo do Distrito Federal, elaborou a Cartilha de Orientações aos Gestores sobre Dependência Química usada no âmbito da Administração Direta, Autárquica e Fundacional do Distrito Federal. à triagem e foram colhidos do questionário padrão adotado no final do ano de 2010. Os homens constituem uma expressiva maioria (98,5%) e a maior parte dos atendidos encontra-se na faixa etária de 40 a 49 anos, como mostra a Figura 1. Destaca-se a escolaridade: 59,3% tem pelo menos o ensino médio completo e o restante (40.7%) compõe o grupo que vai de analfabeto a nível médio incompleto, de acordo com a Figura 2. Esses resultados compõem com outro dado, que mostra 84% do quadro funcional de servidores do GDF com escolaridade de nível superior ou com ensino médio completo. O tempo de serviço desse grupo (Figura 3) está concentrado entre 11 e 30 anos de trabalho no GDF: 65,79%. O tipo de consumo (Figura 4) retrata o abuso de álcool como índice prevalente nessa população: todos os servidores do PADQ que chegaram à GESM o fizeram por prejuízos advindos dessa substância. Há um expressivo número que conjuga álcool e tabaco (36,84%) e 13,7% que consomem o álcool com outras drogas como crack e cocaína. Não se pode afirmar que esses resultados são fiéis ao consumo de crack ou cocaína nesse público; há possibilidade de o servidor dependente dessas substâncias evitar buscar o PADQ como fonte de auxílio. Pelo fato de o álcool ser substância lícita, é assumido e usado de forma mais livre do que outras drogas. Com efeitos mais conhecidos pela população em geral, é de mais fácil identificação do que, por exemplo, a cocaína. O encaminhamento dos servidores pelos gestores se dá exclusivamente por queixa de alcoolismo. O perfil do servidor atendido no PADQ pode ser observado nas figuras em anexo. Discussão Consonante com o encontrado na literatura9, a adesão dos adoecidos ao tratamento é aquém da expectativa. Tal realidade já se observa desde o encaminhamento: o índice de abandono pré-tratamento, quer seja, faltar à primeira consulta depois de tê-la agendado, é de 43%. Daqueles que aderiram ao programa de tratamento, a frequência de comparecimento ao atendimento em grupo foi de, em média, três participantes por encontro semanal, considerado abaixo do desejável para uma boa dinâmica de grupo. Na prática, os servidores se comprometem pouco com a assiduidade, o que demandou mudanças na proposta de tratamento. Com a publicação da cartilha8, novo investimento foi feito em nível institucional na política de saúde que busca a prevenção ao alcoolismo. Diferente da proposta anterior, quando o principal produto aos órgãos era uma palestra de aproximadamente duas horas, agora é oferecido um curso aos gestores que tem por objetivos reduzir a codependência institucional, aumentar a consciência coletiva sobre os transtornos decorrentes do uso indevido do álcool e isentar o gestor do papel de agente punidor colocando-o em outro, capaz de promover ambiente de trabalho saudável. “Os ambientes de trabalho devem ser vistos como locais privilegiados para iniciativas de prevenção do uso prejudicial de bebidas alcoólicas”9. As palestras feitas nos órgãos ao longo dos anos possibilitaram a identificação de dois perfis predominantes entre os gestores que hesitam em encaminhar o servidor para tratamento. Há o gestor que tem relativa intimidade com o dependente, que já teve alguma tentativa frustrada de ajudá-lo e evita a responsabilização do mesmo por observá-la como sinônimo de punição. Há também o gestor que está no cargo em caráter temporário e percebe que a situação se prolonga ao longo dos anos. Temendo o desgaste, é inclinado a minimizar o problema. Ambos costumam abonar o ponto dos faltosos, ignorar os atrasos, redistribuir as tarefas entre os outros servidores, adotar postura passiva ao verificar a dificuldade, ou algumas vezes incapacidade, do servidor em cumprir seu pape e aceitar o presenteísmo. A falta de crítica do próprio servidor é outro ponto que dificulta a adesão. Há dificuldade em encarar a dependência química como doença e em entrar em contato com os prejuízos dela decorrentes. “Muitos consumidores de drogas não compartilham da expectativa e desejo de abstinência dos profissionais de saúde, e abandonam os serviços. Outros sequer procuram tais serviços, pois não se sentem acolhidos em suas diferenças. Assim, o nível de adesão ao tratamento ou a práticas preventivas e de promoção é baixo, não contribuindo para a inserção social e familiar do usuário”9. Em relação ao acompanhamento psiquiátrico, observamos baixa aderência ao tratamento e no grupo de apoio, uso irregular das medicações e associação das mesmas com álcool, o que limita o sucesso do tratamento farmacológico. Há ainda o agravante das comorbidades nos usuários. A presença de transtorno mental co­mo depressão, ansiedade ou esquizofrenia é, muitas vezes, o mo­tivo para que o paciente seja encaminhado dos serviços de dependência química para os serviços psiquiátricos. Estes por sua vez, reencaminham o paciente para o programa de dependência, por considerarem o abuso de substância psicoativa o problema central. A taxa de comorbidade chega a 13% dos usuários e em 20 a 50% desses pacientes, encontraremos problemas de alcoolismo conjugado ao abuso de outras drogas10. Outro potencial aliado no resgate do servidor dependente são Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 27 27 12/11/12 11:30 ARTIGO ORIGINAL por KARINNE TAVARES BORGES1, SONIA GERHARDT REZENDE2, MARCELA FAVARINI NUNES3 E FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4 seus familiares, que têm se mostrado de difícil acesso e com baixa participação nas entrevistas quando convidados. Os familiares evidenciam sua descrença de que haverá mudança de estilo de vida do parente adoecido e usualmente reestruturam a dinâmica familiar a partir da falta, ausência ou presença nociva desse membro. Frequentemente recusam-se a participar de qualquer grupo de ajuda nos moldes do Al-Anon - grupo de ajuda para familiares e amigos de alcoolistas, a despeito das pesquisas que demonstram que estes grupos fornecem apoio, ajudam os participantes a lidar com problemas e crises e os habilitam a aderir ao plano de tratamento11. Outro fator que provavelmente isola os dependentes do movimento de mudança saudável é a característica de serem servidores públicos com estabilidade funcional, permitindo-lhes adiarem ou mesmo negarem tratamento. A atuação da GESM busca dar acolhimento aos servidores que estejam na condição de dependentes químicos e estabelece uma política que, por um lado, abre alternativas para o servidor já consciente da doença e, por outro, conduza o servidor alheio à patologia a engajar-se em tratamento. As limitações dos agentes de saúde e da própria instituição devem ser reconhecidas, sempre observando o dependente como entidade autônoma que tem juízo de realidade e toma decisões que ora os beneficia, ora os prejudica. “Se nas práticas de saúde nosso compromisso ético é o da defesa da vida, temos de nos colocar na condição de acolhimento, em que cada vida se expressará de uma maneira singular, mas também em que cada vida é expressão da história de muitas vidas, de um coletivo. Não podemos nos afastar deste intrincado ponto onde as vidas, em seu processo de expansão, muitas vezes sucumbem ao aprisionamento, perdem-se de seu movimento de abertura e precisam, para desviar do rumo muitas vezes visto como inexorável no uso de drogas, de novos agenciamentos e outras construções”9. Nesse contexto, o papel da instituição será evidenciar as consequências dessas escolhas que trazem dano institucional. Vivenciar as perdas, principalmente financeiras ou algumas vezes de status, possibilita aumento da crítica, fundamental para a busca de alternativas que preencham o espaço que o álcool fatalmente deixará. Com a percepção de doença com causas e efeitos biopsicossociais, o PADQ oferece tratamento que compreenda essas três dimensões. A dimensão biológica é acompanhada por médica psiquiatra que quando necessário faz o encaminhamento a outras especialidades. A psicológica tem acolhimento no atendimento individual ou em grupo que a GESM oferece, ou no incentivo ao engajamento em outras instituições que supram as necessidades do servidor. A dimensão social é fortalecida através do vínculo 28 com familiares e gestores, de maior convívio com o dependente, e que se fortalecem em seus papéis à medida que recebem apoio e orientação que sustentem sua participação no tratamento. A atual cultura institucional, e que se pretende mudar, dita que a perda financeira precisa ser evitada principalmente quando a remuneração do servidor envolve o sustento de filhos. Paradoxalmente, o bônus por trás desse ônus é que, especialmente nesses casos, a família tende a se mobilizar, buscar orientações e sensibilizar-se em relação ao alcoolismo. O conhecimento da estrutura adoecida do membro da família reduz a estigmatização e fomenta o uso dos serviços disponíveis para apoio a esses familiares. “As atividades preventivas também devem ser orientadas ao fornecimento de informações e discussão dos problemas provocados pelo consumo do álcool, tendo ainda como fundamento uma visão compreensiva do consumo do álcool como fenômeno social, e ao mesmo tempo individual”9. Uma preocupação da equipe da GESM é não se ater somente ao servidor identificadamente dependente, que já faz visível sua patologia. Busca-se dar visibilidade ao tema no ambiente de trabalho de forma que indivíduos que têm poucos prejuízos decorrentes do abuso do álcool também recebam atenção. Ao falar de prevenção, urge contemplá-los, já que são os que têm maior probabilidade de desenvolver problemas mais graves e procurarem o PADQ somente cinco anos após o primeiro problema decorrente do uso de álcool - esse é o período médio que o usuário demora para iniciar tratamento9. Com objetivo de prevenção, inclui-se aqui os conceitos de fatores de risco e fatores de proteção com relação ao abuso de substâncias. Os fatores risco tornam a pessoa mais vulnerável a adotar comportamentos que tendem a levá-la ao consumo de substâncias psicoativas. Os de proteção, por sua vez, atuam contrabalançando as vulnerabilidades para os comportamentos de co de substâncias psicoativas12. Portanto, a família e o trabalho (representado também pelos gestores) podem ter aspectos de fatores de proteção e a equipe multiprofissional da GESM atua junto a esses dois grupos em favor do servidor dependente químico. O programa segue com as palestras que levam informações gerais sobre alcoolismo aos órgãos, criando mecanismos que atraiam cada vez mais servidores que muitas vezes se intimidam com o tema. Conclusão Verifica-se que, a despeito da disponibilidade de equipe multi- revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 28 12/11/12 11:31 MARCELA FAVARINI NUNES 3 Psicóloga formada pela Universidade de Brasília, mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília. Atua como psicóloga na Gerência de Saúde Mental e Preventiva da Secretaria de Administração Pública do Governo do Distrito Federal no Programa de Apoio ao Dependente Químico e no Atendimento psicológico aos servidores do Governo do Distrito Federal. profissional na GESM, da publicação da Cartilha de Orientação aos Gestores de Dependentes Químicos e da Portaria que oficializa o PADQ no âmbito do GDF, o trabalho de sensibilizar o servidor dependente para sua patologia permanece com amplo campo de aplicação. Percebe-se a necessidade de uma abordagem pedagógica com a explanação das consequências do abuso de substâncias psicoativas e a desmistificação dos medicamentos de suporte. Paralelamente, o posicionamento institucional atua como limitador do consumo e redutor dos prejuízos biopsicossociais. Os esforços para sensibilizar familiares e gestores direcionam-se, igualmente, para a introdução de conhecimento, incentivo à promoção de saúde e conscientização de seus papéis junto ao servidor dependente. Agradecimentos Rosylane Nascimento Mercês da Rocha Synara Tadeu de Oliveira Ferreira Maviane Vieira Machado Ribeiro Vanessa Sales Veras O trabalho não apresenta conflitos de interesses e fontes de financiamentos. Sonia Gerhardt Rezende SGAN 907 Bloco A, Anexo do Gisno Gerência de Saúde Mental e Preventiva - Subsaúde 70.790-070 Brasília - DF-Brasil e-mail: [email protected] Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 29 29 12/11/12 11:31 ARTIGO ORIGINAL por KARINNE TAVARES BORGES1, SONIA GERHARDT REZENDE2, MARCELA FAVARINI NUNES3 E FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4 Referências • • • • • • • • • • 30 1. Anônimo. Política Integrada de Atenção à Saúde do Servidor Público do Distrito Federal. Diário Oficial do Distrito Federal. Decreto nº 33.653, de 10 de maio de 2012. 2. Vaissman, M. Alcoolismo no Trabalho. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Garamond; 2004. 3. Carlini, EA (supervisão) (et. al.). II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país: 2005. São Paulo : CEBRID - Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas - UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo; 2006. 4. Laranjeira, R. I Levantamento Nacional Sobre OS Padrões de Consumo de Álcool na População brasileira. Brasília: Secretaria Nacional Antidrogas; 2007. 5. Anônimo. Prevenção ao uso de álcool e outras drogas no ambiente de trabalho: conhecer para ajudar. Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas, 2008. 6. Anônimo. Programa de Atenção ao Dependente Químico. Diário Oficial do Distrito Federal. Portaria n°48 de 26 de maio de 2011. 7. Rezende, SG. Cartilha de Orientação aos Gestores sobre Dependência Química. Diário Oficial do Distrito Federal. Portaria n°55 de 21 de maio de 2012. Disponível em: http://www.seap.df.gov.br/sites/400/472/00000427.pdf 8. Anônimo. Portaria nº 55 de 21 de maio de 2012 que institui o Manual de Saúde e Segurança do Trabalho do Servidor Público do Distrito Federal e a Cartilha de Orientações a Gestores de Dependentes Químicos, no âmbito da Administração Direta, Autárquica e Fundacional do Distrito Federal. Diário Oficial do Distrito Federal. 2012. 9. Brasil.Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. SVS/CN-DST/AIDS.A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas/Ministério da Saúde. 2.ed. rev. ampl.– Brasília:Ministério da Saúde, 2004 10. McCrady, BS; Epstein, EE. Addictions: A comprehensive guidebook. New York: Oxford University Press, NY. 1999. • • 11. Anônimo. Depression and Bipolar Support Groups Alliance: An Important Step on the Road to Recovery, [base de dados na Internet]. DBSA Chicago, Illinois. 2008; [acessado em 03.08.2012]. Disponível em http:// www.dbsalliance.org/site/DocServer/DBSASupportGrps_0708_FINAL.pdf?docID= 12. Zemel, MLS. Prevenção ao uso indevido de drogas. 4ª edição, Brasília. Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – SENAD, 2011. revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 30 12/11/12 11:31 FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA 4 Psicólogo formado pela Universidade de Brasília, licenciado em Letras, pela Faculdade Michelangelo, mestre em Psicologia Social e do Trabalho. Atua como psicólogo na Gerência de Saúde Mental e Preventiva da Secretaria de Administração Pública do Governo do Distrito Federal no Programa de Apoio ao Dependente Químico e no Atendimento psicológico aos servidores do Governo do Distrito Federal. Figura 1: Idade da População do Programa de Atenção ao Dependente Químico Figura 2: Escolaridade da População do Programa de Atenção ao Dependente Químico Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 31 31 12/11/12 11:31 ARTIGO ORIGINAL por KARINNE TAVARES BORGES, SONIA GERHARDT REZENDE, MARCELA FAVARINI NUNES E FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA Figura 3: Tempo de Serviço da População do Programa de Atenção ao Dependente Químico Figura 4: Drogas Consumidas pela População do Programa de Atenção ao Dependente Químico Fontes: arquivo de prontuários da Gerência de Saúde Mental e Preventiva 32 revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 32 12/11/12 11:31 ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA1 E ANDRÉ STROPPA2 ESPIRITUALIDADE E SAÚDE MENTAL: O QUE AS EVIDÊNCIAS MOSTRAM? SPIRITUALITY AND MENTAL HEALTH: WHAT EVIDENCE SHOWS? Resumo Religiosidade e Espiritualidade (R/E) têm se tornado um tema de crescente interesse entre clínicos e pesquisadores na área de saúde. Entretanto, devido à falta de treinamento em temas ligados à rela­ ção entre R/E e saúde, grande parte das evidências disponíveis ainda são desconhecidas por muitos profissionais de saúde e muitos têm dificuldades em lidar com a R/E em situações da prática clínica. Este artigo visa oferecer uma breve e prática revisão dos principais conceitos em R/E que são relevantes para o clínico, bem como das principais evidências disponíveis sobre o impacto da R/E na saúde mental. Existe um amplo, diversificado e robusto corpo de evidên­ cias indicando a relevância e o impacto da R/E sobre a saúde. Os estudos demonstram que a R/E é um elemento importante na vida da maior parte da população mundial, principalmente entre aque­ les enfrentando adversidades como o adoecimento. Pessoas com maiores níveis de R/E tendem a apresentar maior bem estar e me­ nores níveis de depressão, abuso/dependência de substâncias e de comportamentos suicidas. Embora necessitando de maiores estu­ dos, a R/E é algo importante na vida de pacientes com transtornos bipolar e esquizofrenia, havendo evidências sugestivas de impacto benéfico sobre a evolução destes transtornos mentais. Atualmente, a tendência das pesquisas não é mais em investigar se há relações entre R/E e saúde, mas em identificar os mecanismos desta relação e como aplicar estes conhecimentos na prática clínica. Palavras chave: religião, espiritualidade, psiquiatria Abstract Religiosity and spirituality (R/S) have become a topic of growing interest among clinicians and health researchers. However, due to lack of training on issues related to the relationship between R/S and health, much of the evidence available is still unknown by many health professionals and many have difficulties in dealing with R/S during clinical practice. This paper presents a brief and practical review of key concepts in R/S that are relevant to the clini­ cian as well as the main evidence on the impact of R/S on mental 34 health. There is a broad, diverse and robust body of evidence in­ dicating the relevance and impact of R/S on health. Studies show that R/S is an important element in the lives of most of the world population, especially among those facing struggles like illness. Pe­ ople with higher levels of R/S tend to have higher well-being and lower levels of depression, substance abuse/dependence, and suici­ dal behaviors. Although requiring further study, R/S is an aspect in the lives of patients with bipolar disorder and schizophrenia, with evidence suggesting a beneficial impact of R/S on the evolution of these mental disorders. Currently, the research trend is no longer to investigate whether there are relationships between R/S and health, but in identifying the mechanisms of this relationship and how to apply this knowledge in clinical practice. Keywords: religion, spirituality, psychiatry 1. INTRODUÇÃO T em havido um crescente reconhecimento por clínicos e pesquisadores em relação à importância da religiosidade e espiritualidade (R/E) em questões ligadas à saúde 1, 2 . O número de pesquisas tem crescido rapidamente, chegando à casa dos milhares de estudos publicados. Estes estudos indicam que a R/E tem marcantes implicações em aspectos de prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação, além do fato de que a maior parte da população mundial tem alguma forma de R/E 3. Além disso, diversos estudos indicam que a maioria dos pacientes desejam que a R/E seja abordada por seus clínicos durante o encontro médico-paciente4. Entretanto, a maioria dos clínicos não recebeu treinamento sistemático, ou mesmo treino algum, sobre as evidências disponíveis na área, bem como sobre como lidar com a espiritualidade na prática clínica5. Entretanto, como há implicações da R/E sobre a saúde e como os pacientes trazem estes temas nos encontros clínicos, há um problema ético, pois grande parte dos clínicos pode estar atuando em situações para as quais revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 34 12/11/12 11:31 ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA 1 Professor de Psiquiatria e Coordenador do NUPES - Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde da Faculdade de Medicina da UFJF (www.ufjf.br/nupes), Doutor pela USP e Pós Doutor pela Duke University. não receberam treinamento adequado. Nestes casos, podem ser comuns duas situações: o clínico ignorar o tema, mesmo quando é algo relevante e o paciente o traz na consulta, ou então buscar abordar a R/E do modo que, pessoalmente, julgar mais apropriado. Este último modo, embora muitas vezes resulte em uma abordagem adequada, pela falta de conhecimento da literatura na área e de treinamento adequado, pode resultar em práticas inadequadas baseadas nas convicções do profissional. Nestes casos, podem ocorrer tanto a desqualificação das crenças dos pacientes como a tentativa de imposição, sutil ou direta, das crenças, ideologias e práticas do clínico, sejam elas religiosas ou materialistas6. Alguns autores alertam para o fato de que pesquisas, ao menos as realizadas nos EUA, indicam que os profissionais de saúde mental tendem a ser bem menos religiosos que a população geral. Devido a este fato e ao de não receberam treinamento adequado em R/E, parte dos clínicos tem dificuldade em empatizar com a experiência religiosa dos pacientes e em compreender sua importância na vida destes 7, 8. Entretanto, do mesmo modo que em outras vivências culturais e sociais, não é preciso que o clínico seja religioso para abordar de modo adequado a R/E. Há evidências que profissionais não religiosos podem abordar o tema na prática clínica de modo tão adequado quanto os religiosos9. O reconhecimento da importância da R/E na área de saúde mental se reflete na criação de seções ou departamentos sobre R/E nas seguintes influentes associações: Mundial de Psiquiatria (www.religionandpsychiatry.com), Americana de Psiquiatria, Britânica de Psiquiatria (www.rcpsych.ac.uk/ college/specialinterestgroups/spirituality.aspx) e Americana de Psicologia (www.division36.org). Com o intuito de colaborar neste sentido, este artigo visa oferecer uma breve e prática revisão dos principais conceitos em R/E que são relevantes para o clínico, bem como das principais evidências disponíveis sobre o impacto da espiritualidade na saúde mental. No próximo número desta revista, esta revisão será completada por outra que abordará implicações que este conhecimento tem para a prática clínica, para o atendimento dos pacientes que confiam em nós na busca do alívio de seus sofrimentos. 2. RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE Há várias discussões sobre as definições de “religião” e “espiritualidade”, adotaremos as definições expostas na tabela 1. Tabela 1: Definições de Espiritualidade e Religião Espiritualidade Religião Relação com o sagrado, o transcendente (Deus, poder superior, realidade última)a Sistema organizado de crenças e práticas desenvolvidos para facilitar a proximidade com o transcendentea Referente ao domínio do espírito, à dimensão não material ou extrafísica da existência (Deus ou deuses, almas, anjos, demônios)b É o aspecto institucional da espiritualidade. Religiões são instituições organizadas em torno da idéia de espíritoc Koenig HG, King DE, Carson VB. Handbook of religion and health. 2a. ed. New York: Oxford University Press, 2012. b Hufford DJ. Visionary spiritual experiences in an enchanted world. Anthropology and Humanism. 2010; 35 (2) 142-58. c Hufford DJ. Online An Analysis of the Field of Spirituality, Religion and Health (S/RH). Disponível em http://www.metanexus. net/tarp a De um modo geral, pode-se conceber a religiosidade como uma forma de manifestação, um subconjunto da espiritualidade. Por sua maior facilidade de mensuração, a maioria dos estudos na área investiga aspectos da religiosidade. Entre as dimensões de religiosidade mais estudadas estão 10: - Orientação religiosa: pode ser intrínseca, onde as pessoas têm na religião seu bem maior, outras necessidades são vistas como de menor importância e colocadas em harmonia com sua crença religiosa. A orientação intrínseca está habitualmente associada à personalidade e estado mental saudáveis 2,4. Ou pode ser extrínseca, onde a religião é um meio utilizado para obter outros fins ou interesses, para obter segurança e consolo, sociabilidade e distração, status e auto-absolvição. Nesse caso, abraçar uma crença é uma forma de apoio ou obtenção de necessidades imediatas ou mais primárias 2,4. Como afirmou Gordon Alport, psicólogo de Harvard que criou estas categorias, enquanto na religiosidade intrínseca o indivíduo busca servir a Deus, na extrínseca ele busca ser servido por Ele 11. - Organizacional: frequência aos serviços e eventos religiosos púNov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 35 35 12/11/12 11:31 ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA1 E ANDRÉ STROPPA2 blicos como missas, cultos, reuniões espíritas. Uma das medidas de religiosidade mais usadas em pesquisas e que demonstra consistente associação com indicadores de saúde. - Privada ou não organizacional: orações e leituras religiosas individuais 2,4. - Coping: estratégias R/E utilizadas por uma pessoa para se adaptar a circunstâncias adversas ou estressantes de vida. O coping pode ser positivo ou negativo, conforme estiver associado a indicadores de melhor ou de pior saúde (ver tabela 2). Diversos estudos mostram que o Coping religioso positivo é usado bem mais frequentemente que o negativo. Embora seja muitas vezes senso comum que religião sempre esteve em conflito com a ciência e com a medicina, rigorosos estudos históricos das últimas décadas têm modificado drasticamente esta visão. Tem sido demonstrado que grande parte dos casos famosos de conflitos entre religião e ciência são mitos criados no século XIX 12. 36 Isso inclui mitos ligados à medicina como a suposta proibição de dissecção de cadáver pela igreja medieval e o alegado combate sistemático feito pelas instituições religiosas cristãs ao uso da anestesia, especialmente por mulheres em trabalho de parto 13. Em resumo, os estudos indicam que as relações entre ciência e religião têm sido, ao longo da história, muito mais complexas e habitualmente positivas do que se pensava. Um maior distanciamento, e mesmo hostilidades mútuas, é um fenômeno historicamente recente, surgido na segunda metade do século XIX e que prevaleceu ao longo da maior parte do século XX. Nas últimas décadas tem havido fortes sinalizações de busca de retorno a um diálogo e interações mais construtivas entre ciência e religião 14. Em relação à medicina, há também uma longa história de relações entre R/E e os cuidados em saúde. Os sacerdotes e xamãs, que talvez sejam representantes da primeira profissão a existir, eram indivíduos em que os papéis de médico e religioso se sobrepunham revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 36 12/11/12 11:31 ANDRÉ STROPPA 2 Membro do NUPES, Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFJF, Mestre pela Universidade Federal de Juiz de Fora. ou se confundiam. Grande parte das faculdades de medicina, dos hospitais gerais e mesmo os direcionados para os problemas mentais surgiram a partir de iniciativas de grupos religiosos cristãos e muçulmanos. Também no Brasil, ainda hoje, grande parte dos hospitais gerais e de psiquiatria existentes estão ligados a instituições religiosas católicas, protestantes e espíritas 15, 16. Seguindo uma tendência maior da comunidade científica da época, na transição entre os séculos XIX e XX, nomes importantes da medicina defenderam e disseminaram visões bastante negativas da R/E. Experiências espirituais tenderam a ser vistas como causas ou consequências de doenças mentais, bem como a R/E passou a ser muitas vezes entendida como decorrente de imaturidade de personalidade, falta de cultura ou alguma neurose. Embora estas visões tenham prevalecido ao longo do século XX, geralmente se baseavam em observações não sistemáticas e em certos pressupostos teóricos e/ou ideológicos 10, 16. Nas últimas três décadas tem havido uma investigação muito mais ampla, rigorosa e sistemática das relações entre R/E e saúde. Atualmente há milhares de estudos epidemiológicos na área, sendo boa parte de boa qualidade. Koenig et al.17 realizaram uma revisão sistemática dos estudos sobre R/E e saúde publicados ao longo do século XX, obtendo 1.200 estudos. Ao revisarem a literatura produzida entre 2001 e 2010, Koenig et al.16 encontraram outros 2.100 estudos originais com dados quantitativos, o que aponta para o significativo aumento do interesse e da importância da produção científica de pesquisadores pelo tema. Estes dois livros se constituem nas mais amplas e sistemáticas revisões já feitas sobre as evidências disponíveis das relações entre R/E e saúde e serão frequentemente referenciados ao longo deste artigo. A maioria dos estudos de boa qualidade indica que maiores níveis de envolvimento religioso estão habitualmente associados a indicadores de bem-estar, e a indicadores de saúde física e mental. O impacto positivo do envolvimento religioso na saúde mental é mais intenso entre pessoas sob estresse ou em situações de fragilidade, como idosos, pessoas com deficiências e doenças clínicas, o que aumenta sua importância para a prática médica1, 2. Por outro lado a R/E também pode se associar a piores desfechos em saúde quando há uma ênfase na culpa, punição, intolerância, abandono de tratamentos médicos etc. A existência de conflitos religiosos internos ao indivíduo ou em relação à sua comunidade religiosa também está associada a piores indicadores de saúde 10. Além do impacto na saúde mental, R/E também influencia aspectos da saúde física 18. Por exemplo, mais de 120 estudos investigaram a relação entre níveis de R/E e mortalidade. As três meta-análises já realizadas neste tema indicam que, após controle para variáveis de confusão como estado de saúde, a frequência a serviços religiosos está associada a um aumento em média 37% na probabilidade de sobrevida durante o período de seguimento dos estudos16. Um estudo recente comparou o impacto do envolvimento religioso sobre a mortalidade em relação aos resultados de 25 meta-análises de intervenções bem utilizadas na prevenção de mortalidade. O impacto da R/E sobre o mortalidade foi maior que a maioria das intervenções (como tratamento medicamentoso da hipertensão arterial ou o uso de estatinas) e similar ao rastreio com mamografia em mulheres acima de 50 anos e ao consumo de frutas e vegetais19. Embora já exista atualmente um consenso sobre o impacto da religiosidade na saúde, tem havido uma grande discussão sobre os mecanismos que explicariam esta influência. Normalmente se propõe um conjunto de mediadores (ver tabela 2), mas os testes empíricos destas hipóteses têm apresentado resultados inconclusivos 20 . A investigação destes mecanismos de relação entre espiritualidade e saúde é uma das principais agendas de pesquisa na área. Tabela 2 – Mecanismos propostos para a relação R/E – Saúde10,17,20 Hábitos de saúde: melhor dieta, menor uso de substâncias e envolvimento com situações violentas e de risco Suporte Social: maior e mais profunda rede social, trabalho voluntário Estratégias cognitivas: crenças que promovem a auto-estima e provém significado à vida e às situações estressantes Psico-neuro-imuno-endocrinologia: baixos níveis de interleucina-6 e cortisol Práticas religiosas: oração, perdão, meditação, transes Coping Religioso (estratégias para lidar com problemas) Positivo Negativo Tentei encontrar um ensinamento de Deus no que aconteceu Questionei o poder de Deus Fiz o que pude e coloquei o resto nas mãos de Deus Fiquei imaginando se Deus tinha me abandonado Pensei como minha vida é parte de uma força espiritual maior Questionei o amor de Deus por mim Busquei dar apoio espiritual a outras pessoas Questionei-me se minha comunidade religiosa tinha me abandonado Me foquei na religião para parar de pensar em meus problemas Pedi a Deus para que faça tudo ficar bem Orei para encontrar uma nova razão para viver Imaginei o que teria feito para Deus me punir Pedi perdão pelos meus erros Não fiz nada, apenas esperei que Deus resolvesse os problemas para mim Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 37 37 12/11/12 11:31 ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA1 E ANDRÉ STROPPA2 3. RELIGIOSIDADE E SAÚDE MENTAL 3.1. Bem-estar e emoções positivas Tem havido um crescente interesse da medicina e demais áreas da saúde no que se tem chamado de saúde positiva, buscando não apenas combater o sofrimento e incapacitação, mas almejando também uma vida feliz, produtiva e com significado. Isto se deve ao fato de que as pessoas não buscam apenas não ficar doentes, mas almejam ter uma vida plena. De 326 estudos identificados por Koenig et al (2012) acerca da associação entre envolvimento religioso e indicadores de bem-estar psicológico (satisfação com a vida, felicidade, afeto positivo, auto-estima elevada), 256 estudos (78,5%) encontraram uma correlação positiva e significativa entre essas variáveis. Analisando-se apenas os 120 estudos de alta qualidade metodológica, 98 (82%) encontraram relações positivas. Em sua maioria, essa associação entre religiosidade e bem-estar se mantém mesmo após controlar para possíveis variáveis de confusão como situação conjugal, idade, gênero, nível educacional e sócio-econômico10. 3.2. Abuso/dependência de álcool e outras substâncias Em uma ampla revisão sobre religião e saúde mental, Dalgalarrondo afirma que o achado de associações entre maior religiosidade e menor abuso ou dependência de álcool ou drogas “é o mais consistente de todos os fenômenos estudados no campo ‘saúde mental-religião’” (p.182)1 . Envolvimento religioso se associou a menor uso/abuso de álcool em 240 (86%) dos 278 estudos identificados por Koenig et al (2012), subindo para 90% entre os 145 com melhor qualidade metodológica. Um padrão semelhante foi encontrado em relação a abuso de drogas: 84% dos 185 estudos encontraram relação inversa entre religiosidade e uso de drogas. Estes resultados têm sido observados tanto em adolescentes quanto em adultos, bem como em diversos países pelo mundo 16. No Brasil, em um estudo com amostra de 3.007 pessoas, representativa da população brasileira, indivíduos que não frequentavam atividades religiosas tinham taxas de uso de álcool ao longo da vida, de intoxicação no último ano e de abuso/dependência que eram o dobro dos que frequentavam semanalmente. Protestantes tinham as menores frequências de uso/abuso de álcool e indivíduos que se declararam sem religião tinham uma prevalência de abuso/dependência de álcool que era mais de duas vezes a dos católicos 21. Em uma investigação de 2.287 estudantes de Campinas, a religiosidade esteve fortemente associada e menor uso de drogas 38 no último mês, mesmo após controlar para variáveis sociodemográficas. O jovem não religioso tinha 2.9 vezes mais chance de ter usado cocaína no último mês que o que declarava ter religião. Outra variável que se destacou foi ter recebido educação religiosa na infância, que se associou com quatro vezes menos uso de êxtase e três vezes menos uso de medicação para “dar barato” 22. 3.3) Religiosidade e Depressão Dos 443 estudos identificados, 271 (61%) encontraram que maior R/E estava associada com menos depressão, recuperação mais rápida da depressão ou que intervenções que envolvem R/E têm melhores resultados em depressão que intervenções sem tais elementos. Vinte e dois por cento não encontraram associação, 6% relataram associação entre R/E e maior depressão e 11% tiveram resultados mistos. Assim, embora de um modo geral R/E se associou a menos depressão, este não é sempre o caso. O uso de coping religioso negativo, assim como problemas em áreas com implicações morais como uso de drogas, questões sexuais ou conflitos conjugais parece explicar parte destes resultados ligando R/E e depressão16. Os efeitos positivos da R/E sobre a depressão são mais intensos em populações sob risco e vivenciando situações de estresse. Este ano dois artigos foram publicados sobre uma investigação longitudinal (com até 20 anos de seguimento) do impacto da R/E sobre o risco de transtornos mentais. Um grupo sob alto risco de depressão (filhos de pais com depressão moderada a grave em tratamento farmacológico) foi comparado com outro de baixo risco (filhos de pais sem histórico de transtornos mentais). Somando os dois grupos, filhos que frequentavam regularmente um grupo religioso aos 10 anos de idade, tinham metade da chance de apresentarem transtornos mentais no período entre os 10 e 20 anos de idade em comparação com os que não frequentavam. O tamanho deste efeito foi ainda maior entre o grupo de alto risco para depressão onde a frequência a serviços religiosos aos 10 anos reduziu em 64% a chance de um transtorno mental nos 10 anos seguintes 23. Em relação especificamente à depressão, a frequência a serviços religiosos aos 10 anos não se associou a menos episódios de depressão entre os 10 e 20 anos de idade. Por outro lado, as crianças que, aos dez anos, referiam que religião ou espiritualidade era muito importante para eles tinham ¼ do risco de depressão nos 10 anos seguintes em comparação aos outros. Entre os filhos de pais com depressão, o risco de um episódio de depressão entre os 10 e 20 anos de idade era apenas 1/10 dos que não consideravam a religião como algo importante. Este efeito protetor se verificou principalmente contra recorrência de depressão 24. revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 38 12/11/12 11:31 3.4) Religiosidade e Transtorno Bipolar (TB) Dentre os principais transtornos mentais, o TB está entre aqueles que contam com menos estudos sobre R/E na literatura, talvez pelas controvérsias e dificuldades diagnósticas, que perduraram por algumas décadas. Uma revisão sobre o tema encontrou 122 artigos publicados sobre o tema, mas a maioria se tratava de relatos de casos ou artigos de discussão. Há poucos estudos epidemiológicos de qualidade. Os existentes apontam que pacientes bipolares tendem a apresentar maior envolvimento religioso/espiritual, maior frequência de relatos de conversão e experiências de salvação e uso mais frequente de coping religioso e espiritual (CRE) que pessoas com outros transtornos mentais. Indicam ainda, uma relação frequente e significativa entre sintomas maníacos e experiências místicas. Emerge destes estudos que o TB e a R/E possuem intensa e complexa inter-relação que precisa ser melhor explorada 25. Recente estudo realizado no Brasil com 168 pacientes bipolares em tratamento ambulatorial encontrou alto nível de envolvimento religioso, que não se associou a sintomas maníacos, mas se relacionou fortemente com menores níveis de depressão e maior qualidade de vida 26. 3.5) Transtornos Esquizofrênicos As relações entre espiritualidade e psicose são bastante complexas, envolvendo o nível de crenças religiosas entre os pacientes, a diferenciação entre experiências religiosas e transtornos mentais de conteúdo religioso, bem como o uso e impacto do coping religioso. Embora até em torno de 30% das psicoses possam ter sintomas com conteúdo religioso, isso não implica que as experiências religiosas sejam geralmente psicóticas 27. Na realidade, experiências religiosas que se assemelham a sintomas psicóticos como alucinações e vivencias de influência podem se associar a bons indicadores de saúde, o que torna essencial a realização de um adequado diagnóstico diferencial 28. Estudos recentes têm demonstrado que é muito comum a utilização da R/E como um recurso de coping entre pacientes com esquizofrenia. Embora este coping possa ser positivo e negativo, a grande maioria dos pacientes utiliza formas positivas de coping religioso, o que se associou com melhor evolução após três anos de seguimento 29. Em resumo, está clara a importância da R/E espiritualidade para pacientes com transtornos esquizofrênicos, mas ainda há muitos aspectos que merecem ser melhor investigados. ticamente a interrupção voluntária da vida, a R/E também está associada a menor frequência de vários dos fatores de risco para suicídio (p.ex.: depressão, uso de álcool e drogas, isolamento social, falta de sentido na vida etc.). Isso faz com que seja natural investigar o impacto da R/E sobre o comportamento suicida 10, 30. Dos 144 estudos quantitativos que investigaram o tema, 106 (75%) encontraram menor ideação e comportamento suicida entre os indivíduos mais religiosos 16. 4. CONCLUSÕES R/E tem se tornado um tema de crescente interesse entre clínicos e pesquisadores na área de saúde. Entretanto, devido à falta de treinamento em temas ligados à relação entre R/E e saúde, grande parte das evidências disponíveis ainda são desconhecidas por muitos profissionais de saúde e muitos têm dificuldades em lidar com a R/E em situações da prática clínica. Atualmente já há um amplo, diversificado e robusto corpo de evidências demonstrando a relevância e o impacto da espiritualidade sobre a saúde. Os estudos demonstram que a religiosidade é um elemento importante na vida da maior parte da população mundial, principalmente entre aqueles enfrentando adversidades como o adoecimento. Dentre os impactos da R/E sobre a saúde, tem sido bem documentado o impacto sobre a saúde mental. Há evidências robustas de que pessoas com maiores níveis de R/E apresentam maior bem estar e menores níveis de depressão, abuso/dependência de substâncias e de comportamentos suicidas. Embora necessitando de maiores estudos, a R/E é algo importante na vida de pacientes com TB e outras psicoses, havendo evidências sugestivas de impacto benéfico sobre a evolução destes transtornos mentais. Atualmente, a tendência das pesquisas não é mais em investigar se há relações entre R/E e saúde, mas em identificar os mecanismos desta relação e como aplicar estes conhecimentos na prática clínica 16. 3.6) Comportamento suicida Além das principais religiões do mundo condenarem enfaNov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 39 39 12/11/12 11:31 ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA1 E ANDRÉ STROPPA2 Fontes de financiamento: Não existem fontes de auxílio à pesqui­ sa ou financiamentos relacionados ao trabalho. Conflito de interesses: Inexistente. Alexander Moreira-Almeida Rua Itália Cautiero Franco 497 Granville 36036-241 - Juiz de Fora – MG [email protected] Referências • • • • • • • • • • • • • 40 1. Dalgalarrondo, P. 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Nesse artigo discutimos alguns aspectos teóricos e algumas propostas de modelos para o que po­ demos chamar de psiquiatria computacional. Palavras chaves: psiquiatria – computação – cognitivismo – processadores neurais – transtornos mentais e comportamentais Abstract The idea that mental processes are computational and therefore reproducible artificially brought a major boost to the creation of Ar­ tificial Intelligence and became a theoretical framework that has re­ vitalized cognitive psychology, connectionism, linguistics, biomedical engineering and other fields. Psychiatry is a discipline that resembles very closely the computational science and its interaction with this science is a factor of development and evolution for that medical specialty. In this article we discuss some theoretical and some pro­ posed models for what we call computational psychiatry. Keywords: psychiatry - computing - cognitivism - neural proces­ sors - mental and behavioral disorders DE METÁFORAS À UMA TEORIA CIENTÍFICA A corrente filosófica que considera o homem como um mecanismo que funciona por si mesmo (autômato) é muito antiga, e remonta aos gregos clássicos e aos chineses antigos. São muitos os relatos de autômatos e 42 andróides (autômatos de forma humana) maravilhosos animados por tubos hidráulicos e rodas dentadas. Essa filosofia mecânica tornou-se influente no século XVII quando Descartes, em seu tratado De Homine, defendeu que os animais eram máquinas de carne, enquanto o homem, embora também uma máquina, possuia uma alma que lhe permite a reflexão. Ele comparava o organismo a um mecanismo de relojoaria e a ação dos nervos e vasos a mecanismos hidráulicos, usados em brinquedos que já em sua época maravilhavam os europeus. Essa ideia radicalizou com Julien Offray de La Mettrie que, na sua obra L’Homme Machine (1748), considerava a alma como uma função global emergente da maquinaria biológica, ideia continuada pelo padre Étienne Bonnot Condillac que, em seu Traité des Sensations (1754), comparava o homem a uma estátua à qual foram dados, “por fantasia, as funções sensitivas”. Condillac procurava explicar, dessa forma, como o homem chegava a ter conhecimento de si mesmo, distinguir as coisas exteriores e reconhecer os limites do conhecimento. Esse é o primeiro projeto de psicologia biológica que temos notícia, e ainda com uma abordagem sistêmica, pois propõe examinar a questão do ponto de vista das propriedades da lógica dos sistemas, sem levar em consideração se estes são vivos ou não. O século XIX foi relativamente calmo com relação a essas especulações, porém, com o advento da telefonia no inicio do século XX, a ideia retornou, agora como modelo teórico que proporcionava insights sobre a cognição humana e marcos referenciais para novas idéias sobre a natureza da mente. Popularizou-se a noção de que o cérebro funcional assemelhava-se a um quadro de ligações telefônicas auto-operante, ligando entradas sensoriais com saídas motoras em diferentes configurações, e a aprendizagem consistiria em ligar entradas e saídas em diferentes combinações. Essa ideia entre cérebro e painel de ligação foi explicitamente enunciada por autores como Karl Pearson (The Grammar of Science, 1892), e implicitamente nos escritos de Sherrington, na Inglaterra, Thorndike, nos Estados Unidos, e Pavlov, na Rússia. Em 1943, a demonstração que funções lógicas podiam ser de- revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 42 12/11/12 11:31 FERNANDO PORTELA CÂMARA 1 MD, PhD, Professor Associado, UFRJ Coordenador, Depto Informática da ABP sempenhadas por neurônios, por Warren McCulloch e Walter Pitts 1, selou definitivamente a natureza computacional das operações em redes neuronais, e serviu à inspiração do desenho dos atuais computadores por John Von Neumann 2. A evidência de que a aprendizagem – e os processos cognitivos em geral – ocorrem nas conexões ou sinapses entre neurônios, foi a descoberta revolucionária de uma “lei” natural que reconfigurou a ciência cognitiva, a neurociência e a engenharia biomédica 3,4,5,6. Muitas funções nervosas são hoje reconhecidas como computáveis ou algorítmicas, guardada as devidas distinções e levando em consideração que a linguagem dos computadores digitais não é a mesma dos neurônios. Estamos falando aqui de modelos suficientemente isomórficos para permitir o estabelecimento de marcos conceituais consistentes. Os desenvolvimentos da computação e de certos setores da neurociência cognitiva correram paralelamente e convergiram, finalmente, em um conhecimento que é compartilhado em grande parte, incluindo uma linguagem comum. A noção de computabilidade tornou-se objeto comum às ciências da computacção, psicologia cognitiva, lingüística e teorias de aprendizagem neurais. Vejamos brevemente alguns dos elementos que contribuíram para essa convergência de conhecimentos. O primeiro é o conceito revolucionário de informação. A ciência do século XIX desenvolveu o conceito de energia, sua utilização em trabalho e suas relações com a matéria. Matéria e energia passaram a ser os fundamentos de tudo quanto existe e já existiu. Todo pensamento cientifico e médico foi assentado nessas noções fundamentais. Na década de 1940, Claude Shannon desenvolveu a Teoria da Informação (ou Comunicação) consolidando a universalidade do novo ente. A partir daí descobriu-se que o universo não pode ser concebido apenas com base em matéria e energia, uma terceira noção se impunha, a de informação. Informação não é matéria e nem energia, é informação, enfatizava Norbert Wiener 7. Ela pode ser medida, identificada, mas não pode ser isolada como uma substância ou ter um equivalente de energia mensurado; não é nem uma coisa e nem outra, é um ente próprio, informação. Essa noção primitiva introduz a noção de organização, transmissão de ordem e armazenamento de padrões. Não se pode isolar uma sensação como uma substância ou uma modificação de energia, ela é uma subjetividade que adquire significado quando tratada como informação. O segundo elemento desse conhecimento é a noção de computador. Essas máquinas digitais que operam em código binário, são, na verdade, calculadoras aritméticas ultra-rápidas de alta precisão, uma tarefa para qual o cérebro é ineficiente, extremamente lento e impreciso. Durante séculos aperfeiçoamos o sistema de notação numérica e regras para operações, mas finalmente delegamos essa função às máquinas, que assim passaram a serem apêndices para esse tipo de operações em que a mente é pouco competente. Como notou Von Neumann 2, o cérebro não utiliza o mesmo código dos computadores, e tampouco usa o sistema posicional que nos permite ordenar os números. O cérebro realiza operações numéricas de forma ainda desconhecida, nas quais o significado é transmitido pelas propriedades estatísticas da mensagem. Em outras palavras, a linguagem que o cérebro utiliza pode não ser a da matemática, mas seja como for, é de natureza computável. Von Neumann observou também que a ineficiência aritmética do cérebro é compensada pelo desenvolvimento de um alto nível de lógica. De fato, é a lógica que permite ao sistema nervoso regular as funções organísmicas, integrar a informação que chega do ambiente e adaptar-se ao meio em que vive e estabelecer formas de comunicação. Quando o leigo se admira com computadores realizando atos inteligentes, a máquina está apenas computando funções lógicas, as mesmas que nossa mente utiliza. A importância da lógica na linguagem da atividade nervosa pode ser facilmente apreendida quando nos deparamos com um delírio ou uma alucinação, e logo percebemos tratar-se de uma alteração lógica na informação elaborada no sistema nervoso do doente. O terceiro e último exemplo de computabilidade e cognitivismo, dentre outros mais que omitiremos aqui, é o de considerar o cérebro como um modelador. Isso foi colocado em discussão na seminal obra de Kenneth Craik 8, onde ele considerou o sistema nervoso como “um computador capaz de modelar paralelamente os eventos externos”, sugerindo que esses “modelos internos” seria a característica básica da mente e das explicações que fazemos das coisas. O cérebro elabora modelos da realidade segundo o que experimenta da interação com o seu meio e então atua de acordo com esse modelo, enfrentando situações semelhantes ou que tem algum ponto em comum, mas que não é idêntica9. Desse modo ele atua como um computador, programado para agir de certa forma, e generaliza esse modelo para outras situações não exatamente idênticas, e com isso tem uma probabilidade razoável de adaptar-se com maior economia de tempo e energia do que teria se tivesse de elaborar novas habilidades. Durante o desenvolvimento do organismo há uma fase de aprendizagem e adaptação que completa o desenvolvimento do cérebro, durante o contato com informação ambiente. O organismo incorpora modelos pré-fabricados e outros que terá de completar ou desenvolver com sua experiência no meio em que vive. O ser humano, contudo, constantemente tem de lidar com informações novas e é solicitaNov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 43 43 12/11/12 11:31 ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO por FERNANDO PORTELA CÂMARA1 do a produzir e criar, o que implica em aprendizagem, armazenamento e geração de novas informações, e isso requer um grau de plasticidade cerebral único na espécie. O cérebro humano torna-se, assim, vulnerável a sobrecargas e distribuição de informação, o que pode vir a impactar o desempenho mental e comportamental do indivíduo. PROCESSADORES NEURAIS E TRANSTORNOS MENTAIS. O OBJETO DA PSIQUIATRIA. A ideia de que o cérebro está formado por processadores é hoje o modelo funcional mais efetivo que dispomos. Com efeito, o cérebro ativo comporta-se como um mosaico de processadores que operam paralelamente e interagem em variados graus, e a neuroanatomia das vias cerebrais nos mostra isso. Os estereótipos comportamentais, os componentes afetivos e suas conexões sensório-motoras e autônomas elaboram-se dentro da organização cerebral, no nível subcortical, automático, enquanto na esfera cortical desenvolvem-se processadores que fazem interface com o meio ambiente (analisadores corticais, memória), integra informação sensório-motora, organiza o comportamento, motiva e regula os afetos, elabora o pensamento e constrói modelos cognitivos do mundo, abrindo-se a consciência. Ambos os níveis dialogam entre si e interferem um no outro. No homem, a civilização e a educação desenvolveram inibições corticais sobre as estruturas mais profundas, permitindo um controle predominante da consciência sobre os impulsos e automatismos, embora sujeitos a irrupções emocionais transitórias e relaxamento temporário das inibições. No sujeito em que esse delicado equilíbrio esteja comprometido, desorganiza-se em anomalias do pensamento, humor e o comportamento. Esses processadores dividem-se basicamente em dois tipos: • Processadores com programação fixa estabelecidos durante o desenvolvimento do sistema nervoso, que em sua maioria são subcorticais. Esses processadores são determinados geneticamente, organizados em territórios neuroquímicos, programados por evolução a partir de protótipos básicos que vão se repetindo e diversificando segundo evoluem os organismos para modelos mais complexos. São eles que sustentam a atividade nervosa, do mais simples invertebrado ao cérebro humano, e não estão implicados em aprendizagem. • No território cortical, temos processadores com propriedade de aprendizagem, auto-programados através da experiência (com 44 o meio) e de descrição (aquisição de informação armazenada em outros organismos). Aí também existem processadores com programação geneticamente fixada, como, por exemplo, as áreas implicadas na formação da linguagem articulada e do sentido da linguagem. O córtex pré-frontal, área neocortical cujo desenvolvimento é notável no Homo Sapiens, gerencia a atividade nervosa superior em torno de uma singularidade que denominamos ego. É no neocortex que uma intensa atividade de aprendizagem se realiza, limitadamente nos primatas e exuberantemente nos humanos. O conceito de processador neural é conceitual e não fisiológico, e envolve a modelagem em computador, portanto, tem a vantagem de ser testado com precisão, pois, a precisa descrição lógico-matemática desses modelos permite inferências mais refinadas e exploração de hipóteses efetivas. Além disso, têm ainda a vantagem de serem éticos, pois, certos experimentos que não são possíveis em humanos podem ser conduzidos em modelos computacionais com razoável confiabilidade. O neocórtex e seu papel regulador sobre os estereótipos comportamentais e afetivos das regiões subcorticais e seu papel de gerente da atividade cognitiva, é o objeto da psiquiatria e substrato da ação do psiquiatra. Sua alteração por lesão, atrofia, insuficiente irrigação ou intoxicação, déficit funcional, ou insuficiente desenvolvimento cognitivo por falha de aprendizagem, pode afetar a regulação subcortical deixando a descoberto e fora de controle processadores dessa região, cujo automatismo passa a se repetir incessantemente interferindo gravemente na atividade mental. Os processos obsessivo-compulsivos, os surtos alucinatórios e delirantes, os transtornos de ansiedade, do impulso, e outros teriam sua origem nessa insuficiente regulação. Em psiquiatria, esse fenômeno pode ser o modelo padrão de causalidade da doença mental. De fato, podemos notar como os estados obsessivo-compulsivos, os estados de ansiedade, os estados delirantes e alucinatórios, os estados maníacos, etc., caracterizam-se como processos que se repetem ciclicamente, sugerindo uma evidente falha na regulação e modulação de processadores que, em condições normais, participam integrativamente da sustentação da atividade cerebral e regulação do comportamento. Essa falha regulatória muitas vezes manifesta-se conjuntamente com alterações na elaboração cognitiva. Não podemos considerar esse fenômeno de autonomização funcional como a causa da doença mental, senão a falha do elemento que o regula, implicando a participação do neocórtex. O esforço do psiquiatra está em usar métodos que reforcem as vias corticais no seu papel regulador, ou corrija sua deficiência a partir de um controle externo, sob a forma de terapias farmacológicas, biofísicas ou cognitivas. revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 44 12/11/12 11:31 Considere o exemplo do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). O pro­cessador implicado provavelmente é uma função auxiliar utilizada nos processos de aprendizagem, que em animais como repteis e anfíbios participam de estereotipias e comportamentos repetitivos. No gênero humano e algumas espécies de primatas, esses atos compulsivos, devidamente controlados, podem ser importantes para se aprender uma tarefa ou memorizar algo, cuja repetição por um curto período de tempo proporciona o reforço necessário à aprendizagem. Fora desse contexto, a função interfere na economia nervosa e torna-se patológica para o sujeito humano. Não é difícil perceber que a nosografia psiquiátrica é uma ampla descrição de padrões computacionais que, ao se destacarem da economia mental, tornam-se centros de atividades autônomas indesejáveis. A autonomização desses processamentos desagrega a consciência e aí reside a perturbação mental propriamente dita: o sofrimento, a angústia, a perda da função social, do rendimento intelectual e laboral, as atitudes involuntárias, etc. A sua causa parece ser única – a perda da capacidade reguladora e integradora do córtex sobre processadores básicos que mantém a unidade do funcionamento cerebral. Modelos efetivos em psiquiatria e racionalização do tratamento A coordenação de vias de transmissão de informação, tráfego e distribuição não estão sujeitas apenas à arquitetura das conexões sinápticas, mas também a sinais químicos que orientam e regulam a transmissão, e por isso a farmacologia de neurotransmissores e sua relação com vias e áreas cerebrais tem se mostrado útil e proporcionado um avanço real na psiquiatria. Um fato que aparece com frequência quando observamos esses processadores neurais é que eles compartilham diferentes funções. Desconhecemos como a atividade psíquica é elaborada, e julgamos que ela seja uma função própria, especial, e por isso cometemos equívocos pelo fato de interpretarmos certos resultados segundo essa crença. Por exemplo, ao administrarmos um antipsicótico a um sujeito que delira e alucina, podemos regular sua senso-percepção, mas ao mesmo tempo podemos provocar um descontrole motor nesse indivíduo. Esse fato, que é da experiência de todo psiquiatra, apenas mostra que as atividades psíquica, sensitiva e motora formam uma unidade nervosa. Além disso, quase todas as estruturas cerebrais têm um envolvimento motor, e virtualmente todo córtex (excetos as áreas auditiva e visual primária) dirige-se para a ganglia basal 10,11. A ocorrência de automatismos motores é evidente, por exemplo, no TOC (estereotipias compulsivas como verificação e lava-mãos) e síndrome de Tourette (movimentos involuntários acompanhados de estereotipias verbais), ao lado de idéias e pensamentos repetitivos reverberantes. Essas alças reverberantes ou loops são um fenômeno bem conhecido em computação (o chamado “problema da parada”) e foi o principal problema que os primeiros programadores se defrontaram, e sua presença típica na maioria dos transtornos mentais é um dos princípios que se soma às evidencias de computabilidade dessas funções nervosas. No exemplo do TOC, o processador envolvido localiza-se na via córtico-estriatal-palidal-talâmica, e a alça reverberante que aí se instala decorre de alguma facilitação, pois não há alteração neuroquímica nesta via como, p. ex., observa-se nas vias envolvidas na depressão e esquizofrenias. Os inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS) não são usados no TOC para compensar a falta de serotonina 12, mas como pulsos ou estímulos que ajudam o caudado a reajustar a transmissão da serotonina e assim quebrar o loop que parasita funcionalmente o processador córtico-estriatal-palidal-talãmico. Muito dessas hipóteses podem vir a ser esclarecidas em definitivo com a construção de modelos computacionais onde possamos simular o funcionamento dessas vias, seus modos de alteração, e verificar como é possível atuar sobre elas para se reparar sua regulação, compensar seus déficit ou mesmo reprogramá-las. Os psiquiatras ainda não se aproximaram da ciência computacional como ferramenta para pesquisa patogenéticas e terapêuticas, o que certamente proporcionaria protocolos mais aperfeiçoados para a pesquisa de terapias racionais (farmacológicas, biológicas, e biofísicas). CONCLUSÃO A incapacidade de processar adequadamente a informação psíquica reside em algum tipo de déficit no diálogo entre neocortex e estruturas subcorticais que computam os estereótipos básicos que servem de andaime para a organização psíquica e comportamental. A falha na regulação e modulação desses processadores pelo neocortex caracterizaria as doenças mentais, diferenciando-as, embora isso não seja rigoroso e nem determinístico, das doenças neurológicas, em que a ganglia basal é primariamente afetada. Por tal razão, essa hipotética falha regulatória muitas vezes manifesta-se conjuntamente com alterações na elaboração cognitiva, afetando a estrutura do ego. A hipótese da causa da doença mental como uma pane na regulação cortico-subcortical não é nova, porém, a evidência de que a organização dinâmica do cérebro é computável e os métodos que hoje dispomos para rastrear a atividade de populações de neurônios in vivo, traz a psiquiatria para o Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria revista debates-12.indd 45 45 12/11/12 11:31 ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO por FERNANDO PORTELA CÂMARA1 foco da neurociência. A doença mental em si mesma é funcional, e o esforço da psiquiatria está em usar métodos que reforcem o papel regulador do córtex, ou corrija sua deficiência a partir de um controle externo, , sob a forma de terapias racionais farmacológicas, biofísicas ou cognitivas. Referências • • • • • • • • • • • Declaração de conflito de interesse: O autor declara não haver conflito de interesse em relação a este trabalho e fontes de financiamentos. • 1. McCulloch W, Pitts W. A logical calculus of the ideas immanent in nervous activity. 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Smit “Venlaf nondep Depres seroton with ve Neurop revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 46 12/11/12 11:31 RDP/////////////////// PUBLIQUE SEU ARTIGO NA RDP Além de ser feita para você ela também pode ser feita por você! A REVISTA DEBATES EM PSIQUIATRIA – RDP (revista debates em psiquiatria) –, ISSN 2236-918X, é uma publicação bimensal da Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP - com a finalidade de publicar artigos de qualidade com foco principal nos aspectos clínicos da Psiquiatria e nas áreas de epidemiologia clínica, saúde pública, intervenção psiquiátrica em desastres e problemas relevantes de saúde mental. Visando oferecer aos associados da ABP, residentes, pós-graduandos e especializandos, informação de qualidade que complementem sua atualização e educação continuada. Serão aceitos para apreciação apenas trabalhos originais, em português, que não tenham sido anteriormente publicados, nem que estejam em processo de análise por outra revista. Podem ser encaminhados: editorial, artigos originais de pesquisa, comunicações breves, artigos de revisão, artigos de atualização, carta aos editores, conferências clínicas de alta relevância, casos clínicos e resenhas de livros. Os documentos deverão ser enviados à Revista Debates em Psiquiatria, através do e-mail: [email protected] em arquivo Word anexado, dentro das normas da revista para que possam ser avaliados pelos editores e pareceristas. Leia a íntegra as Normas de Publicação RDP, no portal da ABP – www.abp.org.br – Publicações/Normas de Publicação RDP. Lá você encontrará todas as informações necessárias para preparar seu artigo (Página de identificação, resumo, formatação do texto, etc). A R d R d h p a id e h s a a o g fo p q h o n n IM A a in c a (r s p à d h c m In tó d T T 1 re p g s F R m D C IN 50 1 M P revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 revista debates-12.indd 50 12/11/12 11:31