Saúde Mental da Mulher: transtornos psiquiátricos relacionados ao

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psiquiatria
REVISTA
Ano 2 • n°6 • Nov/Dez 2012
ISSN 2236-918X
DEBATES EM
Publicação destinada exclusivamente aos médicos
www.abp.org.br
ARTIGOS
Saúde Mental da Mulher: transtornos psiquiátricos relacionados
ao ciclo reprodutivo
Intervenção pró ativa em Psiquiatria [Ensino da psiquiatria]
O Programa de Apoio ao Dependente Químico em ação:
descrição, análise e dificuldades
Espiritualidade e Saúde Mental: o que as evidências mostram?
Cérebros, Máquinas e Psiquiatria [Psiquiatria Computacional]
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////////////// EDITORIAL
OPINIÃO
Prestígio consolidado
A
Revista Debates em Psiquiatria consolida-se a cada número, e já é uma das
mais lidas pelos psiquiatras associados da ABP e mesmo por profissionais de outras
áreas. Escrita para o psiquiatra no exercício de sua especialidade, serve assim em seu
propósito de auxiliar o clínico na sua prática e na sua educação continuada.
Neste número temos o artigo de Rennó e colaboradores sobre transtornos psiquiátricos na
mulher, relacionados ao seu ciclo reprodutivo. O assunto foi um dos mais concorridos no
XXX Congresso Brasileiro de Psiquiatria, especialmente na delicada questão do tratamento
farmacológico, e, além disso, a saúde da mulher é hoje assunto prioritário em políticas de
saúde coletiva no país. Moreira-Almeida e Stroppa trazem outro artigo igualmente concorrido
nos recentes congressos da ABP, que é o delicado assunto sobre o papel da espiritualidade
e religiosidade na saúde mental. Assunto este para o qual muitos psiquiatras se sentem
desconfortáveis em abordá-lo com seus pacientes ou simplesmente o ignora. Os autores
mostram a importância do tema na vida de pacientes esquizofrênicos e com transtorno do
humor bipolar, por exemplo, em uma bem cuidada revisão.
ANTONIO GERALDO DA SILVA
EDITOR
Outro tema de impacto na psiquiatria nacional é o problema da dependência química, que
tem suscitado polêmicas ante a reatividade do poder publico face ao aumento da escalada
das drogas em nossa sociedade. Borges e colaboradores nos mostram um modelo de apoio
ao dependente químico instituído pelo governo do Distrito Federal, um ano após sua im­
plantação. A experiência dos autores é de grande valor para se avaliar futuras instituições de
programas semelhantes no país. Márcia Gonçalves relata em seu artigo uma experiência com o
ensino da psiquiatria clínica a estudantes de medicina em Taubaté. Ele apresenta um plano de
ensino em que os estudantes aprendem a abordar psíquica e socialmente os pacientes, a usar
questionários de triagem populacional de sintomas psiquiátricos de depressão e ansiedade, e
correlacioná-los com qualidade de vida dos doentes. Ela também mostra como no hospital
geral a depressão e a intenção suicida são subdiagnosticadas, e o risco que isso traz para os que
procuram por esse serviço.
Por fim, um artigo instigante sobre os fundamentos teóricos da computabilidade e seu uso
como modelo em psiquiatria é apresentado por Portela Câmara. O autor, psiquiatra e mate­
mático, considera o modelo computacional como o mais adequado ao entendimento dos
transtornos maiores da psiquiatria, e propõe marcos referenciais que podem ser uteis à definição
de causalidade nas doenças mentais, bem como para uma delimitação epistemológica do
campo da ação psiquiátrica. A interdisciplinaridade da matéria e sua atualidade é também um
projeto ideal para a modernização do ensino da psiquiatria.
JOÃO ROMILDO BUENO
EDITOR
Os editores
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//////////// EXPEDIENTE
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Jornalista Responsável: Lucia Fernandes
Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica e Ilustração: Lavinia Góes
Produção Editorial: Luan Comunicação
Impressão: Gráfica Editora Pallotti
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//////////////////// ÍNDICE
NOV/DEZ 2012
6/artigo
Saúde Mental da Mulher: transtornos psiquiátricos
relacionados ao ciclo reprodutivo
por JOEL RENNÓ JR, RENATA DEMARQUE, HEWDY RIBEIRO
LOBO, JULIANA PIRES CAVALSAN e
ANTONIO GERALDO DA SILVA
14/artigo
Intervenção pró ativa em Psiquiatria
[Ensino da psiquiatria]
por MÁRCIA GONÇALVES
24/artigo
O Programa de Apoio ao Dependente Químico
em ação: descrição, análise e dificuldades
por KARINNE TAVARES BORGES,
SONIA GERHARDT REZENDE,
MARCELA FAVARINI NUNES e
FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA
34/artigo
Espiritualidade e Saúde Mental:
o que as evidências mostram?
por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA e
ANDRÉ STROPPA
42/artigo
Cérebros, Máquinas e Psiquiatria
[Psiquiatria Computacional]
por FERNANDO PORTELA CÂMARA
* As opiniões dos autores são de exclusiva responsabilidade dos mesmos
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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por JOEL RENNÓ JR1, RENATA DEMARQUE2,
HEWDY RIBEIRO LOBO2, JULIANA PIRES
CAVALSAN2 E ANTONIO GERALDO DA SILVA3
SAÚDE MENTAL DA MULHER: TRANSTORNOS
PSIQUIÁTRICOS RELACIONADOS AO CICLO REPRODUTIVO
WOMEN’S MENTAL HEALTH: PSYCHIATRIC DISORDERS
RELATED TO REPRODUCTIVE CYCLE
Resumo
A saúde mental, antes focada principalmente na patologia psi­
quiá­trica, tem como objeto de estudo todo o contexto biopsicossocial
no qual o sujeito está inserido. Além disso, mais recentemente, tem
surgido maior interesse na investigação das possíveis diferenças
entre gêneros.
Sobre a mente feminina, é imprescindível que os profissionais
da saúde tenham a atenção e o conhecimento necessários sobre
os transtornos psíquicos associados ao ciclo reprodutivo, devido
tamanha repercussão que causam não somente à paciente.
Diversas questões ainda estão em aberto no que se refere a um
tema tão amplo quanto à saúde mental da mulher. Neste artigo
traremos um breve panorama histórico, atualidades e perspectivas.
Palavras-chave: Mulher; Cuidado; Saúde Mental.
Abstract
Mental health, formerly focused on the psychiatric pathology,
has as main goal of study the biopsychosocial context in which the
patient lives. Also, more recently, there has been a greater interest in
the investigation of the possible implications of the gender in mental
health. Regarding the women’s mind, it’s crucial that health carers
pay attention to the mental disorders related to the reproductive
cycle, and its repercussions over the patients and those near her.
Several issues regarding women´s mental health remain open to
discussion and studies. In this article a brief introduction is made on
its historical facts, current concepts and future perspectives
Keywords: Woman; Care; Mental Health.
INTRODUÇÃO
A
partir da menarca até após a menopausa, algumas
mulheres sofrem de transtornos específicos, incluindo
transtorno disfórico pré-menstrual, depressão perina­
tal e perimenopáusica, blues e psicose puerperal, as­
sim como transtornos do humor e de ansiedade associados à
infertilidade e gestações abortadas, além de maior incidência de
transtornos ansiosos, alimentares, doenças auto-imunes e quadros
álgicos1,2. Não somente o dobro de mulheres sofre de depressão
em comparação aos homens, mas também possuem índice maior
de comorbidades, tanto físicas quanto mentais1,3.
As mulheres estão mais expostas a fatores estressores como
violências, abuso e estupro, a partir de uma idade precoce, po­
rém nem todas as mulheres que se deparam com tais situa­
ções desenvolvem transtornos4. Desta forma, a interação entre
vulnerabilidade genética, fatores ambientais, fisiológicos e psicosso­
ciais, funcionamento neurotransmissor e neuroendócrino, além
da própria resiliência, desempenham um importante papel em
suas patogêneses4,5,6,7. Entendendo melhor como se dá a relação
de equilíbrio entre estes eventos, futuramente poderemos talvez
apontar o caminho para tratamentos específicos por gênero, tanto
para mulheres quanto para homens com transtornos mental4,8.
HISTÓRICO
A loucura já foi interpretada de diversas maneiras ao longo da
História, sendo a loucura feminina costumeiramente associada à
sexualidade. Registros do Egito Antigo atribuíam ao interior do
corpo da mulher uma condição de malignidade pela presença do
útero que, ao “deslocar-se”, produziria sintomas semelhantes ao
quadro de histeria9,10.
Na Idade Média, a caça às bruxas pelo Movimento Inquisitor
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JOEL RENNÓ JR
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Médico Psiquiatra. Diretor do Programa de Saúde Mental da Mulher (Pró-Mulher) do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.
forta­leceu a associação entre mulheres e loucura. As chamadas
bruxas apre­sentavam “condutas estranhas”, muitas se asseme­
lhando a quadros atualmente descritos como psicose, histeria, ma­
nia, depressão ou ansiedade9. Uma outra caracterização acontecia
através da prática da prostituição, adultério e aborto11.
Ao longo da Idade Moderna, difundiu-se pela Europa a relação
entre o útero e a regulação da saúde mental da mulher. Junto a
isso, corria a idéia de inferioridade da mulher frente ao homem,
tanto psíquica quanto fisicamente, já que ela permanecia escrava
desta fisiologia, sob a ordem dos seus órgãos genitais.
Entre o final do século XVII e início do XVIII, emergiu tanto
a figura do médico na identificação da loucura, como a prática
de in­ternação nos grandes asilos, estabelecida como a base da
psiquiatria nascente9.
No Brasil, a preocupação com a saúde mental da mulher tem
sofrido mudanças nos últimos anos. O conceito de controle de
natalidade deu lugar ao de saúde reprodutiva, que compreende
seus direitos, a saúde física e mental da mulher, desde a adolescência
à terceira idade. A política governamental, exceto alguns esforços
no sentido contrário, organiza principalmente campanhas_não
menos importantes, mas não suficientes_ focadas em problemas
isolados enfrentados pelas mulheres, como câncer cervical, câncer
de mama e doenças sexualmente transmissíveis. No entanto, já há
alguns serviços acadêmicos de excelência que procuram promover
atenção multidisciplinar de saúde à mulher, durante os diferentes
estágios do ciclo reprodutivo feminino12.
TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS
DO PERÍODO PRÉ-MENSTRUAL
Transtorno Disfórico Pré-menstrual
Muitas mulheres em idade reprodutiva apresentam sintomas
físicos e psíquicos relacionados ao ciclo menstrual. Apesar do
questionamento sobre essas queixas serem resultantes da vida
moderna estressante, Hipócrates (600 a.C.), no tratado A doença
das virgens, já descrevia as alterações de comportamento, as idéias
de morte, as alucinações e os delírios resultantes da “retenção do
fluxo menstrual”.
A entidade clínica Síndrome Pré-Menstrual (SPM) surgiu na 9ª
Classificação Internacional de Doenças (CID-9) e no CID-10 ainda
se mantém restrita ao capítulo destinado às doenças ginecológicas,
codificada em N 94.
Em 1994, houve revisão e nova denominação no Manual de
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação
Psiquiátrica Americana (DSM-IV), acrescida de critérios diag­nós­
ticos operacionais para o transtorno (Quadro 1) que passou a ser
no­­meado Transtorno Disfórico Pré-Menstrual (TDPM), como um
subtipo de transtorno afetivo, considerado o padrão-ouro para
pesquisa e adotado pelo Food and Drug Administration Neuro­
pharmacology Advisory Comittee para regular as pesquisas e
tratamentos propostos13,14.
O TDPM apresenta prevalência de 1.6 a 6.4%, com início no
período pré-menstrual e alívio logo após início da menstruação.
O pico de incidência ocorre entre 25 e 35 anos de idade. Embora
pos­sam existir os sintomas físicos, as queixas psíquicas são as mais
rele­vantes, causando graves prejuízos na vida destas mulheres15,16.
Diversas teorias já foram propostas para explicar a etiopatogenia
do TDPM, porém esta ainda não está totalmente esclarecida. A
prin­cipal hipótese vigente é que algumas mulheres são mais sujei­
tas a alterações de humor no período pré-menstrual, por uma
sensibilidade cerebral às flutuações hormonais presentes no ciclo
menstrual feminino, ou seja, um mecanismo psiconeuroendócrino
desencadeado pelo ciclo ovariano normal17. Essas mulheres, mesmo
com níveis adequados dos hormônios gonadais, teriam maior
propensão a alterações no sistema nervoso central, principalmente
na via serotoninérgica, com as oscilações hormonais. A interação
entre esses sistemas é multifatorial e complexa, sendo improvável
que um fator etiológico simples e único explique os sintomas do
TDPM. Além disso, é necessário distinguir TDPM de exacerbações
de trans­tornos psiquiátricos prévios e possíveis diagnósticos dife­
ren­ciais (quadro 2).
O tratamento do TDPM exige participação de equipe multipro­
fis­sional, para a adequada triagem e avaliação diagnóstica. Os inibi­
dores seletivos da recaptação de serotonina são importantes para
o tratamento, sendo a fluoxetina e a sertralina os mais estu­dados e
efetivos tanto para sintomas físicos quanto psíquicos.
A prescrição de anticoncepcionais orais de forma contínua,
im­plan­tes hormonais subcutâneos, adesivos transdérmicos ou
mesmo injeções mensais ou trimestrais, com o propósito de
promover amenorréia e, assim evitar a oscilação cíclica de este­
róides, tem mostrado bons resultados16;17.
TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS
NA GESTAÇÃO E PUERPÉRIO
Por mais contraditório que possa parecer, muitas mulheres
apresentam tristeza, ansiedade e até sintomas psicóticos em vez
da mais serena felicidade nessas fases da vida. Apesar da gestação
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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por JOEL RENNÓ JR1, RENATA DEMARQUE2,
HEWDY RIBEIRO LOBO2, JULIANA PIRES
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e chegada da maternidade serem socialmente considerados
momentos de bem-estar emocional na vida da mulher, o período
perinatal não a protege dos transtornos psiquiátricos 2,18.
Disforia puerperal ou Maternity blues
É considerada a forma mais leve dos quadros depressivos puer­
perais e chega acometer até 85% das mulheres. Sintomas como
choro fácil, labilidade afetiva, irritabilidade e comportamento hos­
til para com familiares e acompanhantes são transitórios e insu­
ficientes para causar prejuízo funcional à paciente. Geralmente se
iniciam nos primeiros dias após parto, atingem pico ao redor do
quinto dia e remitem de forma espontânea em até duas semanas.
Em alguns casos, poderá persistir além do período puerperal inicial,
levando a um transtorno do humor mais grave 2,18.
O oferecimento de adequado suporte emocional, compreensão
e auxílio nos cuidados com o bebê deve ser intensificado para
essas mulheres, principalmente por parte dos familiares18.
Depressão perinatal
Estima-se uma prevalência de depressão na gravidez da ordem
de 7,4% no primeiro trimestre, 12,8% no segundo e 12% no terceiro
trimestre. A depressão pós-parto propriamente dita é uma
condição comum que afeta 10% a 15% das mulheres no puerpério
e pode persistir até por cerca de um ano em 40% dos casos 2,18.
Os sintomas depressivos perinatais se assemelham aos trans­
tor­
nos depressivos vivenciados em outros períodos da vida,
com algumas peculiaridades, como falta de interesse da mãe
(ou preocupação excessiva) por assuntos relacionados ao bebê,
sentimentos negativos em relação ao cônjuge, sentimentos de
inca­pacidade em relação à maternidade e temor do ciúme dos
outros filhos em relação à criança, no caso de multíparas. Sintomas
como hipersonia, aumento de apetite, fadigabilidade fácil, diminui­
ção da libido e queixas álgicas são de pouco utilidade para o
diagnóstico de depressão perinatal, pois podem ser confundidos
com situações normais do período 2,18,19,20.
A disseminação do conceito de depressão perinatal reduz o
es­­tigma e permite que as mulheres com transtornos mentais re­
conheçam que estão doentes e procurem ajuda. A morbidade e
mortalidade maternas não são, é claro, as únicas razões pelas quais
ação efetiva na depressão perinatal se faz necessária, visto que
pode ter efeitos pervasivos na família, levando à reduzida interação
com a criança e à irritabilidade mal direcionada a ela, com risco de
maus-tratos e, em algumas situações, até infanticídio 2,18,19,20.
Resultados de alguns estudos sugerem que tanto o pós-parto
quanto a vivência da adoção de um bebê podem levar a mulher a
8
apresentar sintomas depressivos, porém as mães adotivas experi­
mentam mais sintomas ansiosos. Embora variações biológicas e
psicossociais associadas aos sintomas depressivos sejam parcial­
mente distintos, ambas têm importante vulnerabilidade aos
trans­tornos de humor. Enquanto fatores biológicos relacionados
ao parto não influenciam sintomas depressivos entre mães ado­
tivas, grande parte destas tem um histórico de infertilidade e
conseqüente repetidas tentativas de exaustivos tratamentos de
fertilização e abortamentos 2,18,19,20,21.
O tratamento da depressão em mulheres planejando gestação,
grávidas ou puérperas requer cuidadosa avaliação dos riscos e
be­nefícios à mãe, ao feto e ao bebê. Medicações antidepressivas
devem sempre ser consideradas na presença de sintomas mode­
rados a graves.
Psicose puerperal
Sua prevalência é de 1 caso para cada 500 a 1.000 nascimentos,
com claro risco de recorrência em puerpérios subseqüentes. O
início é abrupto (primeiros dias e até 2 a 3 semanas após o par­
to) e quadro bastante polimórfico, com presença de delírios en­­
volvendo seus filhos, pensamentos de provocar-hes danos, alu­
cinações, estado confusional, sintomas depressivos, maniformes
ou associados. O psiquiatra deve saber que estas mulheres po­
dem evoluir para o transtorno afetivo bipolar no decorrer do se­
gui­mento, além disso, síndromes cerebrais orgânicas devem ser
descartadas. Mulheres diagnosticadas com transtorno afetivo
bipolar apresentam risco elevado de psicose puerperal quando
comparadas a mulheres saudáveis 2,18,22.
Devido gravidade do transtorno, risco de suicídio e infanticídio,
intervenção hospitalar muitas vezes é necessário.
Transtorno do relacionamento mãe-criança
Apesar de controverso conceito, pois ainda não é reconhecido nas
classificações diagnósticas atuais, o transtorno do relacionamento
mãe-criança é freqüente em 10 a 25% das mulheres encaminhadas
aos psiquiatras no pós-parto. Sintoma essencial é a resposta emo­
cional patológica da mãe à criança, incluindo aversão e raiva, po­
dendo ocorrer sem quaisquer sintomas depressivos 2.
Transtorno de estresse pós-traumático
A tocofobia relacionada a trabalhos de parto prévios dolorosos
(ou até mesmo pela própria experiência subjetiva de cada mu­
lher em relação ao que seria um parto traumático, doloroso) e à
recorrência de tensão, pesadelos e memórias negativas são sinto­
mas que podem se manter até um próximo trabalho de parto,
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RENATA DEMARQUE, HEWDY RIBEIRO LOBO,
JULIANA PIRES CAVALSAN
2 Médico Psiquiatra. Colaborador do Programa de Saúde Mental da Mulher (Pró-Mulher) do Instituto
de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.
necessitando de tratamento psicológico específico para que possa
haver melhora dos efeitos negativos das memórias traumáticas 2.
Obsessões de machucar bebê
A mulher experimenta impulsos infanticidas extravagantes,
jun­tamente com fantasias de horror da família, gerando grande
estresse e contato reduzido com o bebê. Além de seguimento
psicoterápico e uso de medicações, equipe deve fortalecer os
sentimentos maternos positivos já existentes 2.
TRANSTORNOS MENTAIS DO
CLIMATÉRIO, PERIMENOPAUSA
E MENOPAUSA
O climatério pode ser definido como período de transição
entre fase reprodutiva ou menacma e fase não-reprodutiva ou
senilidade. Em países industrializados, inicia-se em torno dos 40
anos de idade e termina ao redor dos 65 anos; durante esse pe­
ríodo ocorre a menopausa 2.
A menopausa é definida pela Organização Mundial de Saúde
como a parada permanente da menstruação, sendo necessário
período de pelo menos 12 meses de amenorréia para que seja
confirmado o diagnóstico. A perda definitiva da atividade folicular
ovariana ocorre em torno dos 48 anos a 52 anos de idade.
O termo perimenopausa é utilizado para definir o período que
se inicia os primeiros sintomas de aproximação da menopausa e
vai até 12 meses após esta.
Durante várias décadas, o uso de terapias hormonais foi con­
siderado o tratamento ideal para diversos sintomas da peri e da
pós-menopausa, incluindo sintomas vasomotores e distúrbios
do sono. Estudos também apontaram resultados positivos com
o uso de estrógenos e/ou progestágenos no manejo de quadros
depressivos e qualidade de vida em mulheres na menopausa.
En­tretanto, desde a publicação de ensaios clínicos controlados
realizados no EUA pelo Women’s Health Initiative detectaram
aumento de risco relativo de tromboembolismo, acidente vascular
cerebral, infarto agudo do miocárdio e câncer de mama no
acom­pa­nhamento de pacientes tomando hormônio (no caso,
estrógeno eqüino conjugado), quando comparadas ao grupo
placebo, pacientes e médicos tornaram-se mais relutantes em
utilizar terapias com estrógenos em longo prazo, particularmente
para mulheres que já apresentem risco maior para transtornos
cardiovasculares ou câncer de mama. Sendo assim, houve aumento
da procura por terapias não-hormonais para o manejo desses
sintomas, incluindo medicações não controladas, antidepressivos
e terapias comportamentais 2,23.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma perspectiva de gênero não é apenas útil porque a
fenomenologia, curso da doença e metabolização de medica­
mentos podem diferir, mas também porque a vida reprodutiva
pode influenciar no curso e tratamento da moléstia24.
Os transtornos psiquiátricos na mulher são mais comuns do
que se imagina e muitos casos ainda não são diagnosticados e até
minimizados pelo próprio profissional da saúde mental.
Tem-se dado importância crescente ao tema principalmente
porque os danos que essas patologias podem ocasionar não
atingem apenas à mulher, mas também trazem repercussões
ao desenvolvimento do feto, no trabalho de parto, na saúde do
bebê, nos familiares, além do envolvimento em questões laborais
e judiciais.
QUADROS
Quadro 1. Critérios diagnósticos do transtorno disfórico
pré-menstrual segundo DSM-IV TR
A. Os sintomas devem ocorrer durante a semana anterior à
menstruação e remitirem poucos dias após o início desta. 5 dos
seguintes sintomas devem estar presentes e pelo menos UM
deles deve ser o de número 1, 2, 3 ou 4:
1. Humor deprimido, sentimentos de falta de esperança ou
pensamentos autodepreciativos.
2. Ansiedade acentuada, tensão.
3. Significativa instabilidade afetiva.
4. Raiva ou irritabilidade persistente e conflitos interpessoais
aumentados.
5. Interesse diminuído pelas atividades habituais.
6. Sentimento subjetivo de dificuldade em se concentrar.
7. Letargia, fadiga fácil ou acentuada falta de energia.
8. Alteração acentuada de apetite, excessos alimentares ou
avidez por determinados alimentos.
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por JOEL RENNÓ JR1, RENATA DEMARQUE2,
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CAVALSAN2 E ANTONIO GERALDO DA SILVA3
9. Hipersonia ou insônia.
10. Sentimentos subjetivos de descontrole emocional.
Referências
11. Outros sintomas físicos, como sensibilidade ou inchaço
das mamas, cefaléia, dor articular ou muscular, sensação de
“ganho de peso”.
•
B. Os sintomas devem interferir ou trazer prejuízo no trabalho,
na escola, nas atividades cotidianas ou nos relacionamentos.
•
C. Os sintomas não devem ser apenas exacerbação de outras
doenças.
D. Os critérios A, B e C devem ser confirmados por anotações
prospectivas em diário durante pelo menos 2 ciclos consecutivos.
•
•
Quadro 2. TDPM – Diagnóstico Diferencial
•
Desordens Autoimunes
Anemias
•
Hipotireoidismo
•
Dismenorréia
Endometriose
Cefaléia
Síndrome do colo irritável
•
Epilepsia
Uso abusivo de etílicos e substâncias ilícitas
Transtornos psiquiátricos (principalmente transtorno
depressivo, transtorno afetivo bipolar, transtorno ansioso e
transtornos de personalidade)
Agradecimentos
Agradecemos à Associação Brasileira de Psiquiatria pelo apoio e
esforços empregados na divulgação da Saúde Mental da Mulher.
Não há conflitos de interesses.
Endereço para correspondência:
Dr. Joel Rennó Jr
Rua Teodoro Sampaio, 352 – conj 127
05406-000 - São Paulo – SP
[email protected]
10
•
•
•
•
1. Justo LP, Calil HM. Depressão: o mesmo
acometimento para homens e mulheres? Rev Psiq Clín.
2006; 33(2):74-9.
2.. Rennó Jr J, Soares CN. Transtornos mentais
associados ao ciclo reprodutor feminino in_Louza
Neto MR, Elkis E. Psiquiatria Básica. Porto Alegre,
Artmed, 2 ed, 2007, 418-28.
3. Toffol E, Koponen P, Partonen T. Miscarriage and
mental health: Results of two population-based
studies. Psych Res. 2012 Sep 14. Epub ahead of print
4. Steiner M. Saúde mental da mulher: o que não
sabemos? Rev Bras Psiq. 2005; 27 (supl II): S41-2.
5. Steiner M, Dunn E, Born L. Hormones and mood:
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revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012
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ANTONIO GERALDO DA SILVA
3 Médico Psiquiatra. Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. Psiquiatra da SES/GDF.
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ARTIGO ORIGINAL
por MÁRCIA GONÇALVES1
INTERVENÇÃO PRÓ ATIVA EM PSIQUIATRIA
[ENSINO DA PSIQUIATRIA]
PROACTIVE INTERVENTION IN PSYCHIATRY
[TEACHING OF PSYCHIATRY]
Resumo
Tendo em vista uma melhor avaliação de quadros psiquiátricos
em clinica médica e uma melhor compreensão de internos de medi­
cina em identificar sintomas psicopatológicos. Metodologia: Alunos
internos do Hospital Universitário de Taubaté realizaram entrevis­
tas em todos os pacientes internados na clinica médica durante
quatro meses. Foram utilizadas as esclas Beck para depressão, Beck
para ansiedade e a escala de qualidade de vida da OMS. Resultados:
Foram encontrados altos escores em 27%, 36%, e 32% dos pacientes
respectivamente. Houve uma relação inversamente proporcional
entre qualidade de vida e altos escores de depressão e ansiedade.
Os pacientes com altos escores nas escalas Beck-Depressão e Beck­
-Ansiedade foram encaminhados para tratamento psiquiátrico.
Palavras chaves: epidemiologia – pacientes internos – sintomas
depressivos – sintomas de ansiedade.
Abstract
The present work was done in order to get a better evaluation
of psychiatric diagnostics in medical general clinics and a better
comprehension for medical students of psychiatrist symptoms. Me­
thods: Medicine students carried out psychiatrics interviews with
inpatients of the medical general clinic in the University Hospital
of Taubaté. Four interviews were done: Beck depression inventory,
Beck anxiety inventory, and WHO’s quality of life questionnaires
Results: High scores were found (>13- BDI, 8-BAI and 91- WHOQOL)
on 27%, 36%, e 32% patients of the study, respectively. The inverse
proportional relation between quality of life and high scores of de­
pression and anxiety was observed. The inpatients with high scores
of depression and anxiety on the Beck-Depression and Beck-Anxiety
were sent to psychiatric treatment .
Keywords: epidemiology - inpacients - depressive symptoms anxiety simptoms.
14
INTRODUÇÃO
E
ste trabalho aborda campos que se entrelaçam entre a
clinica e a psiquiatria, a saber: educação médica, epide­
miologia, sub-diagnóstico em psiquiatria, e psiquiatria na
prática médica.
Nós, professores de medicina temos que trabalhar pedagogi­ca­
mente orientando técnicas, teorias, casos clínicos práticos, atenção
e respeito ao paciente, além de lidar com inseguranças próprias de
cada idade e de cada estágio. 1
O ensino de graduação atualmente está alicerçado nas mais di­
ver­sas modalidades de tecnologias de informática, e teremos cada
vez mais aulas virtuais, Bibliotecas virtuais e Laboratórios virtuais.
Estas ferramentas de comunicação como chats, fóruns, facebook,
redes sociais, hiperlinks, etc. Já estão sendo utilizadas no cotidiano
do aluno. Comunicações de sala, notas provas rapidamente são
divulgadas pelos novos meios comunicação e redes sociais.1,2
Na prática da Aprendizagem estas novas tecnologias contribuem
para formação da formação de grupos heterogêneos, diversidade
cul­­tural e articulação de enorme quantidade de pontos de vista
di­ferentes auxiliando na formação da critica e ética.
O papel atual da Internet pode ser considerado um pilar para
a democratização do saber, com sua diversidade e pluralidade. 1
A Psiquiatria no contexto pedagógico do ensino médico
A psiquiatria hoje tem visibilidade e ultrapassa os limites da
disciplina. Ela participa de reuniões anatomopatológicas, discus­
sões de casos clínicos, interconsultas, interagindo com as demais
especialidades médicas. 2,3,4
O Curso de Graduação em Medicina tem como perfil do for­
mando egresso/profissional o médico, uma formação generalista,
humanista, crítica e reflexiva, capacitado para atuação e atender
em diferentes níveis de atenção. 5
Em psiquiatria, esta exigência se torna fundamental, pois a
história da medicina mostra que os quadros psiquiátricos sempre
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MÁRCIA GONÇALVES
1 Psiquiatra (ABP/AMB), Coordenadora da disciplina de Psiquiatria UNITAU
fizeram uma interface com quadros clínicos (ex- infecções , Lues,
quadros mentais orgânicos, etc.), que apresentam ainda hoje alta
morbidade, e isso torna o clinico um agente fundamental no seu
diagnóstico e manejo. 6
Dentro do enfoque comunitário o ensino de psiquiatria hoje
na graduação, contribui para atender os principais problemas de
saúde da população, e o psiquiatra atualmente está presente nos
serviços de emergência, em enfermarias, e realiza orientação na
relação medico-paciente. 2
Na formação do clinico geral, os objetivos educacionais na gra­
duação de medicina, foram direcionados para uma nova meto­do­
logia de ensino, onde as aulas práticas e o contato do estudante
desde os primeiros anos com o paciente é privilegiada. Isso auxilia
a desenvolver a sensibilidade com o sofrimento humano, além
de facilitar o entendimento, a subjetividade e a maneira como a
doença repercute na vida do paciente.2,3
Um aspecto que é importantíssimo e não deve ser negligen­
ciado pelos professores é a supervisão dos problemas da relação
medico-paciente durante o internato, quando o aluno sentirá
vi­­ven­cialmente esta relação, já que estará exposto a uma rotina
aca­dêmica com algum nível de responsabilidade. E mais ainda, o
ensino de psiquiatria não pode esquecer aspectos éticos humani­
tários que podem ser observados e enfatizados durante a interação
do aluno com o paciente. 4
Para o clinico geral o sintoma não pode ser visto de forma sim­
plista. As emoções dos pacientes devem ser observadas (raiva,
atra­ção sexual, paixão, insegurança), e o médico precisa aprender
a lidar com elas. 2
Com relação à prática psiquiátrica nos hospitais gerais, as inter­
con­sultas e os quadros psiquiátricos nas diversas especialidades,
como UTI, etc, estão sendo privilegiados e já possuem atenção
especial.4
Nesta linha de raciocínio, no fim do curso de medicina os alunos
devem ser capazes de reconhecer sintomas psiquiátricos e físicos
relevantes e nomear os sintomas encontrados, além de saber obter
uma história psiquiátrica complexa.5
O médico recém-formado deve conhecer as prevalências dos
transtornos mentais nos diversos serviços médicos. 5
Ao final do curso de medicina os alunos devem ser capazes de
aprender a conduzir e redigir uma anamnese psiquiátrica, usar
a historia e o exame psíquico para identificar a psicopatologia,
saber fazer um diagnóstico diferencial e sobretudo saber avaliar e
manejar as emergências psiquiátricas mais comuns.5
Não é incomum os alunos de medicina carregarem no bojo de
sua formação cultural crenças equivocadas da psiquiatria, como
acreditar que o tratamento não é eficaz, ou que as doenças são
muito abstratas e que a psiquiatria lida com situações de vida
consideradas “íntimas” e pouco aceitas socialmente.
Para minimizar as crenças equivocadas Délia propõe como uma
possível solução, a maior exposição dos alunos com os pacientes. 2
As vertentes epidemiológicas do ensino
Do ponto de vista comunitário temos que abordar os aspectos
epidemiológicos mais relevantes da população em que os alunos
estão inseridos. Nos serviços de saúde públicos, por exemplo, os
alunos devem promover medidas preventivas. 6,7
Para atingir este objetivo temos que conhecer a situação social
local e regional, identificar problemas, investigar problemas e pro­
por soluções compatíveis. 9
O Médico no contexto comunitário deve identificar e entender
o agente causal de doenças, estabelecer metas e estratégias de
con­tro­le definir as medidas preventivas mais adequadas. Isso au­
xi­liar o planejamento e desenvolvimento de serviços de saúde. 9
Dados epidemiológicos e diagnóstico em psiquiatria
Com relação ao diagnóstico em psiquiatria, uma meta-análise
em dez países (50 mil pacientes) mostrou que somente 47% dos
casos de depressão são diagnosticados no atendimento, e que
há falso diagnóstico em cerca de 20% dos casos. (Lancet). “O
deprimido não procura um psiquiatra, até por preconceito. Ele vai
ao clínico, ao neurologista...” 10
No Brasil, estes dados estão sendo valorizados até mesmo na
mídia. Segundo Juliane Silveira, da Folha de São Paulo, estima-se
que cerca de 12% dos homens e 20% das mulheres terão algum
nível de depressão em alguma fase da vida.10
Fica evidenciado que a detecção de sintomas psiquiátricos
ainda é uma grande dificuldade do clínico-geral, pois existe pouca
per­cepção do clínico da associação de sinais de uma possível
depressão ou transtornos de ansiedade, e estes sinais e sintomas
(dores, cansaço, falta de ar e de energia) serem creditados à outras
doenças.3
Um estudo com 316 pacientes e 19 clínicos-gerais do Hospital
das Clínicas de São Paulo salienta que a lentidão, cansaço e falta de
concentração são os sintomas de depressão mais difíceis de serem
identificados pelo clínico.
Sub diagnóstico em psiquiatria e suicídio
Outro fator muito sério no sub-diagnóstico de doenças psiquiá­
tricas é o suicídio.
Não é incomum ouvirmos frases do tipo: “Ele estava tão bem,
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ARTIGO ORIGINAL
por MÁRCIA GONÇALVES1
nos últimos meses... não se estressava, não reclamava, ficou calmo
de repente, as preocupações deixaram de incomodá-lo, e ele dimi­
nuiu os rompantes emocionais… ele estava tão bem, e se matou
não sei porque”... Facilmente fica nítido que era um quadro de
depressão não diagnosticada.11,12
Mais de 90% dos suicídios ocorrem no contexto de doença
psiquiátrica. E em torno de 15% dos doentes com depressão maior
cometem suicídio.12
Os índices elevados de suicídio são importantes indicadores
do sub-diagnóstico e sub-tratamento da depressão, pois 40% dos
indivíduos que cometem suicídio consultaram um médico nas
quatro semanas anteriores à passagem ao ato suicida e apenas 10%
dos doentes deprimidos recebem cuidados adequados.11
Metodologia
Foram realizadas 74 Entrevistas em pacientes hospitalizados
na enfermaria de clinica médica do HUT. Todos os pacientes
que tinham condição de comunicação foram entrevistados
indistintamente, num período de 4 meses.
A técnica da entrevista foi a seguinte. Os alunos, na beira do leito
das enfermarias, entrevistavam
os pacientes que estavam aptos Escala Beck para depressão
a res­
ponder, e após consen­
timento livre e esclarecido, res­
Escore
Interpretação
pon­
diam três questionários e
Sem
uma entrevista psicossocial. Os <13
Depressão
ques­
tionários escolhidos foram:
n = 58 (73%)
Escala Beck para Depressão, Es­
cala Beck para Ansiedade e Escala >13
Com
de Qualidade de Vida da OMS
Depressão
(WHOQOL).
n = 16 (27%)
Essas entrevistas visavam a de­
tec­
ção e sintomas psiquiátricos
nos pacientes internados, e o esta­belecimento de diagnóstico pos­
terior quando os valores respondidos excediam os pontos de corte
internacionalmente estabelecidos na literatura médica.
Uma anamnese psiquiátrica foi posteriormente realizada nos
pacientes com altos escores nas entrevistas.
Também foi avaliada a correlação dos sintomas dos questionários
de depressão e ansiedade com a quantificação da qualidade de
vida, e para isso foram aplicados questionários de qualidade de
vida. (WHOQOL)
Posteriormente uma comunicação foi realizada para os médicos
clínicos responsáveis pelo paciente nos leitos que apresentaram
altos valores quantificados nas entrevistas. Os pacientes com
16
altos escores nas respostas aos questionários tiveram tratamento
já iniciado no leito da enfermaria, e quando não foi possível a
intervenção imediata, estes pacientes foram encaminhados para
serviços de psiquiatria.
Denominamos esta forma de avaliação de Intervenção Próativa.
Resultados:
Os resultados da intervenção pró-ativa em relação aos
questionários estão resumidos na tabela 1. Dos entrevistados,
73% não apresentaram sintomas de depressão pela Escala Beck
para Depressão, e 64% não apresentarma sintomas de ansiedade
pela Escala Beck para Ansiedade. Contudo, 36% destes pacientes
apresentaram altos escores de ansiedade, o que torna esse grupo
vulnerável a piora de sintomas clínicos. Cerca de dois terços dos
pacientes tinham uma boa qualidade de vida, segundo a Escala
WHOOL.
Tabela 1. Resultado das aplicações dos questionários
após a intervenção pro-ativa.
Escala Beck para Ansiedade
Escala de Qualidade de vida
WHOQOL-26
Escore
Interpretação
Escore
Interpretação
<8
Sem
Ansiedade
n = 57 (64%)
<91
Boa
n = 56 (68%)
>8
Com
Ansiedade
n = 21 (36%)
>91
Moderada/
Ruim
n = 18 (32%)
A figura 1 mostra a relação entre ansiedade e qualidade de
vida, e a figura 2 mostra a relação entre qualidade de vida, com
os dados da tabela 1. Note que há uma inversão nos números de
casos: maior o escore de ansiedade ou depressão, menor o escore
de qualidade de vida.
Discussão
Nosso trabalho encontrou sintomas depressivos com escores
acima de 13 na BDI em 27% dos pacientes internados, o que
demonstra que existe um déficit na detecção destes sintomas em
pacientes internados.
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Os motivos do sub-diagnóstico e sub-tratamento podem ser
detectados em déficits dos profissionais, falta de conhecimentos,
sub-valorização da gravidade dos sintomas.11,12
Os dados epidemiológicos sobre transtornos mentais exibem
va­lo­res surpreendentes: Segundo Cepoiu13, os transtornos psiquiá­
tricos giram em torno de 13% da sobrecarga de doenças no
mun­do e existe uma imensa lacuna entre oferta e demanda de
assistência em saúde mental. De 25% a 50% dos pacientes que
procuram médico em centros primário, apresentam pelo menos
um transtorno psiquiátrico ou neurológico.13
Dados alarmantes podem ser verificados como, por exemplo, a
não detecção dos casos pode chegar a 55% para diagnóstico de
depressão, e a 77% para transtorno de ansiedade generalizada. As
estratégias para modificação deste quadro passam pela utilização
de instrumentos de rastreamento de sintomas psiquiátricos.14
Segundo Fleck15, a morbi-mortalidade associada à depressão pode
ser prevenida em torno de 70% com o tratamento correto.15
Também pacientes com problemas cardiológicos estão incluídos
entre os pacientes com sub-diagnóstico de doenças psiquiátricas.
Quadros de depressão grave pode acometer 16 a 27% das pessoas
que sofreram infarto do miocárdio recente.16
Foi encontrada uma correlação proporcionalmente inversa,
ou seja, pacientes com sintomas psiquiátricos apresentavam pior
qualidade de vida pela WHOQOL (32%).
A ansiedade é outra patologia psiquiátrica que tem sérios
problemas de sub-diagnóstico. Boughton17 realizou um trabalho
e concluiu que sobreviventes do câncer de ovário continuam por
5 anos apresentando um sub-diagnóstico de ansiedade quanto
à possibilidade de recorrência. 60º Encontro Clínico Anual do
Congresso Americano de Ginecologia e Obstetrícia.17
Foram encontrados altos escores de sintomas de ansiedade
avaliados pela BAI (36%) nos pacientes internados, e uma corre­
lação inversamente proporcional para qualidade de vida, ou seja,
quanto maior os escores de sintomas de ansiedade avaliados
pela BAI, menores escores de qualidade de vida avaliados pela
WHOQOL (32%).
O sub-diagnóstico de depressão pode levar à uma considerável
perda de qualidade de vida em pacientes com patologias clínicas.
psiquiátrico, contato com o paciente, sendo esta abordagem uma
forma ética, eficiente, e que contribui tanto para auxiliar os internos
a detectarem quadros psiquiátricos em pacientes internados
em clinica médica, e mostrou-se como uma forma eficiente de
contribuir para reduzir os índices de sub-diagnóstico, bem como
na oferta e disponibilização de um tratamento adequado dos
quadros psiquiátricos sub-diagnosticados. Podemos também
através desta avaliação pró–ativa, somar esforços às estratégias
para a melhoria da qualidade de vida em pacientes internados
com quadros clínicos graves.
Figura 1. Correlação entre qualidade de vida (linha vermelha), avaliados
pela Escala WHOOL-26, e sintomas de ansiedade (linha azul), avaliados pela
Escala Beck.
CONCLUSÃO
A intervenção pró-ativa como metodologia de ensino para
graduação de psiquiatria demonstrou ser uma técnica que aborda
diferentes enfoques pedagógicos, como treino na percepção de
sintomas psicopatológicos, facilitação na elaboração de diagnóstico
Figura 2. Relação entre qualidade e vida (linha vermelha), medida pela
Escala WHOQOL, e sintomas depressivos (linha azul) pela Escala Beck.
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ARTIGO ORIGINAL
por MÁRCIA GONÇALVES
Agradecimentos:
Agradeço aos alunos de medicina da Universidade de Taubaté,
à comissão científica da Associação brasileira de Psiquiatria (ABP),
ao Dr. Fernando Portela Câmara.
Este trabalho não apresenta conflitos de interesse.
Márcia Gonçalves
Rua Conego Ribeiro 726 - Taubaté SP.
12100000
[email protected]
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revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012
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ARTIGO ORIGINAL
por KARINNE TAVARES BORGES1,
SONIA GERHARDT REZENDE2,
MARCELA FAVARINI NUNES3 E
FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4
O PROGRAMA DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO EM
AÇÃO: DESCRIÇÃO, ANÁLISE E DIFICULDADES
THE CHEMICALLY DEPENDENT SUPPORT PROGRAM IN
PRACTICE: DESCRIPTION, ANALYSIS AND DIFFICULTIES
Resumo
A Dependência Química no trabalho, por provocar prejuízos
ao usuário, ao funcionamento da equipe e à instituição como um
todo, desperta a necessidade da elaboração de políticas voltadas ao
restabelecimento da saúde mental do trabalhador. O Governo do
Distrito Federal, por meio do Programa de Atenção ao Dependente
Químico, oportuniza tratamento especializado aos servidores de­
pendentes químicos. A equipe multiprofissional do Programa reali­
za acompanhamento psiquiátrico, atendimento psicoterápico indi­
vidual e em grupo, avaliação biopsicossocial, informações gerais aos
respectivos familiares e orientação aos gestores dos servidores em
temas como prevenção, detecção precoce da dependência química
no ambiente laboral e condutas adequadas de intervenção. O pre­
sente trabalho tem por objetivo descrever o Programa de Atenção
ao Dependente Químico após um ano de publicação da portaria
que o instituiu e apresentar o perfil dos servidores que foram nele
recepcionados, assim como as dificuldades encontradas e as novas
diretrizes traçadas a partir da experiência com esse grupo.
Descritores: Política de Saúde, Álcool, Trabalho
Abstract
The Chemical Dependence on the workplace, by causing damage
to the user, the functioning of the teamwork and the institution as
a whole, highlight the need for the policies aimed at the restoration
of workers’ mental health. The Government of the Federal District,
through the Program of Attention to the Chemical Dependent, deli­
vering specialized treatment to chemical dependents. A multidisci­
plinary team conducts follow-up psychiatric and psychotherapeutic
care individual and group, biopsychosocial assessment, general in­
formation to their respective families and guidance to managers in
topics such as prevention, early detection of chemical dependence
in the work environment and conducting appropriate intervention.
The purpose of this study is to describe the Program of Attention to
the Chemical dependent after a year of publication of the ordinance
which created and present the profile of employee that were in it
24
approved, as well as the difficulties encountered and the new guide­
lines drawn from the experience with this group.
Keywords: Health Policy, Alcohol, Work
Introdução
A
Subsecretaria de Saúde, Segurança e Previdência dos
Servidores - Subsaúde, órgão da Secretaria de Estado
de Administração Pública - SEAP, do Governo do Distrito Federal - GDF, cumprindo seu papel institucional
de prevenção, promoção e vigilância em saúde, vem fortalecer
a Política Integrada de Atenção à Saúde do Servidor do Distrito
Federal1 oferecendo alternativas institucionais à problemática da
Dependência Química (DQ).
A dependência química no trabalho provoca prejuízos ao próprio servidor usuário, ao funcionamento do ambiente laboral e à
instituição como um todo. Já em 1990, a Associação dos Estudos
do Álcool e outras Drogas - ABEAD estimou uma variação entre
3% e 10% da população adulta com prevalência no alcoolismo e
o apontou como o terceiro motivo para absenteísmo no trabalho.
O absenteísmo é caracterizado por faltas de curta duração, com
ou sem atestado médico de afastamento, faltas frequentes nas segundas nas segundas e sextas-feiras e nos dias que antecedem ou
sucedem feriados, ou mesmo por faltas por doenças vagas como
resfriado, gripes e enxaquecas². O abuso causa ainda outras lacunas institucionais, como ausências no período da jornada de trabalho, com atrasos excessivos após o almoço, saídas antecipadas ou
saídas frequentes do posto de trabalho; queda na produtividade
e qualidade no trabalho, o que inclui maior perda de tempo, material, equipamentos, memória para novas instruções e restrição
para atividades complexas; mudança nos hábitos pessoais, vindo
ao trabalho em condições anormais e mesmo com higiene precária e por fim relacionamento ruim com colegas, pois pode reagir exageradamente às criticas e apresentar estados emocionais
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KARINNE TAVARES BORGES
1 Médica formada pela Universidade de Brasília, com especialização em psiquiatra pelo Hospital
Universitário Professor Edgar Santos da Universidade Federal da Bahia, com título de Psiquiatra Geral
pela Associação Brasileira de Psiquiatria, atua na Secretaria de Administração Pública do Governo do
Distrito Federal como psiquiatra da equipe de Gerência de Saúde Mental e Preventiva.
variados, conduta de evitação e ressentimentos irreais2. Por outro
lado, fatores como desconhecimento da dinâmica da dependência, estruturas familiares disfuncionais, estereótipos sociais, entre
outros, se opõem ao trato da patologia, agravando casos crônicos
e criando uma cultura distanciada do restabelecimento da saúde.
O II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas no Brasil3
destaca o uso de álcool comparativamente com o de outras drogas em âmbito nacional, conforme quadro comparativo abaixo:
Uso de álcool
Uso de outras drogas
Na vida
74,6%
22,8%
No ano
49,8%
10,3%
No mês
38,3%
4,5%
Esses dados reforçam a necessidade de uma atenção diferenciada ao grupo de alcoolistas. O I Levantamento Nacional Sobre os
Padrões de Consumo do Álcool4 cita que na América Latina cerca
de 16% dos anos de vida útil são perdidos em função do uso do álcool, enquanto a média mundial tem um índice quatro vezes menor (4%); também nota-se que 12,3% dos brasileiros tiveram diagnóstico de dependência alcoólica, enquanto os usuários de outras
drogas psicoativas, excluindo-se o tabaco, somaram 2,1%1. Alguns
organismos internacionais como a OMS - Organização Mundial
de Saúde, no Programa de Abuso de Substâncias, a International
Labour Organization e a United Nation International Drug Control Programme privilegiam ações de prevenção ao consumo de
substâncias psicoativas no trabalho a partir da constatação de que
70% a 80% desse público encontra-se empregado. Nos Estados
Unidos, cada vez mais recorre-se ao Employment Assistance Program – EAP (Programa de Assistência ao Funcionário), direcionado à saúde mental e aconselhamento, ajudando a tratar, inclusive,
de problemas do uso de álcool e outras drogas. “O ambiente de
trabalho é o espaço privilegiado para definir uma política de prevenção, uma vez que é onde o trabalhador passa grande parte de
seu tempo e estabelece uma rede de relacionamento capaz de lhe
conferir identidade social e profissional”5.
Descrição do funcionamento
do PADQ
A constatação de que é mais vantajoso implantar medidas preventivas do que meramente substituir o funcionário de uma determinada empresa, arcando-se com os custos de demissão, recrutamento, seleção e treinamento do novo funcionário, determinou
a adaptação na gestão de pessoas e induziu empresas, principalmente as de grande porte, a desenvolver programas de prevenção
e tratamento de álcool e drogas no local de trabalho. Na Subsaúde,
a observação do número crescente de licenças médicas, aposentadorias precoces ou inassiduidade habitual em consequência de
alcoolismo demandou a criação de um programa que oferecesse
aos órgãos do GDF uma referência nos casos de DQ.
O Programa de Atenção ao Dependente Químico - PADQ foi
instituído pela Portaria nº48 de 26 de maio de 20116 e tem como
responsável por sua execução a Gerência de Saúde Mental e Preventiva - GESM, subordinada à Coordenação de Saúde e Segurança do Trabalho - COSST. A equipe interdisciplinar do PADQ
é composta por psiquiatra, psicólogos, enfermeira e técnica de
enfermagem. Além desses, há o suporte de uma assistente social
quando necessário. O Programa inclui acompanhamento psiquiátrico, atendimento psicoterápico individual e em grupo, avaliação
e suporte biopsicossocial, encaminhamento a instituições externas, orientação aos familiares e orientação aos gestores em temas
como prevenção, detecção precoce da dependência química no
ambiente laboral e condutas adequadas de intervenção. O presente trabalho tem por objetivo relatar ações, limitações e diretrizes
do PADQ, assim como avaliar os progressos alcançados em um
ano da publicação da portaria que o instituiu.
Os servidores ingressam ao Programa por demanda espontânea
ou encaminhados por gestores, médicos das Gerências de Perícia
Médica e de Promoção à Saúde do Servidor ou pela Comissão
Permanente de Readaptação Profissional. O acolhimento é feito
em entrevista de triagem com questionário elaborado pela GESM
e obtém informações como: dados epidemiológicos, padrão de
consumo, histórico familiar, comorbidades, informações relativas
ao trabalho, aspectos da vida social e interesses do servidor. O
questionário, além de avaliar o comprometimento clínico, avalia se
o servidor é eleito para o PADQ. Durante a entrevista de triagem
são fornecidas informações sobre normas, atividades e critérios de
participação no Programa. A partir disso, o servidor é encaminhado de acordo com uma das modalidades de tratamento a seguir:
a) Acompanhamento Psiquiátrico: é realizada uma investigação para outras comorbidades psiquiátricas comumente associadas à dependência química como depressão e ansiedade e instaurado tratamento farmacológico específico para os sintomas-alvo.
A periodicidade das consultas depende da avaliação da gravidade
do caso;
b) Atendimento Individual: é realizado por psicólogo em sessões continuadas e periódicas. Os eleitos para essa modalidade de
atendimento apresentam alguma característica, ou mesmo psicoNov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria
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FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4
patologia, que não os elege para o atendimento em grupo;
c) Atendimento em Grupo: com frequência semanal, é o atendimento privilegiado no programa para minimizar a sensação de
isolamento em relação à patologia e lidar com a exclusão e a discriminação em que vivem os dependentes;
d) Avaliação Biopsicossocial: é realizada na área médica, psicológica e social, de modo a contextualizar o quadro apresentado
pelo servidor. Durante essa avaliação, são feitas visitas técnicas às
famílias, ao local de trabalho, a clínicas de recuperação ou qualquer outro lugar pertinente, de modo a observar o universo em
que o servidor se encontra;
e) Suporte Biopsicossocial
Orientação aos familiares: sensibilizá-los sobre o seu papel na
recuperação da saúde do servidor e informá-los sobre os tratamentos específicos existentes nas atuais redes de apoio, tanto para
familiares como para os próprios servidores;
Orientação aos gestores: aliados na problemática da dependência química, a equipe do PADQ dá atenção especial aos gestores, legitimando-os no cumprimento de seu papel e auxiliando-os
no encaminhamento do servidor dependente. Há palestras, orientações por contato telefônico, o Curso de Orientação a Gestores
de Dependente Químico e a Cartilha de Orientação aos Gestores
sobre Dependência Química7, que será apresentada adiante;
f) Encaminhamento a Instituições Externas
Redes de apoio: instituições como os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas/CAPS-ad, Alcoólicos Anônimos/AA e
Narcóticos Anônimos/NA são indicadas em duas situações: associado à assistência da Subsaúde, como forma de intensificar o tratamento ou na impossibilidade de comparecimento do servidor
na sede da Subsaúde;
Internação: é recomendada para os casos crônicos, com abuso
intenso e longevo, onde há dificuldade de reestruturação da rotina
do paciente. Idealmente, as clínicas com equipe multidisciplinar
são as mais indicadas. No entanto, verifica-se que os casos crônicos trazem, como coadjuvante, comprometimento financeiro
do servidor, fazendo-os migrar principalmente para comunidades
terapêuticas, com quadro de pessoal mais limitado;
Monitoramento: acompanhamento do servidor internado ou
que frequenta alguma instituição da rede de apoio. Essa modalidade permite ao profissional verificar a capacidade de adesão ao
tratamento indicado e inclui contato com o gestor para que seja
verificada a frequência do servidor ao trabalho, assim como sua
produtividade. Nos casos de internação são feitas visitas técnicas,
que também têm função de subsidiar homologação de licença
médica.
26
Cartilha de Orientação aos Gestores
sobre Dependência Química7
A Cartilha surgiu após uma série de palestras com a exposição
de dados gerais da dependência química e da técnica denominada
Passo a Passo, que buscava auxiliar o gestor na tarefa de conduzir
o servidor a tratamento sem desviar-se de seu papel institucional.
Identificou-se nesses encontros a dificuldade do gestor em assimilar todo o procedimento sem um material impresso que pudesse
ampará-lo no encaminhamento do servidor dependente. A previsão é de que a Cartilha seja usada no âmbito da Administração
Direta, Autárquica e Fundacional do Distrito Federal8. Seu conteúdo está disponível no sítio eletrônico da SEAP para acesso dos
gestores.
O material é distribuído tanto aos órgãos de Gestão de Pessoas quanto aos gestores de servidores dependentes químicos que
participam da palestra “Lidando com o Alcoolismo no Ambiente
de Trabalho”. O Curso de Orientação a Gestores de Dependente
Químico tem como base a apresentação da Cartilha aos gestores
que encaminham o servidor dependente. A cartilha tem proposta dinâmica, onde o gestor pode seguir a sequência de ações que
objetivam conscientizar o servidor sobre seu grau de dependência,
bem como responsabilizá-lo pelos prejuízos.
O Passo a Passo orienta o gestor em cada etapa, da identificação
ao encaminhamento para o PADQ, finalizando com a persistência
necessária para que não mude sua postura frente a eventuais recaídas do servidor. “Persistir é não desistir de conter os efeitos do uso
no ambiente laboral. O trabalho tem a capacidade de promover
fatores de proteção, pois fortalece a autoestima através da satisfação pessoal.”7
Perfil Sociodemográfico da
População do PADQ
O PADQ tem uma peculiaridade no quesito população. Na ocasião da publicação da Portaria que instituiu o Programa, os servidores já atendidos na gerência migraram para o PADQ e, após
um ano de publicação, outros foram encaminhados ou vieram
por demanda espontânea ao Programa, totalizando 67 servidores.
Desses servidores, 43% não chegaram a ser triados, seja por não
demonstrarem interesse em agendar a entrevista, seja por agendarem seguidas vezes sem nunca concretizar o encontro. Os dados
aqui apresentados representam os servidores que compareceram
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SONIA GERHARDT REZENDE
2 Psicóloga pela Universidade Federal Fluminense, atua na Secretaria de Administração Pública do
Governo do Distrito Federal como psicóloga da Gerência de Saúde Mental e Preventiva e desde 2007
na área de dependência química, responsável pelo Programa de Apoio ao Dependente Químico do
Governo do Distrito Federal, elaborou a Cartilha de Orientações aos Gestores sobre Dependência
Química usada no âmbito da Administração Direta, Autárquica e Fundacional do Distrito Federal.
à triagem e foram colhidos do questionário padrão adotado no
final do ano de 2010.
Os homens constituem uma expressiva maioria (98,5%) e a
maior parte dos atendidos encontra-se na faixa etária de 40 a 49
anos, como mostra a Figura 1. Destaca-se a escolaridade: 59,3%
tem pelo menos o ensino médio completo e o restante (40.7%)
compõe o grupo que vai de analfabeto a nível médio incompleto,
de acordo com a Figura 2. Esses resultados compõem com outro
dado, que mostra 84% do quadro funcional de servidores do GDF
com escolaridade de nível superior ou com ensino médio completo.
O tempo de serviço desse grupo (Figura 3) está concentrado
entre 11 e 30 anos de trabalho no GDF: 65,79%. O tipo de consumo (Figura 4) retrata o abuso de álcool como índice prevalente
nessa população: todos os servidores do PADQ que chegaram à
GESM o fizeram por prejuízos advindos dessa substância. Há um
expressivo número que conjuga álcool e tabaco (36,84%) e 13,7%
que consomem o álcool com outras drogas como crack e cocaína.
Não se pode afirmar que esses resultados são fiéis ao consumo
de crack ou cocaína nesse público; há possibilidade de o servidor
dependente dessas substâncias evitar buscar o PADQ como fonte
de auxílio. Pelo fato de o álcool ser substância lícita, é assumido e
usado de forma mais livre do que outras drogas. Com efeitos mais
conhecidos pela população em geral, é de mais fácil identificação
do que, por exemplo, a cocaína. O encaminhamento dos servidores pelos gestores se dá exclusivamente por queixa de alcoolismo.
O perfil do servidor atendido no PADQ pode ser observado nas
figuras em anexo.
Discussão
Consonante com o encontrado na literatura9, a adesão dos
adoecidos ao tratamento é aquém da expectativa. Tal realidade
já se observa desde o encaminhamento: o índice de abandono
pré-tratamento, quer seja, faltar à primeira consulta depois de tê-la agendado, é de 43%. Daqueles que aderiram ao programa de
tratamento, a frequência de comparecimento ao atendimento em
grupo foi de, em média, três participantes por encontro semanal,
considerado abaixo do desejável para uma boa dinâmica de grupo.
Na prática, os servidores se comprometem pouco com a assiduidade, o que demandou mudanças na proposta de tratamento.
Com a publicação da cartilha8, novo investimento foi feito em
nível institucional na política de saúde que busca a prevenção ao
alcoolismo. Diferente da proposta anterior, quando o principal
produto aos órgãos era uma palestra de aproximadamente duas
horas, agora é oferecido um curso aos gestores que tem por objetivos reduzir a codependência institucional, aumentar a consciência coletiva sobre os transtornos decorrentes do uso indevido do
álcool e isentar o gestor do papel de agente punidor colocando-o
em outro, capaz de promover ambiente de trabalho saudável. “Os
ambientes de trabalho devem ser vistos como locais privilegiados
para iniciativas de prevenção do uso prejudicial de bebidas alcoólicas”9.
As palestras feitas nos órgãos ao longo dos anos possibilitaram
a identificação de dois perfis predominantes entre os gestores que
hesitam em encaminhar o servidor para tratamento. Há o gestor
que tem relativa intimidade com o dependente, que já teve alguma tentativa frustrada de ajudá-lo e evita a responsabilização do
mesmo por observá-la como sinônimo de punição. Há também
o gestor que está no cargo em caráter temporário e percebe que
a situação se prolonga ao longo dos anos. Temendo o desgaste,
é inclinado a minimizar o problema. Ambos costumam abonar o
ponto dos faltosos, ignorar os atrasos, redistribuir as tarefas entre
os outros servidores, adotar postura passiva ao verificar a dificuldade, ou algumas vezes incapacidade, do servidor em cumprir seu
pape e aceitar o presenteísmo.
A falta de crítica do próprio servidor é outro ponto que dificulta
a adesão. Há dificuldade em encarar a dependência química como
doença e em entrar em contato com os prejuízos dela decorrentes. “Muitos consumidores de drogas não compartilham da expectativa e desejo de abstinência dos profissionais de saúde, e abandonam os serviços. Outros sequer procuram tais serviços, pois não se
sentem acolhidos em suas diferenças. Assim, o nível de adesão ao
tratamento ou a práticas preventivas e de promoção é baixo, não
contribuindo para a inserção social e familiar do usuário”9.
Em relação ao acompanhamento psiquiátrico, observamos baixa aderência ao tratamento e no grupo de apoio, uso irregular das
medicações e associação das mesmas com álcool, o que limita o
sucesso do tratamento farmacológico. Há ainda o agravante das
comorbidades nos usuários. A presença de transtorno mental
co­mo depressão, ansiedade ou esquizofrenia é, muitas vezes, o
mo­tivo para que o paciente seja encaminhado dos serviços de
dependência química para os serviços psiquiátricos. Estes por sua
vez, reencaminham o paciente para o programa de dependência,
por considerarem o abuso de substância psicoativa o problema
central. A taxa de comorbidade chega a 13% dos usuários e em 20
a 50% desses pacientes, encontraremos problemas de alcoolismo
conjugado ao abuso de outras drogas10.
Outro potencial aliado no resgate do servidor dependente são
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seus familiares, que têm se mostrado de difícil acesso e com baixa participação nas entrevistas quando convidados. Os familiares
evidenciam sua descrença de que haverá mudança de estilo de
vida do parente adoecido e usualmente reestruturam a dinâmica
familiar a partir da falta, ausência ou presença nociva desse membro. Frequentemente recusam-se a participar de qualquer grupo
de ajuda nos moldes do Al-Anon - grupo de ajuda para familiares
e amigos de alcoolistas, a despeito das pesquisas que demonstram
que estes grupos fornecem apoio, ajudam os participantes a lidar
com problemas e crises e os habilitam a aderir ao plano de tratamento11.
Outro fator que provavelmente isola os dependentes do movimento de mudança saudável é a característica de serem servidores
públicos com estabilidade funcional, permitindo-lhes adiarem ou
mesmo negarem tratamento. A atuação da GESM busca dar acolhimento aos servidores que estejam na condição de dependentes
químicos e estabelece uma política que, por um lado, abre alternativas para o servidor já consciente da doença e, por outro, conduza
o servidor alheio à patologia a engajar-se em tratamento.
As limitações dos agentes de saúde e da própria instituição devem ser reconhecidas, sempre observando o dependente como
entidade autônoma que tem juízo de realidade e toma decisões
que ora os beneficia, ora os prejudica. “Se nas práticas de saúde
nosso compromisso ético é o da defesa da vida, temos de nos colocar na condição de acolhimento, em que cada vida se expressará
de uma maneira singular, mas também em que cada vida é expressão da história de muitas vidas, de um coletivo. Não podemos nos
afastar deste intrincado ponto onde as vidas, em seu processo de
expansão, muitas vezes sucumbem ao aprisionamento, perdem-se
de seu movimento de abertura e precisam, para desviar do rumo
muitas vezes visto como inexorável no uso de drogas, de novos
agenciamentos e outras construções”9. Nesse contexto, o papel da
instituição será evidenciar as consequências dessas escolhas que
trazem dano institucional. Vivenciar as perdas, principalmente financeiras ou algumas vezes de status, possibilita aumento da crítica, fundamental para a busca de alternativas que preencham o
espaço que o álcool fatalmente deixará.
Com a percepção de doença com causas e efeitos biopsicossociais, o PADQ oferece tratamento que compreenda essas três
dimensões. A dimensão biológica é acompanhada por médica psiquiatra que quando necessário faz o encaminhamento a outras
especialidades. A psicológica tem acolhimento no atendimento
individual ou em grupo que a GESM oferece, ou no incentivo ao
engajamento em outras instituições que supram as necessidades
do servidor. A dimensão social é fortalecida através do vínculo
28
com familiares e gestores, de maior convívio com o dependente, e
que se fortalecem em seus papéis à medida que recebem apoio e
orientação que sustentem sua participação no tratamento.
A atual cultura institucional, e que se pretende mudar, dita que
a perda financeira precisa ser evitada principalmente quando a
remuneração do servidor envolve o sustento de filhos. Paradoxalmente, o bônus por trás desse ônus é que, especialmente nesses
casos, a família tende a se mobilizar, buscar orientações e sensibilizar-se em relação ao alcoolismo. O conhecimento da estrutura
adoecida do membro da família reduz a estigmatização e fomenta
o uso dos serviços disponíveis para apoio a esses familiares. “As
atividades preventivas também devem ser orientadas ao fornecimento de informações e discussão dos problemas provocados
pelo consumo do álcool, tendo ainda como fundamento uma visão compreensiva do consumo do álcool como fenômeno social,
e ao mesmo tempo individual”9.
Uma preocupação da equipe da GESM é não se ater somente
ao servidor identificadamente dependente, que já faz visível sua
patologia. Busca-se dar visibilidade ao tema no ambiente de trabalho de forma que indivíduos que têm poucos prejuízos decorrentes do abuso do álcool também recebam atenção. Ao falar de
prevenção, urge contemplá-los, já que são os que têm maior probabilidade de desenvolver problemas mais graves e procurarem o
PADQ somente cinco anos após o primeiro problema decorrente
do uso de álcool - esse é o período médio que o usuário demora
para iniciar tratamento9.
Com objetivo de prevenção, inclui-se aqui os conceitos de
fatores de risco e fatores de proteção com relação ao abuso de
substâncias. Os fatores risco tornam a pessoa mais vulnerável a
adotar comportamentos que tendem a levá-la ao consumo de
substâncias psicoativas. Os de proteção, por sua vez, atuam contrabalançando as vulnerabilidades para os comportamentos de co
de substâncias psicoativas12. Portanto, a família e o trabalho (representado também pelos gestores) podem ter aspectos de fatores
de proteção e a equipe multiprofissional da GESM atua junto a
esses dois grupos em favor do servidor dependente químico.
O programa segue com as palestras que levam informações gerais sobre alcoolismo aos órgãos, criando mecanismos que atraiam
cada vez mais servidores que muitas vezes se intimidam com o
tema.
Conclusão
Verifica-se que, a despeito da disponibilidade de equipe multi-
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MARCELA FAVARINI NUNES
3 Psicóloga formada pela Universidade de Brasília, mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela
Universidade de Brasília. Atua como psicóloga na Gerência de Saúde Mental e Preventiva da Secretaria
de Administração Pública do Governo do Distrito Federal no Programa de Apoio ao Dependente
Químico e no Atendimento psicológico aos servidores do Governo do Distrito Federal.
profissional na GESM, da publicação da Cartilha de Orientação aos
Gestores de Dependentes Químicos e da Portaria que oficializa
o PADQ no âmbito do GDF, o trabalho de sensibilizar o servidor
dependente para sua patologia permanece com amplo campo de
aplicação. Percebe-se a necessidade de uma abordagem pedagógica com a explanação das consequências do abuso de substâncias
psicoativas e a desmistificação dos medicamentos de suporte. Paralelamente, o posicionamento institucional atua como limitador
do consumo e redutor dos prejuízos biopsicossociais. Os esforços
para sensibilizar familiares e gestores direcionam-se, igualmente,
para a introdução de conhecimento, incentivo à promoção de
saúde e conscientização de seus papéis junto ao servidor dependente.
Agradecimentos
Rosylane Nascimento Mercês da Rocha
Synara Tadeu de Oliveira Ferreira
Maviane Vieira Machado Ribeiro
Vanessa Sales Veras
O trabalho não apresenta conflitos de interesses
e fontes de financiamentos.
Sonia Gerhardt Rezende
SGAN 907 Bloco A, Anexo do Gisno
Gerência de Saúde Mental e Preventiva - Subsaúde
70.790-070 Brasília - DF-Brasil
e-mail: [email protected]
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por KARINNE TAVARES BORGES1,
SONIA GERHARDT REZENDE2,
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FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4
Referências
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âmbito da Administração Direta, Autárquica e Fundacional do Distrito Federal. Diário Oficial do Distrito
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4ª edição, Brasília. Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – SENAD, 2011.
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FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA
4 Psicólogo formado pela Universidade de Brasília, licenciado em Letras, pela Faculdade Michelangelo,
mestre em Psicologia Social e do Trabalho. Atua como psicólogo na Gerência de Saúde Mental e
Preventiva da Secretaria de Administração Pública do Governo do Distrito Federal no Programa de
Apoio ao Dependente Químico e no Atendimento psicológico aos servidores
do Governo do Distrito Federal.
Figura 1: Idade da População do Programa de Atenção ao
Dependente Químico
Figura 2: Escolaridade da População do Programa de
Atenção ao Dependente Químico
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por KARINNE TAVARES BORGES,
SONIA GERHARDT REZENDE,
MARCELA FAVARINI NUNES E
FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA
Figura 3: Tempo de Serviço da População do Programa de
Atenção ao Dependente Químico
Figura 4: Drogas Consumidas pela População do Programa
de Atenção ao Dependente Químico
Fontes: arquivo de prontuários da Gerência de Saúde Mental
e Preventiva
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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA1 E
ANDRÉ STROPPA2
ESPIRITUALIDADE E SAÚDE MENTAL: O QUE AS EVIDÊNCIAS
MOSTRAM?
SPIRITUALITY AND MENTAL HEALTH: WHAT EVIDENCE
SHOWS?
Resumo
Religiosidade e Espiritualidade (R/E) têm se tornado um tema de
crescente interesse entre clínicos e pesquisadores na área de saúde.
Entretanto, devido à falta de treinamento em temas ligados à rela­
ção entre R/E e saúde, grande parte das evidências disponíveis ainda
são desconhecidas por muitos profissionais de saúde e muitos têm
dificuldades em lidar com a R/E em situações da prática clínica.
Este artigo visa oferecer uma breve e prática revisão dos principais
conceitos em R/E que são relevantes para o clínico, bem como das
principais evidências disponíveis sobre o impacto da R/E na saúde
mental. Existe um amplo, diversificado e robusto corpo de evidên­
cias indicando a relevância e o impacto da R/E sobre a saúde. Os
estudos demonstram que a R/E é um elemento importante na vida
da maior parte da população mundial, principalmente entre aque­
les enfrentando adversidades como o adoecimento. Pessoas com
maiores níveis de R/E tendem a apresentar maior bem estar e me­
nores níveis de depressão, abuso/dependência de substâncias e de
comportamentos suicidas. Embora necessitando de maiores estu­
dos, a R/E é algo importante na vida de pacientes com transtornos
bipolar e esquizofrenia, havendo evidências sugestivas de impacto
benéfico sobre a evolução destes transtornos mentais. Atualmente,
a tendência das pesquisas não é mais em investigar se há relações
entre R/E e saúde, mas em identificar os mecanismos desta relação
e como aplicar estes conhecimentos na prática clínica.
Palavras chave: religião, espiritualidade, psiquiatria
Abstract
Religiosity and spirituality (R/S) have become a topic of growing
interest among clinicians and health researchers. However, due to
lack of training on issues related to the relationship between R/S
and health, much of the evidence available is still unknown by
many health professionals and many have difficulties in dealing
with R/S during clinical practice. This paper presents a brief and
practical review of key concepts in R/S that are relevant to the clini­
cian as well as the main evidence on the impact of R/S on mental
34
health. There is a broad, diverse and robust body of evidence in­
dicating the relevance and impact of R/S on health. Studies show
that R/S is an important element in the lives of most of the world
population, especially among those facing struggles like illness. Pe­
ople with higher levels of R/S tend to have higher well-being and
lower levels of depression, substance abuse/dependence, and suici­
dal behaviors. Although requiring further study, R/S is an aspect in
the lives of patients with bipolar disorder and schizophrenia, with
evidence suggesting a beneficial impact of R/S on the evolution of
these mental disorders. Currently, the research trend is no longer to
investigate whether there are relationships between R/S and health,
but in identifying the mechanisms of this relationship and how to
apply this knowledge in clinical practice.
Keywords: religion, spirituality, psychiatry
1. INTRODUÇÃO
T
em havido um crescente reconhecimento por clínicos e
pesquisadores em relação à importância da religiosidade e espiritualidade (R/E) em questões ligadas à saúde
1, 2
. O número de pesquisas tem crescido rapidamente,
chegando à casa dos milhares de estudos publicados. Estes estudos indicam que a R/E tem marcantes implicações em aspectos
de prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação, além do fato
de que a maior parte da população mundial tem alguma forma de
R/E 3. Além disso, diversos estudos indicam que a maioria dos pacientes desejam que a R/E seja abordada por seus clínicos durante
o encontro médico-paciente4. Entretanto, a maioria dos clínicos
não recebeu treinamento sistemático, ou mesmo treino algum, sobre as evidências disponíveis na área, bem como sobre como lidar
com a espiritualidade na prática clínica5. Entretanto, como há implicações da R/E sobre a saúde e como os pacientes trazem estes
temas nos encontros clínicos, há um problema ético, pois grande
parte dos clínicos pode estar atuando em situações para as quais
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ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA
1 Professor de Psiquiatria e Coordenador do NUPES - Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde
da Faculdade de Medicina da UFJF (www.ufjf.br/nupes), Doutor pela USP
e Pós Doutor pela Duke University.
não receberam treinamento adequado. Nestes casos, podem ser
comuns duas situações: o clínico ignorar o tema, mesmo quando
é algo relevante e o paciente o traz na consulta, ou então buscar
abordar a R/E do modo que, pessoalmente, julgar mais apropriado.
Este último modo, embora muitas vezes resulte em uma abordagem adequada, pela falta de conhecimento da literatura na área
e de treinamento adequado, pode resultar em práticas inadequadas baseadas nas convicções do profissional. Nestes casos, podem
ocorrer tanto a desqualificação das crenças dos pacientes como
a tentativa de imposição, sutil ou direta, das crenças, ideologias e
práticas do clínico, sejam elas religiosas ou materialistas6. Alguns
autores alertam para o fato de que pesquisas, ao menos as realizadas nos EUA, indicam que os profissionais de saúde mental tendem a ser bem menos religiosos que a população geral. Devido a
este fato e ao de não receberam treinamento adequado em R/E,
parte dos clínicos tem dificuldade em empatizar com a experiência religiosa dos pacientes e em compreender sua importância na
vida destes 7, 8.
Entretanto, do mesmo modo que em outras vivências culturais
e sociais, não é preciso que o clínico seja religioso para abordar
de modo adequado a R/E. Há evidências que profissionais não religiosos podem abordar o tema na prática clínica de modo tão
adequado quanto os religiosos9. O reconhecimento da importância da R/E na área de saúde mental se reflete na criação de seções
ou departamentos sobre R/E nas seguintes influentes associações:
Mundial de Psiquiatria (www.religionandpsychiatry.com), Americana de Psiquiatria, Britânica de Psiquiatria (www.rcpsych.ac.uk/
college/specialinterestgroups/spirituality.aspx) e Americana de Psicologia (www.division36.org).
Com o intuito de colaborar neste sentido, este artigo visa oferecer uma breve e prática revisão dos principais conceitos em R/E
que são relevantes para o clínico, bem como das principais evidências disponíveis sobre o impacto da espiritualidade na saúde mental. No próximo número desta revista, esta revisão será completada por outra que abordará implicações que este conhecimento
tem para a prática clínica, para o atendimento dos pacientes que
confiam em nós na busca do alívio de seus sofrimentos.
2. RELIGIOSIDADE E
ESPIRITUALIDADE
Há várias discussões sobre as definições de “religião” e “espiritualidade”, adotaremos as definições expostas na tabela 1.
Tabela 1: Definições de Espiritualidade e Religião
Espiritualidade
Religião
Relação com o sagrado,
o transcendente (Deus,
poder superior, realidade última)a
Sistema organizado de
crenças e práticas desenvolvidos para facilitar
a proximidade com o
transcendentea
Referente ao domínio
do espírito, à dimensão não material ou
extrafísica da existência
(Deus ou deuses, almas,
anjos, demônios)b
É o aspecto institucional da espiritualidade.
Religiões são instituições
organizadas em torno da
idéia de espíritoc
Koenig HG, King DE, Carson VB. Handbook of religion and
health. 2a. ed. New York: Oxford University Press, 2012.
b
Hufford DJ. Visionary spiritual experiences in an enchanted
world. Anthropology and Humanism. 2010; 35 (2) 142-58.
c
Hufford DJ. Online An Analysis of the Field of Spirituality, Religion and Health (S/RH). Disponível em http://www.metanexus.
net/tarp
a
De um modo geral, pode-se conceber a religiosidade como uma
forma de manifestação, um subconjunto da espiritualidade. Por
sua maior facilidade de mensuração, a maioria dos estudos na área
investiga aspectos da religiosidade. Entre as dimensões de religiosidade mais estudadas estão 10:
- Orientação religiosa: pode ser intrínseca, onde as pessoas têm
na religião seu bem maior, outras necessidades são vistas como
de menor importância e colocadas em harmonia com sua crença
religiosa. A orientação intrínseca está habitualmente associada à
personalidade e estado mental saudáveis 2,4. Ou pode ser extrínseca, onde a religião é um meio utilizado para obter outros fins ou interesses, para obter segurança e consolo, sociabilidade e distração,
status e auto-absolvição. Nesse caso, abraçar uma crença é uma
forma de apoio ou obtenção de necessidades imediatas ou mais
primárias 2,4. Como afirmou Gordon Alport, psicólogo de Harvard
que criou estas categorias, enquanto na religiosidade intrínseca o
indivíduo busca servir a Deus, na extrínseca ele busca ser servido
por Ele 11.
- Organizacional: frequência aos serviços e eventos religiosos púNov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria
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por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA1 E
ANDRÉ STROPPA2
blicos como missas, cultos, reuniões espíritas. Uma das medidas
de religiosidade mais usadas em pesquisas e que demonstra consistente associação com indicadores de saúde.
- Privada ou não organizacional: orações e leituras religiosas individuais 2,4.
- Coping: estratégias R/E utilizadas por uma pessoa para se
adaptar a circunstâncias adversas ou estressantes de vida. O coping pode ser positivo ou negativo, conforme estiver associado a
indicadores de melhor ou de pior saúde (ver tabela 2). Diversos
estudos mostram que o Coping religioso positivo é usado bem
mais frequentemente que o negativo.
Embora seja muitas vezes senso comum que religião sempre esteve em conflito com a ciência e com a medicina, rigorosos estudos históricos das últimas décadas têm modificado drasticamente
esta visão. Tem sido demonstrado que grande parte dos casos
famosos de conflitos entre religião e ciência são mitos criados no
século XIX 12.
36
Isso inclui mitos ligados à medicina como a suposta proibição
de dissecção de cadáver pela igreja medieval e o alegado combate
sistemático feito pelas instituições religiosas cristãs ao uso da anestesia, especialmente por mulheres em trabalho de parto 13.
Em resumo, os estudos indicam que as relações entre ciência
e religião têm sido, ao longo da história, muito mais complexas e
habitualmente positivas do que se pensava. Um maior distanciamento, e mesmo hostilidades mútuas, é um fenômeno historicamente recente, surgido na segunda metade do século XIX e que
prevaleceu ao longo da maior parte do século XX.
Nas últimas décadas tem havido fortes sinalizações de busca de
retorno a um diálogo e interações mais construtivas entre ciência
e religião 14.
Em relação à medicina, há também uma longa história de relações entre R/E e os cuidados em saúde. Os sacerdotes e xamãs, que
talvez sejam representantes da primeira profissão a existir, eram indivíduos em que os papéis de médico e religioso se sobrepunham
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ANDRÉ STROPPA
2 Membro do NUPES, Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFJF, Mestre pela
Universidade Federal de Juiz de Fora.
ou se confundiam. Grande parte das faculdades de medicina, dos
hospitais gerais e mesmo os direcionados para os problemas mentais surgiram a partir de iniciativas de grupos religiosos cristãos e
muçulmanos. Também no Brasil, ainda hoje, grande parte dos hospitais gerais e de psiquiatria existentes estão ligados a instituições
religiosas católicas, protestantes e espíritas 15, 16.
Seguindo uma tendência maior da comunidade científica da
época, na transição entre os séculos XIX e XX, nomes importantes
da medicina defenderam e disseminaram visões bastante negativas da R/E. Experiências espirituais tenderam a ser vistas como
causas ou consequências de doenças mentais, bem como a R/E
passou a ser muitas vezes entendida como decorrente de imaturidade de personalidade, falta de cultura ou alguma neurose.
Embora estas visões tenham prevalecido ao longo do século XX,
geralmente se baseavam em observações não sistemáticas e em
certos pressupostos teóricos e/ou ideológicos 10, 16.
Nas últimas três décadas tem havido uma investigação muito
mais ampla, rigorosa e sistemática das relações entre R/E e saúde. Atualmente há milhares de estudos epidemiológicos na área,
sendo boa parte de boa qualidade. Koenig et al.17 realizaram uma
revisão sistemática dos estudos sobre R/E e saúde publicados ao
longo do século XX, obtendo 1.200 estudos. Ao revisarem a literatura produzida entre 2001 e 2010, Koenig et al.16 encontraram outros 2.100 estudos originais com dados quantitativos, o que aponta
para o significativo aumento do interesse e da importância da produção científica de pesquisadores pelo tema. Estes dois livros se
constituem nas mais amplas e sistemáticas revisões já feitas sobre
as evidências disponíveis das relações entre R/E e saúde e serão
frequentemente referenciados ao longo deste artigo.
A maioria dos estudos de boa qualidade indica que maiores níveis de envolvimento religioso estão habitualmente associados a
indicadores de bem-estar, e a indicadores de saúde física e mental.
O impacto positivo do envolvimento religioso na saúde mental é
mais intenso entre pessoas sob estresse ou em situações de fragilidade, como idosos, pessoas com deficiências e doenças clínicas, o
que aumenta sua importância para a prática médica1, 2. Por outro
lado a R/E também pode se associar a piores desfechos em saúde
quando há uma ênfase na culpa, punição, intolerância, abandono
de tratamentos médicos etc. A existência de conflitos religiosos
internos ao indivíduo ou em relação à sua comunidade religiosa
também está associada a piores indicadores de saúde 10. Além do
impacto na saúde mental, R/E também influencia aspectos da
saúde física 18. Por exemplo, mais de 120 estudos investigaram a
relação entre níveis de R/E e mortalidade. As três meta-análises já
realizadas neste tema indicam que, após controle para variáveis de
confusão como estado de saúde, a frequência a serviços religiosos
está associada a um aumento em média 37% na probabilidade de
sobrevida durante o período de seguimento dos estudos16. Um
estudo recente comparou o impacto do envolvimento religioso
sobre a mortalidade em relação aos resultados de 25 meta-análises
de intervenções bem utilizadas na prevenção de mortalidade. O
impacto da R/E sobre o mortalidade foi maior que a maioria das
intervenções (como tratamento medicamentoso da hipertensão
arterial ou o uso de estatinas) e similar ao rastreio com mamografia
em mulheres acima de 50 anos e ao consumo de frutas e vegetais19.
Embora já exista atualmente um consenso sobre o impacto da
religiosidade na saúde, tem havido uma grande discussão sobre os
mecanismos que explicariam esta influência. Normalmente se propõe um conjunto de mediadores (ver tabela 2), mas os testes empíricos destas hipóteses têm apresentado resultados inconclusivos
20
. A investigação destes mecanismos de relação entre espiritualidade e saúde é uma das principais agendas de pesquisa na área.
Tabela 2 – Mecanismos propostos para a relação R/E –
Saúde10,17,20
Hábitos de saúde: melhor dieta, menor uso de substâncias e envolvimento
com situações violentas e de risco
Suporte Social: maior e mais profunda rede social, trabalho voluntário
Estratégias cognitivas: crenças que promovem a auto-estima e provém
significado à vida e às situações estressantes
Psico-neuro-imuno-endocrinologia: baixos níveis de interleucina-6 e cortisol
Práticas religiosas: oração, perdão, meditação, transes
Coping Religioso (estratégias para lidar com problemas)
Positivo
Negativo
Tentei encontrar um ensinamento
de Deus no que aconteceu
Questionei o poder de Deus
Fiz o que pude e coloquei o resto
nas mãos de Deus
Fiquei imaginando se Deus tinha me
abandonado
Pensei como minha vida é parte
de uma força espiritual maior
Questionei o amor de Deus por mim
Busquei dar apoio espiritual a
outras pessoas
Questionei-me se minha comunidade
religiosa tinha me abandonado
Me foquei na religião para parar
de pensar em meus problemas
Pedi a Deus para que faça tudo ficar
bem
Orei para encontrar uma nova
razão para viver
Imaginei o que teria feito para Deus
me punir
Pedi perdão pelos meus erros
Não fiz nada, apenas esperei que Deus
resolvesse os problemas para mim
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3. RELIGIOSIDADE E SAÚDE MENTAL
3.1. Bem-estar e emoções positivas
Tem havido um crescente interesse da medicina e demais áreas
da saúde no que se tem chamado de saúde positiva, buscando não
apenas combater o sofrimento e incapacitação, mas almejando
também uma vida feliz, produtiva e com significado. Isto se deve
ao fato de que as pessoas não buscam apenas não ficar doentes,
mas almejam ter uma vida plena. De 326 estudos identificados por
Koenig et al (2012) acerca da associação entre envolvimento religioso e indicadores de bem-estar psicológico (satisfação com a
vida, felicidade, afeto positivo, auto-estima elevada), 256 estudos
(78,5%) encontraram uma correlação positiva e significativa entre
essas variáveis. Analisando-se apenas os 120 estudos de alta qualidade metodológica, 98 (82%) encontraram relações positivas.
Em sua maioria, essa associação entre religiosidade e bem-estar se
mantém mesmo após controlar para possíveis variáveis de confusão como situação conjugal, idade, gênero, nível educacional e
sócio-econômico10.
3.2. Abuso/dependência de álcool e outras substâncias
Em uma ampla revisão sobre religião e saúde mental, Dalgalarrondo afirma que o achado de associações entre maior religiosidade e menor abuso ou dependência de álcool ou drogas “é o
mais consistente de todos os fenômenos estudados no campo
‘saúde mental-religião’” (p.182)1 . Envolvimento religioso se associou a menor uso/abuso de álcool em 240 (86%) dos 278 estudos
identificados por Koenig et al (2012), subindo para 90% entre os
145 com melhor qualidade metodológica. Um padrão semelhante
foi encontrado em relação a abuso de drogas: 84% dos 185 estudos encontraram relação inversa entre religiosidade e uso de drogas. Estes resultados têm sido observados tanto em adolescentes
quanto em adultos, bem como em diversos países pelo mundo 16.
No Brasil, em um estudo com amostra de 3.007 pessoas, representativa da população brasileira, indivíduos que não frequentavam atividades religiosas tinham taxas de uso de álcool ao longo
da vida, de intoxicação no último ano e de abuso/dependência
que eram o dobro dos que frequentavam semanalmente. Protestantes tinham as menores frequências de uso/abuso de álcool e
indivíduos que se declararam sem religião tinham uma prevalência
de abuso/dependência de álcool que era mais de duas vezes a dos
católicos 21.
Em uma investigação de 2.287 estudantes de Campinas, a religiosidade esteve fortemente associada e menor uso de drogas
38
no último mês, mesmo após controlar para variáveis sociodemográficas. O jovem não religioso tinha 2.9 vezes mais chance de ter
usado cocaína no último mês que o que declarava ter religião. Outra variável que se destacou foi ter recebido educação religiosa na
infância, que se associou com quatro vezes menos uso de êxtase e
três vezes menos uso de medicação para “dar barato” 22.
3.3) Religiosidade e Depressão
Dos 443 estudos identificados, 271 (61%) encontraram que
maior R/E estava associada com menos depressão, recuperação
mais rápida da depressão ou que intervenções que envolvem R/E
têm melhores resultados em depressão que intervenções sem tais
elementos. Vinte e dois por cento não encontraram associação,
6% relataram associação entre R/E e maior depressão e 11% tiveram resultados mistos. Assim, embora de um modo geral R/E se
associou a menos depressão, este não é sempre o caso. O uso de
coping religioso negativo, assim como problemas em áreas com
implicações morais como uso de drogas, questões sexuais ou conflitos conjugais parece explicar parte destes resultados ligando R/E
e depressão16.
Os efeitos positivos da R/E sobre a depressão são mais intensos
em populações sob risco e vivenciando situações de estresse. Este
ano dois artigos foram publicados sobre uma investigação longitudinal (com até 20 anos de seguimento) do impacto da R/E sobre o
risco de transtornos mentais. Um grupo sob alto risco de depressão (filhos de pais com depressão moderada a grave em tratamento farmacológico) foi comparado com outro de baixo risco (filhos
de pais sem histórico de transtornos mentais). Somando os dois
grupos, filhos que frequentavam regularmente um grupo religioso
aos 10 anos de idade, tinham metade da chance de apresentarem
transtornos mentais no período entre os 10 e 20 anos de idade
em comparação com os que não frequentavam. O tamanho deste
efeito foi ainda maior entre o grupo de alto risco para depressão
onde a frequência a serviços religiosos aos 10 anos reduziu em 64%
a chance de um transtorno mental nos 10 anos seguintes 23. Em
relação especificamente à depressão, a frequência a serviços religiosos aos 10 anos não se associou a menos episódios de depressão entre os 10 e 20 anos de idade. Por outro lado, as crianças que,
aos dez anos, referiam que religião ou espiritualidade era muito
importante para eles tinham ¼ do risco de depressão nos 10 anos
seguintes em comparação aos outros. Entre os filhos de pais com
depressão, o risco de um episódio de depressão entre os 10 e 20
anos de idade era apenas 1/10 dos que não consideravam a religião
como algo importante. Este efeito protetor se verificou principalmente contra recorrência de depressão 24.
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3.4) Religiosidade e Transtorno Bipolar (TB)
Dentre os principais transtornos mentais, o TB está entre aqueles
que contam com menos estudos sobre R/E na literatura, talvez pelas controvérsias e dificuldades diagnósticas, que perduraram por
algumas décadas. Uma revisão sobre o tema encontrou 122 artigos
publicados sobre o tema, mas a maioria se tratava de relatos de
casos ou artigos de discussão. Há poucos estudos epidemiológicos
de qualidade. Os existentes apontam que pacientes bipolares tendem a apresentar maior envolvimento religioso/espiritual, maior
frequência de relatos de conversão e experiências de salvação e
uso mais frequente de coping religioso e espiritual (CRE) que pessoas com outros transtornos mentais. Indicam ainda, uma relação
frequente e significativa entre sintomas maníacos e experiências
místicas. Emerge destes estudos que o TB e a R/E possuem intensa
e complexa inter-relação que precisa ser melhor explorada 25.
Recente estudo realizado no Brasil com 168 pacientes bipolares em tratamento ambulatorial encontrou alto nível de envolvimento religioso, que não se associou a sintomas maníacos, mas se
relacionou fortemente com menores níveis de depressão e maior
qualidade de vida 26.
3.5) Transtornos Esquizofrênicos
As relações entre espiritualidade e psicose são bastante complexas, envolvendo o nível de crenças religiosas entre os pacientes, a
diferenciação entre experiências religiosas e transtornos mentais
de conteúdo religioso, bem como o uso e impacto do coping religioso.
Embora até em torno de 30% das psicoses possam ter sintomas
com conteúdo religioso, isso não implica que as experiências religiosas sejam geralmente psicóticas 27. Na realidade, experiências
religiosas que se assemelham a sintomas psicóticos como alucinações e vivencias de influência podem se associar a bons indicadores de saúde, o que torna essencial a realização de um adequado
diagnóstico diferencial 28.
Estudos recentes têm demonstrado que é muito comum a utilização da R/E como um recurso de coping entre pacientes com
esquizofrenia. Embora este coping possa ser positivo e negativo,
a grande maioria dos pacientes utiliza formas positivas de coping
religioso, o que se associou com melhor evolução após três anos
de seguimento 29. Em resumo, está clara a importância da R/E espiritualidade para pacientes com transtornos esquizofrênicos, mas
ainda há muitos aspectos que merecem ser melhor investigados.
ticamente a interrupção voluntária da vida, a R/E também está
associada a menor frequência de vários dos fatores de risco para
suicídio (p.ex.: depressão, uso de álcool e drogas, isolamento social, falta de sentido na vida etc.). Isso faz com que seja natural
investigar o impacto da R/E sobre o comportamento suicida 10, 30.
Dos 144 estudos quantitativos que investigaram o tema, 106 (75%)
encontraram menor ideação e comportamento suicida entre os
indivíduos mais religiosos 16.
4. CONCLUSÕES
R/E tem se tornado um tema de crescente interesse entre clínicos e pesquisadores na área de saúde. Entretanto, devido à falta de
treinamento em temas ligados à relação entre R/E e saúde, grande
parte das evidências disponíveis ainda são desconhecidas por muitos profissionais de saúde e muitos têm dificuldades em lidar com
a R/E em situações da prática clínica. Atualmente já há um amplo,
diversificado e robusto corpo de evidências demonstrando a relevância e o impacto da espiritualidade sobre a saúde. Os estudos
demonstram que a religiosidade é um elemento importante na
vida da maior parte da população mundial, principalmente entre
aqueles enfrentando adversidades como o adoecimento. Dentre
os impactos da R/E sobre a saúde, tem sido bem documentado
o impacto sobre a saúde mental. Há evidências robustas de que
pessoas com maiores níveis de R/E apresentam maior bem estar e
menores níveis de depressão, abuso/dependência de substâncias
e de comportamentos suicidas. Embora necessitando de maiores
estudos, a R/E é algo importante na vida de pacientes com TB e
outras psicoses, havendo evidências sugestivas de impacto benéfico sobre a evolução destes transtornos mentais. Atualmente, a
tendência das pesquisas não é mais em investigar se há relações
entre R/E e saúde, mas em identificar os mecanismos desta relação
e como aplicar estes conhecimentos na prática clínica 16.
3.6) Comportamento suicida
Além das principais religiões do mundo condenarem enfaNov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria
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ANDRÉ STROPPA2
Fontes de financiamento: Não existem fontes de auxílio à pesqui­
sa ou financiamentos relacionados ao trabalho.
Conflito de interesses: Inexistente.
Alexander Moreira-Almeida
Rua Itália Cautiero Franco 497
Granville
36036-241 - Juiz de Fora – MG
[email protected]
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bves
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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por FERNANDO PORTELA CÂMARA1
CÉREBROS, MÁQUINAS E PSIQUIATRIA
[PSIQUIATRIA COMPUTACIONAL]
BRAIN, MACHINES AND PSYCHIATRY
[COMPUTATIONAL PSYCHIATRY]
Resumo
A ideia de que os processos mentais são computacionais e, por­
tanto, reprodutíveis artificialmente trouxe um grande impulso para
a criação da Inteligência Artificial e se tornou um marco teórico que
revitalizou a psicologia cognitiva, o conexionismo, a lingüística, enge­
nharia biomédica e outros campos. A psiquiatria é uma disciplina
que muito se aproxima da ciência computacional e sua interação
com essa campo científico é um fator de desenvolvimento e evolu­
ção para essa especialidade médica. Nesse artigo discutimos alguns
aspectos teóricos e algumas propostas de modelos para o que po­
demos chamar de psiquiatria computacional.
Palavras chaves: psiquiatria – computação – cognitivismo –
processadores neurais – transtornos mentais e comportamentais
Abstract
The idea that mental processes are computational and therefore
reproducible artificially brought a major boost to the creation of Ar­
tificial Intelligence and became a theoretical framework that has re­
vitalized cognitive psychology, connectionism, linguistics, biomedical
engineering and other fields. Psychiatry is a discipline that resembles
very closely the computational science and its interaction with this
science is a factor of development and evolution for that medical
specialty. In this article we discuss some theoretical and some pro­
posed models for what we call computational psychiatry.
Keywords: psychiatry - computing - cognitivism - neural proces­
sors - mental and behavioral disorders
DE METÁFORAS À UMA
TEORIA CIENTÍFICA
A
corrente filosófica que considera o homem como um
mecanismo que funciona por si mesmo (autômato)
é muito antiga, e remonta aos gregos clássicos e aos
chineses antigos. São muitos os relatos de autômatos e
42
andróides (autômatos de forma humana) maravilhosos animados
por tubos hidráulicos e rodas dentadas. Essa filosofia mecânica
tornou-se influente no século XVII quando Descartes, em seu tratado De Homine, defendeu que os animais eram máquinas de carne, enquanto o homem, embora também uma máquina, possuia
uma alma que lhe permite a reflexão. Ele comparava o organismo
a um mecanismo de relojoaria e a ação dos nervos e vasos a mecanismos hidráulicos, usados em brinquedos que já em sua época
maravilhavam os europeus. Essa ideia radicalizou com Julien Offray
de La Mettrie que, na sua obra L’Homme Machine (1748), considerava a alma como uma função global emergente da maquinaria
biológica, ideia continuada pelo padre Étienne Bonnot Condillac
que, em seu Traité des Sensations (1754), comparava o homem a
uma estátua à qual foram dados, “por fantasia, as funções sensitivas”. Condillac procurava explicar, dessa forma, como o homem
chegava a ter conhecimento de si mesmo, distinguir as coisas exteriores e reconhecer os limites do conhecimento. Esse é o primeiro projeto de psicologia biológica que temos notícia, e ainda
com uma abordagem sistêmica, pois propõe examinar a questão
do ponto de vista das propriedades da lógica dos sistemas, sem
levar em consideração se estes são vivos ou não.
O século XIX foi relativamente calmo com relação a essas especulações, porém, com o advento da telefonia no inicio do século
XX, a ideia retornou, agora como modelo teórico que proporcionava insights sobre a cognição humana e marcos referenciais para
novas idéias sobre a natureza da mente. Popularizou-se a noção de
que o cérebro funcional assemelhava-se a um quadro de ligações
telefônicas auto-operante, ligando entradas sensoriais com saídas
motoras em diferentes configurações, e a aprendizagem consistiria
em ligar entradas e saídas em diferentes combinações. Essa ideia
entre cérebro e painel de ligação foi explicitamente enunciada por
autores como Karl Pearson (The Grammar of Science, 1892), e implicitamente nos escritos de Sherrington, na Inglaterra, Thorndike,
nos Estados Unidos, e Pavlov, na Rússia.
Em 1943, a demonstração que funções lógicas podiam ser de-
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FERNANDO PORTELA CÂMARA
1 MD, PhD, Professor Associado, UFRJ
Coordenador, Depto Informática da ABP
sempenhadas por neurônios, por Warren McCulloch e Walter
Pitts 1, selou definitivamente a natureza computacional das operações em redes neuronais, e serviu à inspiração do desenho dos
atuais computadores por John Von Neumann 2.
A evidência de que a aprendizagem – e os processos cognitivos
em geral – ocorrem nas conexões ou sinapses entre neurônios, foi
a descoberta revolucionária de uma “lei” natural que reconfigurou
a ciência cognitiva, a neurociência e a engenharia biomédica 3,4,5,6.
Muitas funções nervosas são hoje reconhecidas como computáveis ou algorítmicas, guardada as devidas distinções e levando em
consideração que a linguagem dos computadores digitais não é a
mesma dos neurônios. Estamos falando aqui de modelos suficientemente isomórficos para permitir o estabelecimento de marcos
conceituais consistentes.
Os desenvolvimentos da computação e de certos setores da
neurociência cognitiva correram paralelamente e convergiram, finalmente, em um conhecimento que é compartilhado em grande
parte, incluindo uma linguagem comum. A noção de computabilidade tornou-se objeto comum às ciências da computacção,
psicologia cognitiva, lingüística e teorias de aprendizagem neurais.
Vejamos brevemente alguns dos elementos que contribuíram
para essa convergência de conhecimentos.
O primeiro é o conceito revolucionário de informação. A ciência
do século XIX desenvolveu o conceito de energia, sua utilização
em trabalho e suas relações com a matéria. Matéria e energia passaram a ser os fundamentos de tudo quanto existe e já existiu.
Todo pensamento cientifico e médico foi assentado nessas noções
fundamentais. Na década de 1940, Claude Shannon desenvolveu a
Teoria da Informação (ou Comunicação) consolidando a universalidade do novo ente. A partir daí descobriu-se que o universo não
pode ser concebido apenas com base em matéria e energia, uma
terceira noção se impunha, a de informação. Informação não é
matéria e nem energia, é informação, enfatizava Norbert Wiener 7.
Ela pode ser medida, identificada, mas não pode ser isolada como
uma substância ou ter um equivalente de energia mensurado; não
é nem uma coisa e nem outra, é um ente próprio, informação. Essa
noção primitiva introduz a noção de organização, transmissão de
ordem e armazenamento de padrões. Não se pode isolar uma sensação como uma substância ou uma modificação de energia, ela é
uma subjetividade que adquire significado quando tratada como
informação.
O segundo elemento desse conhecimento é a noção de computador. Essas máquinas digitais que operam em código binário, são,
na verdade, calculadoras aritméticas ultra-rápidas de alta precisão,
uma tarefa para qual o cérebro é ineficiente, extremamente lento
e impreciso. Durante séculos aperfeiçoamos o sistema de notação numérica e regras para operações, mas finalmente delegamos
essa função às máquinas, que assim passaram a serem apêndices
para esse tipo de operações em que a mente é pouco competente. Como notou Von Neumann 2, o cérebro não utiliza o mesmo
código dos computadores, e tampouco usa o sistema posicional
que nos permite ordenar os números. O cérebro realiza operações
numéricas de forma ainda desconhecida, nas quais o significado
é transmitido pelas propriedades estatísticas da mensagem. Em
outras palavras, a linguagem que o cérebro utiliza pode não ser
a da matemática, mas seja como for, é de natureza computável.
Von Neumann observou também que a ineficiência aritmética do
cérebro é compensada pelo desenvolvimento de um alto nível de
lógica. De fato, é a lógica que permite ao sistema nervoso regular
as funções organísmicas, integrar a informação que chega do ambiente e adaptar-se ao meio em que vive e estabelecer formas de
comunicação. Quando o leigo se admira com computadores realizando atos inteligentes, a máquina está apenas computando funções lógicas, as mesmas que nossa mente utiliza. A importância
da lógica na linguagem da atividade nervosa pode ser facilmente
apreendida quando nos deparamos com um delírio ou uma alucinação, e logo percebemos tratar-se de uma alteração lógica na
informação elaborada no sistema nervoso do doente.
O terceiro e último exemplo de computabilidade e cognitivismo, dentre outros mais que omitiremos aqui, é o de considerar o
cérebro como um modelador. Isso foi colocado em discussão na
seminal obra de Kenneth Craik 8, onde ele considerou o sistema
nervoso como “um computador capaz de modelar paralelamente
os eventos externos”, sugerindo que esses “modelos internos” seria
a característica básica da mente e das explicações que fazemos
das coisas. O cérebro elabora modelos da realidade segundo o
que experimenta da interação com o seu meio e então atua de
acordo com esse modelo, enfrentando situações semelhantes ou
que tem algum ponto em comum, mas que não é idêntica9. Desse
modo ele atua como um computador, programado para agir de
certa forma, e generaliza esse modelo para outras situações não
exatamente idênticas, e com isso tem uma probabilidade razoável
de adaptar-se com maior economia de tempo e energia do que
teria se tivesse de elaborar novas habilidades. Durante o desenvolvimento do organismo há uma fase de aprendizagem e adaptação
que completa o desenvolvimento do cérebro, durante o contato
com informação ambiente. O organismo incorpora modelos pré-fabricados e outros que terá de completar ou desenvolver com
sua experiência no meio em que vive. O ser humano, contudo,
constantemente tem de lidar com informações novas e é solicitaNov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria
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por FERNANDO PORTELA CÂMARA1
do a produzir e criar, o que implica em aprendizagem, armazenamento e geração de novas informações, e isso requer um grau de
plasticidade cerebral único na espécie. O cérebro humano torna-se, assim, vulnerável a sobrecargas e distribuição de informação, o
que pode vir a impactar o desempenho mental e comportamental
do indivíduo.
PROCESSADORES NEURAIS
E TRANSTORNOS MENTAIS.
O OBJETO DA PSIQUIATRIA.
A ideia de que o cérebro está formado por processadores é
hoje o modelo funcional mais efetivo que dispomos. Com efeito,
o cérebro ativo comporta-se como um mosaico de processadores que operam paralelamente e interagem em variados graus, e
a neuroanatomia das vias cerebrais nos mostra isso. Os estereótipos comportamentais, os componentes afetivos e suas conexões
sensório-motoras e autônomas elaboram-se dentro da organização cerebral, no nível subcortical, automático, enquanto na esfera
cortical desenvolvem-se processadores que fazem interface com o
meio ambiente (analisadores corticais, memória), integra informação sensório-motora, organiza o comportamento, motiva e regula
os afetos, elabora o pensamento e constrói modelos cognitivos do
mundo, abrindo-se a consciência. Ambos os níveis dialogam entre
si e interferem um no outro. No homem, a civilização e a educação desenvolveram inibições corticais sobre as estruturas mais
profundas, permitindo um controle predominante da consciência
sobre os impulsos e automatismos, embora sujeitos a irrupções
emocionais transitórias e relaxamento temporário das inibições.
No sujeito em que esse delicado equilíbrio esteja comprometido,
desorganiza-se em anomalias do pensamento, humor e o comportamento.
Esses processadores dividem-se basicamente em dois tipos:
• Processadores com programação fixa estabelecidos durante
o desenvolvimento do sistema nervoso, que em sua maioria são
subcorticais. Esses processadores são determinados geneticamente, organizados em territórios neuroquímicos, programados por
evolução a partir de protótipos básicos que vão se repetindo e diversificando segundo evoluem os organismos para modelos mais
complexos. São eles que sustentam a atividade nervosa, do mais
simples invertebrado ao cérebro humano, e não estão implicados
em aprendizagem.
• No território cortical, temos processadores com propriedade
de aprendizagem, auto-programados através da experiência (com
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o meio) e de descrição (aquisição de informação armazenada
em outros organismos). Aí também existem processadores com
programação geneticamente fixada, como, por exemplo, as áreas
implicadas na formação da linguagem articulada e do sentido da
linguagem. O córtex pré-frontal, área neocortical cujo desenvolvimento é notável no Homo Sapiens, gerencia a atividade nervosa
superior em torno de uma singularidade que denominamos ego. É
no neocortex que uma intensa atividade de aprendizagem se realiza, limitadamente nos primatas e exuberantemente nos humanos.
O conceito de processador neural é conceitual e não fisiológico, e envolve a modelagem em computador, portanto, tem a
vantagem de ser testado com precisão, pois, a precisa descrição
lógico-matemática desses modelos permite inferências mais refinadas e exploração de hipóteses efetivas. Além disso, têm ainda
a vantagem de serem éticos, pois, certos experimentos que não
são possíveis em humanos podem ser conduzidos em modelos
computacionais com razoável confiabilidade.
O neocórtex e seu papel regulador sobre os estereótipos comportamentais e afetivos das regiões subcorticais e seu papel de gerente da atividade cognitiva, é o objeto da psiquiatria e substrato
da ação do psiquiatra. Sua alteração por lesão, atrofia, insuficiente
irrigação ou intoxicação, déficit funcional, ou insuficiente desenvolvimento cognitivo por falha de aprendizagem, pode afetar a
regulação subcortical deixando a descoberto e fora de controle
processadores dessa região, cujo automatismo passa a se repetir
incessantemente interferindo gravemente na atividade mental. Os
processos obsessivo-compulsivos, os surtos alucinatórios e delirantes, os transtornos de ansiedade, do impulso, e outros teriam sua
origem nessa insuficiente regulação.
Em psiquiatria, esse fenômeno pode ser o modelo padrão de
causalidade da doença mental. De fato, podemos notar como os
estados obsessivo-compulsivos, os estados de ansiedade, os estados delirantes e alucinatórios, os estados maníacos, etc., caracterizam-se como processos que se repetem ciclicamente, sugerindo
uma evidente falha na regulação e modulação de processadores
que, em condições normais, participam integrativamente da sustentação da atividade cerebral e regulação do comportamento.
Essa falha regulatória muitas vezes manifesta-se conjuntamente
com alterações na elaboração cognitiva. Não podemos considerar
esse fenômeno de autonomização funcional como a causa da doença mental, senão a falha do elemento que o regula, implicando
a participação do neocórtex. O esforço do psiquiatra está em usar
métodos que reforcem as vias corticais no seu papel regulador, ou
corrija sua deficiência a partir de um controle externo, sob a forma
de terapias farmacológicas, biofísicas ou cognitivas.
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Considere o exemplo do transtorno obsessivo-compulsivo
(TOC). O pro­cessador implicado provavelmente é uma função
auxiliar utilizada nos processos de aprendizagem, que em animais
como repteis e anfíbios participam de estereotipias e comportamentos repetitivos. No gênero humano e algumas espécies de primatas, esses atos compulsivos, devidamente controlados, podem
ser importantes para se aprender uma tarefa ou memorizar algo,
cuja repetição por um curto período de tempo proporciona o reforço necessário à aprendizagem. Fora desse contexto, a função
interfere na economia nervosa e torna-se patológica para o sujeito
humano. Não é difícil perceber que a nosografia psiquiátrica é uma
ampla descrição de padrões computacionais que, ao se destacarem da economia mental, tornam-se centros de atividades autônomas indesejáveis.
A autonomização desses processamentos desagrega a consciência e aí reside a perturbação mental propriamente dita: o sofrimento, a angústia, a perda da função social, do rendimento intelectual
e laboral, as atitudes involuntárias, etc. A sua causa parece ser única – a perda da capacidade reguladora e integradora do córtex
sobre processadores básicos que mantém a unidade do funcionamento cerebral.
Modelos efetivos em psiquiatria e racionalização do tratamento
A coordenação de vias de transmissão de informação, tráfego e
distribuição não estão sujeitas apenas à arquitetura das conexões
sinápticas, mas também a sinais químicos que orientam e regulam
a transmissão, e por isso a farmacologia de neurotransmissores e
sua relação com vias e áreas cerebrais tem se mostrado útil e proporcionado um avanço real na psiquiatria.
Um fato que aparece com frequência quando observamos
esses processadores neurais é que eles compartilham diferentes
funções. Desconhecemos como a atividade psíquica é elaborada,
e julgamos que ela seja uma função própria, especial, e por isso
cometemos equívocos pelo fato de interpretarmos certos resultados segundo essa crença. Por exemplo, ao administrarmos um antipsicótico a um sujeito que delira e alucina, podemos regular sua
senso-percepção, mas ao mesmo tempo podemos provocar um
descontrole motor nesse indivíduo. Esse fato, que é da experiência
de todo psiquiatra, apenas mostra que as atividades psíquica, sensitiva e motora formam uma unidade nervosa. Além disso, quase
todas as estruturas cerebrais têm um envolvimento motor, e virtualmente todo córtex (excetos as áreas auditiva e visual primária)
dirige-se para a ganglia basal 10,11.
A ocorrência de automatismos motores é evidente, por exemplo, no TOC (estereotipias compulsivas como verificação e
lava-mãos) e síndrome de Tourette (movimentos involuntários
acompanhados de estereotipias verbais), ao lado de idéias e pensamentos repetitivos reverberantes. Essas alças reverberantes ou
loops são um fenômeno bem conhecido em computação (o chamado “problema da parada”) e foi o principal problema que os
primeiros programadores se defrontaram, e sua presença típica
na maioria dos transtornos mentais é um dos princípios que se
soma às evidencias de computabilidade dessas funções nervosas.
No exemplo do TOC, o processador envolvido localiza-se na via
córtico-estriatal-palidal-talâmica, e a alça reverberante que aí se
instala decorre de alguma facilitação, pois não há alteração neuroquímica nesta via como, p. ex., observa-se nas vias envolvidas na
depressão e esquizofrenias. Os inibidores seletivos de recaptação
da serotonina (ISRS) não são usados no TOC para compensar a
falta de serotonina 12, mas como pulsos ou estímulos que ajudam o
caudado a reajustar a transmissão da serotonina e assim quebrar o
loop que parasita funcionalmente o processador córtico-estriatal-palidal-talãmico.
Muito dessas hipóteses podem vir a ser esclarecidas em definitivo com a construção de modelos computacionais onde possamos
simular o funcionamento dessas vias, seus modos de alteração, e
verificar como é possível atuar sobre elas para se reparar sua regulação, compensar seus déficit ou mesmo reprogramá-las. Os
psiquiatras ainda não se aproximaram da ciência computacional
como ferramenta para pesquisa patogenéticas e terapêuticas, o
que certamente proporcionaria protocolos mais aperfeiçoados
para a pesquisa de terapias racionais (farmacológicas, biológicas,
e biofísicas).
CONCLUSÃO
A incapacidade de processar adequadamente a informação psíquica reside em algum tipo de déficit no diálogo entre neocortex
e estruturas subcorticais que computam os estereótipos básicos
que servem de andaime para a organização psíquica e comportamental. A falha na regulação e modulação desses processadores
pelo neocortex caracterizaria as doenças mentais, diferenciando-as, embora isso não seja rigoroso e nem determinístico, das doenças neurológicas, em que a ganglia basal é primariamente afetada.
Por tal razão, essa hipotética falha regulatória muitas vezes manifesta-se conjuntamente com alterações na elaboração cognitiva,
afetando a estrutura do ego. A hipótese da causa da doença mental como uma pane na regulação cortico-subcortical não é nova,
porém, a evidência de que a organização dinâmica do cérebro é
computável e os métodos que hoje dispomos para rastrear a atividade de populações de neurônios in vivo, traz a psiquiatria para o
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por FERNANDO PORTELA CÂMARA1
foco da neurociência. A doença mental em si mesma é funcional,
e o esforço da psiquiatria está em usar métodos que reforcem o
papel regulador do córtex, ou corrija sua deficiência a partir de um
controle externo, , sob a forma de terapias racionais farmacológicas, biofísicas ou cognitivas.
Referências
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•
Declaração de conflito de interesse:
O autor declara não haver conflito de interesse em relação a
este trabalho e fontes de financiamentos.
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Contra
Venlif
VENLIF
Indicaç
de Ansi
com IM
instável
glaucom
emante
pacient
médica
haloper
sonolên
distúrbi
ser divid
Oaume
modera
ministra
esquem
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Endereço de corrspondência:
Fernando Portela Câmara, MD, PhD
Professor Associado, UFRJ
Coordenador, Depto Informática da ABP
e-mail: [email protected]
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