Ponto crítico Ceticismo perdido

Propaganda
ponto
crítico
Em busca do
ceticismo perdido
Maurício Tuffani
J
á desisti de reclamar do uso indiscriminado dos termos “cético” e “ceticismo” pelos meios de comunicação em
geral, que têm sido associados frequentemente ao sentido de oposição e descrença
em relação a uma ideia ou tese específica.
Por exemplo, têm sido chamados de “céticos do darwinismo” aqueles que são partidários do criacionismo, da mesma forma
como têm sido denominados “céticos do
aquecimento global” os que discordam da
tese da origem antropogênica do aumento
médio da temperatura atmosférica desde
o início da Revolução Industrial. Desse
modo, o uso do senso comum para essas
palavras acaba sendo enganador em um
contexto em que discordantes de uma tese
são apresentados como se fossem “advogados do diabo”, o que não é o caso dos
dois exemplos aqui mostrados.
Não vejo problema, por exemplo, quando são qualificados como céticos aqueles
que, mesmo sem abordagens filosóficas,
submetem à prova, por princípio, alegações
feitas com pretensões de conhecimento.
Eu mesmo, há alguns anos, escrevi uma
reportagem sobre esse tipo de militância
cética (“Os inquisidores da razão”, Galileu,
nº 116, março de 2001). Por outro lado,
não têm nada a ver com ceticismo aqueles, inclusive cientistas, que defendem
posições dogmáticas dentro da ciência,
ainda que para contestar misticismos e
charlatanismos.
A questão aqui é outra. Sobrevive nos
meios jornalísticos – tanto nos acadêmicos,
como na linha de frente das redações – uma
retórica em torno de seu ethos profissional
que pressupõe a atitude de ceticismo no
50 unespciência .:. julho de 2010
sentido de distanciamento crítico em relação aos temas a serem reportados. Isso
acontece mesmo após já ter sido deixada
para trás, como epistemologicamente ingênua, a concepção de que o jornalismo
teria como objetivo a “isenção”, a “imparcialidade” e coisas do gênero. De um modo
ou de outro, as elaborações teóricas mais
recentes para a fundamentação do que
deve ser a objetividade jornalística têm
apelado para o ceticismo em seu sentido
de oposição ao dogmatismo.
Nessa busca de fundamentos para a objetividade jornalística, prevalece muitas
vezes uma concepção banalizadora do ceticismo, apesar dos esforços para desfazer
os equívocos em torno dele. Curiosamente,
Na busca de fundamentos
para a objetividade
jornalística, há muitas
vezes uma visão
banalizadora dessa
corrente filosófica
a fonte comum de muitos estudos acadêmicos sobre esse tema é o livro Teoria do
Conhecimento, de Johannes Hessen (1889-1971), que acaba sendo um suporte de
toda essa banalização. Segundo esse autor:
“O cepticismo encontra-se, fundamentalmente, na antiguidade. O seu fundador
é Pírron de Élis (360-270[a.C.]). Segundo
ele, não se consegue chegar a um contacto
do sujeito com o objecto. À consciência
cognoscente é impossível apreender o seu
objecto. Não há um conhecimento. De dois
juízos contradictórios um é, finalmente tão
exactamente verdadeiro como o outro. Isto
significa uma negação das leis lógicas do
pensamento, especialmente do princípio
de contradição”. Johannes Hessen, Teoria
do Conhecimento. Tradução de António
Correia. Coimbra: Arménio Amado, Editor, 1979, págs. 31-32.)
Teremos muito pouco a aprender com o
ceticismo se dependermos de interpretações
como essa, que não passa de expressão
de cultura de almanaque, em que pese o
autor ter sido professor de uma instituição
séria como a Universidade de Colônia, na
Alemanha. Infelizmente, ela não é um caso isolado. Mas temos bons estudos sobre
o assunto, inclusive no Brasil, como o de
Oswaldo Porchat Pereira, de quem copio
as seguintes palavras:
“Se o cético pirrônico caracteriza sua
filosofia como zetética, como uma investigação permanente, é porque o renascer frequente do desafio dogmático e a
mesma impossibilidade de uma solução
pretensamente definitiva para tal desafio
– precisamente porque ela seria também
dogmática – deixam a problemática filosófica necessariamente em aberto, convidando continuamente o cético ao exercício
de sua investigação crítica. Nem positiva
nem negativamente tem o cético qualquer
problema por resolvido”. (Oswaldo Porchat
Pereira, Rumo ao Ceticismo. São Paulo:
Editora Unesp, 2007, p. 226.)
Enfim, mesmo que não sejamos céticos,
temos muito a aprender com o ceticismo,
a começar pelo que ele significa.
Download