Caso sem história ancestral associada

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Oftalmologia - Vol. 34: pp. 371 - 378
Manifestações Oculares da Polineuropatia
Amiloidótica Familiar Tipo Finlandês:
– Caso sem história ancestral associada
Sara Vaz-Pereira 1, Leonor Duarte de Almeida 2, Jorge Sousa Lé 2, M. Monteiro-Grillo 3
1 – Interna do Internato Complementar de Oftalmologia do HSM
2 – Assistente Graduado de Oftalmologia do HSM
3 – Director do Serviço de Oftalmologia do HSM
Clínica Universitária de Oftalmologia – CHLN - Hospital de Santa Maria, EPE - Director: Prof. Doutor M. Monteiro-Grillo
[email protected]
RESUMO
Introdução e Objectivos: A polineuropatia amiloidótica familiar tipo finlandês (PAFF -síndrome de Meretoja), é uma doença sistémica hereditária encontrada essencialmente em
doentes com ascendentes de origem finlandesa. É rara na Finlândia (cerca de 400 casos),
sendo singular noutras regiões do globo. Traduz uma mutação no gene da gelsolina,
condicionando depósito extracelular de amilóide. Fenotipicamente envolve alterações
oftalmológicas, neurológicas e cutâneas. Os autores expõem as alterações oculares
desta patologia, num caso sem ascendentes nórdicos conhecidos. Material e Métodos:
Descrição retrospectiva de um caso clínico. Caso clínico: Doente do sexo feminino,
59 anos, sem antepassados nórdicos. História de PAF tipo finlandês documentada por
testes genéticos, screening familiar e registo fotográfico familiar. Ao exame objectivo
apresentava cútis laxa, dermatocalásia, diminuição acuidade visual OE, teste de Schirmer
diminuído e distrofia reticulada da córnea tipo II ODE, mais evidente em OE. A paquimetria e a histerese corneana estavam diminuídas em OE; microscopia especular
sem alterações. A biomicroscopia ultra-sónica revelou em detalhe as alterações
corneanas. Conclusões: A PAFF é uma doença de início tardio e lentamente progressiva.
O tratamento oftalmológico da patologia querática é essencialmente paliativo. A existência de distrofia tipo lattice deverá alertar para a associação de patologia sistémica,
nomeadamente PAFF, sendo necessária vigilância regular, sistémica e oftalmológica.
ABSTRACT
Introduction and Purpose: Familial Amyloid Polyneuropathy of the Finnish type
(FAF) also known as Meretoja Syndrome, is a systemic hereditary disease mainly
found in patients with Finnish ancestors. It is rare in Finland (about 400 cases) and
even more peculiar in the rest of the world. The disease is due to a mutation in the
gelsolin gene causing extracellular amyloid deposition. Clinically it is characterized
by ocular, neurological and skin changes. The authors report the ocular manifestations
of this disease in a patient without known Finnish relatives. Material and Methods:
Trabalho apresentado na forma de Poster no 50.º Congresso da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (Porto,
8 de Dezembro de 2007).
VOL. 34, ABRIL - JUNHO, 2010
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Sara Vaz-Pereira, Leonor Duarte de Almeida, Jorge Sousa Lé, M. Monteiro-Grillo
Retrospective case report. Case report: It is described the case of a 59 year-old woman
without Finnish ancestors. FAF had already been documented by genetic testing, family
screening and familial photographic record. Ophthalmic examination revealed cutis
laxa, dermatochalasis, reduced visual acuity in OS, reduced Schirmer test and type II
corneal lattice dystrophy, more evident in OS. There were reduced pachymetry values and
corneal hysteresis in OS, but no changes were found in specular microscopy. Ultrasonic
biomicroscopy has shown in detail the corneal alterations. Conclusions: FAF is a late start
and slowly progressive disease. The treatment for the corneal disease is mainly palliative.
The presence of corneal lattice dystrophy should alert for associated systemic disease and
regular systemic and eye vigilance is recommended.
Palavras-chave: Polineuropatia amiloidótica familiar tipo finlandês; Gelsolina; Distrofia reticulada da córnea.
Key words: Familial Amyloid Polyneuropathy of the Finnish type; Gelsolin; Corneal lattice dystrophy.
Introdução
Material e Métodos
A
Caso clínico
polineuropatia amiloidótica familiar (PAF)
tipo finlandês (PAFF), também designada
por PAF tipo IV, é uma doença sistémica rara
de transmissão autossómica dominante descrita por Meretoja em 1969 9,16-17. Estão descritos cerca de 400 casos na Finlândia, existindo aproximadamente 15 casos descritos fora
deste país, nomeadamente no resto da Europa,
EUA e Japão 1,9,19-20.
A doença é causada por uma mutação pontual
no codão 654 (GAC  AAC: G654A) do gene
que codifica a gelsolina (cromossoma 9q32-34),
o que leva à substituição de asparagina por
aspartato no resíduo 187 (Asn-187) 6-7,10,12,18-19.
A alteração descrita leva à libertação, polimerização e depósito extracelular desta molécula
amiloidogénica, designada por Agel Asn-187 13.
A PAFF caracteriza-se pelo aparecimento
indolente 9 de uma tríade de manifestações:
oculares, neurológicas e cutâneas 9,10,16. A distrofia reticulada da córnea tipo II é a alteração
mais típica e mais precoce, surgindo na 3.ª e
4.ª décadas 9,16. Na quinta década surge habitualmente a neuropatia periférica e craniana
(nervo facial) 9 e as alterações cutâneas, nomeadamente cútis laxa 9,16.
Os autores expõem as alterações oculares
desta patologia num caso sem história ancestral
conhecida.
372
Doente do sexo feminino, de 59 anos, raça
caucasiana, oriunda de uma família do centro
de Portugal (Lameiras), sem antepassados
conhecidos oriundos de países com PAFF.
Na altura da nossa observação, a doente apresenta PAFF já documentada por técnicas de
minisequenciação de DNA, tendo sido detectada
a mutação pontual no codão 654, habitualmente
encontrada nos doentes finlandeses 4,6,7. Foi
elaborada a árvore genealógica (Fig. 1) e realizado fotográfico familiar (Fig. 2). A destacar que
o screening familiar foi efectuado no contexto
das alterações neurológicas encontradas num
familiar (III.9).
I
II
1
1
2
2
3
4
5
6
7
8
9
III
1 2 3 4 5
IV
6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 2425
1
2 3 4 5 6 7 8
26 27
9 10
1
Fig. 1 – Árvore genealógica. O caso em estudo é assinalado
com uma seta. Os indivíduos doentes estão representados a
preto e os falecidos com um traço.
OFTALMOLOGIA
Manifestações Oculares da Polineuropatia Amiloidótica Familiar Tipo Finlandês: Caso sem história ancestral associada
Fig. 2 – Indivíduo II.9.
A doente (III.26) referia queixas de flutuação
transitória da visão e ulceração da córnea desde
os 40 anos, tendo, na altura, sido diagnosticada
infecção pelo vírus herpes. Desde os 50 anos
que nota fraqueza dos músculos da face bila-
Fig. 3 – Indivíduo III.26 – doente em estudo.
teral e fotofobia. Nos antecedentes pessoais há
a referir hipertensão arterial sistémica e o seguimento regular em consulta de Neurologia.
Na inspecção da face destaca-se cútis laxa e
dermatocalásia (Fig. 3).
À observação oftalmológica apresentava
melhor acuidade visual corrigida de 10/10 no
olho direito (OD) e 8/10 no olho esquerdo. Em
observações subsequentes verificou-se que a
acuidade visual no olho esquerdo (OE), testada
sempre com a melhor correcção, oscilava entre
os 8/10 e os 10/10. Ao exame biomicroscópico
em ambos os olhos observava-se queratite
ponteada inferior e distrofia reticulada da
córnea tipo II, mais evidente no olho esquerdo
(Fig. 4). A pressão intra-ocular nos dois olhos,
medida por aplanação, era de 16 mmHg.
O fundo ocular não apresentava alterações,
nomeadamente do disco óptico, mácula ou
arcadas vasculares. O teste de Schirmer I era
de 0 mm aos 3 minutos em ambos os olhos. A
microscopia especular não revelou alterações e
a paquimetria tinha um valor médio de 540 µm
em OD e 510 µm em OE. Na ecografia ocular
(modo A e B), não foram detectados depósitos
vítreos de proteína amilóide (Fig. 5).
Para avaliação detalhada das estruturas do
segmento anterior, foi efectuada biomicroscopia
ultra-sónica (UBM). A UBM mostrou estruturas
de aparência filiforme/reticulada na espessura
da camada estromal da córnea, correspondentes
Fig. 4 – Distrofia reticulada da córnea tipo II.
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Sara Vaz-Pereira, Leonor Duarte de Almeida, Jorge Sousa Lé, M. Monteiro-Grillo
Fig. 5 – Ecografia ocular, respectivamente OD e OE.
às alterações encontradas na lâmpada de fenda
(Figs. 6 e 7). Observou-se também um quisto
retro-iridiano aparentemente do corpo ciliar, de
aspecto inocente (Fig. 8). Não se identificaram
alterações do ângulo, nem alterações do corpo
ciliar e processos ciliares (Figs. 8-10). Não foram
detectados depósitos a nível da cristaloideia
anterior, íris ou corpo ciliar (Fig. 10).
Fig. 7 – Apex da córnea. Linhas hiperecogénicas anterior
e posterior mantidas.
Fig. 6 – Zonas de hiperecogenecidade filiforme na camada
estromal (seta). Na imagem inferior, a sensibilidade foi
reduzida para uma melhor resolução.
374
Fig. 8 – Quisto retro-iridiano de aspecto inocente (seta).
Ângulo sem alterações.
OFTALMOLOGIA
Manifestações Oculares da Polineuropatia Amiloidótica Familiar Tipo Finlandês: Caso sem história ancestral associada
Fig. 9 – Incidência transversa – corpo ciliar e processos
ciliares.
Fig. 11 – Resultados ORA.
Tabela 1 – Resultados ORA.
PIOcc
PIOg
(mmHg)
(mmHg)
1
19,9
2
ORA
Fig. 10 – Corpo ciliar e tecido iridiano.
OD
A biomecanicidade da córnea foi estudada
com o Ocular Response Analyser (ORA), que
mostrou uma PIO corrigida de 17,7 mmHg
OD e 21,2 mmHg OE e uma diminuição do
factor de resistência da córnea e histerese no OE
(Fig. 11, Tabela 1).
Foi ainda realizada análise estrutural do disco
óptico e da camada de fibras nervosas (CFN)
por tomografia de coerência óptica (OCT),
exame sem alterações significativas (Fig. 12).
O OCT da mácula efectuado também não
revelou anomalias, nomeadamente depósitos
de proteína amilóide no epitélio pigmentar ou
neurroretina (Fig. 13).
VOL. 34, ABRIL - JUNHO, 2010
OE
FRC
HC
17,1
8,9
8,1
15,9
14,1
9,1
9,4
3
18,1
17,4
10,6
9,9
4
17,0
15,4
9,5
9,4
média
17,7
16,0
9,5
9,2
1
20,7
17,7
8,8
7,8
2
23,7
18,1
6,8
5,3
3
20,1
15,2
6,9
6,4
4
20,4
15,9
7,3
6,6
média
21,2
16,7
7,5
6,5
Legenda: PIOcc – PIO corrigida para espessura central da córnea, PIOg
– PIO esperada por aplanação de Goldmann, FRC – factor de resistência da
córnea, HC – histerese córnea.
375
Sara Vaz-Pereira, Leonor Duarte de Almeida, Jorge Sousa Lé, M. Monteiro-Grillo
Fig. 12 – OCT da CFN peri-papilar (RFNL thickness 3.4), respectivamente OD e OE.
Fig. 13 – OCT da mácula (Fast macular thickness), respectivamente OD e OE.
Discussão
As manifestações características da PAFF
evidenciam-se a nível da face (alterações cutâneas e neurológicas) e do olho 9,15. No globo
ocular são as alterações típicas da córnea – distrofia reticulada – as mais distintivas1,9,11,14,16,19,
para além de síndrome do olho seco, sendo
menos frequentes outras alterações, nomeadamente glaucoma. Este, quando surge, é habitualmente em idades mais tardias 9,20.
O diagnóstico de PAFF é, portanto, essencialmente baseado na detecção da distrofia tipo
lattice12,16 ao biomicroscópio. A UBM permite-nos documentar melhor o segmento anterior do
olho, nomeadamente este achado específico da
doença.
376
Segundo Meretoja 15, a proteína amilóide
detectada na PAFF localiza-se no estroma e
membrana basal da córnea e conjuntiva, bem
como na esclera anterior, paredes dos vasos
ciliares, músculo ciliar, perinervo dos nervos
ciliares e na bainha do nervo óptico. No caso
estudado, não foram encontrados depósitos
na íris, cristalino, ângulo irido-corneano e
vítreo. Não se observaram também alterações
relevantes do DO e CFN. As alterações da
biomecanicidade da córnea OE, em particular
a diminuição da histerese, estarão em provável
relação com as alterações estromais, revelando-se o ORA um exame com interesse potencial
nesta patologia.
OFTALMOLOGIA
Manifestações Oculares da Polineuropatia Amiloidótica Familiar Tipo Finlandês: Caso sem história ancestral associada
O estudo com OCT permitiu constatar que
não estavam presentes depósitos anómalos na
retina (neurroretina e epitélio pigmentar)8,15
o que, segundo alguns estudos, diferencia este
tipo de PAF dos restantes 2,3,5,8.
As alterações cutâneas e neurológicas –
parésia facial e cútis laxa – são manifestações
explicadas pelo depósito de amilóide, devendo
ser pesquisadas quando em presença de distrofia reticulada da córnea, praticamente
patognomónica desta patologia 9,11,16. Esta
associação é relevante pela existência de manifestações sistémicas concomitantes 4,9.
Em conclusão, a PAFF é uma doença que
afecta essencialmente a córnea, tem início tardio
e é lentamente progressiva, sendo o tratamento
oftalmológico habitualmente paliativo. A UBM
poderá ser de utilidade para pesquisa de
depósitos no segmento anterior, bem como para
definição dos achados biomicroscópicos da
córnea. Pensamos ser fundamental não esquecer
enquadrar as alterações queráticas num quadro
de PAFF já que, apesar de rara, esta patologia
encontra-se presente na população portuguesa.
É recomendável uma vigilância regular, sistémica e oftalmológica.
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