10º Forum de Ética em Pesquisa Clinica, Sao Paulo 2012 Ética em Pesquisa Clinica Ignacio Carrasco de Paula M.D. Ph.D.1 1. Introdução O campo da pesquisa biomédica por muitas décadas é constantemente tema de uma cuidadosa reflexão ética, pontualmente codificado em normativas nacionais e internacionais, que devem fazer operativa esta reflexão. Talvez, em nenhum outro campo da medicina se assista - pelo menos na Europa, e particularmente na Itália – uma proliferação de regulamentos, procedimentos, códigos, normas, etc, até o ponto que, apesar das louváveis boas intenções de fundo – ou seja, dar uma aplicação concreta às normas éticas que deveriam garantir uma pesquisa biomédica à medida do homem – hoje todos os que trabalham nesta área (pesquisadores, integrantes de Comissões de Ética, patrocinadores, etc), queixam-se de uma crescente burocratização, materializada em uma proliferação de documentos e normativas que nem sempre facilitam uma prática dirigida ao serviço incondicional da pessoa, do paciente. A este problema típico de uma mentalidade legalista, que não quer deixar nada ao acaso, muitas vezes se adiciona um velho dilema: o da aderência mecânica aos indispensáveis procedimentos do método experimental em detrimento das exigências do respeito à dignidade (realidade existencial) do clínico, do pesquisador ou das pessoas - saudáveis ou doentes - envolvidos no estudo. Se esse dilema desempenhou no século passado um papel exagerado em muitos casos tristemente famosos, ainda hoje constitui um fator de não pouca importância para o específico trabalho 1 Presidente da Pontificia Academia para a Vida, Vaticano. Catedrático emérito de Bioética da Faculdade de Medicina A. Gemelli, Roma. Membro da Comissão Ético para a experimentazione clínico e farmacológico, Ospedale Bambin Gesù, Roma. 2 de análise ética de quase todos os Comitês de Ética para experimentação clínica e farmacológica, incluindo o caso do Hospital Bambino Gesù, onde eu tenho a honra de prestar a minha modesta colaboração. O problema da proliferação de documentos, seja em papel ou em formato digital, se evidencia sobretudo em relação ao consentimento informado, ou seja, aos passos previstos para a adesão dos sujeitos envolvidos diretamente ou indiretamente no estudo. Sobre isso, muito foi dito, se continua a dizer, e seguirá sendo discutido no futuro. Todos nós queremos encontrar a solução mágica: o texto completo e breve, não-impositivo nem enganoso, mas respeitoso da inteligência e da liberdade de uma pessoa disposta a colaborar, também porque ela se encontra em uma situação de dependência e necessidade, e talvez espera poder extrair algum benefício inesperado de sua participação em uma experimentação terapêutica. No entanto, os resultados dos esforços de simplificação dos passos raramente são encorajadores. Estamos todos de acordo sobre o princípio: "cada pessoa escoglida deve ser informado sobre tudo - objetivos, end points, procedimentos, riscos, benefícios esperados, etc - Caso contrário, ele não poderia assinar mais que um consentimento falso." Todavia, há um velho ditado – que remonta a Aristóteles - que diz quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur, qualquer informação vem recebida de acordo com a informação ou desinformação já possuía pelo destinatário. Existe demasiada documentação informativa, alguns verdadeiros monumentos do “copiar e colar”, que parecem mini-tratados de medicina que, legitimamente, levantam dúvidas sobre sua real adequação, de a perspectiva ética, de motivar e informar o paciente. Não podemos ignorar que não é possível comunicar fatos, números, percentuais, opiniões, etc., que deveriam resultar em uma escolha que diz respeito à saúde e ao bem-estar da pessoa, sem manipular ao mesmo tempo sua subjetividade motivacional. Neste momento eu gostaria de fechar com a questão do consentimento informado. Eu acho que existem outras dimensões éticas não menos 3 importantes e talvez menos exploradas; e é nesse sentido que eu quero a partir de agora chamar a atenção de todos. 2. De Nuremberg ao Relatório Belmont: uma história para Não ser esquecida. Nos anos cinqüenta, na Faculdade de Medicina da Universidade de Barcelona, o texto recomendado aos estudantes do curso de doenças hepáticas ainda era o prestigiado manual de Eppinger, um hepatologista austríaco que cometeu suicídio após o fim da Segunda Guerra Mundial, e é famoso por ter sido o hepatologista pessoal de Stalin. Era um texto fascinante. Naturalmente, não dizia nada sobre outras pesquisas realizadas por Eppinger durante a guerra, como o estudo sobre a possibilidade de sobrevivência com uma dieta hídrica que previa o uso exclusivo de água do mar. O objetivo era louvável: melhorar o conhecimento para salvar as vidas dos marinheiros ou pilotos alemães que caíam no Atlântico. Os meios: submeter à tal dieta um grupo de prisioneiros, com o objetivo de obter a evidência científica de que a morte era inevitável com um dieta hídrica a base de água do mar. Após a guerra, a análise ética e legal deste e de outros crimes nazistas enfatizou a evidente violação da autonomia dos sujeitos inscritos forçadamente. Parece que ninguém tinha nenhuma dúvida ou reserva sobre a legitimidade de obter o consentimento para participar de uma experimentação com um risco vital tão elevado Felizmente, as coisas começaram a mudar na década de setenta. Depois das revelações do New York Times sobre a insensata e cruel experimentação conduzida em Tuskegee, Alabama, utilzando trabalhadores negros que sofriam de sífilis, as autoridades de saúde americanas confiaram a uma comissão a tarefa de estabelecer quais eram os princípios éticos fundamentais (prima facie, na infeliz terminologia cunhada pelo filósofo Ross), que deviam regular sempre os protocolos de pesquisa experimental. Assim, em 1979, foi publicado o Belmont Repport, um texto que, junto com a Declaração de Helsinque fez a história da ética da pesquisa biomédica. 4 O Belmont Repport enumera três princípios-chave que, mais de trinta anos depois, poderíamos reformular assim: 1) o respeito pela pessoa do paciente, em especial, por sua dignidade (spiegare), que não diminui nem é afetada por qualquer lesão física, mental ou espiritual produzida pela doença. Obviamente, esta atitude de respeito está ligada à percepção de liberdade e de responsabilidade do paciente; à sua autonomia, como algo sagrado, inviolável, indisponível, independentemente da condição de dependência e necessidade do paciente, bem como da diversidade de papéis que dizem respeito ao médico-pesquisador e ao paciente; 2) beneficência: todo protocolo deve ser construído de modo a excluir qualquer dano certo para o paciente, e de garantir, ao contrário, o máximo de benefícios com riscos mínimos; 3) justiça, especialmente em termos de equidade: a instrumentalização e a discriminação devem ser excluídos de qualquer forma. Eu me pergunto: estes princípios são respeitados como se devería nos protocolos de pesquisa atuais? Hoje, de fato, o velho conflito de interesses entre o bem ou as necessidades do paciente e as exigências do bem ou necessidades da ciência, tornou-se obsoleto, devido a superposição não sempre clara, e algumas vezes deliberadamente não-transparente, de eventuais ganhos, conveniências, lucros, etc., sejam públicos ou privados. A verdade é que hoje, nem sempre é uma mera formalidade assinar a declaração de ausência de conflito de interesses antes de começar o trabalho da Comissão de Ética. 3. O paradigma moral da obrigação terapêutica Analisando os aspectos éticos destacados pelo Relatório Belmont, eu penso que aqueles relacionados ao segundo princípio merecem uma reflexão mais cuidadosa e é sobre isso que gostaria de centrar a minha atenção neste momento. Esta reflexão está relacionada com uma correta interpretação e aplicação do princípio de beneficência clínica no âmbito da pesquisa biomédica, especialmente no que diz respeito à relação entre a intenção 5 terapêutica e da intenção científica dentro da atividade clínica. Vou me concentrar, portanto, nessa área específica, típica dos Institutos que associam atividades assistenciais com atividades de pesquisa, que diz respeito à investigação clínica. Por outro lado, tenhase em conta que a pesquisa biomedica nasceu en um contexto de atendimento de pacientes. Isso define o correcto estatuto epistemológico, muito diferente do das ciências puramente experimentais. A pesquisa se coloca como uma exigência intrínseca da clínica enquanto meio essencial para o desenvolvimento de novos conhecimentos, procedimentos e meios de intervenção no paciente; é um instrumento da medicina clínica. Estas declarações, que podem parecer óbvias, hoje, pelo menos em parte, são obscurecidos pela complexidade alcançada pela metodologia experimental e pelos muitos atores envolvidos (patrocinadores, autoridades de saúde, etc.), que muitas vezes promovem a idéia de que a finalidade da pesquisa não provêm das reais necessidades clínicas, mas de outros interesses (concorrência de empresas farmacêuticas, a contenção de custos dos cuidados de saúde, e assim por diante). Desta forma, no entanto, se inverte a relação adequada entre a atividade clínica e experimentação, fazendo desta última a finalidade e, o paciente e os seus cuidados, os meios pelos quais se podem adquirir novos conhecimentos científicos, aperfeiçoar novos métodos de obtenção ou comercialização de um novo medicamento ou contribuir para a sustentabilidade do sistema de saúde de um país. Claramente, invertendo a relação entre fins e meios, se inverte a postura ética da atividade de pesquisa em seus aspectos mais concretos (do planejamento do estudo, ao recrutamento de pacientes, etc) . Para contrastar estas tendências enganosas, já há algum tempo se está recuperarando o conceito de "obrigação terapêutica". O termo não se propõe como uma reformulação teórica da regra de ouro de Hipócrates: o bem ou o interesse do paciente, sua saúde e sua vida, são a lei suprema da prática médica. Mas o que se quer propôr é que a experimentação seja reconhecida como uma atividade distinta, mas não separada da atividade clínica, já que o objetivo terapêutico não somente não pode ser separado do objetivo 6 científico, mas deve sempre usufruir do privilégio de uma prioridade incondicional. Esta é, portanto, uma indicação de caracter muito diferente daquela que requer simplesmente "não se aproveitar" do sujeito de experimentação para fins de investigação. Além disso, nesta "obrigação terapêutica" se encontra a mais evidente justificativa para a rejeição ética do abuso de placebo, ou dito de um forma mais positiva: a inalienabilidade do direito subjetivo de usar uma terapia alternativa comprovada. O paradigma da “obrigação terapêutica” requer, portanto, a obrigação de colocar no topo da atividade clínica, seja essa assistencial ou com uma paralela finalidade científica, a saúde e bem-estar de cada paciente. Isso significa, por exemplo, oferecer sempre o melhor tratamento disponível e uma avaliação cuidadosa dos riscos envolvidos nos experimentos, que só podem ser assumidos se superados pelos benefícios que delles podem resultar ao paciente. Nesta perspectiva, a proteção do bem do paciente, não deve ser objecto de nenhum tipo de compromisso. Caso contrário, cada mudança de prioridade do bem do paciente para outros fins, comportaría uma instrumentalização da pessoa. Esta atitude nunca é lícita, e ainda menos no contexto de uma relação médico-paciente, onde existe um compromisso (não menos válido por ser tácito) para perseguir o bem-estar do paciente acima de qualquer outra vantagem. Qualquer comportamento que não respeite isso sería enganar, até mesmo fraudar a confiança do paciente, que se entrega ao médico especialmente com a expectativa legítima de cura. De alguma forma, também podemos falar de traição à profissão médica que, no bem do paciente, põe o sentido e o núcleo essencial da sua existência. A afirmação de uma obrigação terapêutica da parte do médico-pesquisador envolve muitas conseqüências práticas que valem a pena considerar em detalhes. Para mencionar apenas algumas: 1) Primeiro, um ensaio clínico pode ser licitamente realizado apenas quando há uma probabilidade razoável, mesmo que existam incertezas genuínas, sobre as vantagens ou desvantagens de uma determinado instrumento clínico (farmacológico ou não). Em outras palavras, é 7 necessário que, do ponto de vista científico, exista a expectativa de uma real vantagem clínica e que tal vantagem não possa ser conseguida se não através da realização de um procedimento experimental em seres humanos. Insisto: somente este raciocínio autoriza eticamente uma nova experimentação, e não o fato de ter que preencher os requisitos procedimentais estabelecidas pelas autoridades de saúde para a introdução no mercado de um novo medicamento. 2) A partir desta perspectiva, é óbvio que os projetos de "não-inferioridade" levantem não poucas questões éticas: é aceitável expor as pessoas a riscos através do contato com drogas que não prometem mais benefícios para o doente, mas só aumentam os lucros para a empresa farmacêutica, talvez por um aumento na lista de preços? Realizar um estudo de não inferioridade poderia ser útil quando se quer determinar se um tratamento é mais seguro do que o de referência, que possa oferecer vantagens em termos de compliance ou de custo, ou quando se quer comparar diferentes dosagens, formulações ou vias de administração de um mesmo fármaco. Em todos os outros casos, há sérias dúvidas sobre a aceitabilidade ética e científica de tais estudos. 3) O uso de placebo, nos ensaios clínicos (um método que evidenciou a possibilidade de uma distinção entre a pesquisa e tratamento) podería ser dito apropriado no plano ético apenas na ausência de uma alternativa terapêutica ou quando o não-tratamento constituísse, na específica condição clínica do paciente, uma opção viável (por exemplo, para distúrbios de menor entidade ou tratamentos sintomáticos em que o tratamento pode ser considerado opcional por motivos clínicos). 4) Os ensaios clínicos que, na verdade, ocultam uma operação basicamente comercial (marketing) devem ser absolutamente rejeitados, embora seja extremamente difícil desmascarar estas práticas. As considerações acima não impedem a realização de pesquisas em indivíduos saudáveis. Neste caso, não há uma relação de cuidados que preceda e seja prioritária em relação à experimentação, e por conseguinte, 8 não existe a obrigação terapêutica em sentido próprio. Isso não significa que não existam requisitos muito rigorosos para a protecção da pessoa, mas simplesmente que é uma relação que ocorre de uma forma diferente do que a relação médico-paciente, caso em que o objetivo científico é, e deve permanecer, sempre secundário com respeito à intenção terapêutica. 4. O paradigma ético da "não instrumentalização" É, no entanto, menos adequado o paradigma baseado apenas no princípio ético da "não instrumentalização" do sujeito da experimentação. Este paradigma é baseado na afirmação de uma separação clara entre a prática clínica (em que existe um verdadeiro dever do melhor cuidado ao paciente) e experimentação clínica (em que o principal objetivo é responder a questões científicas clinicamente relevantes, através da realização de experimentos em grupos de pacientes). A prioridade atribuída aos fins científicos levaria, neste caso, a inserir as alterações no plano de tratamento com a risco que não seja mais o melhor para o paciente. A randomização, o uso do placebo, as restrições de tomar outros medicamentos, etc., são adoptadas não no interesse do atendimento ao paciente, mas no interesse científico do pesquisador. Isto implicaría, portanto, que a responsabilidade do clínico enquanto pesquisador seria diferente da do clínico enquanto terapêuta e que, uma vez iniciado um protocolo de experimentação, o papel do investigador prevalece sobre o do terapêuta. Além de uma leitura inadequada da relação clínica e da relação entre as atividades de cuidado e atividade científica, esta abordagem tem também uma série de dificuldades práticas que não são facilmente superáveis: determinar os riscos que são aceitáveis para não cair na "exploração" de um sujeito submetido ao experimento, quantificar na situação concreta, etc. Quando nos afastamos do imperativo claro do melhor interesse do paciente, entramos em uma situação mais nebulosa onde se acaba facilmente por degenerar em abuso. E a história da experimentação humana ensina muito a respeito disso. Para citar a um sucesso positivo recente, penso na posição 9 assumida corretamente pela Declaração de Helsinque em relação à continuidade terapêutica na experimentação dos fármaco contra a AIDS. A idéia de obrigação terapêutica do médico, também quando involve a investigação clínica, foi reconhecida pela Declaração de Helsinque e reconfirmada na última revisão em 2008. 5. Observações finais Para concluir. O paradigma ético da "não-instrumentalização" é provavelmente muito vago para fornecer uma proteção adequada ao sujeito da experimentação na realidade concreta de pesquisa clínica. A investigação é uma área da medicina clínica e, portanto, deve ser harmonizada com as atividades e, acima de tudo, com a finalidade desta última. Mais especificamente, o objetivo de adquirir novas e mais rigorosas informações científicas, não devería levar ao abandono da prioridade terapêutica que fundamenta toda relação médico-paciente, independentemente de quaisquer outras circunstâncias. Em outras palavras, a responsabilidade ética do médico não é alterada pelo fato de o paciente aceitar ser parte de um protocolo de ensaio clínico. Independentemente da natureza do tratamento (já em uso ou experimental), entre o médico e o paciente se estabelece uma relação que define obrigações precisas para o médico que trata o paciente. O médico não pode faltar a estas obrigações pelo fato de está à procura de uma resposta a uma questão científica, não importa quão importante isso possa ser para o futuro da medicina e da umanidade. Qualquer "desvio" dos padrões clínicos deve estar sempre dentro dos limites do que é compatível com a “obrigação terapêutica”. Por outro lado, o paciente que aceita participar de um estudo clínico raramente pensa em renunciar a qualquer aspecto útil ou necessário para a sua cura; pelo contrário, geralmente o acesso à experimentação é percebida como uma possibilidade adicional de cura, um “algo mais”, no sentido terapêutico, em comparação com o atual padrão clínico. Confrontado com o fato perturbador de que muito provavelmente as experimentações de hoje são projetados principalmente para fins de 10 marketing, é necessário que, diante dos desafios éticos que a experimentação com pessoas ainda apresenta, as associações científicas e profissionais se comprometam a promover, a partir da Declaração de Helsinque, uma verdadeira cultura ética de pesquisa clínica, o que significa colocar a razão ética ao centro da pesquisa, assim como é ao centro da cura.