helena , moscou e a rússia

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HELENA, MOSCOU E A RÚSSIA
A visão de Rússia que estamos tendo com Helena é muito diferente daquela que
Natália nos ofereceu.
Neste país, sinto-me refém das guias turísticas que nos acompanham. Somam-se:
- o desconhecimento sobre o mundo oriental, que nos é imposto pela cultura
ocidental e, em decorrência disto, a escolarização que recebemos em nossas
escolas; - as dificuldades impostas, no período soviético, para que soubéssemos,
de fato, como foi o socialismo nesta reunião de repúblicas; - as diferenças culturais
que sempre nos fazem olhar o mundo com os nossos óculos; e - o maior de todos
os entraves, para mim ao menos, o alfabeto cirílico, que me impede de decifrar
minimamente o que há nos jornais, o que dizem os out-doors e o que pensam os
russos de si mesmo.
Helena é a guia que nos acompanha no percurso entre Moscou e Suzdal, a
nordeste de Moscou. Ela nasceu em 1967, formou-se na universidade, no Curso de
Línguas (eles não usam aqui a denominação Curso de Letras), no final do período
soviético, fez formação complementar em língua hispânica na Espanha, logo
depois da fragmentação do império soviético, quando se tornou possível a saída de
russos para outros países com maior facilidade.
Segundo sua própria fala, viveu o melhor período do socialismo, durante sua
infância e juventude, quando o oferecimento de condições de vida pelo Estado era
pleno em termos de educação, saúde e cultura, de um lado, e o autoritarismo
estava já bastante arrefecido, de outro lado. Esse quadro, comparativamente às
primeiras três ou quatro décadas da experiência socialista, era muito bom, visto
que as gerações que viveram a primeira fase tiveram que suportar penúria
material e o autoritarismo da fase stalinista.
Após a mudança do regime, ela vem acompanhando, em sua vida profissional e
familiar, as intensas mudanças que decorrem da entrada rápida e profunda do
capitalismo no país. Com uma compreensão mais sofisticada e menos maniqueísta,
talvez, porque menos apaixonada, do que a de Natália, Helena mostra, ao seu
modo, os prós e os contra de cada uma das duas experiências, no plano político e
no econômico, mas percebe-se que ela é um pouco mais simpática à experiência
socialista.
Fez mais de uma referência ao papel de Nikita Kruschov, como um presidente
soviético que diminuiu os controles políticos sobre a sociedade e possibilitou se
viver de forma mais amena, embora as políticas de Estado permanecessem fortes
e centralizadas, bem como o controle ideológico se mantivesse nas mãos do
Partido Comunista. Tanto quanto Natália criticou duramente o período stalinista,
mas o fez, demonstrando em sua fala, conhecer bastante a história do país.
Relatou como extremamente positivo o padrão da educação, da saúde, da cultura
e da vida esportiva oferecido, no período socialista, chamando atenção para as
conseqüências da entrada de uma economia de mercado nestes campos da vida
social.
Por outro lado, valorizou a liberdade de entrar e sair do país, o que não havia
antes, bem como o direito de escolher com maior facilidade, onde morar e onde
trabalhar. Quando lhe perguntei porque aprendeu espanhol, a resposta foi simples:
“Porque me coube. Eu gostaria de estudar inglês, mas pelo sorteio que houve me
designaram o estudo do espanhol”. Somente os melhores alunos de cada turma,
segundo ela, podiam escolher a língua de sua preferência, o que sempre recaia
sobre o inglês e o alemão, mas era preciso distribuir os estudos conforme as
disponibilidades e as necessidades coletivas. Esta resposta mostrou que o
planejamento de Estado incluiu a definição dos campos de formação profissional.
Quando lhe perguntei quais as línguas estrangeiras eram obrigatórias na escola
básica, ela disse que, desde que se lembrava era o alemão e, mais recentemente,
o inglês. A obrigatoriedade do alemão foi definida durante a segunda guerra
mundial, como uma estratégia de conhecer o inimigo que chegaria à Rússia e,
depois, em função da constituição da Alemanha Oriental, que se tornou uma
parceira na experiência socialista.
Ela relata que, nos primeiros qüinqüênios dos 70 e poucos anos de planejamento
econômico soviético, os investimentos foram maciços na produção de energia e na
industrialização, sobretudo a de base, enquanto as inversões em políticas de bem
estar social foram menores. A passagem rápida de uma economia agrícola,
predominante no período pré-socialista, para uma economia industrial gerou
grandes fluxos migratórios do campo para as cidades, especialmente para as
maiores, levando a problemas habitacionais, que vieram a ser resolvidos apenas
depois de 1945. Isso significa que uma grande massa de trabalhadores urbanos,
nas grandes cidades, viveu em apartamentos comunais, ou seja, antigos
apartamentos que foram estatizados e transformados em moradias coletivas, em
que cada família ocupava um aposento (um dormitório ou uma sala da antiga
residência), compartilhando com outras a cozinha e o banheiro. Muitas passagens
da literatura russa nos remetem a esse período.
À medida que saímos de Moscou, ela oferece elementos para se compreender a
lógica de estruturação desta metrópole. Cinco ou dez minutos após deixarmos o
hotel que se localiza na principal artéria da cidade, já estamos cruzando o que eles
chamam de Anel dos Bosques – avenida larga, com cinco pistas de cada lado,
assentada na faixa larga onde foi a muralha da cidade no século XVIII. Helena
explica que não era bem uma muralha, mas sim uma elevação de terra, que tinha
o papel de dificultar a entrada na cidade ou de protegê-la. Entre este anel que
circunda o que considero o centro expandido de Moscou (se é que posso aplicar
esse conceito) e o anel externo, que delimita a área total da cidade, há vários
edifícios de apartamentos construídos no período stalinista, sobretudo depois da
segunda grande guerra mundial.
São prédios edificados solidamente, com ambientes de pés direito altos e, ainda
hoje, estão aqui em Moscou demonstrando um padrão construtivo de muito bom
nível, à parte o padrão estético pouco elegante que marca a arquitetura stalinista.
O acesso a esses imóveis era definido pelo tamanho da família e pelo tipo de
profissão exercida pelos adultos. Num livro da literatura francesa na área de
Geografia, não me lembro qual, há referência aos médicos e professores, como
aqueles que tiveram direito a imóveis residenciais maiores para o exercício
completo ou parcial de suas atividades profissionais na própria residência. Helena
não fez referência, mas Natália frisou, como todos sabemos, que as prioridades no
que se refere ao acesso a tais imóveis, era dada aos militantes do Partido
Comunista.
Nas áreas limítrofes da atual Moscou está a maior parte dos prédios do segundo
período da produção imobiliária destinada a suprir a demanda habitacional na
capital. Esta fase teve início com Nikita Krushov ao final dos anos de 1950 e,
segundo Helena, as construções são menos sólidas, ainda que para um brasileiro,
vendo por fora, trata-se de uma “maravilha” comparada ao padrão construtivo dos
nossos conjuntos habitacionais. Como se desejava cumprir metas extensas em
termos de número de imóveis, houve a opção por sistemas construtivos semiindustrializados e as edificações eram erguidas com grandes blocos de cimento,
em cinco pavimentos, sem elevador.
Também foi esse presidente que deu início à cessão de terras nos arrebaldes das
grandes cidades, para que cada família urbana tivesse sua datcha – pequeno
pedaço de terra de 500 a 600 metros quadrados, onde podem ter uma casa para
passar o verão ou os finais de semana. A palavra datcha quer dizer, segundo ela,
dada, ou seja, terra dada. Até 1991, glebas eram repassadas pelo Estado a
empresas (que eram também estatais) e a sindicados, às quais cabia distribuir a
terra entre seus empregados ou associados e prover de infraestrutura mínima
essas terras, abrindo caminhos ou fornecendo energia elétrica. As funções dessas
datchas parecem ter sido de diferentes naturezas. Para moradores em
apartamentos, destacam-se a sensação de ter uma terra sua (aqui como valor de
uso, porque não era possível vender ou comprar), a possibilidade de contato com
a natureza longe das pressões da vida urbana a industrial e, ainda, a oportunidade
de cultivar alguns produtos e se tornar um pouco independente do que era
fornecido nos armazéns estatais. Assim, nestas datchas, muitas famílias plantavam
batatas e beterraba, algumas verduras, pêras, framboesas, morangos ou maçãs.
Além disso, com este ponto de apoio, podiam colher cogumelos ou frutos silvestres
nos bosques públicos que estão fora das cidades. Do modo como relatou Helena,
fica parecendo que todos tinham igualmente direito a datchas, mas se sabe que
esta cessão tanto no que se refere ao tamanho da terra como à sua localização em
áreas mais ou menos bonitas, esteve fortemente sob controle do Partido
Comunista, o que significa que os mais “fiéis” foram francamente beneficiados.
Uma das grandes mudanças relatadas por nossa guia, quando compara os dois
períodos político-econômicos, é decorrente da entrada das formas capitalistas de
produção do espaço (ela não usou esses termos, mas o que descreveu
corresponde exatamente a isso). As datchas e os imóveis urbanos tornaram-se
propriedade privada, muita gente compra e vende, os interesses imobiliários
estendem a cidade, transformando terra rural de preço menor em terra urbana
muito mais cara, gerando o que ela chamou de uma “bolha de especulação”,
principalmente em Moscou, a maior e mais rica cidade do país, cujos custos de
vida equiparam-se, segundo as notícias que a própria imprensa brasileira divulgou,
aos de Tókio e Nova York.
Moscou tem um pouco mais de 11 milhões de habitantes, oficialmente, pois há
estimativa de um número maior de residentes, em função da presença de muita
gente que está ilegalmente no paris para trabalhar.
As fronteiras entre as antigas repúblicas socialistas são abertas, ou seja, se pode
passar de um país ao outro, sem registros, passaportes ou documentos de controle
das entradas e saídas. No entanto, todos que trabalham ilegalmente não podem se
declarar na contagem populacional e esse contingente é grande visto que
moradores das ex-repúblicas soviéticas no Cáucaso migram para a Rússia,
especialmente para Moscou, à busca de trabalho, em atividades que, segundo
Helena, os moscovitas não querem realizar: construção civil, trabalhos domésticos,
serviços de reparos e consertos etc.
Essas pessoas, que vêm à procura de trabalho, ficam ao longo dos acostamentos,
diariamente, nos trechos iniciais das rodovias que ligam Moscou ao resto do país:
podemos vê-los, nesta segunda feira, 9 de julho de 2012, conversando com
“empregadores” que param seus veículos e desejam contratar alguém para ampliar
a produção em suas pequenas unidades agropeucárias, ou reformar uma casa fora
da cidade, ou recuperar o telhado que se danificou com a neve ou...
Em mais de uma passagem das explicações dadas pelas duas guias, com quem
convivemos até agora, há clara referência a uma cisão na sociedade, definida em
base territorial – os moscovitas e o restante da Rússia. Na história desta sociedade
Kiev e São Peterburgo foram cidades que centralizaram, em outros períodos, poder
político, religioso e prestígio cultural. No entanto, pelo que suponho, o poder de
Moscou foi se conformando durante o período socialista em que os privilegiados,
ligados ao Partido Comunista, estavam nesta cidade que foi a capital não apenas
do país, mas da URSS.
A centralização demasiada de poder econômico e poder político em certas cidades
no mundo levam-nas a ter posição primaz em uma estrutura de rede urbana
macrocefálica, o que vai se traduzir nas representações sociais que se elaboram
sobre suas sociedades. Podemos reconhecer essa divisão na França – os
parisienses e os outros franceses, – na Argentina – os portenhos e os outros, – no
Peru – os de Lima e o restante (mesmo quando há Cuzco que quer ser a liderança
dos outros).
A armatura policêntrica da rede urbana brasileira, resultado tanto da extensão
territorial, como das economias regionais que se desenvolveram no decorrer do
tempo, bem como do fato de já termos tido três capitais no país (sendo que hoje
Brasília não tem a primazia de principal cidade econômica) têm impedido essa
clivagem simples em dois grupos.
Por uma clivagem deste tipo, Helena nos convidou a “... sair de Moscou para
conhecer a Rússia” e essa frase pareceu-me muito emblemática.
A transformação da economia estatal em economia de mercado ampliou a oferta
de produtos disponíveis, o que se acentuou com uma concorrência das empresas
que produzem e comercializam, agora estabelecidas em escala internacional. Em
parte, isso é responsável pela diminuição da produção agrícola, sobretudo, perto
de Moscou: de um lado, há tudo para se comprar nos supermercados, de outro, o
mercado de trabalho nas maiores cidades está tão aquecido, que deixam de ter
significado produtivo, os terrenos que compõem as datchas, agora, quase
exclusivamente destinadas ao lazer.
Julho de 2012
Carminha Beltrão
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