50 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA César Kiraly1 Resumo A idéia com esse ensaio foi mostrar a natural afinidade do ceticismo filosófico com o positivismo legal, bem como a superioridade moral de tal confluência para pensar questões entre a política e o direito. De uma forma direta poderíamos dizer que há mais virtude quando o direito compreende as suas limitações, porque ao reconhecê-las evidencia as dinâmicas internas da atividade política. Palavras Chave: Ceticismo, Positivismo Legal e Moralidade “Por convenção (nómói) existe o quente, por convenção existe o frio, por convenção existe a cor, o doce e o amargo; segundo a verdade (eteēi), exite apenas o que é individual e o vazio.2” Sexto Empírico A proximidade entre o direito e a moral, mais ainda, a estreita relação entre o direito e a moral, não é incompatível com a tese da separação, de fato, entre os conceitos de direito e de moral. Pode ser que numa má compreensão do positivismo jurídico, ou em suas versões teóricas mais fracas, ou normativas, ou ainda na versão da preguiça intelectual de alguns advogados e juristas, exista alguma incompatibilidade. Mas, na tradição da filosofia da regra, e na leitura que empreende das obras de Hobbes, Hume e Austin, representada principalmente por Hart, e também na leitura que empreendi de seu pensamento, não há qualquer incompatibilidade3. Para o positivismo legal bem compreendido, a separação entre direito e moral é uma tese moral. Mas de que tipo? Trata-se de um exercício da virtude artificial da justiça, no âmbito das instituições políticas e do direito, segundo a qual as instituições são melhores, do ponto de vista moral, quando em seus processos de deliberação jurídica, distinguem o direito da moralidade. A superioridade moral da separação entre direito e moral se deve a três razões bastante específicas: (1) Na separação entre o direito e a moral existe o benefício à política como campo deliberativo, ou seja, quando não existe a instituição do direito a tentar sanar um problema que ela mesma causa, a esfera pública é levada, natural e CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 51 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA conflitivamente, à ativação política. (2) Na que pode separação entre direito e moral, a teoria regularidade. ser dito pela idéia de política exerce a função de criação de Duas são as finalidades contidas na mundo, que é confundida quando os falta de separação entre direito e moral. A juristas do primeira é a constitucionalização e a pensamento político, submetendo-o a uma segunda é a judicialização. A tese da suposta dos indiscernibilidade julga a moralidade como conflitos. Não seria estranho sermos via produtora da constitucionalização e da levados a crer que não existe solução de judicialização. Por outro lado, estabelece um conflito, mas a invenção de limites na relação entre as duas finalidades algo mais amplos ou mais restritos a mundos como um monopólio sobre o conflito novos. O conceito de mundo pode ser social. A judicialização seqüestra a política entendido como sistema de crenças. (3) Na pelo direito e a constitucionalização retira separação a a autoridade de qualquer resistência: perspectiva sociológica é beneficiada, em porque todo direito é público. Em países detrimento da filosofia da história. O que muito conservadores com a Itália e o nos leva ao saudável recurso político à Brasil, a idéia de constitucionalização visa composição das crenças, ao invés à retórica ocupar da finalidade. constitucionalidade, no sentido de fazer deformam a pré-história entre Os três tradição da direito e moral, lugar do controle de com que o direito ocupe o espaço exigido benefícios da tese da separação entre pelos movimentos sociais do ponto de vista direito e moral, que de forma geral político, na outra ponta a judicialização preservam a vida política e a sua natureza completou o controle do par moralidade e instituinte, em contraposição à unicidade direito sobre a política. Não deixa de ser do direito e sua natureza constituinte, uma tornam clara a estrutura de irredutibilidade desconfiança da crença à regra, a qual também pode ser movimentos sociais vêem a presença das dita como irredutibilidade da política ao instituições do direito, quando tendentes a direito. mediadoras de conflitos sociais, e, da seja, os narrados, o pelos Ou itens solução elementos de ação intuitiva, com que composição da vida social e política, mesma dentre outros aspectos, a crença, não mortificação da demanda. podem ser reduzidos, sob pena de imoralidade, aos seus comportamentos, o forma, mas Assim, a os sábia, principais presença podemos a notar como duas imagens conceituais: (1) De um lado a separação entre o direito e a moral, na qual CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 52 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA o privilégio sociológico, uma vez que os encontrado na história, que receberia a homens falam de coisas diferentes e olham finalidade, e suas funções, como um para referências diferentes, quando falam retorno aos trilhos. Dessa forma, para de moral, discussões acerca do justo, ou de sustentarmos a indissociabilidade entre direito, quando pensam acerca do que é moral e direito, só podemos fazê-lo se certo, e também o privilégio da perspectiva submetida à finalidade histórica, seja lá política ao se lidar com a esfera pública. qual for. Nesse contexto é que podemos dizer que A autoridade da regra, por outro não há separação sem irredutibilidade da lado, ao contrário da norma, é retirada crença à regra, ou seja, a política não pode apenas da crença a qual ela se refere, trata- ser reduzida ao direito, tal como uma se de uma história de outra ordem, sem instituição não pode ser reduzida à finalidades dadas, apenas coisa-posta, cuja constituição, por isso insistirmos em fundação não é outra senão a busca da falarmos de elementos compositivos da natureza instituinte do mundo. A separação política e da sociabilidade. (2) Do outro, na entre direito e moral é moral de um jeito indissociabilidade entre o direito e a moral, vedado à inseparabilidade, por duas razões: existe o privilégio da filosofia da história, (1) a primeira concerne ao esvaziamento no campo sociológico, ela aparece como teológico da idéia de regra relacionada à uma sociologia de juristas, na qual os crença, segundo a qual a responsabilidade homens seguem uma finalidade ao oporem recai sempre sobre a natureza humana e o direito à moral, mas a superam ao nunca sobre a história. – Pois nada lembra realizarem da mais um padre do que um jurista. – A inseparabilidade. Dessa forma, nota-se natureza humana é responsabilizável na uma intensa valorização da perspectiva medida de sua vulnerabilidade, mas essa jurídica ao se lidar com a esfera pública, tal não pode ser dividida ou relativizada pela como a análise da instituição se reduz aos história e (2) a segunda concerne ao elementos constituintes. término do remetimento à natureza humana a função ética A norma, do privilégio à filosofia como categoria opaca. Se tanto a regra, da história, retira a sua autoridade de certo quanto a norma participam do vocabulário desequilíbrio, suposto entre as faculdades moral do séc. XVIII, apenas o vocabulário da natureza humana, em especial do da desnível o percepção da natureza humana, enquanto entendimento no que concerniria a relação entidade passional e imaginativa com entra a imaginação e regra insiste em suas virtudes: com a razão, este descompasso poderia ser CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 53 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA capacidade de experimento da pluralidade quando não mais conseguir sustentar a sua de mundos. instituição ficcional. Nesse sentido, o Dessa forma, a moralidade está em operador, que operador de uma ficção, se compreender o direito como uma não interpreta o seu papel, eis o lugar o teatro finalidade, público, mas sai de seu papel e participa da mas como um sistema sociologicamente descritível, que procura vida em si asserções desprovidas de natureza experimentado em ficção, mas nunca como moral. Da mesma maneira, quando o o personagem que é na cena do direito. Ele sistema dissimula asserções morais, ou atua o sacrifício moral de que precisa claramente sustentar as utiliza, ele deve ser política um como um personagem, pensador para, na percebido como agindo de um modo dramaturgia, permitir deixar ver a saúde ou imoral, uma espécie de má-fé, maus a sentimentos, ser comprometimento de não esconder a ficção politicamente combatido. A sociabilidade com moralidade é o compromisso que lhe deve bons deve ser exigido sempre. Sem metáfora, o sentimentos vêm do lugar errado. Afirmar operador precisa saber ser ator. É nesse que tal interpretação do direito nada mais é sentido que a magistratura e instituições da do que interpretação consiste, como se democracia, não podem deixar de se pode perceber, em nada mais do que um confundir com a operação dramatúrgica do portanto; desconfiar e quando deve os 4 truísmo . Num patologia da instituição, e tal direito. Ainda que isso custe o esforço de, bom sentido de ardil, não mais investido na cena, explicar a podemos dizer que a virtude política sociedade a ignonímia de seu papel, e o depende de certa ardilosidade moral, o que porquê de uma possível mudança. A significa dizer que a moral, para não ser distinção entre direito e moral exige do capturada pela má-fé, deve criar para si um direito, campo artificial, no qual não esteja sacrifício. E não apenas um exercício de presente, a moralidade prepara para-si a dissimulação. possibilidade de tirar férias, e nessas férias Dentre e de suas os instituições, méritos de um uma circunscritas, instiga o direito a se perceber dramaturgia radical do direito – que com invenção política. No que concerne implica numa não-dramaturgia radical da aos atores, a moral ardilosa permite que política, sobre a qual não poderemos tratar juízes e demais operadores se vejam aqui – está a refutação da impossibilidade estritamente como atores de uma ficção de se separar, ou indesejabilidade, direito e política útil, que deve ser alterada apenas moral em função em função de certa CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 54 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA ignorância positivista legal e ela concerne à percepção da natureza dramatúrgica do CONCEITOS POLÍTICOS E direito que não deve contaminar a política, JURISPRUDÊNCIA numa das mãos, e que se estrutura entorno da idéia de circunstâncias de separação e operadores de ficção. Assim, a Mas não seria demais afirmarmos uma compreensão da possibilidade de um estudo conceitual do jurisprudência em Hart em termos de uma direito não é tirada da cartola, mas teoria humeana da ficção (e, portanto, da concerne à percepção do direito como crença)? Parece que pode ser excessivo experimento de ficção moral. Por essa para uma sensibilidade patologicamente razão a crítica ao estudo descritivo do analítica, mais realista do que o rei, o que direito apenas se põe por filósofos de todo não era o caso de Hart, mas não o é relativamente confusos acerca de uma segundo a teoria da fonte enunciada por teoria da invenção política. Parece, esse esse, e prontamente criticada por Dworkin: será o modo pelo qual conduzirei minhas teses, que uma leitura atenta do artigo de Dworkin sobre Hart e a questão da filosofia política pode nos fazer notar a timidez filosófica de Hart para defender as suas fundações políticas para os argumentos de direito (timidez pontual, é verdade) e a eloqüente falta de uma teoria da descrição e de uma filosofia política nos argumentos de Dworkin. As minhas teses surgirão no que considero serem a fundações céticas para se compreender Hart, bem como, para a inteligibilidade conceitual da política, e do direito como a sua invenção. Depois acompanharemos o aprofundamento dessas teses naquilo que Hart denomina de sociologia descritiva, idéia que Dworkin, declaradamente, nunca pôde bem compreender. De acordo com minha teoria, a existência e o conteúdo do direito podem ser identificados por meio de referência às fontes sociais do direito (por exemplo, a legislação, as decisões judiciais, os costumes sociais) e sem referência moral, a não ser nos casos em que o direito, assim identificado, tenha sido incorporado, ele próprio, critérios morais para sua própria identificação 5. A primeira asserção para a qual penso que devemos pressupor uma teoria cética da ficção está na identificação entre existência e conteúdo. Mas em que termos? Nos termos de que a existência do direito não pode ser indagada se não nas províncias de seu conteúdo, o que, em primeira instância, é análoga à afirmação de Hume de que a existência não altera essencialmente uma idéia, atrelada que pode ser à simples concepção de que “direito é direito inventado”. Se de um CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 55 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA lado não podemos dizer pela ausência da Dworkin, por exemplo, que recusa idéia pela sua não-existência, do outro, a percepção da sociologia analítica sobre o devemos atrelar a idéia a seu conteúdo. O direito em função de uma essencialização conteúdo do direito não é outro que não a holística da sociabilidade e da política – o sua crença, e sua crença não é outra senão que o faz, por vezes, identificar o direito, a aquela fornecida nas circunstâncias da política e a moralidade, tal como numa imaginação positivismo vida alheia ao mundo – defende a descreve certa ficção jurídica na província perspectiva hermenêutica e se satisfaz com lingüística da crença – daí a sociologia a possibilidade de descoberta racional do analítica -, e essa percebe a efetiva princípio. Por certo que o que nos leva a separação entre o direito e a moral, na acompanhar as críticas de Dworkin a Hart, constituição mesma de suas crenças, ainda de modo a reposicionar o positivismo que a desejabilidade da separação não seja numa teoria da ficção, é justamente a sempre levada em conta. Pois bem, a identificação da consistência parcial de crença positivista da separação se deve à suas observações. Se formos duros com a sensibilidade filosofia do estadunidense é pela certeza de política. da O natureza humana à composição da política e do direito. sua densidade. Por essa razão podemos Uma vez que se vê a separação na dizer que ao assumir a perspectiva do própria crença inventada, a prática jurídica direito, Dworkin deve seguir o que foi perscrutado. Ou seja, silenciosamente as conseqüências políticas o positivista parte da idéia de que a prática e morais de seu argumento, tornar o mundo jurídica é mais moral, quando segue sua atual o mundo-todo. De certa forma, a própria ficção. As ficções de moralização completa do direito são simulacros de crença, porque política por sobre o futuro. obliteração procura da obliterar imaginação se originam não na política, mas dos atores Contudo, e este é o contra projeto do direito não satisfeitos com os limites de da nossa leitura hartiana das observações sua dramaturgia, uma vontade de poder, de filosofia política de Dworkin sobre que dentre outros resultados, intensifica o Hart, descrever o direito em sua ficção é danoso da ser capaz de vê-lo; inclusive, em sua representação política. A moralidade entra crueldade. O projeto de anestesiamento no direito pela política, se desejamos pela hermenêutica nada mais é do que uma algum autenticidade nas instituições, e de estratégia de encobrimento da política pelo nenhuma outra forma. direito. aspecto dramatúrgico Portanto, encobrimento da crueldade política por uma expansão da CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 56 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA dramaturgia jurídica a campos que antes fonte, inclusive, torna circunscrita a lhe eram vedados. A questão, nessa dramaturgia necessária medida, é não encobrir a crueldade política conflito e impede o esvaziamento da vida pelo direito, ação epistemológica essa que pública. No outro pólo, a teoria da fonte é serve para saber onde e como combatê-la. estabilizadora do componente ficcional do Noutras à solução do um forte direito – não é estranho dizer que todo imoralidade na direito é ficção jurídica e política – e essencialização dramatúrgica da política impede que a política seja arbitrária em apresentada por Dworkin. A proposição de suas invenções. palavras: componente existe de modos de opacidade à crueldade política é sempre imoral6. É justamente por conceber o direito como um conceito que Hart nota que ele é “Como Hart pode pensar que seu descritivo7?” descrito em suas fontes. A natureza A conceitual da coisa posta leva à descrição pergunta que Dworkin não sabe responder, dos atributos. A narrativa conceitual sobre deve sê-lo nos seguintes termos: o direito pode ser comparada à narrativa estudo conceitual é A descrição das fontes se assenta na conceitual sobre a política. Mas dissemos natureza ficcional do fenômeno jurídico, que o direito é distinto da moral, uma vez enquanto coisa posta desde a política. que o reconhecimento do direito difere da Nesse sentido, falar de um conceito não é identificação da moral, mas explicamos descrever uma essência, mas uma imagem, também que o direito é mais moral quando historicamente circunscrita, formalmente suas instituições se movem segundo essa válida. Dworkin não entende a descrição distinção; não haveria uma contrariedade de objetos postos, mas apenas de objetos entre a primeira e a segunda afirmação? descobertos. E no que concerne à aliança Uma vez que vemos com valor algo que hume-hartiana, a descoberta passa ao largo, pode ser percebido objetivamente. Na e estamos imersos na experiência da verdade, o valor se encontra não na invenção. feito objetividade conceitual, e descritiva, do tautologicamente à sua existência, mas estudo do direito e da política, mas na assume a forma e o conteúdo de suas percepção acertada, que ao orientar o fontes. referencialidade direito e a política, segundo a natureza de sociológica, uma das características da seus conceitos, promove mais moralidade. regra de reconhecimento, nada mais justo A falta de percepção é aberta à imoralidade do que pensar que em alguma proporção o e a dramaturgia na política é plena de uma direito siga a dinâmica das crenças. A forte imoralidade. O Sendo direito a não é CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 57 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA O essencialismo de Dworkin o conceito se mostra. A verdade da tese do impede de ver a descrição do conceito, “aguilhão dentre algumas razões, porque lhe é vedada identificação de que a regra não pode ser a hipótese do reconhecimento da natureza todo o conceito, mas tão somente uma de conceitual de objetos inventados. Depois, suas partes. Hart e Berlin sabem disso – o por assim dizer, com mais motivo, lhe é aguilhão vedada aspectos vulgarização, natural é verdade, da figura circunstanciais dos objetos inventados. do discípulo do que de qualquer outra coisa Não há valor no conceito de direito ou de – muito embora, para tanto mostrar, política, mas há valor na identificação da remetiam ao fim da regra e à necessidade relevância de se descrever o conceito, e tal de novos estudos. Como Berlin trabalhava admissão não contamina em nada a sobre a história das idéias políticas, o objetividade, apenas a promove, dentro do limite da regularidade da linguagem estava contexto da imaginação social. sempre em questão, ainda que não fosse a descrição de Parte da crítica de Dworkin ao feito semântico” decorre tema, tal repousa muito como na mais na da regra de aguilhão semântico é verdadeira e deve ser reconhecimento de Hart, observar a lógica aproveitada para finalidades por ele não intrínseca à obediência e à liberdade, previstas, existe sim um fetichismo da enquanto pontos fundacionais do conceito regularidade da linguagem, o que também de política, e para isso utilizar os autores se traduz num fetichismo da regra, e Hart, modernos, não é de nenhuma forma no direito, e Isaiah Berlin, na política, esgotar fazem parte do que se pode denominar de regularidades discursivas predominantes na pensadores de uma filosofia da regra, em política8. Hart, por outro lado, porque oposição à filosofia da norma, de Kelsen (e evitava a diaphonia da história das idéias do próprio Dworkin, ainda que seja um políticas, filósofo positivista). problemas, ou pelo menos evitou mais Contudo, existe uma verdade na linguagem fortemente n’O Conceito de Direito, que não pode ser ignorada, ela funciona precisou mostrar logicamente o fim da como plano de sustentação do conceito, da regra9. normativo não um e assunto, seus mas inevitáveis indicar falsos mesma forma como a cor serve de plano de Para Hart, como sabemos, as regras sustentação da imagem, a linguagem é descritas pela sociologia analítica são de plano e matéria prima do conceito, não há, dois tipos: primárias ou secundárias. O portanto, uma essência do conceito, mas é primeiro tipo de regra concernindo às na regularidade da linguagem que o obrigações e o segundo dizendo respeito à CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 58 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA regulamentação das obrigações. A política, outras regras sociais, porque há no direito, por exemplo, em suas instituições, pode ser de modo concentrado, o que toda a descrita como conglomerado de situações sociabilidade mostra de modo difuso. pela Assim, este “saber reconhecer o regulamentação circunscritora. A ação de direito” é o que torna a regularidade integrantes de um partido também pode ser jurídica tão distinta das outras, ou seja, é o bem descrita dessa maneira analítica reconhecimento pensada por Hart. Para a descrição do específica do reconhecido que produz a conceito de direito, Hart, todavia, encontra identidade do direito. Entretanto, cabe-nos a necessidade de ultrapassar os limites a pergunta, que fenômeno é esse que regulares do direito. Por essa razão, ele reconhece pensa regra encontrado de modo concentrado no secundária, que ao mesmo tempo em que direito, mas que é encontrado de modo está com um pé no direito, e na sua difuso na sociabilidade? A crença é o nome habitualidade dramatúrgica, tem o outro pé desse fenômeno. de obrigações um tipo identificáveis específico de na política, em sua dimensão cognitiva. A mais na Parte a regularidade regularidade, da crítica ao que é aguilhão essa segunda forma de regra secundária, semântico é verdade, mas parte é falsa. ele chama a atenção para o espelhamento Falsa, sobretudo, no que concerne aos do conhecer e do reconhecer. principais A regra de reconhecimento, como chamada por Hart, de Dworkin, estranhamente existe uma filosofia de na redução da crença à regra, mas essa não foi regularidade, o que é mais “interior” do praticada nem por Hart e nem por Berlin. que a regra. Hart explica que esse tipo Os dois representam facetas distintas da específico de regra se mostra na ação descrição de aspectos de crenças, ainda que certeira de saber onde o direito está; se não elaborem, como Hume, teorias da outras práticas sociais, com a política, são crença. Se Dworkin pratica a opacidade da estruturadas, aspecto crença, própria à hermenêutica filosófica, difuso de seus reconhecimentos, o direito é Hart exerce a descrição de abstrações, em uma o termos de reconhecimento e regras, e reconhecimento é organizado entorno da Berlin pratica o retratismo da crença, o que concentração cognitiva. Podemos dizer que faz com que Hart se aproxime de Hume e a natureza do fenômeno político concentra Berlin de Pierre Bayle. justamente, situação política, evidencia, alvos pelo em que o conceito de direito, e, nisso, faz dele o fenômeno ideal para se entender todas as Berlin não podia ser um arquimediano em filosofia política, pois CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 59 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA sua narrativa pressupunha o retratismo da direito do positivismo jurídico, uma vez crença, a paisagem da crença (existem, de que vê melhor, pode ser dita mais moral do modo que outras, porque toma o direito como menos montaigneanos intenso, em Berlin), fragmentos e, nesse necessário para inteligibilidade da política, contexto, a extração de regularidades na medida em que não exerça sobre ela conceituais10. Não há arquimedianismo, efeitos pois os sistemas de crenças, porque exercidos pela moral abstrata e pela alteráveis em densas seqüências históricas, religião. O direito além de promover o alteram os pontos de alavanca. A análise certo, tem, no seu reconhecimento, a da regularidade, pode-se afirmar, passa ao obrigação de permitir a inteligibilidade largo da norma, pois não utiliza nenhum política da justiça. encobridores, tais como os suposto equilíbrio entre as faculdades da Pois bem, a sociologia analítica natureza humana, e não pressupondo trata de limites, mais especificamente dos desequilíbrio, não oferece qualquer fonte da narrativa sobre regras e envolve o lugar de origem a finalidade histórica. Não há da crença, seu modo de relação com as norma, e há regra, mas está não explica a regras a que dão origem. Contudo, ela não si, pois é remetida ao reconhecimento trata difuso ou concentrado. Ou melhor, vemos composição da crença, o que a faz bastante o reconhecimento difuso, porque vemos o consciente acerca de seus próprios limites concentrado. discursivos. A crença é objeto da filosofia do problema ontológico da A idéia perscrutável pela concepção política e da sociologia teórica, excedendo, de regra de reconhecimento é que existe portanto, a descrição de regras. Dworkin inteligibilidade da vida social em função gosta de perceber a si mesmo como da regularidade dos fenômenos, em virtude filosoficamente denso, diante de um da regularidade concentrada do direito, despreparado Hart, que descreveria regras, podemos perceber o fim da regra, de por mais não poder fazer, em virtude de alguma forma, um fim cíclico, envolvente, suas limitações intelectuais11. Mas o caso é portanto, do locus do reconhecimento, que a sofisticação hartiana, a Dworkin aquilo que a tradição cética chama de escapa. Pois, por mais que a regra de território da crença. O mais interessante, reconhecimento, por nós agora denomina contudo, se notarmos bem, é que a política de concentrada em oposição ao caráter institui a concentração que servirá de difuso de outros jogos sociais, passa a ser regula para que possa ser vista. Esse é um explicada pela regularidade da convenção; dos sentidos pelos quais a concepção de e o consenso que é capaz de expressar a CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 60 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA investigação “interna” da crença, demanda Sendo supostamente Dworkin um aquilo que Hume chamou de ciência da metafísico, natureza humana, que, por definição, é impropriedades, dentre as quais a de julgar mais ampla do que a ciência da política e que enunciados conceituais não podem do que a jurisprudência12. compreender a si comete bom algumas mesmos como Dessa forma, a crença demanda enunciados morais – por certo que Hart e algo de especulativo que é vedado à Berlin julgam que descrever um objeto é jurisprudência, mas que tem as suas melhor para o mundo do que não descrevê- circunscrições por ela indicada. Por mais lo –, de modo que toda asserção sobre a que caráter natureza discursiva das coisas deveria ser alucinatório da crença, quando imersos na sempre feita por um parvo, que julga que investigação da natureza humana, sabemos seu enunciado não possui força instituinte, que a necessidade da crença não é diante do objeto sobre o qual fala. Dworkin alucinatória, e uma das evidências é a contrapõe, ao parvo positivismo legal, o circunscrição regular que aponta o lugar da filósofo interpretativo que dissimula em crença13. Se o vício do aguilhão semântico seu enunciado algo que se aproxima do consiste na ignorância acerca do lugar da consenso. Mas se a dissimulação é um fato crença na criação da experiência política, da no beneficiamento do que chamamos de admissão não nos priva da possibilidade de redução da crença à regra, o oposto descrever, com rigor, aquilo que aparece, correlativo dworkiniano também não é admitindo, inclusive, que o rigor descritivo melhor, a opacidade sobre o direito, pois faz parte da moralidade com que nos na hermenêutica ele é tudo e não é nada, aproximamos dos objetos14. precisemos admitir o linguagem, parece-nos que essa também não é esclarecedora. Propomos, Existe, por outro lado, a parvonice nessa medida, a província do direito metafísica, segundo a qualquer teoria da determinada pela regra de reconhecimento, construção de objetos é uma ação de como impossibilidade inauguradora de uma tradição descritiva. então Pois estabelecer bem, virtuosamente capaz de revisitar a temática devemos certa própria ao ceticismo filosófico. Mas por radicalidade ao nos opormos, não à quê? Porque a regularidade jurídica e metafísica, mas à parvonice metafísica, social – nas invenções políticas – faz contraponto à narratividade opaca a relação melhor sentido, quando vista no contexto de penumbra existente na regra que da instituição. denuncia a localização da crença. A neutralidade descritiva não se pretende CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 61 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA natural, espontânea ou apenas possível em não significa ter consciência de um dever, sua ingenuidade parva. e, para além disso, na inexorabilidade da Seria um reducionismo imenso invenção do mundo pela descrição, não temer o silêncio do positivismo jurídico está em jogo, e efetivamente não acontece, sobre o tema da imaginação social, tendo-o a norma sobre o mundo15. Na descrição o como eloqüente de uma suposta anuência mundo será inventado e minha descrição se com a secura da teoria social. Por outro parecerá comigo, mas não mais do quem lado, se expandirmos a nossa interrogação qualquer outro enunciado. Dessa forma, a para além de Hart e Kelsen, veremos que relação que o positivista tem com o direito não se sustenta a falta de imaginação dos é a de descrevê-lo e não a de inventá-lo, positivistas com relação à política. De uma apenas na proporção em que isso é possível perspectiva metatéorica não há como não ao mundo da natureza humana16. E tal se nos utilitarismo dá em virtude de uma concepção ampla de teológico de Austin, trata-se de uma teoria moralidade, segundo a qual é melhor fazê- da sociedade profundamente imaginativa, lo. Saber da jurisprudência como atividade ou, mesmo, aquilo que Hobbes precisa descritiva, construir, para criar a autonomia do direito, superioridade moral da descrição sobre a é, na verdade, um belo instante de normatividade hermenêutica, não equivale imaginação. Assim, não seria obtuso a conceber a alteração do objeto na admitir que o positivismo jurídico é uma descrição e nem julgar que a descrição não tese de filosofia política, prioritariamente altere o mundo. Mas apenas que a liberal, de atividade descritiva, ao apontar a separação pasteurização histórica, mas, sobretudo, de entre o direito e a moral, aplica sobre o moralidade política. mundo um contraste, que ao mesmo tempo espantarmos se com quisermos o brincar e ainda conceber a A obra de Dworkin confunde a em que estimula a inteligibilidade da inexorabilidade da invenção de mundo, separação, aguça o interesse pelos seus com a normatividade da descrição. Por efeitos, dentre eles, a revivescência da certo que toda vez que enunciados são esfera pública e política. feitos, algo é fabricado, em alguma Seria tolo se o positivista jurídico parcela, no mundo. E até mesmo buscar não percebesse a agência política de suas não inventar o mundo, em paráfrase a teses, mas até nesse ponto foram mais Aristóteles, dimensão hábeis em exercitar o olho descritivo e negativa. Pode-se dizer que há algum circunstanciador sobre o direito, pelo comum entre construir e cavar. Mas isso menos nos casos de Hart e Kelsen, ou, de é fazê-lo em CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 62 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA Hobbes e Austin. Não devemos esquecer a Já vimos o porquê da falsidade do intensidade ficcional do ensaio Are There enunciado precedente. Mas admitindo que Any Natural Rights?, no qual Hart organiza há componente teórico na fabricação dos um sistema de imagens políticas para mundos, podemos ainda indicar que um abrigar da cético compreende a justiça no campo da liberdade, em sua afinidade com o moralidade. Por causa da moralidade exercício da decisão na vida ordinária; não política há pertencimento. a com habitualidade não ver nesse política ensaio, a representada por Existe, esse pois, um circunscrição de uma política, na qual o enfrentamento com os normativos de direito poderia ser descrito de modo atrelamento do direito à justiça, no autônomo17. incentivo de uma excessiva amplitude à Contudo, o que a percepção do moralidade, fazendo-a tudo e nada. A positivismo jurídico, e sua jurisprudência, posição cética é, antes tudo, contrária à – enquanto pressupondo uma teoria social vulgarização da moral. Por isso, não há que permita ao filósofo político especular qualquer contradição no fato do cético acerca da natureza instituinte do lugar do encontrar na vida cotidiana, justamente direito – torna clara é a diferença entre aquilo enunciados normativos e inexorabilidade ocorrência de a sorte do cético, semelhante da mudança do mundo. O positivismo ao fato de desejar a pluralidade dos jurídico não olvida a mudança provocada mundos, antes mesmo de poder vê-la. que defende; chamemos tal no mundo, mas percebe que a contribuição O que poderia ser dito para salvar a do direito para esse processo é negativa, na norma é dizê-la pertencente a uma moralidade, e ativa, na imoralidade, de gramática modo que deve se retirar do espaço público evidentemente, do positivismo jurídico. o mais que puder, para que ele possa Para aparecer, enquanto plano disponível à pressuporia uma filosofia da história, instituição. quando não uma filosofia da natureza. uma Assim, Sei bem que os filósofos da justiça céticos – os que argumentam que a justiça está apenas nos olhos do espectador, ou que as alegações de justiça não passam de projeções de emoções – muitas vezes supõem que suas próprias teorias são neutras18. filosófica praticadas outra, gramática as confusões por Dworkin distinta, filosófica que hermenêuticas cederiam se camuflariam por uma indistinção entre gramáticas. Ou seja, sua filosofia seria uma tentativa de demonstração da normatividade de enunciados regulares, enquanto inviabilizadora da filosofia CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 63 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA política orientada do historicidade do mundo. O argumento positivismo jurídico e sua jurisprudência, cético que apresentamos à hipótese da nas suas muitas acepções. Pela simples normatividade se dá nos termos da razão admissão de por inventarem o razões mundo que da imaginação, enquanto descrevem. Todavia, essa tentativa de inventora do mundo social, e, inclusive, salvamento, bem intencionado, da filosofia das ditas faculdades, até mesmo, do da norma, não se sustenta, como já dito, suposto conflito; nesse contexto, descarta- em virtude da distinção profunda entre se a normatividade. Se entrarmos um gramáticas, e, nesse caso, em virtude da pouco mais na discussão da normatividade, diferença entre ver um objeto e ver um teremos objeto que se quer ver. Em última precisamos instância, o problema com o enunciado entendimento e à imaginação a norma pela normativo se deve ao próprio conceito de qual o nosso conflito interno deveria ser norma, incamuflável, quimérico como ele resolvido, não havendo essa primeira só, uma vez que para mudar o mundo não norma fundamental, o vínculo normativo preciso admitir que seja da essência do com a história não é estabelecido e não mundo histórico ser mudado. Ou mudado teremos como dar uma resposta normativa de tal ou qual forma. Até quando digo que para a questão da finalidade humana. A X é melhor do que Y, não é em função da única resposta que o cético encontra para o normatividade, mas da relação de X com o problema da finalidade é a crença. A valor atrelado a boa existência humana e a finalidade da natureza humana é suportar crença de que ela pode ser perseguida. as crenças que lhe dão mundos. Dentre que argumentar da razão a que não dizer ao A fonte da normatividade, como esses mundos, a moral e seus conteúdos dissemos, é o conflito entre as faculdades mínimos a sustentar o direito, que se da natureza humana e efeito que a razão esforça para não interromper a política, por tem sobre as faculdades em desequilíbrio, que outro nome não pode ser dado à provocando, dentre outras conseqüências, necessidade certo condicionamento da história, que instituir mundos. da natureza humana de pode ser chamado de finalidade. Outra Mas se ainda quisermos salvar a fonte derivada da normatividade é o norma, podemos ressaltar a tolice da esforço reflexivo oposição humana para feito pela natureza chegar a todas entre descritividade e essas normatividade. Não porque toda descrição conclusões sobre a história, bem como, a seja normativa, mas porque a norma é reflexão sobre a finalidade humana na incapaz de descrever. Não há oposição, CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 64 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA mas apontamento da inadequação da Se pensarmos nas crenças políticas gramática normativa para lidar com a que sustentam a experiência da autonomia política e a moralidade (ou deveremos do esquecer que Rousseau nos recomenda o evocarmos afastamento do fato, para pensarmos a encontrarmos termos que denotam os norma?). Assim, quem descreve o faz por conceitos de liberdade, democracia e uma relação entre crenças e regras, o que justiça, não só teremos que nos perguntar significa a não-naturalidade dos fatos, pois sobre as circunstâncias do artifício, quanto toda descrição é inventiva e tal não se acerca de seus critérios de verdade. Dessa confunde com a norma. A normatividade maneira, completa se dá numa suspensão do juízo à democracia e da liberdade será uma crença (o transcendental é o programa de questão de província, e nunca de essência, tal epoché). Por essa razão a norma é questão essa que nos coloca diante da incapaz de descrever, porque ela não vê o necessidade de inventar uma linguagem certo, de capaz de sustentar essas expectativas. A crenças, ela quer estar certa em sua invenção de uma linguagem, nesse caso, filosofia da história. Descrever implica corresponde à invenção de um mundo. Mas numa virtude moral não-normativa, na se ainda assim estivermos a descrever em recusa de uma gramática, mas implica um mundo que não sustenta uma eloqüente também em mudança, aquilo que não se linguagem da liberdade, um bom início quer mudar não se deve descrever, porque para se permitir que um dia possa fazê-lo é a descrição acrescenta coloração aos encontrar objetos, e, até mesmo, os inventa. Assim, é distinção entre direito e moral. Talvez essa certo que todo enunciado conceitual possui seja a dobra que permitirá que tal ou qual um valor, tal como toda descrição é linguagem possa mais em matéria política, valorativa e até mesmo a neutralidade é um que seja mais ou menos instituinte. num determinado sistema direito, valor, nem que seja o valor conceitual. Mas quando descrevemos um objeto não mais o a a especificamente, seu verdade região vocabulário, do direito, arquimediana ao e da da Mas por que interpelar essa região de fronteira? Porque nela a significação da simplesmente participamos da mudança linguagem das regularidades, e, conseqüentemente, de transfiguração, nela o filósofo político sua exercita o poder de definição, nela os crença, mas dos esforços de são política feitos é em forçada conceitos. à vislumbramento do quê na crença pode valores A mudar, e, mais ainda, vê-la mudando. analiticidade na política e na jurisprudência é complementar, porque a primeira inventa CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 65 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA a possibilidade moral da autonomia da inventados, e dependentes de crenças, segunda. seriam Quando Berlin percebe a menos reais do que outras liberdade e a igualdade como pontos de entidades? Por certo que não há diferença sustentação da descritividade da política, entre a realidade e o aspecto inventado dos ele não quis com isso defender uma valores sociais, num primeiro momento a definição pela ausência de dúvidas, como descoberta e a invenção se equivalem. nos leva crer Dworkin em seu ataque à Todavia, apenas a invenção nos dá filosofia da linguagem, inteligibilidade sobre a mudança social e a enfrentar enquanto localidade da moral. Apenas projetos oportunidade conceitual. Julgo que Berlin inventados se modificam, os objetos reais, via pouco, ou não suficientemente longe, ou naturais, apenas se transformam. Ao no que concerne ao conceito de política, aplicarmos a vontade de transformação mas é inegável que igualdade e liberdade sobre a realidade, vemos apenas a intuição tencionem a indiscernibilidade entre moral, e nunca uma coisa. Dessa forma, a jurisprudência19. Assim, o diferença é que a realidade dos valores esforço de definição, de analiticidade inventados é dependente de sua irrealidade. descritiva, também é esforço de invenção Ou seja, ao inventarmos valores, aquilo de mundos. Nesse caso, de invenção de que não percebemos, o que não foi contornos para o mundo político, e, descrito, mesmo inconscientemente, faz portanto, de circunscrição negativa à moral parte da nossa vida. Assim, seria absurdo e à política. Mas se trata de esforço não- ter a realidade do que é inventado. normativo, de modo semelhante a se poder Dworkin, nesse sentido, não tem uma falar num não-objeto ou numa não- teoria social e isso o permite tirar normas dramaturgia, da casaca. O engajamento e o conceito não política a mas procura e indistinção pois, nesse assunto específico, não existe evidência, nem vinda do passado, nem vinda do futuro, mas tão são Dworkin parece seguro ao afirmar à neutralidade e à 21 descrição . somente a aplicação de contraste sobre uma distinção que não se vê. contrários A tese da descoberta da justiça, como entidade “comparavelmente que tem um valor fundamental [...] à que a “liberdade como valor não depende estrutura do metal”, não só é ilógica, da invenção, da crença ou da decisão de quanto inaceitável. Pela simples razão de ninguém20”. Mas antes mesmo de ficarmos apontar absortos com esse enunciado, devemos comparáveis perguntar: - Por que valores sociais contexto, a melhor decisão possível será a elementos à de decisão genialidade. CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 Nesse 66 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA sempre tautológica e a legitimidade do juiz o cientista social na perscrutação dos tão circular quanto. Em circunstâncias limites da moralidade. sociais de adesão religiosa, esclarecida ou Autores como Dworkin, ou até não, pode existir alguma sensação de mesmo segurança em enunciados tais como: “eu compreender a justiça, a democracia e a sou aquele que é”. Mas em qualquer outra liberdade, porque com um vislumbramento dimensão exigiremos razões descritivas consensual de essências podemos viver para aderir ao ser. Por essa razão é que melhor, mas só podemos entender a boa fé enunciados sobre liberdade e justiça são do conselho se a ele concedemos o sempre benefício da parvonice do algoz. Por vezes, precários. A precariedade Rawls, enunciativa é um fundo falso que esconde alguns os as franqueados apenas aos algozes, e apenas uma quando a vítima no lugar dele se coloca, é irracionalidade no medo à petição de que pode compreender as suas razões. Mas princípio, é o preço que Dworkin paga por este exercício é um tanto imoral. Porque recusar os séculos de teoria social. Além apenas numa perspectiva muito segura do que, se ainda insistirmos em nossa poderia nos ser exigido nos colocarmos no crença no gênio, não quereremos que ele lugar daquele que tem o conceito e que apareça no judiciário. Há coisas melhores julga que a descrição de uma prática é para um gênio fazer pela humanidade. dispensável. conjuntos cristalizações enunciativos de valores. e Há modos de recomendam-nos Noutras ingenuidade palavras, são apenas Ao vencermos o medo da petição segundo a parvonice do algoz uma crença de princípio, uma vez que na relação social descritiva pode parecer uma norma, para o entre crenças e regras nada é simplesmente resto de nós, existem apenas conflitos entre o que é, podemos até mesmo interrogar o crenças. valor de um valor, mas o que encontramos Quando Berlin procura ser são os hábitos que permitem os valores e a analítico, por outro lado, e isola a relação estabilidade que permite que seja feito em entre liberdade e igualdade, ele ensaia uma instituição. A duração de um fenômeno saída à parvonice do algoz. Ele, de alguma instituinte é assombrosamente circular, forma, contrapõe a essa cegueira uma mas como essa circularidade, por assim atenção aos elementos compositivos da dizer, enferruja a instituição, a coloração política. Parece que Berlin não se equivoca assumida pelos valores que penetram no na direção escolhida, o duplo, liberdade e tempo, exercitando a conservação, ao invés servidão, é mesmo uma constante em de passar com o tempo, sempre surpreende qualquer instituição política. Mas se CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 67 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA pensarmos bem, e aceitando a direção reconhecimento correta, não só o duplo, liberdade e moralidade e direito se deve a isso, o servidão, sugerido por Berlin, mas o duplo, direito, ainda que manifeste elementos liberdade e igualdade, muito embora semelhantes à moralidade, ele faz parte dos acertem o foco do olho, fraquejam em modos de exercício da crueldade e não dos agudeza. modos de atenção, tal como a moralidade. O duplo, liberdade e servidão, da distinção entre É o caso de começarmos a delinear a presente no Tratado Político de Spinoza, distinção da crueldade descreve o lugar da igualdade, enquanto crueldade da jurisprudência. política da preenchido pela vontade de realização da Ainda que a moralidade apresente liberdade, ou de menos servidão. Dessa aspectos repressivos, esses funcionam forma, existe no estudo das relações entre como barreiras ao aprofundamento da moral, a crueldade. A perscrutação moral é útil pela necessidade de uma sabedoria prática da atenção aos elementos encobridores da profundidade. É preciso saber até onde crueldade, ou seja, aqueles que soterram a podemos sua visibilidade, permitindo, assim, o seu política e jurisprudência desencobrir para termos o aspecto fundacional da experiência vista, arraigamento mas também precisamos saber o limite. oposição Mas por que o limite nos interessa? Porque jurisprudência, ainda mais quando nos depois de certo ponto de agudeza do olho, interessamos pelo aspecto da invenção o objeto político se desfaz num infinidades política. entre na sociedade. a moralidade Existe e a de fragmentos homológicos. Até mesmo saber do limite, para provocá-lo, é interessante, pois as distinções podem ser fazer tão estáticas, que o único modo de RECONHECIMENTO E CRUELDADE voltar a pensar é redescobrir homologias. Assim, é necessário ultrapassar um pouco o olho de Berlin, mas nos interrompermos antes da homologia. Penso que devemos avançar para além da liberdade e da servidão, parece que a crueldade é um elemento de fundação mais relevante à política. Um pouco mais profundo, por assim dizer. O O positivismo jurídico possui uma gramática não-normativa, e o fato de Kelsen ser dito um normativista, não poderia, pelo foi dito, ser tomado com um filósofo da norma. O efeito da norma no pensamento de Kelsen afeta apenas à ordem jurídica, ele é normativista no sentido em que podemos falar do início do CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 68 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA fetichismo do sistema de regras, mas que precisamos ir tão longe, na verdade, como não se confundem com os conjuntos das dissemos, se formos muito longe, se regras morais. O sentido da norma, em aguçarmos excessivamente o olhar, o Kelsen, é distinto daquele presente no que direito e a política se dissolverão na se convencionou chamar de filosofia da homologia dos fatos sociais, ou das dores história, que em poucas palavras pode ser sociais, e não é o que desejamos. Por isso, dito como uma normatividade transversal, interrompemos a agudeza dos olhos, do vinculadora olhar da moralidade, da sobre a crueldade. Ela jurisprudência, do Estado, da história, e, suficientemente por vezes, concerne a uma filosofia da corresponder a necessidade de adesão e natureza. Dessa forma, o positivismo enfrentamento. A crueldade, enquanto jurídico, por não ser uma filosofia da tema, transversalidade normativa, precisa sempre filosófico, é percebida como aliciadora da pensar a relação distintiva entre os objetos. crença, no sentido de que a ela diz que A preocupação com a distinção entre moral devemos manter tal ou qual dor em certa e jurisprudência é também constitutiva circunstância. Evidente que se trata de uma dessa maneira de pensar. dor conservada no Outro. por ambivalente é excelência, do para ceticismo Nesse sentido, a descritividade A crueldade do direito participa da conceitual do positivista jurídico, em sua crueldade política, mas ainda assim dela se analiticidade, aceita o acréscimo de um distingue. O primeiro modo da distinção novo objeto, seja inventado pela filosofia concerne à intensidade. A política é muito política, seja resultado da inexorabilidade mais cruel do que o direito. Por isso que da invenção na linguagem. Mas quando trocar a política pelo direito, parece, num aceitamos que o “direito é um conceito primeiro momento, muito encantador. O político”, o que não quer dizer que o político, acréscimo de objetos depende, sobretudo, personagem, seja menos altruísta do que o da manutenção. Em última instância, tal seu correlativo no mundo jurídico, na manutenção é filha de um desconforto verdade, mormente, vemos o contrário. Até social. Por mais virtuosa que seja a mesmo o extremo vício do político parece permanência, pelo artifício que significa, tentar se justificar sob formas, mais ou sempre envolve alguma sorte de dor, nem menos depravadas, de altruísmo. A política que seja a dor da frustração de não poder é mais cruel, porque ela é o nome que mudar denomina os primeiros atos de significação podemos algo independentemente perceber pela das que vontade, razões. Não da esfera pública. Nela estão os momentos CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 69 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA de provocação ambivalência somente torna opaca a perspectiva sobre a estruturadora dos sentidos sociais. Para crueldade política. O direito não resolve a falarmos política crueldade política, apenas nos impede o denomina aqueles eventos com relação aos seu vislumbramento. Ainda nesse caminho, quais a crença instituinte de uma regularidade por não da acidentes: sabemos se a com a sua necessidade temos relação de dor ou de jurídica prazer. Nesse sentido é que na política a contemporânea da crença política, ou ter a forma humana é mais vívida. Ou, quando origem no mesmo evento, mas dela é ausente, distinta. Irônico é perceber que numa a desfiguração é mais preocupante. pode, até mesmo, ser perspectiva narrativa sobre a história, nem Uma olhadela nos levaria a crer no sequer temos oportunidade de desconfiar, seguinte sistema: (1) a crueldade se de que talvez a imoralidade nos esteja institui, (2) sua habitualidade demanda o sendo vedada, quanto a sua percepção. aparecimento jurídicas Dentre as epistemologias do direito, apenas reguladoras da crueldade e (3) progressiva o positivismo jurídico nos faz atentar para minoração da crueldade pela regularização a crueldade que o direito esconde. E isso promovida pelo direito. Nessa perspectiva nada tem que ver com o tamanho do mais distraída, o direito poderia ser Estado, ou a orientação popular ou elitista percebido como o antídoto histórico da da esfera pública. de formas crueldade política. Dizendo de modo De modo derivado, poderíamos ontológico, chegaríamos a tola conclusão dizer que o direito não possui crueldade de que o direito devolve, em tênues cores, que não seja a de encobrir a crueldade um rosto humano perdido, por excesso de política. A violência é um dos modos do intensidade instituinte. Mas se tivermos encobrimento. Apenas de modo impróprio alguns minutos excedentes para gastarmos poderíamos perceber relação da política com a questão, perceberemos um sistema com a violência, a política não é violenta, outro. Na verdade, a um investigador um ela é cruel, o direito é violento, pois ele é pouco eficazmente mais aceso, a despeito da encobridor da crueldade. complementaridade na experiência entre Assim, se afirmamos a diferença entre a direito e política, e, até mesmo, de sua crença política e a do direito, e suas indiscernibilidade, a regularidade jurídica respectivas regularidades, devemos admitir não que a crença do direito é distinta, mas civiliza simplesmente a crueldade porque a política, regularidade política é política e não jurídica, mas tão dependente da crença política. Hart percebe o espaço de transmissão da CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 70 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA dependência como apontado pela própria uma estrutura regular pela qual as crenças dinâmica das regras de direito. As regras jurídicas jurídicas se organizam como um mapa do cognitiva, de uma perspectiva moral, o tesouro, reconhecimento é a aceitação natural de indicativo do início da aplacam estado a de nossa angústia dependência. As regras que regulamentam um imoralidade. Se obrigações, e as obrigações, apontam para naturalizarmos o sistema, o que teremos o reconhecimento. Dinâmica cognitiva pela serão regiões jurídicas e políticas da qual o direito diz à política que prefere experiência pública, dentro das quais a obedecer a desobedecer. crueldade se institui por obliteração do O reconhecimento não é uma direito sobre a política, a crueldade não é crença, mas uma regra apontadora da vista por aceitação da violência legítima, e, referência das regras. Trata-se de uma noutros regra que possui um pé no direito e outro falha, deixando a crueldade à sua própria fora dele, um pé na violência e outro sorte. Num certo sentido, uma crença naquilo que é necessário ver para aceitar a política não tem reconhecimento, posto violência em detrimento de lidar com a contar com a intensidade da instituição, e o crueldade. A regra de reconhecimento reconhecimento é o reconhecimento da pode fazer com que os homens olhem para insuportabilidade da lida cognitiva com a uma constituição, para uma pedra, para um política. evento histórico, mas, principalmente, ela preparado pela política, apenas no sentido existe criada pela demanda de um lugar em que reage a ela. momentos, Assim, o o reconhecimento reconhecimento é para olhar. Hart diz que a regra de “O direito é um conceito político”, reconhecimento é mais social do que mesmo que as regularidades da política e jurídica, uma vez que as regras de direito do direito sejam distintas. Cabe notar um existem um exagero do iberismo em encobrir a política, fundamento não jurídico para o direito. e tal pode representar uma dinâmica Todavia, de própria à política de se fazer encoberta não pelo direito. Assim, o direito pode ser uma inteiramente jurídica, ela aponta para invenção política, cuja marca seja a existência de autonomia das crenças a realizar, com jurídicas. Se, frente à ainda demanda que reconhecimento seja regra social, crenças de a de e eminentemente uma perspectiva maior ou menor intensidade, a topológica, a violência existe para que haja transfiguração pública da crueldade em opção da violência. Se a moralidade não fosse mais crueldade, o que faz do reconhecimento ampla do que a política, seríamos eternos à quase insuportabilidade CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 71 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA reféns da nossa cegueira. Assim, cabe a Lukács, por exemplo, diria sobre a moralidade efeitos de neutralização de necessidade ontológica de avaliação do certa naturalidade com que a crueldade se fenômeno instituinte. Aqui, basta-nos a faz violência pelos motivos da crueldade. orientação conceitual presente no fato de Nesse sentido se precisássemos escolher que a história das fontes é a narrativa de um de transfiguração da crueldade em violência. vislumbramento, por parte das crenças De que reconhecer é também não ver. morais, do modo pelo qual as crenças Além do que, a crítica do direito é a políticas levam à instituição de crenças desmontagem dos modos pelos quais ele jurídicas, cujo exercício seja a opacidade nos faz aceitar não ver a política. imperativo, ele seria o encobridora acerca das crenças políticas. A Dworkin, numa outra chave, tentativa de confundir a moralidade com o valendo-se de uma profusão de exemplos, direito nada mais é do que a dilaceração da parece concordar com a falta de evidência possibilidade de se julgar e criticar o das fontes, de que elas precisam ser encobrimento da crueldade. interpretadas a partir de uma visada moral Percebamos que a diferença social pela teoria política; mas perde o aspecto entre as crenças morais, políticas e crítico de tal intuição, ao menosprezar a jurídicas organiza a distinção entre os seus relevância conceitos. que, experiências, e, conseqüentemente, da historicamente, podemos distinguir entre necessidade da distinção entre moral, diferentes instituições encarnadoras dos política e direito. No mundo de Dworkin, conceitos, muitas concessões são feitas a título de compósitas, De tal mesmo como forma sendo o fortemente especificidade das cuja beneficiar a indiscernibilidade. Trata-se, diferença quase, de modo irreflexivo, que portanto, de juridicizar, num primeiro define a juridicidade. Assim, as instituições momento, e, depois de fazê-lo com relação do passado valem de fonte para o à crítica moral. O cenário de Dworkin ao julgamento das instituições do presente, e descrever esse é também o sistema pelo qual “interpretacionistas” parece ser: aqueles documentos político-jurídicos servem de que defendem a separação prejudicam os fontes do direito, mas sabermos que o demandantes sociais mais fracos social e reconhecimento economicamente, do judiciário, da direito pela os “separatistas” em e os compensação, transfiguração da crueldade em violência, aqueles que integram direito, moral e faz-nos atentar à necessidade de uma política ajudam os mais fracos, pois orientação conceitual para ver as fontes. afastam a lei e aplicam os princípios22. CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 72 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA Mas parece existir um problema com esse começar a resolver significa expor a raciocínio. Justamente, porque não é existência da falha política que o impede possível de levar sua finalidade a bom termo23. extrair um princípio da indiscernibilidade, pois um princípio se Hart afirmou que a moral se torna pertinente para a identificação do direito quando alguma ‘fonte’ tiver determinado que ela deve exercer esse papel, citando as cláusulas constitucionais abstratas da constituição norte-americana como exemplo. Mas ele interpretou mal a situação do direito constitucional norteamericano. Não existe consenso nem a favor nem contra a interpretação moral da constituição: ao contrário, essa questão é objeto de feroz divergência. Incluo-me entre aqueles que endossam a interpretação moral que Hart parece ter em mente24. mostra na experiência da relação do que é distinto, sem a distinção o princípio apenas pode ser pensado enquanto norma e origem, ou seja, arbitrariedade. Hume dizia, já no século XVIII, que a ciência da política pode conhecer os seus fenômenos, porque esses apresentam regularidades, a partir das quais são fabulados princípios. Dessa forma, não há o que objetar quando falamos que os princípios aplicados ao De alguma forma, justiça deve ser direito são, sobretudo, conquistas políticas. feita Ver um princípio é uma vitória sobre conceitualismo holista tenha conseguido elementos encobridores. A moralidade não chamar a atenção para algo que passou deve sanar os defeitos da lei. Ela deve despercebido – em função das formas expor a crise da lei. Se a lei surge como vulgares carente de suplência interna a ser suprida principalmente aquelas de matriz ibérica pela moral, exigente de uma retórica que uniam positivismo e controle social complementar, talvez haja algo de errado pelo direito –, que a política, a moral e o na política, que é tornado opaco pela direito própria demanda jurídica de complemento conceitualmente orientados, o que faz com moral. Então, se o direito precisa não que a crueldade se torne “invisível” sem aplicar a lei ligada ao princípio, ela não um argumento de crítica da crueldade. precisa de um novo princípio derivado, Dworkin, acidentalmente, faz-nos ver o para sanar um conflito político, de modo telhado de vidro de Hart. Numa primeira particular, mas compreender o que há de chave, poderíamos dizer que é um telhado errado na relação entre a lei e o princípio. mais e mais fragilizado pelos costumeiros Um julgador age com imoralidade política intérpretes da obra de Hart, que recusam o quando encobre um conflito em benefício seu peso com filósofo político, posto que de aplacamento individual. O direito ignoram o tema do conteúdo mínimo do a Dworkin, do são talvez o positivismo fenômenos seu legal, humanos resolve conflitos, não deve encobri-los. E CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 73 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA direito natural, em benefício de um errôneo na relação pública entre moralidade, fetichismo da regra. Numa outra, e nos política e direito. permitindo esse pequeno efeito sofístico, o Se a regularidade ao apontar a telhado de vidro de Hart é diretamente crença, pelo reconhecimento, desqualifica ligado a sua verdade. O seu telhado de a homologia e incentiva a distinção, o vidro se deve ao afastamento aparente do conceito serve como reserva epistêmica de conceito para, pelo benefício à regra, que é operacionalizado pelo princípio. O interromper ocultamento valor promovido, pela agência conceitual normativo. Mas essa empresa o faz deixar da crença, não é universal, mas possui uma o conceito na esfera daquilo sobre o que universalidade mínima. A sua forma não de pode falar. O conceito, para Hart, universal não está no conteúdo histórico, parece estar na fronteira do direito. mas na forma mínima de estabelecimento. cadeias de Assim, em sua crítica a falta de Dessa forma, perceber o modo pelo qual as eloqüência do conceito na obra de Hart, crenças se cristalizam, e a partir disso, Dworkin está certo. Mas a virtude não enunciar princípios, cuja presença no estaria no conceitualismo. Parece que o campo público é construída, por modos da desocultamento da crueldade é mais bem sociologia da crença em seu uso descritivo, promovido pela sociologia descritiva do concerne também a defender os valores que que na holística. Mas a sociologia permitem o mínimo humano descritiva, sem o conceito, ao invés de vislumbrador da crença, dos princípios e revelar a crueldade, apenas inverte a dos valores. Nesse sentido é que um valor epistemologia, tornando o ocultamento que muito se desloca da percepção da pela falta de regra num ocultamento pelo vulnerabilidade humana tem tudo para ser excesso. Existe uma inibição utilitarista em um mau valor. No campo do direito, o Hart, mas existe também uma forte revisão positivismo legal visa ao estabelecimento da teoria da crença de Hume, ligando à de critérios pelos quais possamos distinguir inteligibilidade, pela regra, um bom de um mau valor. Assim, a crítica províncias das da crueldade depende de defender o valor experiências. A distinção oferecida pela mínimo da forma humana mínima, de regra é uma excelente arma para a crítica, modo à complexidade das instituições não desde que orientada pela percepção de que tornar opaco o rosto humano nas coisas. regras são dependentes de crenças, e que Pois bem, a crueldade estará lá, ainda que explicitam os seus movimentos. Mas ainda não seja um valor vê-la. Não é preciso nos resta saber para que serve um conceito endossar modos piegas do humanismo, delimitadora oferecida das CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 74 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA para ter na figurabilidade humana um nosso objetivo encobrir a política. O valor valor, não seria estranho dizer que há político pode ser desagradável, mesmo muito sendo neutro. Mas nisso há um efeito de de abstrato e construtivo na figurabilidade do rosto humano. moralidade maior do que deixar de ver o Como citamos na nota referente à desagradável da disponibilidade página 139 da edição brasileira do ensaio experiência política, em de Dworkin sobre a filosofia política em defender um desejo ou um delírio. da função de Hart, Dworkin julga que o conceito A regra de reconhecimento se torna apontará para a defesa de um valor a jurídica, ainda que não seja jurídica, mas vincular os campos da moral e da política. social, na figura da fonte. A estrita Ou, se for uma história política, o fará nos percepção da fonte do direito é necessária valores de liberdade e igualdade, de modo para o evitamento da crueldade. Isso a tê-los como habitantes da morada porque uma população deve ter diante dos provincial do direito. Não é a toa que a olhos o fato de que reconhece as crueldade política seja ignorada em sua ignonímias que assiste. A fonte é a direção filosofia, apesar de seus ganhos na pública dos olhos para o ponto de virada da interpretação do conceito em direito, crueldade, claramente de encobridores presentes na transfiguração Assim, em violência. Além do que a fonte é, e politicamente, há que se reconhecer que a deve ser, um artefato evidente de um liberdade e a igualdade não servem como momento da imaginação pública. Digamos, valores a fonte é sempre um índice de sua exerce encobrimento à expositivos um discurso crueldade. do mínimo, da elementaridade de nossas crenças políticas. Há muita narrativa no par liberdade e na direção dos modos crueldade. Existe, pois, relação entre a igualdade para que nos defenda da crueldade e a legalidade. De alguma forma tendência política a nos anular pela é a legalidade, politicamente conquistada, crueldade25. O valor político a ser visto na que afirma o limite do aprofundamento da instituição é a crueldade mesma, para crueldade em certa realidade social. Mas, depois ser vislumbrado o par narrativo: inverter a relação entre crueldade e liberdade crueldade, legalidade, de modo a fazer dessa um hermeneuticamente, oferece uma direção exclusivo fenômeno de transfiguração em conceitual de crítica moral. Por essa razão, violência, é moralmente prejudicial. Se a o valor mínimo de estruturação da vida legalidade é o conceito pelo qual vemos a pública só poderia ser jurídico se fosse crueldade, e igualdade. A todo espaço público CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 para 75 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA concernir à frivolidade da violência. Isso moralidade é o assunto. Nesse sentido é pode ser visto na dependência da liberdade que o positivismo legal nos permite, e da igualdade com relação à legalidade, a moralmente, saber quando a moralidade estrita legalização do par “liberdade e deve sair de férias. Efeito esse que nos igualdade” marca o tempo com tristeza permite descrever a crueldade, na frágil paciente. Por outro lado, quando liberdade objetividade possível, mas também corrigi- e igualdade são modos de observação da la na pictorialidade projetiva da ontologia crueldade, conceito política26. Dworkin julga mal a tese da nascente do perigo da brincadeira com separação, e distinção, entre moralidade, fogo, faz da liberdade e da igualdade mais política e direito. Ele o faz porque a do que adorno e complemento, mas concebe como proveniente do medo, de necessidades a alguns sectários, de que os juízes possam instituição. O direito é uma péssima mudar o mundo ao se disporem a afastar a morada para a imaginação construtiva. Por lei pela necessidade de fazer justiça, essa razão, deve ser defendida a tese do motivados direito como experimento de filosofia privilegiado a valores melhores. Mas esse pública. não é medo do positivista legal. Mas sim a densidade vitais na do lida com por acesso intelectual A legalidade vista como conceito que o exercício do moralismo judiciário, político que responde à crueldade política em virtude cegueira acerca da composição acaba por receber naturalidade. Tornou-se da vida social, por tentação de fazer o bem, natural a pregnância da limitação não- estanque os processos de mudança política violenta como dependente das razões que para melhor. A fala prática da solução de fornece à interrupção do aprofundamento conflitos ao ser tomada de modo holístico, da crueldade. Isso torna a legalidade um apenas encobre a crueldade. Na verdade, o encobrimento, ou seja, quando ignorante positivismo legal organiza suas teses sob o de sua crueldade, apenas uma descrição fato de que o direito não muda o mundo, proveniente da vontade de poder, em suas mas apenas o consolida. A política muda o muitas formas hierárquicas. Dessa forma, mundo. As crenças que mudam o mundo defender a separação entre direito, moral e são políticas e não jurídicas, para o bem e política de para o mal, e, no mal, o processo se deve separação. Justamente, porque o enunciado ao entulhamento jurídico, sem muitas de separação, tendo em vista a orientação exceções. é um enunciado moral epistemológica da crueldade, não ser uma moralização por outros meios. A O positivismo legal não se liga a concepções sociais ou elitistas de Estado, CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 76 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA as suas enunciações são verdade em pública. Apenas percebendo na experiência contextos políticos distintos, a única coisa o modo pelo qual instituições são crenças é que a sua inteligibilidade pode ser cristalizadas, e a convicção como tensão encoberta pelo moralismo. Assim, a tarefa instituidora, pode ser descrito o processo do direito se torna mais relevante, dar uma de encobrimento. Ele consiste num ardil da prática contrária à vedação de horizonte, imaginação para não ser vista como pela devolução da soberania acústica à imaginação. Apenas assim é que as esfera pública, em oposição às práticas de experiências da política, da moral e do encobrimento. O direito é politicamente direito mostram as suas cores. Uma instituído, ainda que suas crenças sejam primeira evidência está na amplitude. As distintas àquelas da política, mas a ação experiências da política, da moral e do política do direito se dá no apontamento de direito são mais amplas do que suas que não é instância de suplência, mas de disciplinas. A crueldade é mais ampla do participação. Não há nada mais imoral do que a política, o bem é mais extenso do que uma teoria da suplência, e a isso fala a que a moral e a autoridade é muita mais acústica das enunciações públicas. Para extensa do que o reconhecimento oferecido que como pelo direito. Todavia é acertado perceber experimento de filosofia pública, devemos que a experiência é vociferantemente mais situar a acústica na qual se encontra. próxima da imaginação do que das compreendamos o direito disciplinas. Dessa forma, para encobrirmos a ACÚSTICA E JUDICIALIZAÇÃO crueldade, precisamos atentar para a 27 “[...] es ehret der Knecht nur den Gewaltsamen […] ”. “[...] o servo só sabe honrar o violento [...]”. Hölderlin relação de experiência precedência inventiva. A inventa-a-crueldade-que- inventa-a-política-que-inventa-o-direito. A Não é difícil perceber que o vocabulário da preocupação com a crueldade não pode deixar de contar com a articulação de termos como “convicção”, “crença” e “instituição”. Isso por que a preocupação com a crueldade deve contar com elementos intelectuais de perscrutação do processo ativo da imaginação da vida moralidade existe, ou é inventada, de modo reativo a essa natural cadeia de invenções e cristalizações sociais, ela existe por si, mas também para evidenciar a marca da imaginação em cada um dos pontos desse processo, pois a marca da imaginação mostra a fabricação do encobrimento da crueldade. Dessa forma, cada uma das disciplinas humanas precisa carregar a CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 77 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA moralidade para verem os elementos a política pela precedência argumentativa encobridores do que fazem. Em função de de uma sobre a outra. Na relação de baixo sua natureza por vezes parasitária, a moral risco, sob o argumento da segurança da é a mais humana das disciplinas. Se a autoridade, judiciário e legislativo fazem experiência pode ser mais geral ou um pacto de cegueira dominado pelo particular, e é sempre mais ampla do que legislativo, mas apenas como lugar de as disciplinas, trata-se de função da moral expectativa de decisões, mas possível pela manter da anuência judiciária. Na relação de alto experiência humana. Dessa forma, a risco, por outro lado, o pacto de cegueira presença da vontade moral é o impulso permanece, mas a dinâmica é tomada pelo epistemológico para ver a distinção entre a judiciário. Tanto no alto, quando no baixo moralidade e o direito28. risco, a significação integral não há política, mas apenas Nonet e Selznick identificam duas encobrimento. Deve-se ter mais simpatia dinâmicas da relação da invenção da pelo alto risco, não porque represente algo autoridade pela política. A primeira, melhor, denominada de baixo risco, e a segunda, de etnográfico de um tempo melhor29. mas porque é um artefato alto risco. Na de alto risco, o direito deve Mas, por que as duas dinâmicas da perder a autoridade instituída no processo invenção da autoridade pela política são de renovação instituinte, a experiência tão jurídica diz à disciplina, que, ceder espaço, confundem a política com os poderes da para a reinvenção da autoridade, pode levar república, e não a compreendem em sua para acústica. Toda vez que a política inventa o a dissolução “Reivindicações da devem autoridade. ser imperfeitas? Justamente, porque feitas direito, e tal deve ser dito dessa forma para unicamente pelos canais estabelecidos, por dar a ver a constância do processo mais defeituosos que sejam”. Contudo, instituinte da vida política, dependendo da nesse caso, ao contrário do que vêem circunstância de dominação, os lados são Nonet e Selznick, não existe medo de que trocados para que a política perca a sua o judiciário cometa arbítrios, e, por isso, acústica. Se o legislativo fala mais alto é existe o incentivo da mudança da lei pela porque a crueldade não deseja ser vista na política, de modo a tornar clara a separação decisão, e se o judiciário assim o faz é pela entre direito e política, mas incapacidade lei que se deseja encobrir a estrutura de sua judiciária de construir teorias da jurisdição crueldade30. A imperfeição das concepções aliadas à dinâmica dos legislativos, e descritas como de alto e baixo risco está no movimentos de judicialização a estacionar fato de que ambas não se valem da moral CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 78 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA para julgar o processo de invenção do autoridade precisa ser perscrutado no direito pela política. A moral nasce da contexto da invenção da autoridade. Para circunstância acústica de julgamento da poder realizar a sua tarefa moral, a teoria política, e não para ser feita imperceptível política precisa, pela descrição, evidenciar na troca de epístolas acústicas entre os os elementos que apontam o direito como poderes. experiência um experimento político. Hart fala numa liberal sociologia Seja reacionária, numa conservadora, ou descritiva da regra de social: a separação entre moral, direito e reconhecimento, e Hume fala de uma política serve para ver a crueldade própria filosofia moral pela percepção social do a experimento. Digo que o texto correto cada exercício de instituição da autoridade. precisa concernir a uma sociologia dos Por essa razão, se comparada à experimentos, dentro da qual a descrição distinção entre moralidade, política e da relação entre crenças direito, a separação entre direito e política desencobre a crueldade. e regras é um falso problema. Pois, sem a província Pode-se dizer que uma das vias da determinada da moralidade pública, restam crueldade é a linguagem normativa, mas epistemologicamente cauterizados os olhos também devemos contemplar a tradução. da crítica. Dessa forma, podemos aceitar No cenário lusófono é comum se tratar por que a moralidade exerce sobre a política norma uma política negativa. Se a política institui circunstâncias argumentativas de origem. pela crueldade e encobre os seus efeitos, a De uma maneira simples, poderíamos dizer moralidade a que a norma é orientada por filosofia da crueldade, e minar os seus efeitos de história ou da natureza, mas, no que instituição. No que concerne à lida com a concerne ao nosso interesse, da história, jurisprudência, parece que a teoria política dentro da qual o aspecto vinculante do não é um exercício de política, mas de enunciado não decorre do hábito, mas da moral. A teoria política não deixa de tomar descoberta intelectual de finalidades. Por para o certo que o hábito, enquanto conceito é transporte das instituições do direito a uma intelectual, mas ele se distingue da norma descrição analítica que trate do direito por estrutura: enquanto a norma quer fazer como uma invenção. A descrição das repetir, o hábito descreve uma repetição. relações entre as crenças e as regras, Mas, sobretudo nos textos trazidos ao próprias à jurisprudência, estabelece uma português, os minoritários esforços de ação moral. explicação da moralidade, e do direito, si a desencobre, para responsabilidade ver sobre Assim, o problema da o que é simples regra CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 nas 79 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA pela relação entre crença e regra são às regras primárias, o fantasmagórico traduzidos uma efeito normativo, não desejado por Nonet e interpretação normativa. A questão não é Selznick, uma vez que é claro o benefício simplesmente de da relação entre crenças e regras, que, para tradução, mas uma escolha acerca do além de todas as evidências já mostradas, ocultamento de um sentido desvelador da também pode ser visto no recurso a Freud crueldade. Todavia, se podemos dizer que para pensar a autoridade, é emanado para o a tradição normativa é prioritariamente sentido geral do texto. O uso de “norma”, fraco-germânica, e a regular vinculada ao principalmente no contexto de acréscimo pensamento de Hume (tais como Austin e responsivo Bentham), e indicamos uma simpatia completamente o sentido do texto, e seu ibérica pertencimento de pela modo uma a induzir opção dimensão técnica normativa, a do direito, intelectual altera à matriz tradução do clássico de Nonet e Selznick humeana, além de ser, se o nosso para o português, cuja revisão foi feita argumento estiver correto, imoral, no pelos professores Eisenberg e Werneck, a sentido amplo do processo social de despeito do cuidado regularista de Nonet e encobrimento da crueldade. Selznick, e dos méritos da tradução, consiste num Selznick acertam ao advertirem que a regra de reconhecimento judicializadora. Não se discute a correção deve ser interpretada dentro de uma das são concepção política da experiência social. A acertadas, mas o conceito que as motiva. regra de reconhecimento, para Hart, diz Além disso, o fato de que tais opções se respeito à especificidade da experiência do colocam afinadas com o ocultamento da direito, ela confere facilidade para que crueldade, com tal forma de filosofia da qualquer pessoa encontre a fonte das história, e, mais especificamente, com o obrigações, processo de caracterização política da regulamentações na vida comum, sendo ao judicialização. Este argumento pode ser mesmo tempo imersa na crença na comprovado; como, quando na página 51, autoridade, mas, principalmente, na uma passagem do texto de Hart, citado por expectativa de habitualidade. Se Nonet e Selznick, é traduzida, e, ao invés conseguimos saber para onde olhar quando da opção “regra primária”, a tradução opta buscamos uma referência do direito, essa por “norma primária” (o que faz com que capacidade Hart seja alterado de continente filosófico), reconhecimento. Por esse motivo, ela e, ainda que adiante na tradução se retorne marca a província do direito, mas concerne de de e tradução opções exercício Nonet linguagem, que e se suas deve respectivas à regra CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 de 80 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA menos ao direito do que à moralidade, e, Selznick, bem como as desenvolvidas por por esse motivo, permite a entrevisão, por Fuller, ao pensamento de Hart, são outra entrada que não a punitiva. Não se rapidamente dissolvidas pela entrada da obedece, porque se é punido. A punição é definição de direito no cenário mais amplo o vício que dificulta a obediência. Essa se da construção do mundo político. A deve ao prazer de obedecer. E isso não tem temática cética da crença resolve as que ver diretamente com o servilismo, incompletudes apontadas por Fuller e muito embora essa tendência da natureza Nonet e Selznick, pois é a crença que humana seja aproveitada dessa forma, por explica a insatisfação diante do aspecto práticas extrínsecas ao direito e por hábitos repressivo ao localizar o direito na sociais de desigualdade, tais como a natureza humana31. judicialização. Dessa forma, a regra de O momento responsivo do direito, reconhecimento demanda uma imagem para Nonet e Selznick, pode ser definido mais ampla da autoridade, e essa, por sua pela prática jurídica de facilitação à vez, possui a sua compreensão vinculada à obtenção de necessidades e aspirações crença. A crítica de Fuller a Hart, de que a sociais, e é precedido pelo estado de regra de reconhecimento é sem sentido integridade do direito como instituição e sem o aspecto repressivo do direito, e a de pelo Nonet e Selznick ao fato de que a repressão, a autonomia e a responsividade repressão é insuficiente para se ter uma acompanham características históricas do perspectiva ampla do direito, como Hart direito dissera, têm todos os elementos para se momentos do capitalismo. Uma vez que tornar um dialelo, como as disputas entre todas as características do capital estão direito natural e positivismo, a não que presentes na segunda metade do século autoridade e direito sejam compreendidos XX, o direito passa a ser interpretado por como experimentos humanos ligados à predominâncias. A repressão pode restar capacidade de imaginação a instituir composta com a integridade e abafar a significações sobre o tempo, sendo, o responsividade, ou a responsividade pode direito, aquele significado para o qual o ser aspecto concentrado da identificação é malvadamente retóricos e relativizar a predominante sobre todos os outros. Um autonomia. Mas o fato é que o fenômeno tipo de objeto da imaginação que se do direito, orientado pelas especificidades singulariza pelos requisitos para ser visto. da história da exploração, é misto em seus Assim, a pequenas objeções de Nonet e aspectos33. Alguns autores poderiam ser repressivo32. aspecto na travessia capturada por Assim, por a diferentes grupos CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 sociais 81 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA relacionados com tais momentos distintos deixar o positum passar despercebido. O do positivismo jurídico; as obras de positivismo é uma descrição acerca do Hobbes e Austin seriam descritoras da fenômeno positivo da lei, e não uma dimensão a ideologia política. Não é o capitalismo que Hart, gera o positivismo, mas o interesse integridade epistemológico em não se permitir o institucional e lógica e a própria obra de aprofundamento da crueldade política pela Nonet da confusão entre direito e moralidade. Isso percepção do positivismo responsivo. Por nos leva à falha política. O positivismo não certo, Hobbes antecipa algo de Kelsen e apenas descreve, ele o faz enquanto Hart, que também se adiantam, de modo exercita a moralidade política. Pode-se menos da dizer que a responsividade do direito é responsividade, a Nonet e Selznick. Mas a dependente do rigor epistemológico sobre questão aqui seria a de relacionar os a integridade e a repressão. O positivismo autores à predominância das preocupações não promove os seus objetos; mas a sua presentes em suas obras34. perspectiva é historicamente relevante para repressiva investigações de Kelsen exemplificadoras e do da Selznick, e mostradoras explícito Esta direito, ao descrição tema do o impedimento do aprofundamento da direito, e do positivismo legal, parece crueldade, permitindo novas sobreposições bastante adequada. Num certo sentido, ela perspectivas. No que concerne à falha mostraria que o positivismo pode ser social, os tipos históricos descritos de provocado modo por da história características do evolucionista não permitem a capitalismo no qual foi produzido, e percepção do positivismo para além das relacionado da predominâncias de características, para que estratificação das instituições. Mas também possa ser ouvida em sua inteireza, a padece de algumas falhas. Na verdade, de narrativa do positivismo deve ser estudada três falhas: econômica, política e social. em sua pluralidade de vozes, e acústica Por se vincular a um declarado paradigma política. com a dinâmica evolucionista, a obra de Nonet e Selznick O vício, para conhecer a lei, dos atrela o positivismo a certo modo de tipos estratificados não é originalidade de produção econômica, quando o correto Nonet e Selznick, eles apenas atualizam seria atrelá-lo à economia. Diferentes uma modos de organização econômica darão Montesquieu. Ou, até mesmo, do papel origem a diferentes modos de lei positiva, inferiorizado do conceito de imagem, ainda que a descrição das dinâmicas possa enquanto avesso da verdade, na obra de deformação tardia da obra CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 de 82 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA Weber. É um fato a interação dos tipos a predominância entre os termos da repressivo, autônomo e responsivo, mas interação jamais será obtida, porque ao pelo modo como é apresentado por Nonet e invés de nos ser oferecidas imagens de Selznick, o relacionamento não pode ser interação, são nos ofertadas perspectivas visto, uma vez que a predominância de anseio. desqualifica a presença dos tipos menos Na verdade, o direito não é parte eloqüentes. E tal efeito de desmerecimento regressivo, não é verdadeiro. A responsividade não responsivo – dotado que seria de regiões diminui a relevância da repressão (talvez, podres e outras róseas –, mas ele se quer tão repressora); assim. Uma vez que o anseio pela condição da sua jurisprudência é perspectivo, aquilo que própria existência. Por mais que tenhamos inaugura o desejo, isso sim, apresenta esses a evidência fática da relação dos tipos, sem três elementos. As pessoas querem o uma teoria da acústica social é-nos direito para repreendê-las, identificá-las e impossível ver o imiscuimento, mas, significá-las. Ou seja, no desejo jurídico apenas, o estrato. Até mesmo a hipótese da básico existe uma vontade de soberano, de predominância pode ser contestada. Existe pertencimento e de cuidado. Esses anseios uma crítica de imagem teórica a ser feita não nos ajudam a montar uma imagem de ao trabalho de Nonet e Selznick, ela predominâncias, por duas razões: (1) existe concerne à interação entre os grupos oscilação da vontade dos grupos (muito típicos. Pois os tipos também concernem a embora o aguardo a ação seja tributário lugares da ação social, ou seja, dizem mais ao oportunismo do que à consciência) respeito a atores repressivos de crenças, e (2) anseios não são imagens, mas empreendedores paixões. Mas então, como tornar a relação somente, da inclusive, enquanto de prática autonomia e de parte e entre interação é impossível. Não porque um responsividade numa imagem adequada do sistema essas direito? Antes de tudo, descartando a dimensões, mas porque o sentido pelo qual crença, de modo radical, de que podemos são percebidos os atores não é o de falar de uma evolução do direito (mesmo interação, mas de denúncia. Temos que entre aspas) capaz de nos oferecer quadros concordar que o sistema jurídico tem um de predominância. Depois, levando a sério pouco de cada coisa, e que existe na a idéia de uma imagem adequada do concepção ensimesmada dos atores a busca direito, de modo a relacioná-la com os de predominância. Todavia, a clareza sobre imperativos de soberania, identidade e não tenha autonomia parte responsividade. Mas sem a acústica a jurídico repressão, autônomo CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 e 83 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA cuidado. Dessa forma, uma imagem potência acústica da epistolaridade do adequada do direito não pode ser imposta, direito, uma vez que a jurisprudência ela deve ser percebida a partir de uma concerne à demanda, mas também à teoria que a espere, ela deve surgir de uma instituição acústica. Seria ilusão esperarmos uma epistolarmente marcados sobre o tempo: de bons significados acústica completa, ou que ignorasse a De alguma forma, podemos indicar que a não necessariamente sobre o papel. Ela é enunciação, mesmo no âmbito vociferante franqueada, pois a urgência da atividade das demandas sociais, uma vez que se epistolar institui como significado no tempo, assume compreendida deva ser acompanhada uma o aspecto epistolar. Isso quer dizer que seqüência epistolar. Ela é perspectiva, para nenhuma das fontes é apenas estratificação se perceber o sentido da enunciação, fontes burocrática, ou apenas objetivação de diferentes precisam ser consultadas. E é grupos sociais: soberania, autonomia e sempre estranha a si mesma, posto que a responsividade estão no direito, porque são epístola é desencadeada em momento de componentes do seu reconhecimento. Uma afetamento passional, medo do outro epístola é um documento prensado, mas (soberania), medo do tempo (autonomia) e faz com que para CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 ser 84 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA medo da morte (responsividade). Ainda reconhecer. A acústica epistolar não ignora que as instâncias externas de enunciação o reconhecimento, e, por isso, fornece ao não se percebam, a não ser no equilíbrio de direito o imperativo de demonstração à forças, ou por exercício demagógico, no política sobre a internalidade das crenças plano epistolar, no qual as cartas são de sua instituição. Tal papel esclarecedor colocadas uma ao lado da outra, existe uma do direito é incompatível com a opacidade tomada recíproca de conhecimento. da crueldade. Nesse sentido, o direito não A são segue a política, mas a espelha, como fenômenos distintos, mas de uma forma imagem crítica, nas planícies da soberania, diferente à distinção entre a moral e o da autonomia e da responsabilidade. direito; política o epistolaridade e o direito direito ao acrescentar a na esfera pública, de maneira positiva, estabiliza a política. O direito pode se permitir o experimento de modo mais radical do que a política, dentre outras razões, porque, por razões de existência, é limitado pelo reconhecimento; para o direito é como se a política limitasse o seu espectro epistolar. Em troca, o direito Abstract The idea with this essay was to show a natural proximity between the philosophical skepticism and the legal positivism, as well a moral superiority in that way to think questions between politics and law. In a straight form I can say that there is more virtue when law understands their limitations, because by recognizing them clarifies the internal dynamics of political activity. concede à política a sensibilidade interna acerca da instituição. A moralidade é KeyWords: Skepticism, Legal Positivism and Morality diferente do direito, porque ampla e difusa. Uma ação política deve liberar o direito da REFERÊNCIAS Bibliograficas moralidade, pela ação devastadora dessa com relação à jurisprudência, o moralismo jurídico é um dos traços fundamentais de uma sociedade em que a crueldade segue oculta por efeitos de judicialização. O direito é distinto da política, porque essa precisa do direito para se estabilizar, e, ainda que a política não seja inventada pelo reconhecimento, mas pela crueldade, essa é uma fábrica de hábitos de obediência, cujo Berlin, I. (2009). A política como ciência descritiva. Idéias Políticas na Era Romântica: ascensão e influência do pensamento moderno. São Paulo, Companhia das Letras. Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. Dworkin, R. (2010). Os Conceitos de Direito. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. um dos efeitos no tempo é se fazer CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 85 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA Dworkin, R. (2010). Trinta anos depois. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. Empiricus, S. (1985). Against the logicians. Cambridge, Hackett Publishing Company. Fuller, L. L. (1969). The Morality of Law: Revised Edition (The Storrs Lectures Series), Yale University Press. Hart, H. L. A. (1955). "Are there any natural rights?" The Philosophical Review 64. Hart, H. L. A. (1965). Law, Liberty and Morality. Stanford, Stanford University Press. Hart, H. L. A. (1997). The Concept of Law. Oxford, Oxford University Press. Hölderlin, F. (1959). Francoforte-do-Meno 1796-1798. Poemas. R. D'Água. Kiraly, C. (2009). O Guarda-Chuva de Regras: um ensaio sobre a filosofia de Herbert Hart. São Paulo, Giz Editorial. Kiraly, C. (2010). Os Limites da Representação: um ensaio desde a filosofia de David Hume. São Paulo, Giz Editorial. Nonet, P. and P. Selznick (2010). Direito e Sociedade, Revan. 1 Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ e Professor do Departamento de Ciência Política da UFF. Email: [email protected] 2 Empiricus, S. (1985). Against the logicians. Cambridge, Hackett Publishing Company. VII. § 135. 3 Kiraly, C. (2009). O Guarda-Chuva de Regras: um ensaio sobre a filosofia de Herbert Hart. São Paulo, Giz Editorial. 4 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 200. Dworkin, por exemplo, parece conferir à tese de Hart um teor essencialista incompatível com o seu ceticismo. Parece que Dworkin pressupõe que apenas hermeneutas interpretam, mas cabe lembrar que não foi a hermenêutica que inventou a interpretação. 5 Hart, H. L. A. (1997). The Concept of Law. Oxford, Oxford University Press. p. 269. 6 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 206. “Portanto, divergimos não apenas sobre o modo de identificação do direito, mas também sobre que tipo de teoria constitui uma resposta geral a essa questão. Ele [Hart] acreditava que tal teoria é apenas e puramente uma descrição da prática jurídica que faz alegações morais e éticas e nelas se fundamenta”. 7 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 206. 8 Berlin, I. (2009). A política como ciência descritiva. Idéias Políticas na Era Romântica: ascensão e influência do pensamento moderno. São Paulo, Companhia das Letras. p. 79. “[N]o coração da filosofia política propriamente dita está o problema da obediência, e que é no mínimo conveniente ver as questões tradicionais do assunto em temos desse problema”. Agora, uma citação de Dworkin sobre Berlin, que torna o conflito entre regra e norma ainda mais evidente. Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 207. “Porém, insiste Berlin, a própria definição, segundo a qual as leis contra a violência realmente comprometem a liberdade, não é um juízo de valor: não é uma aceitação, uma crítica ou uma atenuação da importância da liberdade, mas apenas uma afirmação politicamente neutra do que a liberdade devidamente entendida realmente é”. 9 Todavia, cabe lembrar o quão sedutoras são as notas sobre história da filosofia n’O Conceito de Direito, basta lembrar as rápidas, mas brilhantes indicações sobre sua leitura de Hume e Hobbes, na seção dedicada ao conteúdo mínito do direito natural. 10 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 329. 11 Dworkin, R. (2010). Os Conceitos de Direito. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 329. 12 Dworkin, R. (2010). Trinta anos depois. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 269. “A CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 86 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA convenção se constrói sobre o consenso, não sobre a divergência”. 13 Kiraly, C. (2010). Os Limites da Representação: um ensaio desde a filosofia de David Hume. São Paulo, Giz Editorial. p. 64. 14 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 210. 15 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 211. “Os mais densos conceitos políticos de liberdade, igualdade e democracia desempenham o mesmo papel na argumentação política, e as teorias sobre a natureza desses conceitos também são normativas”. 16 Como podemos ver nos comentários de Hart sobre a imoralidade privada. Hart, H. L. A. (1965). Law, Liberty and Morality. Stanford, Stanford University Press. p. 38. 17 Hart, H. L. A. (1955). "Are there any natural rights?" The Philosophical Review 64. 18 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 211. 19 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 218. 20 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 219. 21 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 220. 22 Na separação parece haver uma paciência epistemológica com os conflitos sociais, ausente no interpretacionismo. A separação parece pagar o preço da virtude, enquanto o interpretacionismo prefere não pagá-lo, de modo geral parece pregar uma estrutura social paliativa de aprofundamento da imoralidade na crueldade, desde que não conflitiva. 23 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 239. “Deve ser um valor claramente jurídico, tão fundamental para a prática jurídica que sem melhor entendimento iríamos ajudar a compreender melhor o que as alegações de direito significam e o que as torna verdadeiras ou falsas”. “Precisamos encontrar um valor político que esteja vinculado a esses enigmas da maneira certa”. Mas isso jamais será feito com a homogeneização da moralidade, da política e do direito. É preciso que politicamente a prática do direito reconheça e pratique o seu limite. 24 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 238. “Não há consenso geral a favor ou contra tal interpretação, nenhuma regra fundamental de reconhecimento a partir da qual um dos lados possa pretender corroborar as proposições de direito constitucional que, não obstante, cada um dos grupos afirma serem verdadeiras”. 25 A afirmação da crueldade como o valor político elementar não quer dizer que tal defina a natureza humana. Existe uma neutralidade na crueldade, ela não é boa ou ruim, mas serve como ponto de referência na interpretação da imoralidade. Uma vez que não vê-la interrompe a sua neutralidade para ser um instrumento silencioso da imoralidade como mecanismo de poder. Assim, deve-se perceber que a experiência humana é mais ampla que a experiência política, e tal é relevante para criticar a política. 26 Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 247. “Os positivistas posteriores se mantiveram leais a essa crença: todos enfatizam o papel do direito na substituição das incertezas das imprecações morais ou consuetudinárias por uma orientação firme e decisiva. Hart escreveu, de modo muito afinado com Thomas Hobbes, um positivista de uma era anterior, que a legalidade corrige as deficiências de um estado módico de natureza ou costume que é muito anterior ao Estado de Direito. Joseph Raz afirma que a essência da legalidade é a autoridade, e que a autoridade será prejudicada ou solapada a menos que se possam identificar suas diretrizes sem recorrer aos tipos de motivos para agir que os cidadãos apresentam antes que a autoridade se tenha manifestado. Ele insiste em afirmar que a autoridade só pode atender a suas finalidades se suas diretrizes substituírem os motivos alegados pelas pessoas, em vez de apenas virem somar-se a eles”. Mas a legalidade deve ser vista depois da crueldade, porque senão ela não pode ver o exercício de encobrimento da moralidade confusa ao direito. A legalidade não é medo com relação à moral, mas uma percepção fina de se aspecto danoso, quando pretexto de exercício de preconceitos morais pela lei. A legalidade deve ser instituída por um “por que” conceitualmente orientado pela moralidade distinguida. O ceticismo, recomendado por Bentham, percebe a crueldade como princípio. Dworkin, R. (2010). O pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política. A Justiça de Toga. São Paulo, Martins Fontes. p. 248. “Bentham, por exemplo, considerava importante que o público mantivesse um saudável sentimento geral de desconfiança, e mesmo de ceticismo, a respeito do valor moral de suas leis: as pessoas devem entender a diferença entre o direito como ele é e como deveria ser”. Essa distinção final, apontada por Dworkin, exercita alguma trivialização sobre a questão do positivismo legal, muito embora bem a direciona. A questão é que o direito como é deve melhorar pela percepção de sua CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 87 POSITIVISMO JURÍDICO E CETICISMO: ELEMENTOS DE FICÇÃO E ACÚSTICA crueldade, do contrário, por causa da orientação por uma filosofia da norma, apenas produz encobrimento, agenciado por discursos de dever ser. Dworkin não percebe que a legalidade não é nada de relevante sem o “contra o que” ela fala. Se a legalidade não interrompe a crueldade, sem que precise se valer dos artifícios da transfiguração em violência, ela de nada serve. 27 Hölderlin, F. (1959). Francoforte-do-Meno 17961798. Poemas. R. D'Água. p. 76-77. Aplauso aos homens (Menschenbeifall). 28 Sem a percepção moral, as distinções se tornam opacas, e até mesmo o componente de autoridade do direito passa a se confundir com a invenção da autoridade pela política. Essa não é, no sentido próprio, o terreno da autoridade, mas da instituição da mesma, sendo, por isso, o plano da crueldade. Nonet, P. and P. Selznick (2010). Direito e Sociedade, Revan. p. 42. 29 O tempo melhor não decorre de uma descoberta política, mas em função de um anestesiamento ocasionado pelas últimas desgraças. Não há acerto, mas vergonha do engano que durará o tempo exato da vergonha. Depois, não durará mais. 30 Nonet, P. and P. Selznick (2010). Direito e Sociedade, Revan. p.45 “A linha demarcatória entre direito e política tenderia a dissolver-se, pelo menos nos lugares em que a promoção de direitos sociais e a decisão judicial tratam questões controversas de política pública”. 31 Fuller, L. L. (1969). The Morality of Law: Revised Edition (The Storrs Lectures Series), Yale University Press. p. 96. Nonet, P. and P. Selznick (2010). Direito e Sociedade, Revan. p. 53. “O direito entra em cena quando se levantam questões a respeito de quem tem o direito de definir e interpretar obrigações, fazendo com que a distribuição das obrigações familiares esteja sujeitas a padrões que governam o modo de exercer a autoridade”. “[...] nem todo controle social é jurídico: o direito reconhece regras sociais de maneira seletiva”. “O Estudo do direito torna-se parte do estudo da autoridade [...]”. Nesse sentido é que o estudo do direito como instituição não pode se afastar da sua percepção enquanto crença. 32 Nonet, P. and P. Selznick (2010). Direito e Sociedade, Revan. p. 55. 33 Nonet, P. and P. Selznick (2010). Direito e Sociedade, Revan. p. 58. 34 Nonet, P. and P. Selznick (2010). Direito e Sociedade, Revan. p. 59. CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012