RELATOS CASOS APÓS INTUBAÇÃO... Kwiatkowski et al. ESTENOSEDE TRAQUEAL RELATOS DE CASOS Estenose traqueal após intubação orotraqueal Tracheal stenosis after endotracheal intubation RESUMO A causa benigna mais comum de estenose das vias aéreas superiores, em todas as faixas etárias, é a lesão traqueal pós-intubação, que ocorre em 1% a 4% dos pacientes submetidos à ventilação mecânica por longo período. Não tratada, a estenose das vias aéreas cursa com significativa morbidade pulmonar e pode conduzir ao óbito devido ao comprometimento do aparelho respiratório. Dentre as lesões conseqüentes à intubação endotraqueal, é incomum a ocorrência de manifestações clínicas de estenose traqueal. Relata-se o caso de um paciente masculino de 56 anos, que desenvolveu estenose traqueal após ser submetido à intubação endotraqueal por 10 dias, descrevendo seus aspectos patogênicos, clínicos, diagnósticos e terapêutica. UNITERMOS: Estenose Traqueal, Intubação, Traqueoplastia. ABSTRACT The most common benign cause of upper airway stenosis in all age groups is postintubation tracheal injury, which occurs in 1% to 4% of patients submitted to long-term ventilation. If untreated, airway stenosis causes significant pulmonary morbidity and can progress to life-threatening airway compromise. Among postintubation tracheal lesions, the occurrence of clinical symptoms of tracheal stenosis is uncommon. Here we present the case of a 56-year-old male who developed tracheal stenosis after being submitted to endotracheal intubation for 10 days, describing the physiopathology and clinical aspects of the case as well as its treatment. KEYWORDS: Tracheal Stenosis, Intubation, Tracheoplasty. I NTRODUÇÃO A laringe e a traquéia são essenciais para a manutenção da respiração, fonação e proteção da via área; portanto, um trauma nessa região pode ter graves complicações. Lesões de via aérea secundárias a trauma decorrente da intubação orotraqueal começaram a ser descritas à medida que o procedimento passou a ser realizado com maior freqüência, particularmente com a popularização desse método como alternativa ou predecessor da traqueostomia e, conseqüentemente, para suporte prolongado da via aérea, no início dos anos 50 (1). Os relatos iniciais se limitavam a estudos de autópsia que descreviam diferentes tipos de lesões, como ulcerações e necrose da cartilagem traqueal, e edema das vias aéreas superiores em adultos (2). A intubação endotraqueal permite a assistência ventilatória em pacientes anestesiados ou sob ventilação mecânica, podendo ser de curta ou longa duração. A presença de tubos oro ou nasotraqueais em contato direto com as estruturas das vias aéreas pode provocar lesões de mucosa, decorrentes, principalmente, de intubações traumáticas e prolongadas, da utilização de tubos de grande calibre e da elevada pressão no balonete das sondas. A estenose traqueal – entidade complexa – é uma das complicações conseqüentes à intubação endotraqueal de ocorrência mais incomum, exigindo cuidados AIRTON KWIATKOWSKI – Médico chefe do serviço de cirurgia torácica do Hospital Universitário de Santa Maria. Mestrando da Universidade de São Paulo. Diretor clínico do Hospital Regional da Unimed. PAOLA ALMEIDA – Médica residente de cirurgia geral da Hospital Universitário de Santa Maria. ALEXANDER SACCO – Médico graduado pela Universidade Federal de Pelotas. SÂMIA BRAGA RAMOS ADAIME – Acadêmica de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria. THIZÁ MASSAIA LONDERO – Acadêmica de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria. Universidade Federal de Santa Maria. Endereço para correspondência: Airton Kwiatkowski Rua Pinheiro Machado, 2350/802 97050-600 – Santa Maria, RS – Brasil (55) 3222-5000 / (55) 3222-6000 [email protected] que podem envolver endoscopias múltiplas, dilatações endoscópicas, ressecções endoscópicas, criocirurgia, ressecções a laser, traqueostomia, traqueoplastia, enxerto de cartilagem e ressecções cricotraqueais, com o tratamento se estendendo por meses ou anos, necessitando, às vezes, até de traqueostomia definitiva (3-7). O objetivo da presente publicação é a apresentação de um caso de estenose traqueal em paciente submetido a intubação endotraqueal por 10 dias, bem como relatar a opção terapêutica eleita neste caso. R ELATO DE CASO Paciente masculino, 56 anos, branco, procedente de São Pedro do Sul, RS, foi admitido no pronto-socorro do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), após parada cardiorrespiratória. O paciente possuía história de doença arterial crônica (DAC), hipertensão arterial sistêmica (HAS), dislipidemia, etilismo e tabagismo. Recebido: 12/11/2007 – Aprovado: 16/3/2008 126 13-141-estenose-traqueal_após_intubação.pmd126 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 52 (2): 126-129, abr.-jun. 2008 25/8/2008, 14:44 ESTENOSE TRAQUEAL APÓS INTUBAÇÃO... Kwiatkowski et al. Durante a internação, desenvolveu insuficiência cardíaca congestiva e choque cardiogênico de origem isquêmica, evoluindo com edema agudo de pulmão e pneumonia. Foi submetido a intubação orotraqueal por 10 dias, recebendo alta hospitalar após 15 dias de internação. Três meses depois, o paciente retornou ao HUSM com queixa de dispnéia aos esforços moderados há 30 dias e, ao exame físico, apresentava estridor laríngeo e tosse com expectorarão hialina. Apresentava boa aceitação da dieta via oral e necessitou de oxigenioterapia. Foi submetido a fibrobroncoscopia (Figura 1), que revelou estenose subglótica ao nível do segundo anel cartilaginoso, comprometendo 80% da luz traqueal. Realizou-se também espirometria pré-operatória, a qual demonstrou capacidade vital forçada dentro dos limites previstos, diminuição grave do fluxo aéreo, com ausência de variação significativa pós-broncodilator, indicando distúrbio ventilatório obstrutivo grave (DVOG) e sugerindo obstrução intratorácica fixa. Para confirmação do diagnóstico, foi realizada tomografia computadorizada com reconstrução helicoidal (Figura 2), que evidenciou estenose traqueal ao nível do 2o-3o anel, com calibre variável aos movimentos respiratórios e sem lesões distais evidentes. A partir disso, diagnosticou-se estenose de traquéia pós-entubação orotraqueal, sendo indicado para o caso traqueoplastia. Foram realizados eletrocardiograma e ecocardiograma pré-operatórios, que demonstraram ser o paciente de elevado risco cirúrgico. Na traqueoplastia, realizou-se ressecção de quatro anéis traqueais estenosados a partir do terceiro anel, anostomose entre os anéis cartilaginosos com sutura simples interrompida, transcorrendo sem complicações. O material extraído cirurgicamente foi encaminhado ao setor de Patologia e o exame anatomopatológico revelou fibrose no córion da traquéia, infiltrado linfocitário com produção do pigmento hemossiderina, proliferação vascular e obstrução do lúmen por material fibrinoso. RELATOS DE CASOS Figura 1 – Fibrobroncoscopia pré-operatória – Área de estenose, obstrução da luz traqueal. Figura 2 – Fibrobroncoscopia pós-operatória – Traqueoplastia evidenciando a linha de sutura. No sexto dia pós-traqueoplastia, realizaram-se espirometria e fibrobroncoscopia (Figura 3), que não evidenciaram alterações, estando todo o diâmetro da traquéia recuperado dentro da linha de sutura. O paciente apresentou boa evolução e recebeu alta no sétimo dia pós-operatório, assintomático. D ISCUSSÃO Complicações das vias aéreas conseqüentes à intubação orotraqueal são esperadas em função do conhecimento fisiopatológico dessas lesões. Muitas dessas complicações evoluem com sintomas leves e de curta duração. Entretanto, em muitos casos, as lesões são graves e permanentes, envolvendo as estruturas da laringe e da traquéia, exigindo correção cirúrgica, como ocorre na estenose glótica e traqueal. Quanto ao impacto da traqueostomia precoce no paciente em ventilação mecânica, a fim de reduzir o risco de estenose benigna, afere-se que ela pode levar a uma acentuada redução no tempo de intubação, o que diminui 127 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 52 (2): 126-129, abr.-jun. 2008 13-141-estenose-traqueal_após_intubação.pmd127 25/8/2008, 14:44 ESTENOSE TRAQUEAL APÓS INTUBAÇÃO... Kwiatkowski et al. RELATOS DE CASOS Figura 3 – Tomografia com recontrução helicoidal – Tomografia pré-operatória mostrando a estenose traquel. a injúria à traquéia. Contudo, o limitado número de estudos e de pacientes existentes para análise deixa alguma dúvida quanto à acurácia dessa conclusão (21). Justifica-se a traqueostomia precoce para efetivar a aspiração e diminuir a resistência das vias aéreas; para aumentar a mobilidade do paciente, a oportunidade de fala articulada e a habilidade de alimentar-se por via oral; para acelerar o desmame da ventilação mecânica e a transferência do paciente da UTI; e em situações de escore Glasgow persistentemente menor que 8 pontos. Porém, nenhum desses benefícios foi demonstrado em estudos de grande escala, como randomizados ou prospectivos. Geralmente, a traqueostomia precoce é empregada para evitar estenose traqueal, nos casos em que é estimado um longo período de permanência do paciente em ventilação mecânica (22). Na literatura, há diferentes dados referentes à ocorrência de alterações benignas (pós-intubação) das vias aéreas superiores. Nos adultos, seqüelas 128 13-141-estenose-traqueal_após_intubação.pmd128 decorrentes de intubação orotraqueal prolongada têm uma incidência descrita de 4 a 13%, sendo em torno de 0,5% em neonatos (8). Estudo prospectivo (9) demonstrou a ocorrência de estenose da traquéia em dois (3,8%) de 52 pacientes; pesquisadores estadunidenses (10) obtiveram uma ocorrência nula em 86 pacientes; outros (11) observaram a presença de estenose traqueal em cinco (3,3%) de 150 pacientes. Grupo de pesquisadores (12) analisou 778 achados radiológicos de pacientes póstraqueostomia e encontrou alguma injúria à traquéia em 90% deles; mais de 50% de estenose traqueal foi evidenciada em 10% dos pacientes. Estudo realizado na República Checa (13) detectou estenose traqueal em 16 pacientes (10%) de uma amostra de 153 pacientes submetidos a traqueostomia. Grupo europeu (14) relatou a ocorrência de estenose da traquéia em 2 (10%) de 19 pacientes em ventilação mecânica por longo período. Estudo prospectivo com 80 pacientes no Hospital Universitário de Praga (15) concluiu que a estenose traqueal ocorre entre 10 a 22% dos pacientes após traqueostomia ou intubação orotraqueal, mas apenas 1 a 2% são sintomáticos, como descrito no caso. Na prática clínica, a maioria dos pacientes que se apresentam com estenose traqueal pós-intubação possui cicatrizes fibróticas maduras, com mínima evidência de inflamação das vias aéreas. Esses pacientes tipicamente foram submetidos à intubação em um passado relativamente distante, e alguns deles poderiam ter sido tratados para asma antes do diagnóstico correto. A fase precoce da estenose traqueal pós-intubação é caracterizada por ulceração da mucosa e pericondrite, seguidas por formação de tecido de granulação exofítico. Posteriormente, o tecido de granulação é gradualmente substituído por uma cicatriz fibrótica madura, que se contrai e origina a lesão clássica da estenose (16-18). O método eleito para o tratamento da estenose traqueal – a traqueoplastia – está de acordo com a opinião de diversos pesquisadores. Segundo estudo italiano (19), a ressecção cirúrgica foi considerada a primeira escolha para o tratamento da estenose traqueal, sendo a broncoscopia intervencionista indicada apenas nos casos de falência respiratória. Além disso, foi considerado que tratamento pré-operatório, como laser e/ou prótese endotraqueal, poderia aumentar a extensão da injúria e o comprimento da estenose. Similarmente, outros autores (20) consideram a ressecção da estenose como o padrão ouro para o tratamento da estenose das grandes vias aéreas após intubação. As complicações das vias aéreas associadas à intubação endotraqueal são freqüentes e muitas vezes graves. Contudo, a estenose traqueal apresenta-se com menor ocorrência, mas ainda tendo significativo impacto na morbimortalidade do paciente acometido. A rápida identificação dessa patologia é importante ferramenta para a realização do tratamento corretivo, sendo a traqueoplastia um método eficaz. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 52 (2): 126-129, abr.-jun. 2008 25/8/2008, 14:44 ESTENOSE TRAQUEAL APÓS INTUBAÇÃO... Kwiatkowski et al. R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Nilsson E. On treatment of barbiturate poisoning: a modified clinical aspect. Acta Med Scand.1951; 253: 7-127. 2. Dwyer CS, Kronenberg S, Saklad M. The endotracheal tube: a consideration of its traumatic effects with a suggestion for the modification thereof. Anesthesiology. 1949; 10(6):714-28. 3. Cotton RT, Evans JN. Laryngotracheal reconstruction in children: five year follow-up. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1981; 90(5):516-20. 4. Prescott CA. Protocol for management of the interposition cartilage graft laryngotracheoplasty. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1988; 97(3):239-42. 5. Seid AB, Pransky SM, Kearns DB. Onestage laryngotracheoplasty. 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