FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO Instituto de Farmacologia e Terapêutica FARMACOLOGIA Farmacologia dos canais iónicos. Antagonistas dos canais de cálcio Do ponto de vista funcional há quatro tipos de canais iónicos particularmente importantes: três para catiões (sódio, potássio e cálcio) e um para um anião (cloro). É sabido (Cap. 4) que a permeabilidade de alguns destes canais é regulada pela activação de receptores que a eles estão acoplados: destes, os mais importantes são os receptores colinérgicos nicotínicos, os receptores GABAA, os receptores do glutamato, os receptores da glicina e os receptores 5-HT3 da 5-hidroxitriptamina. Os receptores nicotínicos constituem o próprio canal. Da interacção de duas moléculas de nicotina com o receptor, resulta uma mudança conformacional deste, com abertura do canal: entra rapidamente sódio (Na+) e, mais tarde, cálcio (Ca2+). Os receptores do glutamato, particularmente os NMDA (N-metil-D-aspartato) podem estar na base de certos tipos de susceptibilidade a convulsões e os seus bloqueadores podem ter interesse como anti-convulsivantes. Dada a grande profusão dos receptores de glutamato no SNC, é provável que eles possam ser alvos para várias intervenções terapêuticas. É, também, de admitir que de uma expressão, regulação ou função anormal destes receptores possam depender algumas doenças neurológicas. Alguns autores põem a hipótese de que os receptores do glutamato devam estar ligados à génese de certas doenças neurodegenerativas e da esquizofrenia. Tem havido quem admita a ligação destes receptores a alguns casos de encefalite de Rasmussen. Os receptores GABAA fazem parte do canal do cloro (Cl-). Conhecem-se as implicações que podem ter as alterações de configuração provocadas neste receptor pelas benzodiazepinas ou pelos barbitúricos, facilitando a entrada de Cl-. Os receptores da glicina fazem o mesmo que os receptores GABAA, mas são distintos deles. Estão, também, acoplados ao canal do Cl-. A bicuculina só bloqueia os receptores GABAA, sem interferir nos da glicina. A estricnina só bloqueia os receptores da glicina sem interferir nos GABAA. O bloqueio dos receptores da glicina origina convulsões. Os receptores 5-HT3 abundam no núcleo do tracto solitário e na área pós-extrema. O seu bloqueio impede os vómitos causados pela cisplatina. Porém, a maioria dos canais iónicos não está acoplada a receptores e a sua permeabilidade não depende, directamente, da estimulação de receptores. Dada a importância das funções em que estão implicados e a descoberta de bloqueadores específicos com um coeficiente benefício/ risco altamente favorável, os canais de cálcio são os que de maior importância se revestem do ponto de vista clínico. O cálcio desempenha várias e importantes funções no organismo: é mediador da acção intracelular de muitas hormonas, é indispensável para a coagulação do sangue, é essencial para a manutenção da integridade das membranas mucosas, etc. Porém, as que fundamentam o seu grande interesse do ponto de vista terapêutico, são as que estão ligadas ao desencadeamento da contracção cardíaca e do músculo liso e ao acoplamento da excitação/ secreção nos nervos e nos tecidos secretores. Os fármacos classificados como antagonistas do cálcio foram introduzidos na terapêutica nos anos 60 e são, presentemente, dos medicamentos mais prescritos para o tratamento das doenças cardiovasculares. Embora os antagonistas do cálcio, hoje utilizados, sejam quimicamente diferentes, todos possuem a propriedade de bloquear o fluxo transmembranar de cálcio através dos canais de tipo L, dependentes da voltagem (canais lentos). Os antagonistas do cálcio têm sido utilizados, com eficácia, no tratamento da hipertensão arterial, da insuficiência coronária, de certas arritmias cardíacas e, ainda, em doentes com disfunção diastólica ventricular esquerda, na doença de Raynaud, na enxaqueca, no parto prematuro, nos espasmos esofágicos e na doença bipolar. É o nível intracelular de cálcio que dita o estado de contracção ou relaxamento das fibras musculares lisas e o nível de trabalho cardíaco. Por isso, essas actividades são muito finamente reguladas. Nas células musculares lisas, em repouso, a concentração de cálcio fora delas é 10.000 vezes mais elevada do que dentro. Para o desenvolvimento de uma curva de concentração/ resposta, o aumento da concentração de cálcio que se verifica dentro das células é de cerca de 50 vezes. Esta elevação da concentração do cálcio livre no citoplasma, tanto pode resultar de cálcio extracelular que entra nas células, como de cálcio intracelular sequestrado no retículo endoplásmico (ligado à calsequestrina) que se liberta. O aumento do cálcio citosólico, vindo de um lado ou do outro, ou dos dois, aumenta a sua ligação à calmodulina. Este complexo activa a cínase da cadeia leve de miosina levando à fosforilação da cadeia leve de miosina que vai promover a interacção entre a miosina e a actina e provocar a contracção. Há vários tipos de canais de cálcio. Os mais importantes do ponto de vista das implicações terapêuticas são os dependentes da voltagem, dos quais os mais estudados são quatro (L, T, N e P) e o fundamental é um (L): Os canais de tipo L, cujo bloqueio produz relaxamento da musculatura lisa (vasos e outros órgãos), efeito inotrópico negativo sobre o músculo cardíaco e efeitos cronobatmo- e dromotrópico negativos sobre o tecido nodal; os canais de tipo N, que existem no tecido neuronal e que estão envolvidos nos processos de secreção de neuromediadores por exocitose; os canais de tipo P, que existem nas células de Purkinge e os canais de tipo T (transient potential) que existem no tecido nodal e na musculatura lisa vascular e que são bloqueados selectivamente pelo mibefradil. Este bloqueador foi introduzido, como medicamento, com grande expectativa, mas pouco tempo depois foi retirado por causar taquicardias ventriculares multifocais (torsades de pointes) potencialmente letais. O canal L, sem dúvida o mais importante do ponto de vista clínico, foi isolado a partir do músculo cardíaco, sendo depois clonado e caracterizado na sua constituição: é formado por cinco sub-unidades (alfa1, alfa2, beta, gama e delta). A principal subunidade é a alfa1 porque é a que contém o canal e o sítio para a ligação dos antagonistas. Parece que funciona só por si. A subunidade alfa2 parece ter a função de orientar a alfa1. O canal L encontra-se, também, na musculatura lisa dos vasos, dos brônquios, do estômago e intestino, do aparelho genito-urinário, do útero e, ainda, no pâncreas, hipófise, supra-renais, glândulas salivares, plaquetas e tecido lacrimal. Os principais antagonistas do cálcio pertencem, fundamentalmente a três grupos químicos: fenilalquilaminas (ex.: verapamil), diidropiridinas (ex.: nifedipina) benzotiazepinas (ex.: diltiazem). Mecanismo de acção Os receptores das diferentes famílias químicas de antagonistas do cálcio estão tão próximos uns dos outros que estão mesmo e, em parte, sobrepostos. Assim, a ligação, por exemplo, do verapamil ao seu receptor ou do diltiazem ao seu, afecta a ligação das diidropiridinas e vice-versa. As fenilalquilaminas ligam-se ao segmento 6 do motivo IV transmembranar, as benzotiazepinas ligam-se à ponte citoplasmática entre o motivo III e o IV e as diidropiridinas ligam-se ao segmento 6 dos motivos III e IV. O bloqueio produzido por estes fármacos é parecido com o produzido nos canais de sódio pelos anestésicos locais: actuam pelo lado de dentro da membrana e ligam-se mais intensamente às membranas despolarizadas. Há, pelo menos, três tipos de mecanismos responsáveis pela contracção das células musculares lisas: um primeiro, que entra em jogo quando há despolarização das membranas, os canais de cálcio sensíveis à voltagem abrem-se e o cálcio extracelular entra. Após o encerramento dos canais, é necessário um certo tempo para que se abram de novo em resposta a novo estímulo; um segundo mecanismo, que se verifica sem despolarização da membrana, entra em jogo aquando da contracção causada por um agonista: há hidrólise do fosfatidilinositol da membrana com formação de IP3, que actua como segundo mensageiro, para libertar cálcio intracelular do retículo endoplásmico. Esta libertação de cálcio intracelular mediada por receptores pode disparar, secundariamente, um influxo de cálcio extracelular; o terceiro mecanismo é aquele pelo qual um agonista activa um receptor acoplado a um canal de cálcio abrindo a porta ao cálcio extracelular. Farmacocinética Sendo bem absorvidos por via oral, a biodisponibilidade dos antagonistas do cálcio depende do metabolismo de que são alvo na primeira passagem através da parede intestinal e do fígado. Todos são metabolizados no fígado por oxidação feita, predominantemente, pelo CYP3A, que os transforma em metabolitos menos activos. Apesar da absorção oral ser boa para todos eles a biodisponibilidade de alguns deixa muito a desejar. A nimodipina, por exemplo, que é muito lipofílica e, por isso, muito bem absorvida por via oral, é, também por isso, intensamente removida pelo fígado na sua primeira passagem através desse órgão, apresentando uma biodisponibilidade, por via oral, de 15%! Interacções. O verapamil e o diltiazem bloqueiam o CYP3A e interferem com a acção de várias substâncias: carbamazepina, estatinas, inibidores da ECA, antivíricos, etc., mas as diidropiridinas não. É preciso ter muito cuidado com a associação verapamil ou diltiazem + bloqueadores β! Acções farmacológicas Todos os antagonistas do cálcio causam vasodilatação e diminuição da pressão arterial, sendo a nifedipina o mais potente. Dada por via intravenosa a nifedipina aumenta o fluxo sanguíneo do antebraço praticamente sem alterar o tono venoso. Há uma dilatação selectiva dos vasos de resistência. A redução da pressão arterial que produz causa taquicardia reflexa e aumento discreto da força de contracção cardíaca. In vitro, as diidropiridinas (nifedipina, nisoldipina, isradipina) ligam-se mais selectivamente aos canais L dos vasos, enquanto que o verapamil se liga, com a mesma afinidade, aos canais L dos vasos e do coração. As principais acções farmacológicas dos bloqueadores dos canais de cálcio estão resumidas na Tabela, onde a intensidade relativa das acções é expressa por um número. Todos os antagonistas do cálcio deprimem a actividade do nó sinusal e a condução aurículoventricular, embora só os do tipo do verapamil e do diltiazem causem depressão sinusal nas doses usadas clinicamente. Tabela Efeitos cardiovasculares relativos de alguns bloqueadores dos canais de cálcio Vasodilatação (fluxo coronário) Efeito (batmotrópico) Efeito (Inotrópico) Efeito (dromotrópico) Diltiazem 3 5 2 4 Nifedipina 5 1 1 0 Verapamil 4 5 4 5 Uso terapêutico Na hipertensão arterial: Os diuréticos e os bloqueadores β continuam a ser os fármacos de primeira escolha para o tratamento da hipertensão arterial. Só se houver razões impeditivas do seu uso se deverá considerar a hipótese dos antagonistas do cálcio. Estudos recentes sugerem uma relação entre a intolerância à glicose (diabetes) e um aumento do risco de acidentes vasculares quando se tomam antagonistas do cálcio. Contrastando com estes dados há, da parte de outros autores, a indicação de que os doentes idosos, com hipertensão sistólica e diabetes, poderão beneficiar mais do que os não diabéticos, com o uso da nitrendipina. Em resumo, é verdade que os antagonistas do cálcio são fármacos eficazes no tratamento da hipertensão arterial, mas não se deve esquecer que os diuréticos e bloqueadores β continuam a ser fármacos de primeira escolha para esse fim terapêutico. Insuficiência coronária: Os antagonistas do cálcio são eficazes no tratamento, quer da angina de peito clássica, quer da angina na sua forma vasoespástica, menos frequente, a angina de Prinzmetal. Qualquer antagonista do cálcio aumenta a resistência ao esforço e diminui os episódios de angina, reduzindo a necessidade de recurso à nitroglicerina. A associação a um bloqueador β e a um nitrato pode produzir efeitos aditivos. As diidropiridinas de acção rápida (nifedipina), porque produzem uma vasodilatação aguda intensa, podem agravar o síndrome anginoso estando, por isso, contra-indicadas no tratamento da insuficiência coronária. Arritmias supraventriculares: pela maior intensidade relativa da sua acção dromotrópica, o verapamil e o diltiazem e os seus sucedâneos reduzem a condução através do nó aurículo-ventricular e prolongam o período refractário do tecido nodal, o que leva a uma diminuição da frequência ventricular nos casos de fibrilação auricular e flutter e favorecendo a retoma do ritmo sinusal nas taquiarritmias. Hemorragia subaracnoideia: verificou-se que em doentes com hemorragia subaracnoideia o uso de nimodipina tem efeitos significativamente superiores ao placebo na recuperação das funções atingidas. Nos acidentes vasculares isquémicos, porém, nenhum antagonista do cálcio produziu qualquer efeito útil. Enfarte do miocárdio: É hoje do conhecimento geral que o enfarte do miocárdio constitui uma contra-indicação ao uso dos antagonistas do cálcio de acção rápida. De acordo com o conhecimento actual, não se justifica o uso rotineiro dos antagonistas do cálcio, qualquer que ele seja, no enfarte do miocárdio. Contudo, pode justificar-se o uso do verapamil em doentes com enfarte se os bloqueadores β estiverem contraindicados. S.G., 2003