H.I.D.A.T.I.D.O.S.E PREFÁCIO A vasta bacia hidrográfica do Rio da Prata e seus afluentes forma, no continente americano, uma área ecológica peculiar. A constituição geológica, predominantemente sedimentar; o clima temperado ou subtropical, sem rigores excessivos; a fertilidade dos campos, a abundância e qualidade da pastagem nativa, a ausência de grandes predadores e endemias graves, fizeram da região um ambiente predestinado para as atividades da Pecuária. Curiosamente, passaram-se muitos milênios antes que essa possibilidade se concretizasse. Porque a criação de bois e ovelhas, que o homem se habituou a manejar com o auxílio do cavalo e do cão, só foi possível com o início da colonização, já que nenhum daqueles quatro animais é originário da América. O gado foi trazido pelas expedições espanholas que, continuando Solís e Caboto, começaram a exploração do Prata e, subindo o Paraná e o Paraguai, fundaram Asunción e foram além, em busca de aventuras e riqueza. É de supor que com ele, ou em lotes posteriores, viessem também as zoonoses. Entre elas a hidatidose, de que a Medicina de então conhecia apenas a ocorrência de cistos. Com o gado e os cães, a tênia também se espalhou - e hoje, apesar das intensas e reiteradas campanhas de erradicação, o Uruguai e a Argentina figuram entre os países de mais alta infestação equinocócica do mundo. A planície platina se estende ao território brasileiro, onde forma, no Rio Grande do Sul, a chamada região da Campanha. Santana do Livramento, onde nascemos, Hugolino Andrade e eu, fica nessa região. Com a cidade uruguaia de Rivera integra, desde fins do século passado, um todo urbano único. Alinha divisória entre as duas corre, em largo trecho, pelo centro de uma avenida comum; por três quarteirões, a fronteira é uma linha imaginária que atravessa um parque - nos canteiros centrais, flores brasileiras e uruguaias nascem do mesmo pé! Noutras áreas do Brasil, e mesmo de nosso Estado, a hidatidose é rara, ou não existe. Livros e autores brasileiros, de bom nível e bem informados, nem sequer a mencionam. Na região da Campanha, ela existe e vem aumentando. Os médicos da área contam centenas de casos diagnosticados e operados. Em Porto Alegre, vez ou outra, nós também os vemos. Mas quem viu mais casos do que todos nós foi Hugolino Andrade. Formado no Rio de Janeiro, ele resistiu à tentação da Capital e voltou para Santana. E, na nossa cidade, resistiu à tentação da riqueza pela pecuária e ficou sendo apenas médico: o radiologista que ainda é hoje, mais de cinqüenta anos depois. Mas não se acomodou no prestígio. Criou um Instituto de Radiologia que é um dos melhores do Estado e que ele renova e aperfeiçoa sempre que pode. Estudou e estuda; fez discípulos e companheiros que hoje compõem seu grupo de trabalho. Para o Instituto convergem muitos pacientes de toda região, e também das áreas uruguaias vizinhas. Ao longo de seus muitos anos de atividade profissional, no consultório particular e na Santa Casa de Misericórdia local, Hugolino recolheu o mais abundante, variado e bem examinado material de hidatidose de que se tem notícias em nosso País. Só em serviços semelhantes do Uruguai e da Argentina vimos algo parecido. Pela qualidade da exposição, o livro ora publicado é também uma lúcida e criteriosa apresentação global da equinococose humana e animal como problema de Medicina, de Veterinária e de Saúde Pública. O fato de vir a lume quando o autor atingiu uma idade que é, para quase todos, a da aposentadoria e da inércia, é mais um motivo para a nossa admiração e aplauso. Como filho da mesma terra, talvez me caiba o direito de ressaltar mais um aspecto. Os naturais das duas cidades já descritas, somos criados num ambiente especial de compreensão internacional. Andamos de uma para outra - formalmente, de um país para outro - com a sensação de estarmos sempre em nossa própria casa. Interessam-nos não só os assuntos de nosso País, como os do vizinho. Ao recolher para este tema de seu estudo uma zoonose que se estende por toda a região platina, Hugolino deu mostras de quanto esta visão global e solidária marca os homens de nossa fronteira. Seu livro é o de um grande médico, mas é também o de um cidadão desta parte da América. Rubens Maciel APRESENTAÇÃO Nenhum livro surge do trabalho exclusivo do autor. Sua elaboração além do esforço e sacrifício de quem o escreve, requer a contribuição de uma equipe solidária, que estimula, sugere e ajuda das mais variadas formas. Escolhe material, confecciona slides, executa ilustrações e, sobretudo, transmite confiança e entusiasmo nas horas de desânimo. Estamos ns referindo e agradecendo aos colegas e amigos de todas as horas. Drs. Rubens Tadeu Rosa Barros e Oscar Alberto Riera e muito especialmente ao Dr. Luis Maria Yordi, sem cujo espírito sentimental e objetivo, não viria a lume este livro. Ao Dr. Carlos Hurtado, brilhante químico uruguaio, uma referência especial pela sua valiosa colaboração escrevendo o capítulo "Provas diagnósticas laboratoriais". Queremos agradecer também aos colegas que através dos anos enriqueceram nosso arquivo radiológico, presenteando-nos interessantes documentos sobre a Hidatidose. Finalmente é de justiça ressaltarmos o nome do Dr. Carlos Horácio Genro, ativo presidente da Sociedade Gaúcha de radiologia, pelo valioso apoio que deu para a AMRIGS Gráfica Editora Ltda., tomasse a responsabilidade de editar o nosso livro. Hugolino Leal de Andrade INTRODUÇÃO "Tudo já foi pensado tudo já foi dito" Aristóteles - 384 a.C. Pretendíamos, dentro do planejamento inicial deste livro, que ele servisse especialmente como veículo de divulgação de um rico material radiográfico sobre a equinococose, que fomos acumulando através de prolongada vida profissional em área geofísica infestada pela importante zoonose, que atinge grave e intensamente a Argentina e o Uruguai, países ligados por extensa faixa de fronteira. Pareceu-nos que para melhor compreensão da enfermidade, sobretudo para aqueles que vivem longe das áreas infestadas pela parasitose, sem acesso fácil às fontes de informação, seria de interesse preceder a parte propriamente clínico-radiológica, com uma explanação de um roteiro abrangendo seus diversos e interessantes aspectos. Zoonose pouco ou nada difundida em outras regiões de nosso imenso país e por tal motivo desconhecida de um modo geral do médico, pensamos ser interessante, senão necessário, que ele sinta a possibilidade cada vez maior de encontrar em pacientes procedentes de regiões infestadas pela equinococose, possíveis portadores da enfermidade. A facilidade dos meios de comunicação e os problemas econômico-financeiros surgidos de vez em quando em nosso país, condicionam motivos para que com certa freqüência, aconteçam pequenos êxodos de trabalhadores rurais de zonas infestadas, para as mais diversas e distantes regiões agropecuárias. Historicamente o primeiro caso de hidatidose assinalado no Brasil, foi relatado pelo Dr. Silva Lima em 1869 na Bahia, certamente em paciente forâneo. Este trabalho sem nenhuma originalidade é todo ele baseado na rica experiência dos pesquisadores que vivem intensamente o problema da parasitose, marcadamente os rioplatenses, completado com nossa vivência dentro do assunto dentro da radiologia, onde conseguimos reunir inúmeros e interessantes casos, que vão desde os mais simples até os mais complicados, localizados nos diversos órgãos e tecidos da economia. CONCEITO A enfermidade hidátidica ou hidatidose hidaditose ou echinococose (equinococose), é uma afecção comum ao homem e a certos animais domésticos - ovinos, bovinos e porcinos provocada por um parasito que faz neles o seu ciclo larvário, assexuado, vesicular, e que tem por hospedeiro habitual, definitivo, na etapa adulta, o intestino delgado do cão. HIDÁTIDE - palavra de origem grega significa: "pedra preciosa clara como água de rocha HISTÓRIA Conhecida a hidatidose desde a mais remota antiguidade, os pesquisadores da História da Medicina, encontraram referências inequívocas a seu respeito 460 anos antes da era cristã, através de um aforismo de Hipócrates, o de nº 55, que diz o seguinte: "os que têm uma hidropsia no fígado, se a serosidade cai na cavidade peritoneal, são levados à morte". Sem o saber, é claro, estava o mestre da Ilha de Kós, intuindo a gravidade, presente ainda hoje, da ascite equinococósica. Decorridos 600 anos, Galeno, suspeitando da presença de cistos no fígado do homem, liga o fato interpretando o aforismo hipocrático e diz: "o fígado é muito apropriado para engendrar hidátides na membrana que o reveste, pois de quando em quando, verifica-se que nos animais sacrificados, essas vísceras apresentam inúmeras vesículas cheias d'água". Laennec refere, que o Aretêo da Capadócia, ainda no II século da era cristã, já tinha conhecimento da presença de vesículas hidáticas no fígado do homem, tendo descrito as formas ascíticas da hidatidose. Descobrem os estudiosos mais referências à enfermidade nos livros da "Sabedoria e das Leis" do povo hebreu, que são aqueles que constituem a doutrina e jurisprudência da Lei Mosaica Talmude - elaborados nos II e IV séculos (d.C.). Longo seria o desfilar dos nomes que a simpatia, talvez mais do que o rigorismo científico da história, colocou em lugar de primazia nos fastos dos descobrimentos médicos, e por tal motivo, da leitura de alguns comentaristas da enfermidade ficou-nos gravado na memória, possivelmente sem uma indiscutível justificativa, o nome de Francisco Redi, legítimo produto do renascimento italiano, filósofo, naturalista, poeta e médico, nascido em 1626, como o primeiro a suspeitar da origem animal das hidátides. Em 1801, Rudolf dá o nome de echinococus a vermes vesiculares granulosos e em 1804 o gênio imortal de Laennec distingue as hidátides do homem como sendo cisticercos. Faltava ainda o passo final, e a história confunde fatos e nomes, sendo atribuída a glória da descoberta ora a Bresmer, que teria descrito em 1821 a presença de echinococus no homem, ou a Rendtorf, em 1822, que goza da maior simpatia dos autores, ou ainda com maior segurança, a Siebold, quem em 1851 descreve a transformação do cisticerco em tênia, e quase ao mesmo tempo assinala em definitivo, a presença na Islândia, da tênia echinococus no homem, estabelecendo a etiologia da enfermidade. Em 1862, em Berlim, o grande sábio alemão Bernardo Naunyn, escreve sua tese inaugural sob o título "A evolução do Echinococus" considerada como um dos documentos básicos da hidatidologia e, apartir daí, surgem inúmeros trabalhos que desvendam amplamente o conhecimento da importante parasitose, destacando-se entre eles a considerável contribuição trazida por Félix Deve, de Rouen - França. William Osler descreve os primeiros casos conhecidos nos Estados Unidos em 1880. Antes, em 1875, o médico e explorador francês, Jules Nicolás Creveau, descreveu, nos Estados Unidos, a presença dos cistos hidáticos no gado vacum, e, para que não faltasse um mártir na história da hidatidose, esse médico e aventureiro, é morto em 1882, às margens do Rio Pilcomayo, pelos índios, quando fazia investigações. Escreveu um livro "Voyages dans L'Amerique du Sud" rico de informações sobre a ecologia, climatologia e ambiente social. A primeira referência à enfermidade na Argentina, foi do cirurgião Montes de Oca, cabendo a Viñas, também argentino, fazer as primeiras investigações realmente científicas. Referida esporadicamente por muitos médicos foi a enfermidade estudada e divulgada como entidade nosológica, com todas as suas características de extensão do cão ao homem e aos herbívoros domésticos, a partir de Roberto Wernick em 1889, seguido por Posadas,Massi, culminando com Herrera Vegas e Cranwel que em 1901 publicam o livro "Los quistes hidáticos em la Argentina", considerado ainda hoje antológico na literatura sobre a enfermidade, a obra mais importante escrita em língua espanhola. Para que fique bem evidenciada a importância dessa contrinuição ao estudo de parasitose, basta assinalarmos o singular fato de ter a Associação Internacional de Hidatologia, 50 anos após a data de sua publicação, como justa homenagem aos seus autores, que por uma feliz circunstância ainda estavam vivos, reeditado a obra, que constitui, na opinião de muitos, um fato inédito na história da literatura médica mundial. Na Argentina como no Uruguai, provavelmente os dois países mais infestados pela parasitose no mundo, surgiram inúmeras e valiosas contribuições. Tanto são os nomes que estudaram e escreveram sobre a enfermidade, que ao citarmos alguns poucos, certamente estaremos sendo injustos a muitos que ficam perdidos involuntariamente em nossa memória. Aos ditames da mesma, lembramos os nomes da Argentina, de José Manoel Jorge, Carlos Lago Garcia, Ivannisevich, Ferro, Vacarezza, Ceballos, Mendy; no Uruguai, de maior influência nos nossos conhecimentos, citamos Morquio, Piaggio Blanco, Garcia Capurro, Chiflet, Del Campo, Larghero, Purriel, Surraco e Velarde Perez Fontana, um dos maiores nomes da hidatidologia mundial. A primeira referência em nosso país à doença, é atribuída ao médico baiano Dr. Silva Lima que relatou em 1869 um caso de "cisto hidático localizado no útero", conforme citação do Dr. Wurcherer em um trabalho seu "Sobre a Hematúria no Brasil", publicado na Gazeta Médica da Bahia em 1869. No Rio Grande do Sul a enfermidade é citada pela primeira vez em 1905, pelo Dr. Carlos E. Hardegger em sua tese "Contribuição aos Estudos do Kysto hidático no Rio Grande do Sul", onde registra um caso de morte por choque anafilático, em um menino italiano de 12 anos, acometido de cisto hidático do pulmão, necropsiado pelos Drs. Olinto de Oliveira, Fernando Abbot e José Carlos Ferreira. Em 1908 o Barão Dr. Von Bassewitz demonstrou através da necropsia que 40% dos cães da cidade de Santa Vitória do palmar, no extremo sul do Rio Grande do Sul, estavam infestados, ocasião em que encontrou sete casos de enfermidade humana, o que representava a alta proporção de um caso para cada 1.800 habitantes. Os estudos de Bassewitz informavam também que 95% dos ovinos, 75% dos suínos e 25% dos bovinos estavam infestados. Outros estudiosos da zoonose no Rio Grande do Sul foram os Drs. Hugo Brusque, Pedro Pereira, Mário Meneghetti, Cezar Pinto e Jaime Luís de Almeida. ETIOLOGIA A "Tênia Equinococo" do grupo de cestódeos, em seu ciclo de desenvolvimento alcança 4 a 8 mm de comprimento, estando dividida em cabeça ou escólex, a coluna e a cadeia ou estróbilo, que é formada de três a cinco anéis ou proglótides. Na cabeça existe uma dupla coroa de ganchos e quatro ventosas com as quais ela se fixa no intestino delgado do cão, onde atinge sua etapa adulta ao término de dois meses (Fig. 1). Alcançada essa fase, o último anel da cadeia, que por um processo de autofecundação se enche de ovos ou oncosferas, desprende-se dos demais sendo evacuado para o exterior com as matérias fecais do cão e imediatamente substituído pelo penúltimo anel que se autofecunda, enchendo-se também de ovos. Este processo se repete várias vezes durante a vida do parasito, que tem uma duração de 18 meses. Um cão parasitado tem possibilidade de albergar em seu intestino mais de 20.000 tênias, podendo eliminar mais ou menos um milhão de ovos por semana. Estes ovos, sumamente resistentes podem ter uma sobrevida de um ano. DESENVOLVIMENTO DO CISTO EM SUA FORMA VESICULAR Ao completar o seu desenvolvimento vesicular, apresenta o cisto uma membrana cuticular ou quitinosa, que o circunda, atapetado por dentro pela membrana germinativa, de onde nascem as vesículas prolígeras, vesículas filhas, nascidas de escóleces e produzindo escóleces, a capa germinativa estéril com vesículas filhas estéreis (acefalocistos), vesículas prolígeras que se rompem libertando escóceles e ainda vesiculação exógena (Fig. 2). O cisto está cheio de líquido "claro como água de rocha". Envolvendo totalmente o cisto está a adventícia que não é parte integrante do cisto, estando constituída por tecido fibro-conjuntivo do órgão parasitado. A forma típica de vesiculação hidática humana é a do cisto univesicular fértil.