Primeira lição foi dada pela mãe Arns, um clã a serviço da

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ZERO HORA
Primeira lição
foi dada pela mãe
GERAL
PORTO ALEGRE, DOMINGO, 29/04/2001
ÁLBUM DE FAMÍLIA
A criação religiosa dada pelos Arns é um fator que marca a vida e o trabalho da pediatra:
FOTOS ARQUIVO PESSOAL/ZH
Zilda Arns Neumann cursava o quarto ano de
Medicina quando recebeu a lição mais marcante
sobre a importância da prevenção na saúde.
Quem a ministrou não foi um professor da faculdade. Foi Helena Arns, sua mãe.
Arns, um clã a
serviço da
solidariedade
O visitante que chega a Forquilhinha depara com os nomes de Paulo Evaristo Arns e
Zilda Arns Neumann, gravados em um outdoor.
Logo abaixo, uma placa indica que aquele é o cruzamento
da Rodovia Gabriel Arns com
a Alameda Felipe Arns – respectivamente pai e avô dos irmãos.
a época, meados dos anos 50, os estudantes praticavam técnicas cirúrgicas usando cães como
cobaias. Cabia a eles arranjar os animais que seriam
submetidos ao bisturi. Para auxiliar a filha, Helena
atraiu os vira-latas esquálidos do bairro Uberaba, em
Curitiba, e os cobriu de cuidados.
A recuperação estupenda dos 10 cães operados por
Zilda deixou os professores estupefatos. A aluna recebeu a nota máxima. O êxito, porém, teve um efeito
paradoxal: fez a jovem afastar de vez a hipótese de se
tornar cirurgiã. Ela concluíra não ter sido sua habilidade com o bisturi a causa da sobrevivência dos cães,
mas a alimentação e os cuidados a eles dispensados
pela mãe. Nascia ali a sanitarista e pediatra que faria
de sua vida uma cruzada pela prevenção das doenças.
Data de muito antes, contudo, a vocação para amparar os outros. Em criança, Tipsi – o apelido é usado
até hoje pelos seus irmãos – costumava fugir de casa
para cuidar dos filhos dos empregados da família.
Mais tarde, já adolescente estudando em Curitiba,
sempre que retornava a Forquilhinha percorria a colônia a cavalo visitando os idosos doentes e solitários.
A menina que aprendeu antes o alemão (idioma
usado em casa) do que o português foi criada num
ambiente de profunda religiosidade e culto ao saber.
Agir conforme os ensinamentos cristãos era apenas
mais uma de suas obrigações, ao lado do trabalho na
roça e da ordenha.
– Em Forquilhinha, a gente não sabia onde terminava a família e começava a Igreja e a escola – recorda
a fundadora da Pastoral da Criança.
A preocupação com o ensino levava o pai de Zilda,
Gabriel Arns, a extremos. Em 1946, ele mandou construir em Curitiba uma casa onde os filhos pudessem
viver enquanto prosseguiam nos estudos. Zilda se instalou lá aos 12 anos, com oito irmãos. A viagem
de mudança para o Paraná se tornaria inesquecível: foi
quando a menina descobriu a existência da pobreza.
Da janela do trem, chocada, percebeu que havia pessoas vivendo em casas sem pomar ou jardim.
N
Tragédias pessoais
marcaram a pediatra
Sem a persistência que os voluntários da Pastoral da
Criança admiram em Zilda, ela não teria se tornado
médica. O pai era contrário à idéia, argumentando que
aquela era uma profissão para homens. Até hoje, os
irmãos recordam a insistência ferrenha da jovem, que
acabou por vencer a oposição paterna.
– Ela sempre foi muito perseverante e teimosa. Vai
até o fim de tudo o que começa. No tempo em que
éramos crianças, íamos à praia em carro de boi, numa
viagem muito demorada e cansativa. Uma vez, quando a Tipsi tinha três anos, decidiu no meio do caminho que iria voltar para Forquilhinha. Tive que arrastá-la de volta, ou ela não teria retornado – narra Hilda
Arns, sua irmã.
Mesmo as tragédias que se abateram sobre a pediatra se revestem de significado. O marido, o economista Aloísio Neumann, morreu para salvar a vida de
duas crianças. Nelson, o filho mais velho do casal,
então com 12 anos, e uma amiga estavam se afogando
numa praia. Aloísio resgatou as crianças. Por causa do
esforço, teve um ataque cardíaco e morreu na água.
Quinze anos antes, o casal Neumann comemorava a
primeira gravidez de Zilda, esperada com ansiedade.
O nome do filho já estava escolhido: Marcelo. Concluído o parto, ela se exasperou ao verificar que os
médicos não lhe mostravam a criança. Havia uma razão: o menino engolira líquido amninótico durante o
procedimento e não resistira. A mulher que elegeu o
combate à mortalidade infantil como missão só viu o
primeiro filho depois de morto. Ao retornar para casa
e entrar no quarto destinado à criança, encontrou um
consolo. Helena, sua mãe, deitara uma imagem do
Menino Jesus no berço de Marcelo.
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s homenagens fazem justiça
a uma dinastia que se singularizou pelo espírito de solidariedade. Dos 10 irmãos vivos de Zilda, cinco tornaram-se religiosos.
O mais célebre deles, dom Paulo,
transformou-se no símbolo da defesa dos direitos humanos durante
o regime militar. Sua primeira atitude ao assumir a arquidiocese de
São Paulo, em 1970, foi vender a
residêndia do arcebispo para utilizar o dinheiro em obras sociais.
– Não tenho direito à cama enquanto meus filhos espirituais passam fome e frio – declarou.
Entre os religiosos da família, está a freira Hilda Arns, que
atuou por três décadas no Rio
Grande do Sul. Quando alcançou
idade para se aposentar, preferiu
assumir a Pastoral em Criciúma.
A
Em 1948, Zilda (foto ao lado, com 12 anos)
deixa a cidade catarinense de Forquilinha e
descobre a pobreza pela janela do trem
que a leva a Curitiba, onde seu pai construíra uma casa para abrigar os filhos que
estudavam na capital paranaense (na foto
acima, a pediatra é a segunda da esquerda
para a direita ao lado dos irmãos Ida, Otília, Felipe e Hilda)
Na primeira fila da foto acima, estão Hilda, Gabriela, dom Paulo, frei Crisóstomo e
Maria Helena, os cinco irmãos de Zilda que
seguiram a carreira religiosa. Ao lado de
Maria Helena, está a irmã adotiva Anita
Maag, também freira. A sanitarista é a segunda, da esquerda para a direira, da segunda fila. Na foto ao lado, dois filhos de
Zilda (a segunda, de pé) aparecem com os
seis órfãos adotados pela irmã Otília.
REPRODUÇÃO/ZH
Gabriel e Helena Arns (foto ao lado) foram
os primeiros a se instalarem às margens do
Rio Mãe Luzia em 1914, no local que anos
depois daria lugar à cidade de Forquilinha,
hoje com 18 mil habitantes. Depois do casamento, viajaram durante três dias no
lombo de burros para desbravar a região
do sul do Estado de Santa Catarina.
Saga dos Arns no Brasil
começou em 1846
Os que não seguiram a vida religiosa optaram pela caridade. O
melhor exemplo é o da professora
Otília Arns. Trinta anos atrás, ao
receber um terreno como herança
do pai, usou-o para construir um
lar, no qual criou seis órfãos.
A nova geração mantém a tradição. Uma infinidade de filhos, sobrinhos e cunhados está engajada
na Pastoral da Criança.
– Difícil é tirar um da família
que não participe – festeja Hilda.
O exemplo veio dos pais de Zilda, fundadores de Forquilhinha.
Gabriel Arns era uma espécie de juiz de paz da região.
Sempre que havia alguma briga, os
colonos o chamavam para resolver
a situação. A mãe, Helena, encomendava livros de medicina da
Alemanha, estudava-os e aplicava
os conhecimentos absorvidos tratando dos doentes da comunidade,
desatendida por médicos.
A saga da família no país teve
início em 1846, com o trisavô de
Zilda, o alemão Nicholas Arns.
Três décadas antes, soldado do
Exército de Napoleão Bonaparte,
ele fora um dos poucos que sobreviveram ao inverno na campanha
militar da Rússia. Deixou o Vale
do Mosela, assolado pela fome,
para desbravar o interior de Santa
Catarina. No último dia de sua vida, 13 anos mais tarde, tomou um
choque ao abrir a janela de casa.
Uma tropa de gado pisoteava a
plantação. Enquanto expulsava os
animais, os tropeiros aproximaram-se por trás e o assassinaram
com golpes na cabeça.
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