A marcação de pessoa nos verbos em bakairí (Karíb) Sérgio MEIRA (KNAW/Leiden University, Museu Paraense Emílio Goeldi) [email protected] Na língua Bakairí (família Karíb), há diversos conjuntos de prefixos marcadores de pessoa no verbo, de acordo com: (a) a classe verbal (p.ex. transitivo ou intransitivo); (b) a flexão verbal (p.ex. passado, futuro, progressivo, etc.); (c) a forma da raiz verbal (p.ex. iniciado por consoante ou vogal). Em cada paradigma, distinguem-se: uma primeira pessoa (‘eu’, 1), uma segunda pessoa (‘tu’, 2), uma terceira pessoa (‘ele, ela’, 3), e uma primeira pessoa plural inclusiva (‘eu, você e talvez outros’; 1+2). A cada pessoa corresponde pelo menos um pronome independente e prefixos específicos (nos verbos, nomes, posposições, etc.). Há também um pronome para a primeira pessoa plural exclusiva, Sina (‘eu e outro(s), mas não você’; 1+3), sem, contudo, dispor de prefixos próprios: o pronome 1+3 co-ocorre com os prefixos de terceira pessoa (o que lembra a situação do português “a gente”, o qual funciona sintaticamente como uma terceira pessoa, mas pode significar uma primeira pessoa plural, ‘nós’). Além disso, existe a distinção de número (singular e plural) na segunda e na terceira pessoas: na série de pronomes, há formas expecíficas para o plural; com os prefixos, é usado um sufixo marcador de plural, -mo. Nas primeiras pessoas exclusiva e inclusiva, não há distinção explícita entre singular e plural. 1 A tabela abaixo lista os pronomes pessoais, ilustrando as categorias de pessoa e número. Note que, para a terceira pessoa, ocorre uma série de formas com diferentes valores dêicticos e referenciais (p.ex. animado vs. não-animado); para tabela abaixo, foram escolhidas as formas mais neutras (anafóricas, animadas). PESSOA SINGULAR 1 2 3 1+2 1+3 ur´ ´m´ m´k´ kur´ Sina PLURAL ´maemo akaemo Passemos, agora, aos diversos paradigmas verbais. 1. OS TEMPOS ‘remoto’ PASSADOS: -d´ ~ -∅ ‘imediato’, -tai ~ -aki ‘médio’, -m´) ~ -w´) Nos três tempos passados marcados pelos sufixos acima mencionados, os verbos transitivos tomam prefixos de duas séries, aqui designadas A (Agente) e P (Paciente). O uso destas séries depende da pessoa do Paciente: se este é uma terceira pessoa (‘eu o...’, ‘tu o...’, ‘nós o...’), usam-se os prefixos da série A, de acordo com o Agente. Se, contudo, o Paciente não é uma terceira pessoa (‘ele me...’, ‘ele te...’, ‘ele nos...’, mas também ‘eu te...’, ‘tu me...’), usam-se os prefixos da série P, de acordo com o Paciente. Assim, o prefixo de primeira pessoa Paciente (1P), ocorrendo em uma forma verbal transitiva, marca tanto ‘ele me...’ quanto ‘você me...’, a diferença sendo indicada pelo contexto (p.ex. um pronome de segunda pessoa). Quando tanto o Agente quanto o Paciente são terceiras pessoas, usa-se um prefixo específico, n-. As tabelas abaixo mostram os prefixos das séries A e P. Note que os prefixos da série P são idênticos aos prefixos que marcam o possuidor em substantivos, ou o argumento em posposições. VERBOS TRANSITIVOS: PESSOA 1 2 1+2 A smkÈd- P È´k3 n- A e O = terceiras pessoas 2 SUBST. / POSP. È´ki- / ∅- Os prefixos apresentam vários alomorfes, distribuídos de acordo com o início da raiz verbal na qual ocorrem; um sumário das regras distribucionais é dado na tabela abaixo. PREFIXO 1A 1P 2P 1+2A 1+2P + a... + e... + i... s-a... s-e... S-i... È-a... j-e... È-i... ∅-a... ∅-i... ´-i... kÈd-a... kÈz-e... kÈZ-i... k-a... k-´... kÈ-i... + È... + ´... + o... + u... +C(o/u) +C S-È... s-´... s-o... S-u... ∅-È... w-o... ∅-u... È/u-C... È-C... ´-È... ∅-´... ∅-o... ´-u... o-C... ´-C... kÈd-È... kÈd-´... kÈd-o... kÈd-u... kÈdÈ-C... kÈdÈ-C... k-È... k-´... ku-o... k-u... kÈ/u-C... kÈ-C... Abaixo exemplifca-se o uso dos prefixos transitivos com a raiz ene ‘trazer’; o paradigma de posse do substantivo enu ‘olho’ e o paradigma argumental da posposição enanaZi ‘segundo, de acordo com’ são dados para comparação. enu ‘olho’ (substantivo) ene ‘trazer’ (transitivo) s-ene-d´ ‘Eu o/a trouxe.’ j-enu ‘meu olho’ A m-ene-d´ ‘Você o/a trouxe.’ inu ‘teu olho’ kÈz-ene-d´ ‘Nós o/a trouxemos.’ k-´nu ‘nosso olho’ enu ‘olho dele/a’ j-ene-d´ ‘Ele/a me trouxe.’ ine-d´ ‘Ele/a te trouxe.’ enanaZi ‘segundo’ (posposição) O k-´ne-d´ ‘Ele/a nos trouxe.’ j-enanaZi ‘segundo eu’ n-ene-d´ ‘Ele/a o/a trouxe.’ inanaZi‘segundo você’ ine-d´ ‘Eu te trouxe.’ k-´nanaZi ‘segundo nós’ j-ene-d´ ‘Você me trouxe.’ enanaZi ‘segundo ele/a’ No caso dos verbos intransitivos, observa-se a presença de duas classes conjugacionais diferentes, aqui denominadas SA e SP. Os verbos intransitivos da classe SA tomam prefixos bastante semelhantes aos prefixos da série A dos verbos transitivos, enquanto que os da classe SP tomam prefixos idênticos aos da série P dos verbos transitivos. Além disso, o prefixo n-, usado nos transitivos para marcar situações em que o Agente e o Paciente são ambos terceiras pessoas (‘ele o...’), ocorre nas duas classes de verbos intransitivos como simples marcador de terceira pessoa (‘ele...’). A tabela abaixo lista os prefixos das duas classes. 3 VERBOS INTRANSITIVOS: PESSOA 1 2 1+2 3 A smkˆd( n- ) SA k- (/ w-) mkˆd- (/ k-) n- P ˆ´k( n- ) SP ˆ´kn- O uso dos prefixos das classes SA e SP é ilustrado abaixo, com a conjugação das raízes SA i ‘tomar banho’ e ´ku ‘subir’, e da raiz SP epagu ‘parar’. SA: i ‘tomar banho’ w-i-d´ m-i-d´ k-i-d´ n-i-d´ SA: ´ku ‘subir’ ‘Eu tomei banho.’ k-´ku ‘Você tomou banho.’ m-´ku ‘Nós tomamos banho.’ kˆd-´ku ‘Ele/a tomou banho.’ n-´ku SP: epagu ‘parar’ ‘Eu subi.’ j-epagu-d´ ‘Eu parei.’ ‘Você subiu.’ ipagu-d´ ‘Você parou.’ ‘Nós subimos.’ k-´pagu-d´ ‘Nós paramos.’ ‘Ele/a subiu.’ n-epagu-d´ ‘Ele/a parou.’ Os alomorfes k- e w- ‘1SA’, bem como kÈd- e k- ‘1+2SA’, não parecem ter uma distribuição fonologicamente determinada. Eles parecem formar duas subclasses distintas (“SA-1”, com k- ‘1’ e kÈd- ‘1+2’, e “SA-2”, com w- ‘1’ e k‘1+2’). Note-se, contudo, que o número de raízes estudadas ainda é relativamente pequeno; é possível que novas regularidades venham à tona com o aumento dos dados disponíveis. Não parece haver nenhum fator com o qual se possa prever a classe à qual pertence uma dada raiz verbal intransitiva. Esta situação, bastante similar à que se observa em outras línguas Karíb, é bastante semelhante à que caracteriza os sistemas verbais de tipo “S-cindido” ou “ativo-estativo”; ao contrário dos casos mais prototípicos, contudo, não parece haver nenhuma base semântica para a distribuição das raízes intransitivas nas duas classes conjugacionais. (Voltamos a mencionar a possibilidade de que padrões ocultos venham a tornarse visíveis com o aumento da quantidade de dados disponíveis). Alguns exemplos de verbos das duas classes: SA: t´ ‘ir’, ge ‘dizer’, ´e(wÈ) ‘vir’, ´ise ‘urinar’, ´i ‘dançar’, adame ‘correr’... SP: aloku ‘subir’, ÈkÈ ‘dormir’, ige ‘morrer’, ihuge ‘cair’, eipa ‘rir’, oguma ‘chorar’... Note-se que, como é o caso em outras línguas da família, verbos destransitivizados (reflexivos) pertencem sempre à classe SA: ewani ‘pôr alguém 4 para trabalhar’ (transitivo), ´s-ewani ‘trabalhar’ (intransitivo SA); enomed´ ‘ensinar alguém’ (transitivo), ´s-enomed´ ‘aprender’ (intransitivo SA). 2. OUTROS TEMPOS/MODOS: -dÈlÈ ~ -lÈ ‘atemporal’, -dÈse ~ -dÈze ‘desiderativo’... Nas demais formas tempo-aspectuais dos verbos em Bakairi, observamse as mesmas divisões de classes entre as raízes verbais: transitivo vs. intransitivo, SA vs. SP. Contudo, os prefixos que as definem não são sempre os mesmos, como podemos ver abaixo. A tabela abaixo lista os prefixos das séries A e P para verbos transitivos. Note-se que a série A, bem como o prefixo 3A3P (Agente e Paciente terceiras pessoas), são caracterizados pela nasalização obrigatória da primeira vogal da raiz verbal em que ocorrem; os prefixos são bastante diferentes dos da série A nos tempos passados. Já a série P permanece a mesma. VERBOS TRANSITIVOS: PESSOA 1 2 1+2 A k(´)~m(´)~ki~- P È´k- j~- A e P = terceiras pessoas A conjugação da raiz verbal transitiva at´ ‘cortar’ na forma atemporal (usada, entre outras coisas, para indicar ações em andamento) é dada abaixo para ilustrar o uso dos prefixos das séries A e P. at´ ‘cortar’ k-a)t´-lÈ m-a)t´-lÈ ki-a)t´-lÈ ‘Eu o/a estou cortando.’ ˆ-at´-lÈ ‘Ele/a me está cortando.’ ‘Você o/a está cortando.’ at´-lÈ ‘Ele/a te está cortando.’ ‘Nós o/a estamos cortando.’ k-at´-lÈ ‘Ele/a nos está cortando.’ j-a)t´-lÈ ‘Ele/a o/a está cortando.’ Para os verbos intransitivos, observa-se o uso dos mesmos prefixos dos tempos passados para a definição das classes SA e SP, exceto na terceira pessoa, em que ocorre o prefixo i-/∅- ao invés de n-. Na tabela abaixo, esses prefixos são listados e comparados aos prefixos das séries A e P dos transitivos. 5 VERBOS INTRANSITIVOS: PESSOA 1 2 1+2 3 A k(´)~m(´)~ki~( j~- ) SA k- (/w-) mkÈd- (/k-) i- / ∅- P È´k( j~- ) SP È´ki- / ∅- Os exemplos abaixo, com as raízes i ‘tomar banho’, ´ku ‘subir’ e ihuge ‘cair’, ilustram o uso dos prefixos das classes SA e SO. Como se vê, a marcação de pessoa é aqui idêntica à que se observa no caso dos tempos passados. SA: i ‘tomar banho’ SA: ´ku ‘subir’ SO: ihuge ‘cair’ w-i-dÈlÈ ‘Estou tomando banho.’ k- ´ku-lÈ ‘Estou subindo.’ È-ihuge-lÈ ‘Estou caindo.’ m- ´ku-lÈ ‘Está subindo.’ ´-ihuge-lÈ ‘Está caindo.’ m-i-dÈlÈ ‘Está tomando banho.’ k-i-dÈlÈ ‘Estamos tomando banho.’ kˆd-´ku-lÈ ‘Estamos subindo.’ kÈ-ihuge-lÈ ‘Estamos caindo.’ ´ku-lÈ ‘Está subindo.’ ihuge-lÈ ‘Está caindo.’ i-dÈlÈ ‘Está tomando banho.’ 3. UMA VISÃO GERAL As tabelas abaixo recapitulam o que foi visto nas duas seções anteriores, apresentando todos os conjuntos de prefixos marcadores de pessoa observados em Bakairi. PASSADOS PESSOA 1 2 1+2 3 A smkÈd( n- ) SA k-, wmkÈd-, kn- O È´k( n- ) SO È´kn- O È´k( j~- ) SO È´ki- / ∅- OUTROS TEMPOS/MODOS PESSOA 1 2 1+2 3 A k(´)~m(´)~ki~( j~- ) SA k- (/w-) mkÈd- (/k-) i- / ∅- Pode-se caracterizar o sistema acima com as seguintes observações: • verbos transitivos e verbos intransitivos são claramente distinguidos segundo o tipo de prefixos marcadores de pessoa com o qual co-ocorrem; • os verbos intransitivos tomam apenas uma série de prefixos: SA ou SP, as quais definem duas classes (podendo-se também dividir a classe SA em duas subclasses menores); 6 • os prefixos SA e SP dos tempos passados são idênticos aos dos demais tempos, exceto na terceira pessoa, onde ocorre n- nos tempos passados e i-/∅- nas demais formas; • note-se que os verbos transitivos detransitivizados (reflexivos), como costuma acontecer na família Karíb, pertencem à classe SA; • os verbos transitivos tomam duas séries de prefixos (A e P), de acordo com a pessoa do Paciente; • a série A dos transitivos tem duas ‘alo-séries’, uma típica dos tipos passados (série A-I) e outra típica das demais formas verbais (série A-II); • a série A-II tem a característica de sempre causar a nasalização da primeira vogal da raiz verbal com a qual co-ocorre. É difícil descrever este sistema como pertencente a algum tipo canônico (“ergativo”, “nominativo”, “ativo”, etc.). Julgando-se pela família, esperar-se-ia um sistema “S-cindido”, com paralelismo entre A e SA e entre P e SP, como os próprios termos já sugerem. Contudo: - os prefixos de terceira pessoa não seguem o paralelismo A/SA e P/SP; - os prefixos SA não são, a rigor, realmente paralelos aos prefixos A, exceto na segunda pessoa (m-), e, mesmo neste caso, o prefixo A-II (não-passado), m(´)~-, é, devido à nasalização que o acompanha, claramente diferente do prefixo intransitivo m-; - os prefixos SP apresentam um maior paralelismo com os prefixos P; contudo, mesmo aqui, observamos uma diferença na terceira pessoa nas formas não-passadas (j~- na série P, i-/∅- na série SP). Além disso, cumpre observar que o paralelismo em questão vai além do sistema verbal, já que os mesmos prefixos ocorrem em substantivos e em posposições. Concluímos que a análise deste sistema como “S-cindido” implicaria atribuir muito valor a paralelismos bastante imperfeitos entre as várias séries de prefixos. Parece melhor, a priori, manter separados os vários conjuntos de prefixos. Com respeito à nasalização que acompanha os prefixos da série A-II, pode-se oferecer uma explicação diacrônica: a nasalização é um resquício de uma antiga consoante nasal (n) que foi perdida nessas formas, se aceitarmos que elas são cognatas com formas nominalizadas marcadas por um prefixo n(nominalizador de paciente), encontrado em outras línguas Karíb. Comparem-se os exemplos abaixo: 7 Tiriyó: ´-n-ar´ Hixkaryana: 2-O.R-levar ‘o que você vai levar’ ˆ-n-e¯e-rˆ 3-O.R-ver-POS ‘o que ele vê’ A favor da idéia de que as formas verbais não-passadas teriam sido antigas nominalizações, pode-se mencionar o fato de que elas ainda têm, hoje em dia, usos nominais. Nos exemplos abaixo, m´-e)gatu-lÈ ‘você conta/narra’ e m´-u)tu-lÈ ‘você sabe’ são usados ora como verbos principais (= formas verbais), ora como objetos da posposição w´g´ ‘sobre, a respeito de’ (= formas nominalizadas). [m´-e)gatu-lˆ w´g´] m´-u)tu-lˆ 2A-contar-PRES? sobre 2A-saber-PRES [m´-u)tu-lˆ w´g´] m´-e)gatu-lˆ 2A-saber-PRES? sobre 2A-contar-PRES ‘Você sabe o que você está contando.’ ‘Você está contando o que você sabe.’ Aparentemente, as formas não-passadas, caracterizadas (nos verbos transitivos) pelos prefixos da série A-II, são antigas formas nominalizadas. Alguns detalhes formais, contudo, permanecem sem explicação. Por exemplo, formas nominalizadas (como se vê nos exemplos Tiriyó e Hixkaryana acima) tomam prefixos de pessoa da série P (ou seja, ´- para a segunda pessoa); em Bakairi, contudo, observa-se m´-, e não ´-. Este fato atrai interesse para o estudo das nominalizações verbais em Bakairi e de suas características sintáticas. Os dados disponíveis ainda não são suficientes para opiniões definitivas, mas alguns detalhes sugestivos podem ser mencionados. 4. UM EXEMPLO DE NOMINALIZAÇÃO VERBAL: -to ~ -do ~ -ho ‘circunstância’ Em todas as línguas da família Karíb, há um sufixo (em geral -topo, -toho, -toFo, -to/, -to, etc.) que deriva nominalizações referentes a uma circunstância da ação descrita pelo verbo. A partir de “ver”, por exemplo, deriva-se uma palavra que significa “algo com que se pode ver” (um instrumento para ver, p.ex. óculos, telescópios, televisões, etc.), ou “um lugar onde se pode ver”, ou “o momento em que algo foi visto”. Em outras línguas, a nominalização resultante comporta-se exatamente como um substantivo, tomando apenas os prefixos que marcam o possuidor em substantivos; no caso destas nominalizações, os prefixos se referem ao Paciente: “algo para ver-me”, “algo para ver-te”, “algo para vê-lo”, “algo para ver-nos”, etc. Caso seja necessário indicar o Agente, este virá como um NP explícito, seguido por uma posposição (cuja forma varia, segundo a língua, entre wÈja, uja, ja, e a), como 8 nos exemplos abaixo, da língua Tiriyó (onde o nominalizador de circunstância tem a forma -to): Tiriyó: tu:ka ‘bater’ ji-tu:ka-to ´-tu:ka-to i-tu:ka-to kÈ-tu:ka-to ‘um instrumento para bater em mim’ ‘um instrumento para bater em você’ ‘um instrumento para bater nele’ ‘um instrumento para bater em nós (incl.)’ ´-tu:ka-to (Sebastião ja) (ji(´(i(kÈ- ‘1’) ‘2’) ‘3’) ‘1+2’) ‘algo para (o Sebastião) bater em você’ Em Bakairi, como seria de se esperar, o sufixo nominalizador de circunstância existe (com os alomorfes -to, -do e -ho). Surpreendentemente, contudo, formas nominalizadas com este sufixo tomam prefixos não só da série P, como ocorre nas demais línguas, mas também da série A-II (caso, é claro, a raiz verbal seja transitiva). Nestas formas, os prefixos da série P marcam o Paciente (“algo para bater em mim”), enquanto que os prefixos da série A marcam o Agente (“algo para eu bater [em outra pessoa]”), algo nunca antes visto em uma língua Karíb (com a possível exceção do Ikpeng, língua que, por sinal, forma, com o Bakairi, um subgrupo dentro da família Karíb). Vejam-se os exemplos abaixo, baseados em at´ ‘cortar’ e ene ‘trazer’, ambos raízes transitivas (veja-se que a nasalização da vogal inicial de ene pelos prefixos da série A-II não é marcada, já que esta vogal, devido à consoante n que a segue, é sempre nasal). at´ ‘cortar’ ene ‘trazer’ k-a)t´-ho ‘(algo) para eu cortar’ m-a)t´-ho ‘(algo) para você cortar’ ki-a)t´-ho ‘(algo) para nós cortarmos’ k´-ene-to ‘(algo) para eu trazer’ m´-ene-to ‘(algo) para você trazer’ ki-ene-to ‘(algo) para nós trazermos’ ˆ-at´-ho ‘(algo) para cortar-me’ at´-ho ‘(algo) para cortar-te’ k-at´-ho ‘(algo) para cortar-nos’ j-ene-to ine-to k-´ne-to (s)-at´-ho ‘(algo) para cortá-lo’ (s)-ene-to ‘(algo) para trazê-lo’ ‘(algo) para trazer-me’ ‘(algo) para trazer-te’ ‘(algo) para trazer-nos’ Como se vê, os prefixos indicam claramente a pessoa do Agente e/ou Paciente; não é necessário, portanto, indicar o Agente através de um NP seguido por posposição. De fato, tentativas de obter-se uma construção deste tipo (com NPs seguidos pela posposição ã, aparentemente cognata com wÈja, uja, ja, a) resultaram em interpretações diferentes: o NP era visto como um Dativo, ou um 9 Beneficiário (também marcados com a posposição wÈja, uja, ja, a em outras línguas Karíb), mas nunca como um Agente. Comparem-se os exemplos abaixo: Katxuyana Bakairí ahoj-tohu Sebastião wˆja ajudar-CIRC Sebastião DAT/AGT s-at´-ho Sérgio a) 3-cortar-CIRC Sérgio DAT ‘um ajudante para o Sebastião’ ‘o cortador (é) para Sérgio’ (DATIVO) (DATIVO) ‘para o Sebastião ajudar’ (AGENTE) (AGENTE) Sebastião j-ahoj-tohu Sebastião LG-ajudar-CIRC *‘algo para Sérgio cortar’ Sérgio s-at´-ho ‘algo para Sérgio cortar’ Sérgio at´-ho ‘algo para cortar Sérgio’ ‘(algo) para ajudar Sebastião’ 5. HÁ ERGATIVIDADE EM BAKAIRI? Consideremos os seguintes resultados: • os paralelismos entre as séries de prefixos são muito imperfeitos para uma análise S-cindida (considerada, às vezes, como uma forma de ergatividade); • não há nenhum morfema marcador de ergativo, nem mesmo com as nominalizações Observemos alguns exemplos de orações simples, nas quais se vê que, em todas as formas (tempos passados ou não passados), não há nenhuma marcação ergativa explícita. Paulo i-d´-lˆ Paulo j-enewˆ-lˆ Paulo 3S-ir-PRES Paulo at´ im´sedo 3AO-trazer-PRES anzol grande ‘Paulo está indo.’ ‘Paulo está trazendo um anzol grande.’ Paulo n´-t´ Paulo n-ene-d´ at´ Paulo Paulo anzol grande 3S-ir:PAS ‘Paulo já foi.’ 3AO-trazer-PAS im´sedo ‘Paulo trouxe um anzol grande.’ Paulo at´ im´sedo j-enewˆ-lˆ Paulo anzol grande 3AO-trazer-PRES ‘Paulo está trazendo um anzol grande.’ Paulo at´ Paulo im´sedo n-ene-d´ anzol grande 3AO-trazer-PAS ‘Paulo trouxe um anzol grande.’ 10 A análise da correferencialidade entre orações coordenadas é freqüentemente utilizada como argumento a favor de sistemas ergativos. Os dados coletados são ainda muito poucos, o que não permite conclusões definitivas; contudo, os exemplos disponíveis não apresentam padrão ergativo: Paulo Maria n-e-d´, Paulo Maria il´p´rÆ)e) n´-t´ 3AO-ver-PAS em.seguida 3S-ir:PAS ‘Pauloi viu Mariaj, e depois foii (*j) embora.’ A conclusão (bastante preliminar, diga-se de passagem) é que não parece haver padrões ergativos em Bakairi, seja do tipo “S-cindido”, seja do tipo clássico, com marcadores ergativos em NPs agentes. Note-se que tanto sistemas “S-cindidos” quanto marcadores ergativos podem ser encontrados em outras línguas da família. Em algumas línguas, marcadores ergativos são normais, configurando-se um padrão ergativo clássico (por exemplo, em Kuikuro e em Makuxi); nas demais línguas, embora os cognatos dos marcadores de ergativo do Kuikuro e do Makuxi não tenham a mesma funcionalidade, eles ainda podem, ocasionalmente, marcar agentes (p.ex. com nominalizações, como nos exemplos Tiriyó e Katxuyana apresentados acima). Mesmo estes “resquícios de ergatividade” parecem estar ausentes na língua Bakairi. 11