Sérgio Meira

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A marcação de pessoa nos verbos em bakairí (Karíb)
Sérgio MEIRA
(KNAW/Leiden University, Museu Paraense Emílio Goeldi) [email protected]
Na língua Bakairí (família Karíb), há diversos conjuntos de prefixos
marcadores de pessoa no verbo, de acordo com:
(a) a classe verbal (p.ex. transitivo ou intransitivo);
(b) a flexão verbal (p.ex. passado, futuro, progressivo, etc.);
(c) a forma da raiz verbal (p.ex. iniciado por consoante ou vogal).
Em cada paradigma, distinguem-se: uma primeira pessoa (‘eu’, 1), uma
segunda pessoa (‘tu’, 2), uma terceira pessoa (‘ele, ela’, 3), e uma primeira
pessoa plural inclusiva (‘eu, você e talvez outros’; 1+2). A cada pessoa
corresponde pelo menos um pronome independente e prefixos específicos (nos
verbos, nomes, posposições, etc.). Há também um pronome para a primeira
pessoa plural exclusiva, Sina (‘eu e outro(s), mas não você’; 1+3), sem, contudo,
dispor de prefixos próprios: o pronome 1+3 co-ocorre com os prefixos de
terceira pessoa (o que lembra a situação do português “a gente”, o qual funciona
sintaticamente como uma terceira pessoa, mas pode significar uma primeira
pessoa plural, ‘nós’). Além disso, existe a distinção de número (singular e
plural) na segunda e na terceira pessoas: na série de pronomes, há formas
expecíficas para o plural; com os prefixos, é usado um sufixo marcador de
plural, -mo. Nas primeiras pessoas exclusiva e inclusiva, não há distinção
explícita entre singular e plural.
1
A tabela abaixo lista os pronomes pessoais, ilustrando as categorias de
pessoa e número. Note que, para a terceira pessoa, ocorre uma série de formas
com diferentes valores dêicticos e referenciais (p.ex. animado vs. não-animado);
para tabela abaixo, foram escolhidas as formas mais neutras (anafóricas,
animadas).
PESSOA
SINGULAR
1
2
3
1+2
1+3
ur´
´m´
m´k´
kur´
Sina
PLURAL
´maemo
akaemo
Passemos, agora, aos diversos paradigmas verbais.
1. OS TEMPOS
‘remoto’
PASSADOS:
-d´ ~ -∅ ‘imediato’, -tai ~ -aki ‘médio’, -m´) ~ -w´)
Nos três tempos passados marcados pelos sufixos acima mencionados,
os verbos transitivos tomam prefixos de duas séries, aqui designadas A (Agente)
e P (Paciente). O uso destas séries depende da pessoa do Paciente: se este é uma
terceira pessoa (‘eu o...’, ‘tu o...’, ‘nós o...’), usam-se os prefixos da série A, de
acordo com o Agente. Se, contudo, o Paciente não é uma terceira pessoa (‘ele
me...’, ‘ele te...’, ‘ele nos...’, mas também ‘eu te...’, ‘tu me...’), usam-se os
prefixos da série P, de acordo com o Paciente. Assim, o prefixo de primeira
pessoa Paciente (1P), ocorrendo em uma forma verbal transitiva, marca tanto
‘ele me...’ quanto ‘você me...’, a diferença sendo indicada pelo contexto (p.ex.
um pronome de segunda pessoa). Quando tanto o Agente quanto o Paciente são
terceiras pessoas, usa-se um prefixo específico, n-.
As tabelas abaixo mostram os prefixos das séries A e P. Note que os
prefixos da série P são idênticos aos prefixos que marcam o possuidor em
substantivos, ou o argumento em posposições.
VERBOS TRANSITIVOS:
PESSOA
1
2
1+2
A
smkÈd-
P
È´k3
n-
A e O = terceiras pessoas
2
SUBST. / POSP.
È´ki- / ∅-
Os prefixos apresentam vários alomorfes, distribuídos de acordo com o
início da raiz verbal na qual ocorrem; um sumário das regras distribucionais é
dado na tabela abaixo.
PREFIXO
1A
1P
2P
1+2A
1+2P
+ a...
+ e...
+ i...
s-a...
s-e...
S-i...
È-a...
j-e...
È-i...
∅-a... ∅-i...
´-i...
kÈd-a... kÈz-e... kÈZ-i...
k-a... k-´... kÈ-i...
+ È...
+ ´...
+ o...
+ u...
+C(o/u)
+C
S-È...
s-´...
s-o...
S-u...
∅-È...
w-o... ∅-u... È/u-C...
È-C...
´-È...
∅-´... ∅-o...
´-u...
o-C...
´-C...
kÈd-È... kÈd-´... kÈd-o... kÈd-u... kÈdÈ-C... kÈdÈ-C...
k-È...
k-´... ku-o... k-u... kÈ/u-C... kÈ-C...
Abaixo exemplifca-se o uso dos prefixos transitivos com a raiz ene
‘trazer’; o paradigma de posse do substantivo enu ‘olho’ e o paradigma
argumental da posposição enanaZi ‘segundo, de acordo com’ são dados para
comparação.
enu ‘olho’ (substantivo)
ene ‘trazer’ (transitivo)
s-ene-d´
‘Eu o/a trouxe.’
j-enu
‘meu olho’
A m-ene-d´ ‘Você o/a trouxe.’
inu
‘teu olho’
kÈz-ene-d´ ‘Nós o/a trouxemos.’
k-´nu
‘nosso olho’
enu
‘olho dele/a’
j-ene-d´
‘Ele/a me trouxe.’
ine-d´
‘Ele/a te trouxe.’
enanaZi ‘segundo’ (posposição)
O
k-´ne-d´
‘Ele/a nos trouxe.’
j-enanaZi ‘segundo eu’
n-ene-d´
‘Ele/a o/a trouxe.’
inanaZi‘segundo você’
ine-d´
‘Eu te trouxe.’
k-´nanaZi
‘segundo nós’
j-ene-d´
‘Você me trouxe.’
enanaZi
‘segundo ele/a’
No caso dos verbos intransitivos, observa-se a presença de duas classes
conjugacionais diferentes, aqui denominadas SA e SP. Os verbos intransitivos da
classe SA tomam prefixos bastante semelhantes aos prefixos da série A dos
verbos transitivos, enquanto que os da classe SP tomam prefixos idênticos aos da
série P dos verbos transitivos. Além disso, o prefixo n-, usado nos transitivos
para marcar situações em que o Agente e o Paciente são ambos terceiras pessoas
(‘ele o...’), ocorre nas duas classes de verbos intransitivos como simples
marcador de terceira pessoa (‘ele...’). A tabela abaixo lista os prefixos das duas
classes.
3
VERBOS INTRANSITIVOS:
PESSOA
1
2
1+2
3
A
smkˆd( n- )
SA
k- (/ w-)
mkˆd- (/ k-)
n-
P
ˆ´k( n- )
SP
ˆ´kn-
O uso dos prefixos das classes SA e SP é ilustrado abaixo, com a
conjugação das raízes SA i ‘tomar banho’ e ´ku ‘subir’, e da raiz SP epagu
‘parar’.
SA: i ‘tomar banho’
w-i-d´
m-i-d´
k-i-d´
n-i-d´
SA: ´ku ‘subir’
‘Eu tomei banho.’
k-´ku
‘Você tomou banho.’ m-´ku
‘Nós tomamos banho.’ kˆd-´ku
‘Ele/a tomou banho.’ n-´ku
SP: epagu ‘parar’
‘Eu subi.’
j-epagu-d´ ‘Eu parei.’
‘Você subiu.’
ipagu-d´ ‘Você parou.’
‘Nós subimos.’ k-´pagu-d´ ‘Nós paramos.’
‘Ele/a subiu.’ n-epagu-d´ ‘Ele/a parou.’
Os alomorfes k- e w- ‘1SA’, bem como kÈd- e k- ‘1+2SA’, não parecem
ter uma distribuição fonologicamente determinada. Eles parecem formar duas
subclasses distintas (“SA-1”, com k- ‘1’ e kÈd- ‘1+2’, e “SA-2”, com w- ‘1’ e k‘1+2’). Note-se, contudo, que o número de raízes estudadas ainda é
relativamente pequeno; é possível que novas regularidades venham à tona com o
aumento dos dados disponíveis.
Não parece haver nenhum fator com o qual se possa prever a classe à
qual pertence uma dada raiz verbal intransitiva. Esta situação, bastante similar à
que se observa em outras línguas Karíb, é bastante semelhante à que caracteriza
os sistemas verbais de tipo “S-cindido” ou “ativo-estativo”; ao contrário dos
casos mais prototípicos, contudo, não parece haver nenhuma base semântica
para a distribuição das raízes intransitivas nas duas classes conjugacionais.
(Voltamos a mencionar a possibilidade de que padrões ocultos venham a tornarse visíveis com o aumento da quantidade de dados disponíveis).
Alguns exemplos de verbos das duas classes:
SA: t´ ‘ir’, ge ‘dizer’, ´e(wÈ) ‘vir’, ´ise ‘urinar’, ´i ‘dançar’, adame ‘correr’...
SP: aloku ‘subir’, ÈkÈ ‘dormir’, ige ‘morrer’, ihuge ‘cair’, eipa ‘rir’, oguma
‘chorar’...
Note-se que, como é o caso em outras línguas da família, verbos
destransitivizados (reflexivos) pertencem sempre à classe SA: ewani ‘pôr alguém
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para trabalhar’ (transitivo), ´s-ewani ‘trabalhar’ (intransitivo SA); enomed´
‘ensinar alguém’ (transitivo), ´s-enomed´ ‘aprender’ (intransitivo SA).
2. OUTROS TEMPOS/MODOS: -dÈlÈ ~ -lÈ ‘atemporal’, -dÈse ~ -dÈze ‘desiderativo’...
Nas demais formas tempo-aspectuais dos verbos em Bakairi, observamse as mesmas divisões de classes entre as raízes verbais: transitivo vs.
intransitivo, SA vs. SP. Contudo, os prefixos que as definem não são sempre os
mesmos, como podemos ver abaixo.
A tabela abaixo lista os prefixos das séries A e P para verbos transitivos.
Note-se que a série A, bem como o prefixo 3A3P (Agente e Paciente terceiras
pessoas), são caracterizados pela nasalização obrigatória da primeira vogal da
raiz verbal em que ocorrem; os prefixos são bastante diferentes dos da série A
nos tempos passados. Já a série P permanece a mesma.
VERBOS TRANSITIVOS:
PESSOA
1
2
1+2
A
k(´)~m(´)~ki~-
P
È´k-
j~- A e P = terceiras pessoas
A conjugação da raiz verbal transitiva at´ ‘cortar’ na forma atemporal
(usada, entre outras coisas, para indicar ações em andamento) é dada abaixo para
ilustrar o uso dos prefixos das séries A e P.
at´ ‘cortar’
k-a)t´-lÈ
m-a)t´-lÈ
ki-a)t´-lÈ
‘Eu o/a estou cortando.’
ˆ-at´-lÈ
‘Ele/a me está cortando.’
‘Você o/a está cortando.’
at´-lÈ
‘Ele/a te está cortando.’
‘Nós o/a estamos cortando.’
k-at´-lÈ
‘Ele/a nos está cortando.’
j-a)t´-lÈ ‘Ele/a o/a está cortando.’
Para os verbos intransitivos, observa-se o uso dos mesmos prefixos dos
tempos passados para a definição das classes SA e SP, exceto na terceira pessoa,
em que ocorre o prefixo i-/∅- ao invés de n-. Na tabela abaixo, esses prefixos
são listados e comparados aos prefixos das séries A e P dos transitivos.
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VERBOS INTRANSITIVOS:
PESSOA
1
2
1+2
3
A
k(´)~m(´)~ki~( j~- )
SA
k- (/w-)
mkÈd- (/k-)
i- / ∅-
P
È´k( j~- )
SP
È´ki- / ∅-
Os exemplos abaixo, com as raízes i ‘tomar banho’, ´ku ‘subir’ e ihuge
‘cair’, ilustram o uso dos prefixos das classes SA e SO. Como se vê, a marcação
de pessoa é aqui idêntica à que se observa no caso dos tempos passados.
SA: i ‘tomar banho’
SA: ´ku ‘subir’
SO: ihuge ‘cair’
w-i-dÈlÈ ‘Estou tomando banho.’ k- ´ku-lÈ ‘Estou subindo.’ È-ihuge-lÈ ‘Estou caindo.’
m- ´ku-lÈ ‘Está subindo.’ ´-ihuge-lÈ ‘Está caindo.’
m-i-dÈlÈ ‘Está tomando banho.’
k-i-dÈlÈ ‘Estamos tomando banho.’ kˆd-´ku-lÈ ‘Estamos subindo.’ kÈ-ihuge-lÈ ‘Estamos caindo.’
´ku-lÈ ‘Está subindo.’
ihuge-lÈ ‘Está caindo.’
i-dÈlÈ ‘Está tomando banho.’
3. UMA VISÃO GERAL
As tabelas abaixo recapitulam o que foi visto nas duas seções anteriores,
apresentando todos os conjuntos de prefixos marcadores de pessoa observados
em Bakairi.
PASSADOS
PESSOA
1
2
1+2
3
A
smkÈd( n- )
SA
k-, wmkÈd-, kn-
O
È´k( n- )
SO
È´kn-
O
È´k( j~- )
SO
È´ki- / ∅-
OUTROS TEMPOS/MODOS
PESSOA
1
2
1+2
3
A
k(´)~m(´)~ki~( j~- )
SA
k- (/w-)
mkÈd- (/k-)
i- / ∅-
Pode-se caracterizar o sistema acima com as seguintes observações:
• verbos transitivos e verbos intransitivos são claramente distinguidos
segundo o tipo de prefixos marcadores de pessoa com o qual co-ocorrem;
• os verbos intransitivos tomam apenas uma série de prefixos: SA ou SP, as
quais definem duas classes (podendo-se também dividir a classe SA em
duas subclasses menores);
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• os prefixos SA e SP dos tempos passados são idênticos aos dos demais
tempos, exceto na terceira pessoa, onde ocorre n- nos tempos passados e
i-/∅- nas demais formas;
• note-se que os verbos transitivos detransitivizados (reflexivos), como
costuma acontecer na família Karíb, pertencem à classe SA;
• os verbos transitivos tomam duas séries de prefixos (A e P), de acordo
com a pessoa do Paciente;
• a série A dos transitivos tem duas ‘alo-séries’, uma típica dos tipos
passados (série A-I) e outra típica das demais formas verbais (série A-II);
• a série A-II tem a característica de sempre causar a nasalização da
primeira vogal da raiz verbal com a qual co-ocorre.
É difícil descrever este sistema como pertencente a algum tipo canônico
(“ergativo”, “nominativo”, “ativo”, etc.). Julgando-se pela família, esperar-se-ia
um sistema “S-cindido”, com paralelismo entre A e SA e entre P e SP, como os
próprios termos já sugerem. Contudo:
- os prefixos de terceira pessoa não seguem o paralelismo A/SA e P/SP;
- os prefixos SA não são, a rigor, realmente paralelos aos prefixos A,
exceto na segunda pessoa (m-), e, mesmo neste caso, o prefixo A-II
(não-passado), m(´)~-, é, devido à nasalização que o acompanha,
claramente diferente do prefixo intransitivo m-;
- os prefixos SP apresentam um maior paralelismo com os prefixos P;
contudo, mesmo aqui, observamos uma diferença na terceira pessoa
nas formas não-passadas (j~- na série P, i-/∅- na série SP). Além
disso, cumpre observar que o paralelismo em questão vai além do
sistema verbal, já que os mesmos prefixos ocorrem em substantivos e
em posposições.
Concluímos que a análise deste sistema como “S-cindido” implicaria
atribuir muito valor a paralelismos bastante imperfeitos entre as várias séries de
prefixos. Parece melhor, a priori, manter separados os vários conjuntos de
prefixos.
Com respeito à nasalização que acompanha os prefixos da série A-II,
pode-se oferecer uma explicação diacrônica: a nasalização é um resquício de
uma antiga consoante nasal (n) que foi perdida nessas formas, se aceitarmos que
elas são cognatas com formas nominalizadas marcadas por um prefixo n(nominalizador de paciente), encontrado em outras línguas Karíb. Comparem-se
os exemplos abaixo:
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Tiriyó: ´-n-ar´
Hixkaryana:
2-O.R-levar
‘o que você vai levar’
ˆ-n-e¯e-rˆ
3-O.R-ver-POS
‘o que ele vê’
A favor da idéia de que as formas verbais não-passadas teriam sido
antigas nominalizações, pode-se mencionar o fato de que elas ainda têm, hoje
em dia, usos nominais. Nos exemplos abaixo, m´-e)gatu-lÈ ‘você conta/narra’ e
m´-u)tu-lÈ ‘você sabe’ são usados ora como verbos principais (= formas verbais),
ora como objetos da posposição w´g´ ‘sobre, a respeito de’ (= formas
nominalizadas).
[m´-e)gatu-lˆ
w´g´] m´-u)tu-lˆ
2A-contar-PRES? sobre 2A-saber-PRES
[m´-u)tu-lˆ
w´g´] m´-e)gatu-lˆ
2A-saber-PRES? sobre 2A-contar-PRES
‘Você sabe o que você está contando.’ ‘Você está contando o que você sabe.’
Aparentemente, as formas não-passadas, caracterizadas (nos verbos
transitivos) pelos prefixos da série A-II, são antigas formas nominalizadas.
Alguns detalhes formais, contudo, permanecem sem explicação. Por exemplo,
formas nominalizadas (como se vê nos exemplos Tiriyó e Hixkaryana acima)
tomam prefixos de pessoa da série P (ou seja, ´- para a segunda pessoa); em
Bakairi, contudo, observa-se m´-, e não ´-.
Este fato atrai interesse para o estudo das nominalizações verbais em
Bakairi e de suas características sintáticas. Os dados disponíveis ainda não são
suficientes para opiniões definitivas, mas alguns detalhes sugestivos podem ser
mencionados.
4. UM EXEMPLO DE NOMINALIZAÇÃO VERBAL: -to ~ -do ~ -ho ‘circunstância’
Em todas as línguas da família Karíb, há um sufixo (em geral -topo,
-toho, -toFo, -to/, -to, etc.) que deriva nominalizações referentes a uma
circunstância da ação descrita pelo verbo. A partir de “ver”, por exemplo,
deriva-se uma palavra que significa “algo com que se pode ver” (um
instrumento para ver, p.ex. óculos, telescópios, televisões, etc.), ou “um lugar
onde se pode ver”, ou “o momento em que algo foi visto”. Em outras línguas, a
nominalização resultante comporta-se exatamente como um substantivo,
tomando apenas os prefixos que marcam o possuidor em substantivos; no caso
destas nominalizações, os prefixos se referem ao Paciente: “algo para ver-me”,
“algo para ver-te”, “algo para vê-lo”, “algo para ver-nos”, etc. Caso seja
necessário indicar o Agente, este virá como um NP explícito, seguido por uma
posposição (cuja forma varia, segundo a língua, entre wÈja, uja, ja, e a), como
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nos exemplos abaixo, da língua Tiriyó (onde o nominalizador de circunstância
tem a forma -to):
Tiriyó: tu:ka ‘bater’
ji-tu:ka-to
´-tu:ka-to
i-tu:ka-to
kÈ-tu:ka-to
‘um instrumento para bater em mim’
‘um instrumento para bater em você’
‘um instrumento para bater nele’
‘um instrumento para bater em nós (incl.)’
´-tu:ka-to (Sebastião ja)
(ji(´(i(kÈ-
‘1’)
‘2’)
‘3’)
‘1+2’)
‘algo para (o Sebastião) bater em você’
Em Bakairi, como seria de se esperar, o sufixo nominalizador de
circunstância existe (com os alomorfes -to, -do e -ho). Surpreendentemente,
contudo, formas nominalizadas com este sufixo tomam prefixos não só da série
P, como ocorre nas demais línguas, mas também da série A-II (caso, é claro, a
raiz verbal seja transitiva). Nestas formas, os prefixos da série P marcam o
Paciente (“algo para bater em mim”), enquanto que os prefixos da série A
marcam o Agente (“algo para eu bater [em outra pessoa]”), algo nunca antes
visto em uma língua Karíb (com a possível exceção do Ikpeng, língua que, por
sinal, forma, com o Bakairi, um subgrupo dentro da família Karíb). Vejam-se os
exemplos abaixo, baseados em at´ ‘cortar’ e ene ‘trazer’, ambos raízes
transitivas (veja-se que a nasalização da vogal inicial de ene pelos prefixos da
série A-II não é marcada, já que esta vogal, devido à consoante n que a segue, é
sempre nasal).
at´ ‘cortar’
ene ‘trazer’
k-a)t´-ho ‘(algo) para eu cortar’
m-a)t´-ho ‘(algo) para você cortar’
ki-a)t´-ho ‘(algo) para nós cortarmos’
k´-ene-to ‘(algo) para eu trazer’
m´-ene-to ‘(algo) para você trazer’
ki-ene-to ‘(algo) para nós trazermos’
ˆ-at´-ho ‘(algo) para cortar-me’
at´-ho ‘(algo) para cortar-te’
k-at´-ho ‘(algo) para cortar-nos’
j-ene-to
ine-to
k-´ne-to
(s)-at´-ho ‘(algo) para cortá-lo’
(s)-ene-to ‘(algo) para trazê-lo’
‘(algo) para trazer-me’
‘(algo) para trazer-te’
‘(algo) para trazer-nos’
Como se vê, os prefixos indicam claramente a pessoa do Agente e/ou
Paciente; não é necessário, portanto, indicar o Agente através de um NP seguido
por posposição. De fato, tentativas de obter-se uma construção deste tipo (com
NPs seguidos pela posposição ã, aparentemente cognata com wÈja, uja, ja, a)
resultaram em interpretações diferentes: o NP era visto como um Dativo, ou um
9
Beneficiário (também marcados com a posposição wÈja, uja, ja, a em outras
línguas Karíb), mas nunca como um Agente. Comparem-se os exemplos abaixo:
Katxuyana
Bakairí
ahoj-tohu Sebastião wˆja
ajudar-CIRC Sebastião DAT/AGT
s-at´-ho
Sérgio a)
3-cortar-CIRC Sérgio DAT
‘um ajudante para o Sebastião’
‘o cortador (é) para Sérgio’ (DATIVO)
(DATIVO)
‘para o Sebastião ajudar’
(AGENTE)
(AGENTE)
Sebastião j-ahoj-tohu
Sebastião LG-ajudar-CIRC
*‘algo para Sérgio cortar’
Sérgio s-at´-ho ‘algo para Sérgio cortar’
Sérgio at´-ho ‘algo para cortar Sérgio’
‘(algo) para ajudar Sebastião’
5. HÁ ERGATIVIDADE EM BAKAIRI?
Consideremos os seguintes resultados:
• os paralelismos entre as séries de prefixos são muito imperfeitos para uma
análise S-cindida (considerada, às vezes, como uma forma de
ergatividade);
• não há nenhum morfema marcador de ergativo, nem mesmo com as
nominalizações
Observemos alguns exemplos de orações simples, nas quais se vê que,
em todas as formas (tempos passados ou não passados), não há nenhuma
marcação ergativa explícita.
Paulo
i-d´-lˆ
Paulo j-enewˆ-lˆ
Paulo
3S-ir-PRES
Paulo
at´
im´sedo
3AO-trazer-PRES anzol grande
‘Paulo está indo.’
‘Paulo está trazendo um anzol grande.’
Paulo n´-t´
Paulo n-ene-d´
at´
Paulo
Paulo
anzol grande
3S-ir:PAS
‘Paulo já foi.’
3AO-trazer-PAS
im´sedo
‘Paulo trouxe um anzol grande.’
Paulo
at´
im´sedo j-enewˆ-lˆ
Paulo
anzol grande
3AO-trazer-PRES
‘Paulo está trazendo um anzol grande.’
Paulo at´
Paulo
im´sedo n-ene-d´
anzol grande
3AO-trazer-PAS
‘Paulo trouxe um anzol grande.’
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A análise da correferencialidade entre orações coordenadas é
freqüentemente utilizada como argumento a favor de sistemas ergativos. Os
dados coletados são ainda muito poucos, o que não permite conclusões
definitivas; contudo, os exemplos disponíveis não apresentam padrão ergativo:
Paulo
Maria n-e-d´,
Paulo
Maria
il´p´rÆ)e)
n´-t´
3AO-ver-PAS em.seguida 3S-ir:PAS
‘Pauloi viu Mariaj, e depois foii (*j) embora.’
A conclusão (bastante preliminar, diga-se de passagem) é que não parece
haver padrões ergativos em Bakairi, seja do tipo “S-cindido”, seja do tipo
clássico, com marcadores ergativos em NPs agentes. Note-se que tanto sistemas
“S-cindidos” quanto marcadores ergativos podem ser encontrados em outras
línguas da família. Em algumas línguas, marcadores ergativos são normais,
configurando-se um padrão ergativo clássico (por exemplo, em Kuikuro e em
Makuxi); nas demais línguas, embora os cognatos dos marcadores de ergativo
do Kuikuro e do Makuxi não tenham a mesma funcionalidade, eles ainda
podem, ocasionalmente, marcar agentes (p.ex. com nominalizações, como nos
exemplos Tiriyó e Katxuyana apresentados acima). Mesmo estes “resquícios de
ergatividade” parecem estar ausentes na língua Bakairi.
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