ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DIVULGAÇÃO DA LISTA DE ESPERA DE VAGAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL: EXPERIÊNCIA DO MUNICÍPIO DE TOLEDO Sandres Sponholz1 Salus rei publicae suprema lex2 Cícero 1 INTRODUÇÃO A Constituição Federal da República Federativa do Brasil preconiza, coerentemente, que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”3 Sem maior dificuldade, percebe-se que o texto constitucional atribui direito subjetivo de acesso à educação para todos os indivíduos destinatários das políticas públicas do Estado. Paralelamente, tratando justamente da efetivação do referido dever pelo ente estatal, a norma constitucional elenca, dentre as garantias asseguradas, a “educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade”4. Não se desconhece a importância da educação, e por via de consequência, a relevância da Educação Infantil para a formação do indivíduo. O Ministério Público, por intermédio de significativa parcela de seus agentes com atribuições na seara da Proteção à Educação, manifestando interpretação sistemática dos mencionados dispositivos legais inseridos no mesmo capítulo da Carta Magna, vem adotando medidas com o propósito de assegurar a garantia de oferta de vagas para todas as crianças em faixa etária correspondente à Educação Infantil. Porém, as providências encontram séria resistência por parte dos gestores municipais. Basicamente são apresentados dois obstáculos, quais sejam (i) a alegação de que a educação obrigatória e gratuita apenas alcança os jovens com idades entre 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos, nos termos do artigo 208, inciso I da Constituição Federal, e (ii) a falta de recursos financeiros para a imediata universalização da Educação Infantil. Respeitadas as opiniões contrárias, o primeiro argumento mencionado cede à circunstância de que de que a norma, ao mencionar a expressão “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade”, impõe regra dirigida ao titular do direito à educação (indivíduo). Trata-se de verdadeiro poder-dever, no sentido de que ao mesmo tempo o Estado deve prover os meios necessários ao acesso à educação para as crianças que atendem o critério etário acima mencionado, e de outro lado, os pais e responsáveis, em decorrência de representação legal, têm o dever de propiciar a frequência escolar de seus filhos ou tutelados. 1 Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. Mestre em Direito Processual Civil e Cidadania pela Universidade Paranaense. 2 3 4 “O bem de todos é a lei suprema.” BRASIL, Constituição de República Federativa do Brasil de 1988. BRASIL, Constituição de República Federativa do Brasil de 1988. Constata-se porém que o segundo fator elencado pelos Municípios, qual seja a falta de recursos orçamentários, tem constituído principal obstáculo na efetivação das políticas públicas. Essa situação é verificada em significativo número de ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público, na quase totalidade dos casos recebida com sucesso pelos julgadores de primeiro grau, que invariavelmente concedem tutela de urgência, determinando ao Administrador Municipal a imediata oferta indistinta de vagas, contudo esbarram na suspensão de tais liminares (ou antecipações de tutela) pelos tribunais no exercício do segundo grau de jurisdição5, ou simplesmente não são cumpridas pelos entes municipais, sob alegação de insuperável indisponibilidade orçamentária. A questão apresenta contornos jurídicos na medida que vem à tona o tema “reserva do possível”. Sem maior dificuldade, a experiência jurídica revela que os direitos sociais não dependem exclusivamente de previsão legal para serem garantidos. Diversamente, faz-se necessária a adoção de políticas públicas. Contudo, invariavelmente o olhar do operador do direito volta-se apenas à produção legislativa. J.J. Gomes Canotilho questiona essa construção e concepção da garantia jurídico-constitucional dos direitos sociais (em que se insere a educação): Quais são, no fundo, os argumentos para reduzir os direitos sociais a uma garantia constitucional platônica? Em primeiro lugar, os custos dos direitos sociais. Os direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a todos os cidadãos, sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais, pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção da reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen) para traduzir a idéia de que os direitos sociais só existem quanto e quando existir dinheiro nos cofres públicos. Um direito social sob “reserva dos cofres cheios” equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica.6 (tradução livre) Sabe-se, efetivamente, e sobretudo em tempos de crise econômica, que os poderes públicos apresentam severas limitações orçamentárias. Por sua vez, obviamente que a circunstância ideal seria a oferta de vagas na educação para todos os jovens e adultos que dela necessitam para a iniciação e desenvolvimento de seus saberes. Nada obstante, é indubitável o triste cenário nacional: apenas reduzida parcela de crianças aptas ao ingresso na Educação Infantil tem o privilégio de frequentar o ambiente escolar. No mais das vezes, os municípios sequer conseguem dimensionar com precisão a quantidade de crianças que compõem a denominada “fila de espera”. Neste ambiente absolutamente desorganizado, em que a “educação é direito de todos, mas todos não podem usufruir do direito à educação”, não raras as vezes a oferta de vagas leva em conta favorecimentos. Pessoas conhecidas de servidores da educação, funcionários públicos municipais e “apadrinhados políticos” conseguem obter em favor de seus filhos e protegidos a prioridade de oferta de vagas. De outro lado, a maioria dos pais e responsáveis requerentes às vagas na Educação Infantil, por intermédio do sistema público, não têm a mínima noção do número total de vagas disponibilizadas pelo sistema (justamente para confrontar notícias de 5 AGRAVO REGIMENTAL EM PEDIDO DE SUSPENSÃO DE LIMINAR. ARGUMENTOS RELATIVOS AO MÉRITO DA CAUSA. ANÁLISE INVIÁVEL EM SEDE DE SUSPENSÃO, QUE NÃO POSSUI CARÁTER RECURSAL. GRAVE AMEAÇA CARACTERIZADA. IMPOSSIBILIDADE, NO CASO CONCRETO, DE FIXAÇÃO DE PRAZO PARA ZERAR LISTA DE ESPERA NA EDUCAÇÃO INFANTIL EM JUÍZO COGNITIVO SUMÁRIO E HIPOTÉTICO. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-SC - SL: 20140456190 SC 2014.045619-0 (Acórdão), Relator: Torres Marques, Data de Julgamento: 04/11/2014, Órgão Especial Julgado) 6 481. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. inauguração de creches e abertura de vagas), bem como acerca do quantitativo total de requerentes que postulam o mesmo direito. Maior incerteza ainda existe se efetivamente serão contemplados, e quando serão contemplados. Esta realidade implica verdadeira violação do direito fundamental insculpido no artigo 5º, inciso XXXIII da Constituição Federal, o qual assegura que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei” 7. Enfim, em tempos de insuficiência (ou ineficiência) estatal, como dimensionar a fila de espera? Como estabelecer um critério em que seja possível evitar o pessoalismo do Administrador Público, de tal maneira que a sociedade possa fiscalizar quais jovens paulatinamente terão acesso à Educação Infantil? Sobretudo, como o Ministério Público pode contribuir para o efetivo controle e moralização da oferta de vagas nesta importante etapa da educação? A resposta a tais questionamento não pode deixar de considerar o objeto primário da justiça, qual seja, acompanhamento a maestria do pensamento de John Rawls, “é a estrutura básica da sociedade, ou, mais exatamente, a forma pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão dos benefícios da cooperação em sociedade”(tradução livre). 8 2 DIMENSIONAMENTO E PUBLICIDADE DA FILA DE ESPERA DA EDUCAÇÃO INFANTIL POR INTERMÉDIO DE DIVULGAÇÃO ELETRÔNICA DE INFORMAÇÕES DE INTERESSADOS – USO DA TECNOLOGIA PARA A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SOCIAIS A sociedade atual é marcada pelos efeitos e consequências da evolução tecnológica. Nenhuma pessoa ou ente escapa da influência da chamada “era digital”. Cada vez mais, as pessoas buscam informações por intermédio de ferramentas tecnológicas que fornecem em tempo real dados que são constantemente alimentados pelos sistemas operacionais. A Administração Pública não escapa ilesa deste fenômeno. Diversamente, o próprio administrador público, no exercício de controle da informação, outrossim com o propósito de promover publicidade institucional, promove e mantem sítios eletrônicos e perfis virtuais em redes sociais, dos mais diversos matizes, objetivando a divulgação de dados à população em geral, e também oferta de serviços. Por sua vez, a sociedade em geral, abarcada pelo fenômeno global, cada vez mais acessa informações disponibilizadas pelos administradores públicos, inclusive objetivando solicitação e acompanhamento de serviços. Ocorre que, tratando-se ainda de inovação, cujo alcance e potencial não foi até agora suficientemente sopesado pelo sistema, prepondera a conclusão de que o Poder Público, por intermédio de seus agentes, detém a prerrogativa da seleção de conteúdos a serem informados. Neste contexto, naturalmente as páginas eletrônicas são dominadas por informações favoráveis aos governos, não sendo incomum violações dos princípios norteadores da Administração Pública.9 Veiculação demasiada de imagens de governantes, com feições de 7 8 9 BRASIL, Constituição de República Federativa do Brasil de 1988. HAWLS, John. (trad. Carlos Pinto Correia). Uma teoria da justiça. 2 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2001. p. 30. A respeito deste pensamento (e agir) político, cabe destacar o escólio de Norberto Bobbio ao enfatizar os dois principais conceitos de política contrastantes entre si: “o aristotélico e depois cristão , por um lado, segundo o qual o “agir exposição abusiva, divulgação de programas e projetos com injustificável estardalhaço lamentavelmente permeiam tais “páginas” eletrônicas. A lei de acesso à informação (Lei Federal nº 12.527 de 18 de novembro de 2.011) transversalmente limita a exclusividade do administrador público no momento de promover a informação. Dentre outras diretrizes, a determina, para fim de efetivação do direito à informação consagrado no artigo 5º, inciso XXXIII da Constituição Federal, a “utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação” (artigo 3º, inciso III). Na prática, nesta incipiente realidade, a lei federal é inspiradora da iniciativa de criação dos “portais da transparência”, com a finalidade de permitir a todos o acesso à informação acerca das receitas e gastos públicos, além da remuneração de servidores, tudo com o propósito de exercício de controle e fiscalização do cumprimento da legalidade administrativa. Isto ocorre principalmente a partir da leitura do artigo 8º, parágrafos 1º, 2º e 3º, acompanhados de seus respectivos incisos da mencionada norma. 10 Ocorre que a lei de acesso à informação não se limita apenas a tais categorias de informações. O artigo 7º, inciso V, da Lei Federal nº 12.527/11 afirma que o acesso à informação compreende veiculação “sobre atividades exercidas pelos órgãos e entidades, inclusive as relativas à sua política, organização e serviços”. Nesta mesma trilha, o artigo 8º, parágrafo 1º, inciso V da norma em comento, salienta que dentre as informações sujeitas ao dever de divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores, político” se entende o agir visando ao bem da cidade ou ao bem comum, e, por outro lado, o realista, que se afirma por intermédio de Maquiavel, de Guicciardini e dos teóricos da razão de Estado, segundo o qual a esfera da política é autônoma com respeito à esfera da moral e a ação do estadista não pode ser julgada com base nas normas que regem e com as quais se julga a ação do homem comum” (BOBBIO, Norberto (trad. Marco Aurélio Nogueira), Elogio da serenidade, São Paulo: Editora da UNESP, 2000, p. 13. 10 Art. 8o É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas. § 1o Na divulgação das informações a que se refere o caput, deverão constar, no mínimo: I - registro das competências e estrutura organizacional, endereços e telefones das respectivas unidades e horários de atendimento ao público; II - registros de quaisquer repasses ou transferências de recursos financeiros; III - registros das despesas; IV - informações concernentes a procedimentos licitatórios, inclusive os respectivos editais e resultados, bem como a todos os contratos celebrados; V - dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras de órgãos e entidades; e VI - respostas a perguntas mais frequentes da sociedade. § 2o Para cumprimento do disposto no caput, os órgãos e entidades públicas deverão utilizar todos os meios e instrumentos legítimos de que dispuserem, sendo obrigatória a divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet). § 3o Os sítios de que trata o § 2o deverão, na forma de regulamento, atender, entre outros, aos seguintes requisitos: I - conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à informação de forma objetiva, transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão; II - possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos, inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações; III - possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina; IV - divulgar em detalhes os formatos utilizados para estruturação da informação; V - garantir a autenticidade e a integridade das informações disponíveis para acesso; VI - manter atualizadas as informações disponíveis para acesso; VII - indicar local e instruções que permitam ao interessado comunicar-se, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou entidade detentora do sítio; e VIII - adotar as medidas necessárias para garantir a acessibilidade de conteúdo para pessoas com deficiência, nos termos do art. 17 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e do art. 9o da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008. estão incluídos os “dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras de órgãos e entidades”. Obviamente que estes dados gerais são aqueles correlacionados com o interesse legítimo do administrado a respeito da condução de tal programa ou política pública objeto de seu interesse. Considerando que desde a edição da lei, até os dias atuais, o fenômeno tecnológico ganhou maior impulso, constatando-se maior facilidade na inserção de dados, e aumento da capacidade de armazenamento, o fator temporal caminha a favor da interpretação jurídica no sentido de que a divulgação de tais informações consubstancia medida de utilidade geral. Esta é a linha de pensamento de A. Castanheira Neves: E é assim que havemos de ver hoje na interpretação jurídica – posto que considerada ainda de modo muito amplo e só descritivo, se não apenas alusivo -, o ato metodológico de determinação daquele sentido normativo-jurídico que, segundo a intenção do direito vigente, deva ter-se pelo critério também jurídico (o critério normativo de direito) no âmbito de uma problemática realização do direito e enquanto momento metodológico-normativo dessa realização.11(tradução livre) Portanto, delineado o instrumental jurídico voltado à consolidação do direito de informação, e por via de consequência o controle e fiscalização dos programas e políticas públicas, de interesse geral e individual dos cidadãos, em se tratando da questão relativa à existência de significativa parcela de crianças excluídas do acesso à Educação Infantil, a criação de banco de dados eletrônico, e a divulgação de informações acerca do universo de requerentes, constituem deveres do administrador público, posto que consubstanciam uma das formas mais eficazes de acompanhamento da política pública de oferta de vagas. Émile Durkheim desde longínqua data pretérita já lecionava que as vias de comunicação possuem inegável influência nas representações coletivas em torno dos fatos sociais: A sociedade tem por substrato o conjunto de indivíduos associados. O sistema que eles formam quando se unem, e que varia segundo a sua disposição sobre a superfície do território, a natureza e o número de vias de comunicação, constitui a base sobre a qual se eleva a vida social12.(destaque nosso) Portanto, sem maiores dificuldades, percebe-se que a oferta de melhores oportunidades de comunicação, sobretudo aquelas que consigam abranger um universo maior de destinatários da comunicação, melhor permitirá a compreensão coletiva da realidade, afastando por sua vez representações individualistas, por vezes distorcidas do cenário real em que a situação da política pública se apresenta. 13 3 EXPERIÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ NO MUNICÍPIO DE TOLEDO 11 NEVES. A. Castanheira. O actual problema metodológico da interpretação jurídica – I. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 12 12 DURKHEIM, Émile (trad. Fernando Dias de Andrade). Sociologia e Filosofia. São Paulo: Ícone, 2004. p. 33 13 Importante salientar que neste mesmo contexto da informação voltada à coletividade, Durkheim apregoa uma objetividade e superioridade do juízo social (opinião pública) em relação às apreciações subjetivas e variáveis dos indivíduos, “reagindo contra os dissidentes exatamente como o mundo exterior reage dolorosamente contra os que tentam se rebelar contra ele.” (DURKHEIM, Émile [trad. Fernando Dias de Andrade]. Sociologia e Filosofia. São Paulo: Ícone, 2004. p. 105) A Comarca de Toledo, oeste do Estado do Paraná, apresentava exatamente o cenário retratado na introdução ao tema ora apresentado. Durante vários anos, os diversos órgãos que compõem a rede de proteção à criança e adolescente buscavam as mesmas respostas: a) qual é o número de crianças que postulam vagas na Educação Infantil? b) quais são os critérios adotados pela Administração Pública para o chamamento de jovens perante as unidades de ensino instaladas no município? Concomitantemente circulavam notícias de eventuais ingerências na oferta de vagas, de tal maneira que enquanto a maioria das crianças aguardavam por vários anos oferta de vagas, outras prontamente tinham atendido seu direito. Nada obstante, a busca de responsabilização de agentes públicos em virtude de eventual favorecimento esbarrava justamente no preceito constitucional de que “a educação é direito de todos”, e portanto qualquer criança era titular do referido direito, de tal maneira que a oferta de vagas, a quem quer que seja, naquele contexto, nada mais era do que dever do administrador público. A situação impôs ao Ministério Público do Estado do Paraná, por intermédio da Promotoria de Proteção à Educação, a investigação a respeito da política pública de oferta de vagas na Educação Infantil. Para o alcance do referido desiderato, requisitou-se ao Município de Toledo, dentre outras informações e documentos, a remessa de todos os documentos relacionados à solicitação de vagas nos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIS). Remetidos os expedientes, foram analisados todos os expedientes remetidos, notadamente as fichas de inscrição. A análise dos requerimentos de inscrição revelaram que o município descentralizava o cadastramento de crianças interessadas, por intermédio das referidas fichas, mediante atribuição da referida incumbência a cada direção de unidade de ensino. Sem maior dificuldade, percebeu-se por intermédio de cruzamento de dados que muitos pais e responsáveis solicitavam requerimento em mais de um CMEI, comprometendo sobremaneira a confiabilidade das frustradas tentativas de levantamento quantitativo da demanda. Da mesma forma, os critérios de concessão de vagas cabiam respectivamente à equipe escolar de cada unidade, e eram não apenas díspares, como também desprovidos de qualquer regulamentação. Assim, cada diretor de unidade, a qualquer momento da jornada escolar, estabelecia um critério, conforme interesse e conveniência. Circunstância dotada de maior gravidade, muitas das fichas eram preenchidas com utilização de lápis, contendo anotações posteriores (número de telefones, datas de comparecimento de interessados para ciência da situação do pedido) que não respeitavam ordem cronológica, e sequer permitiam definir quem legitimamente deveria obter a vaga. Efetivamente, a conjuntura permitia espaços para favorecimentos, benesses e influências indevidas na política pública de oferta de vagas na Educação Infantil. De outro lado, dúvidas a respeito da realidade orçamentária do município para a imediata imposição de oferta geral da demanda, reiteradas suspensões de liminares pelos tribunais, além de notícias de descumprimentos das ordens judiciais vigentes pelos governantes municipais, sob já explicitada alegação de indisponibilidade do erário, constituíram fatores que desestimularam a iniciativa de ajuizamento de ação civil pública. A mera declamação do texto constitucional de que a “educação é direito de todos” não ecoava os resultados esperados (assim como, repita-se, o cenário nacional confirma que a maioria das crianças na respectiva faixa etária ainda não estão matriculadas na Educação Infantil por falta de vagas, apesar dos esforços dos órgãos fiscalizadores). Esta situação em que o direito de todos não era usufruído pela totalidade de seus destinatários, sob aceitação da tese de impossibilidade de oferta pelo poder público responsável, trazia ao lume o questionamento proposto por Ronald Dworkin a respeito da existência de direitos morais não albergados pela lei, e a necessidade de seu reconhecimento por outras instâncias diversas do Poder Legislativo 14. Estas circunstâncias motivaram a Promotoria de Proteção à Educação à propositura de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), com vistas à progressiva oferta universal de vagas na Educação Infantil pelo Município de Toledo, o que foi aceito pelo ente público, em seus respectivos termos e condições. O mencionado Termo de Ajustamento de Conduta preconizou o dever de publicização das informações, conforme as seguintes cláusulas: CLÁUSULA E. No decurso do prazo previsto na cláusula b, subitens b.1 a b.4, o MUNICÍPIO DE TOLEDO, por intermédio da Secretaria da Educação de Toledo, promoverá lista remanescente de espera de crianças ao aguardo de matrícula; E.1. A lista remanescente de espera levará em conta, dentre outras informações: (i) a unidade de ensino de interesse dos responsáveis pela criança; (ii) etapa de ensino pretendida; (iii) data da solicitação; (iv) endereço e telefone atualizados para contato; E.2. O MUNICÍPIO DE TOLEDO, por intermédio da Secretaria da Educação de Toledo, promoverá publicação oficial mensal da lista remanescente de espera de vagas; E.3. A Secretaria da Educação de Toledo ficará responsável pela fiel observância da ordem de espera das crianças relativamente às unidades de ensino pretendidas, nos termos da lista remanescente oficial; Conforme se percebe da leitura dos itens que compõem o documento, o Termo de Ajustamento de Conduta instituiu obrigação de divulgação da listagem geral de crianças interessadas, a partir de dados que tanto consubstanciam interesse dos postulantes, como da sociedade em geral. Na sequência da execução do Termo de Ajustamento de Conduta, e também a partir de orientação do Ministério Público, o Município de Toledo passou a veicular a listagem geral de espera no sítio eletrônico oficial15, com resultados incontestavelmente benéficos. Importante salientar que a revelação pública da listagem de espera de vagas, por intermédio de simples acesso ao sítio eletrônico oficial, trouxe à tona polêmica acerca do dilema relacionado à existência de um Estado deveras distante do cumprimento das promessas constitucionais de realização do bem comum, notadamente em relação aos direitos essenciais que deveriam ser universalizados. A realidade impõe a necessidade de estabelecimento de um critério de prioridade de chamamento de interessados. No caso, o critério norteador recaiu na antiguidade do requerimento de vaga, respeitando-se a etapa de ensino pretendida. Logo, posto que a política pública educacional se refere a um “direito de todos”, eis a questão: se todos são iguais, e possuem direitos iguais, por que diferenciá-los? E se de fato são diversos, qual a razão da lei pretender igualá-los? A relação aparentemente conflitante entre igualdade e diferença entre os indivíduos foi objeto de peculiar estudo, com habitual brilhantismo, por Norberto Bobbio, o qual ao final concluiu pela insuperável coexistência das situações opostas, desde que racionalmente reconhecidos os fundamentos das circunstâncias em que é possível o alcance de uma igualdade plena, e nos momentos em que a realidade impõe o dever de tratamento diferenciado entre os indivíduos: 14 Segundo Dworkin, “embora o sistema constitucional acrescente alguma coisa à proteção dos direitos morais contra o governo, está longe de garantir esses direitos, ou mesmo estabelecer quais são eles. Isso significa que, em determinadas ocasiões, uma outra instância que não o Legislativo terá a última palavra nestas questões, o que dificilmente poderá satisfazer alguém que considere que tal instância esteja profundamente equivocada.”(DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 286. 15 minutos. http://www.toledo.pr.gov.br/portal/lista-remanescente-cmeis, acessado em 12 de agosto de 2.015, às 11 horas e 28 Na civilização democrática, não há por que temer o reconhecimento de que a solução do problema está na harmonização das duas exigências opostas. Cada uma delas tem uma boa dose de razão, desde que sejam reconhecidos os preconceitos que as sustentam, quais sejam, que cada homem é igual ao outro e que cada homem é diverso ao outro.16 Esta concepção se aplica tanto ao ser humano considerado em si mesmo, como também nas relações entre os demais seres humanos, no contexto dos fatos sociais. De outro lado, ainda que eventualmente se questione a validade da aplicação de convenção social (precedência de antiguidade de requerimento), insta salientar a advertência apresentada por Gustav Radbruch, no sentido de que, longe de se tratar de meras regras morais, “o destino das convenções desta natureza é sempre, porém, o de serem absorvidas simultaneamente pelo direito e pela moral, depois de terem preparado e tornado possíveis tanto um como outra”17, demonstrando-se portanto que determinados usos e convenções, quando não superados pela norma jurídica, são dotados de inegável juridicidade18. 4 A RELEVÂNCIA DA ATUAÇÃO MINISTERIAL OBJETIVANDO DIVULGAÇÃO ELETRÔNICA DE FILA DE ESPERA DE VAGAS EM EDUCAÇÃO INFANTIL A partir da experiência de quase dois anos de vigência do aludido Termo de Ajustamento de Conduta, o compromisso de veiculação da listagem geral proporcionou manifestas vantagens, sob os aspectos da (i) publicização da deficiência administrativa, (ii) asseguramento de direito de acesso à educação no contexto desta insuficiência (e por consequência a transparência dos critérios destinados à oferta do serviço, inclusive permitindo-se discussão e colaboração da sociedade visando seu aprimoramento) e sobretudo no que concerne às (iii) medidas adotadas pelo administrador objetivando reduzir os números que apontam a existência de demanda não contemplada. Paralelamente, o Ministério Público passou a exercer um controle mais efetivo sobre os desígnios da política pública, especialmente diante de outros compromissos assumidos pelo município para fim de redução da fila de espera. Estas consequências proveitosas ao interesse público foram observadas a partir de iniciativa do próprio gestor da Educação no sentido de, exemplificativamente, promover medições e estudos objetivando a constatação da efetiva capacidade do Município de Toledo para a oferta de vagas, tendo-se como resultado a possibilidade de imediato aumento de oferta de vagas. Seguiu-se à referida iniciativa a realização de reformas e 16 (BOBBIO, Norberto (trad. Marco Aurélio Nogueira), Elogio da serenidade, São Paulo: Editora da UNESP, 2000, p. 18. 17 RADBRUCH, Gustav (trad. Prof. L. Cabral de Moncada). Filosofia do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 6 ed. 1997, p. 117. 18 O referido autor prossegue em sua argumentação, salientando que “mas precisamente, porque nas normas convencionais da praxe e cortesia se acham reunidos, embora ficticiamente, os dois modos de abrigar, interno e externo, próprios da moral e do direito, por isso mesmo é que elas são muito mais eficazes do que as próprias normas morais ou jurídicas.” Na sequência, arremeta: “seria um erro grave recusar aos convencionalismos qualquer função social, mesmo depois de operada a separação entre a moral e o direito.” ( RADBRUCH, Gustav [trad. Prof. L. Cabral de Moncada]. Filosofia do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 6 ed. 1997, p. 118 e 120) construções de novas unidades, considerando que a listagem finalmente apresenta quantitativo real de pretendentes. Da mesma forma, e circunstância dotada de manifesta relevância, não houve até então nenhuma denúncia de favorecimentos escusos na contemplação de vagas. Afinal, como resultado da publicação oficial de lista de espera em meio virtual, todos fiscalizam a ordem de chamamento dos interessados, de tal maneira que cada qual sabe sua posição na lista de espera, permitindo-se inclusive, a partir da média dos chamamentos realizados para cada etapa da Educação Infantil, um prognóstico de tempo de espera para convocação à vaga. O Ministério Público, por sua vez, dada sua missão constitucional, bem como o aparato jurídico de medidas à disposição para a tutela de direitos coletivos e individuais indisponíveis, detém condições de protagonizar a implantação de política destinada à plena publicidade e transparência das informações pelos entes públicos, no atual contexto de crise estatal no atendimento dos direitos reputados essenciais de seus cidadãos. 5 CONCLUSÃO Apesar da previsão constitucional de que a Educação é direito de todos, e que a Educação Infantil constitui importante etapa do ensino, a eficácia do referido direito social esbarra em interpretação inadequada da norma pelos entes públicos, que não reconhecem o dever de universalização da demanda, bem como alegam indisponibilidade orçamentária para a consagração do referido direito. A situação de insuficiência (ou ineficiência) estatal consubstancia o fato gerador das denominadas filas de espera de vagas na Educação Infantil. No mais das vezes, os municípios sequer conseguem dimensionar o quantitativo de pretendentes, não sendo raros os casos de pessoalização e favorecimentos escusos na oferta de vagas para poucos, enquanto a maioria é desprovida de atendimento. O artigo 7º, inciso V, da Lei Federal nº 12.527/11 afirma que o acesso à informação compreende veiculação “sobre atividades exercidas pelos órgãos e entidades, inclusive as relativas à sua política, organização e serviços”, enquanto que o artigo 8º, parágrafo 1º, inciso V da norma em comento, salienta que dentre as informações sujeitas ao dever de divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores, estão incluídos os “dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras de órgãos e entidades”. Considerando a importância dos meios tecnológicos voltados à informação, e tendo em vista a preponderância do interesse da sociedade, compreende-se que o dever de acesso à informação contempla a obrigação de divulgação em sítios eletrônicos oficiais acerca da fila de espera na Educação Infantil, contendo dados de interesse dos requerentes e da coletividade, permitindo-se assim controle e fiscalização em relação à política pública pela sociedade e demais órgãos públicos. A experiência promovida no Município de Toledo comprova a eficiência da medida, sob os aspectos da publicização da deficiência administrativa, asseguramento de direito de acesso à educação no contexto desta insuficiência e sobretudo no que concerne às medidas adotadas pelo administrador objetivando reduzir os números que apontam a existência de demanda não contemplada. Incumbe ao Ministério Público, no exercício de suas prerrogativas constitucionais, e por intermédio dos meios jurídicos à sua disposição (recomendação administrativa, termo de ajustamento de conduta ou ajuizamento de ação civil pública) promover as medidas destinadas à obrigatoriedade de divulgação da fila de espera de vagas na Educação Infantil nos sítios eletrônicos oficiais dos municípios, perseguindo-se assim o alcance da tão almejada universalização da oferta de ensino. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto (trad. Marco Aurélio Nogueira), Elogio da serenidade, São Paulo: Editora da UNESP, 2000. BRASIL, Constituição de República Federativa do Brasil de 1988. BRASIL. Lei Federal nº 12.527, de 18 de novembro de 2.011 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, SL: 20140456190 SC 2014.045619-0 (Acórdão), Relator: Torres Marques, Data de Julgamento: 04/11/2014, Órgão Especial Julgado. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. DURKHEIM, Émile (trad. Fernando Dias de Andrade). Sociologia e Filosofia. São Paulo: Ícone, 2004. p. 33 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 286 HAWLS, John. (trad. Carlos Pinto Correia). Uma teoria da justiça. 2 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2001. p. 30. NEVES. A. Castanheira. O actual problema metodológico da interpretação jurídica – I. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.