Corpos e mônadas na metafísica madura de Leibniz1

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Edgar Marques2
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Corpos e mônadas na metafísica
madura de Leibniz1
Um dos pontos mais controversos do sistema desenvolvido por Leibniz em
seu Discurso de metafísica e na Correspondência com Arnauld na visão de seus
contemporâneos consiste na afirmação da inevitabilidade do recurso à noção
de forma substancial para a constituição de uma compreensão metafísica mais
adequada da realidade, apesar de ser essa noção perfeitamente prescindível
— e até mesmo contraproducente — quando de uma descrição meramente
física dos fenômenos. A necessidade da reintrodução, na esfera da metafísica,
dessa noção é justificada por Leibniz através da consideração de que sem o
recurso a ela não haveria como sustentar o caráter substancial dos corpos,
uma vez que estes somente poderiam ser tomados como substâncias caso se
apresentassem como constituindo uma unidade real. Em função disso, teria
1
O presente artigo consiste em uma versão ligeiramente modificada de uma conferência originalmente apresentada no dia de 9 de setembro de 2002 no Colóquio de Filosofia realizado na PUCRio. Algumas das principais idéias esboçadas neste artigo foram posteriormente retomadas,
refinadas e desenvolvidas em dois outros textos: “Possibilidade, compossibilidade e
incompossibilidade em Leibniz” (Marques 2004:175-187); “Sobre a necessidade da ligação das
mônadas a corpos em Leibniz” (no prelo). Alguns parágrafos deste artigo estão presentes também nesses textos posteriores. Apesar disso, resolvi aceitar o amigável convite dos organizadores
deste volume para publicar este artigo, pois a tese principal nele defendida — com a qual eu,
aliás, ainda concordo — não foi retomada nos dois artigos acima referidos. De acordo com essa
tese, mônadas somente podem fazer parte de um mundo na medida em que se ligam a corpos,
havendo, assim, uma conexão interna entre a questão da constituição de um mundo a partir de
mônadas e a questão relativa à necessidade da ligação de toda mônada a um corpo. Longe,
entretanto, de desenvolver todas as implicações e pressupostos de uma tal tese, este artigo
oferece apenas um primeiro esboço dela, devendo ser compreendido pelo leitor dentro desses
seus confessados limites. Da interpretação aqui presente gostaria de tomar um pouco de distância apenas da caracterização extremamente idealista do sistema metafísico desenvolvido por
Leibniz a partir da década de 90. Considero atualmente que há mais ambiguidade e hesitação
em relação ao estatuto ontológico dos corpos na metafísica madura de Leibniz do que tradicionalmente se aceita. Este trabalho resultou de uma pesquisa apoiada pelo CNPq com uma bolsa
de produtividade em pesquisa.
2 Professor do Departamento de Filosofia da UERJ. Pesquisador do CNPq.
o que nos faz pensar n 018, setembro de 2004
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de haver neles algo de distinto das propriedades da extensão, já que esta, em
razão da divisibilidade ao infinito daquilo que é extenso e da uniformidade
do espaço, não pode gerar por si mesma essa unidade real. É nesse sentido
que ele afirma, na carta a Arnauld escrita entre 4 e 14 de julho de 1686, que
se o corpo é uma substância e não um simples fenômeno como o arco-íris, nem
um ser unido por acidente ou por agregação como uma pilha de pedras, ele não
pode consistir na extensão e é preciso necessariamente conceber algo que se chama
de forma substancial e que corresponde de alguma maneira a isso que se chama
de alma3 .
O argumento apresentado por Leibniz parece envolver, desse modo, pelo
menos as seguintes premissas:
(1) toda substância apresenta uma unidade real;
(2) a mera extensão não fornece unidades reais; das quais se segue a conclusão condicional segundo a qual
(3) se os corpos extensos são substâncias, então deve haver neles algo
não-extenso que seja responsável por sua unidade.
A argumentação leibniziana parece visar, assim, a sustentação da tese de
que são as formas substanciais — ou almas — que dão unidade aos corpos —
ao menos aos corpos humanos —, fazendo com que eles possam ser tomados
como substâncias corpóreas, e não como meros fenômenos ou entes por agregação. A essas formas Leibniz atribui, então, a dura tarefa ontológica de “produção” de unidade nos corpos orgânicos, “elevando-os”, dessa maneira, à
condição de substâncias corpóreas. Tanto é assim que ele, em carta a Arnauld
escrita entre 28 de novembro e 8 de dezembro de 1686, ressalta que esses
próprios corpos, tomados neles mesmos — isto é, isoladamente da forma
substancial que os anima —, não podem ser considerados como substâncias4 . E é também nesse mesmo sentido que Arnauld, em carta a Leibniz escrita
em 4 de março de 1687, compreende a concepção avançada por este:
O corpo não possui uma verdadeira unidade. Mas ele a tem — o senhor o afirma
— através de nossa alma. Isso quer dizer que ele pertence a uma alma que é
verdadeiramente una, sendo essa unidade, porém, não uma unidade intrínseca
3 Leibniz, in Discours de métaphysique et correspondance avec Arnauld:123.
4 “Segundo minha opinião, nosso corpo nele mesmo, a alma colocada à parte, ou o cadáver ,
somente por abuso pode ser chamado de substância, tal como uma máquina ou uma pilha de
pedras, que são apenas seres por agregação”. Id., ibid.:144.
Corpos e mônadas na metafísica madura de Leibniz
ao corpo, mas semelhante àquela de várias províncias, que, sendo governadas
por um único rei, constituem um reino 5 .
Esse resumo da concepção leibniziana feito por Arnauld não é, entretanto,
totalmente desprovido de malícia. Ele já prenuncia a mais aguda das críticas
que Arnauld faz a Leibniz em relação a esse ponto. Em sua carta a Leibniz de
28 de agosto de 1687, Arnauld argumenta contra a idéia de que as almas
possam comunicar aos corpos uma unidade real, afirmando que ser um uno
é uma propriedade intrínseca aos entes que a possuem e que lhes é essencial.
Admitido isso, não faria sentido, de acordo com ele, pensar que essa propriedade pudesse ser de alguma maneira comunicada ao corpo por algo dele diverso. Quer dizer, ao tomarmos corpos e almas como sendo distintos, somente podemos conceber entre eles relações nas quais propriedades extrínsecas e
acidentais sejam comunicadas, o que implica a impossibilidade de que a alma
possa instaurar a unidade no corpo 6 . Dessa maneira, segundo Arnauld, a
própria colocação da questão, que pressupõe a distinção real entre corpo e
alma ao atribuir àquele extensão e ao tomar esta por imaterial 7 , impede a
solução proposta por Leibniz, pois uma propriedade essencial de um ente —
tal como o é o ser uno — não pode ser comunicada a ele por algo dele distinto. A unidade real não pode ser, então, algo que seja, por assim dizer, comunicado de fora a um ente que por sua própria natureza seja um agregado.
Essa objeção ganha uma força ainda maior no interior do sistema leibniziano
se levarmos em conta que, segundo Leibniz, a atribuição de substancialidade
implica a atribuição de espontaneidade plena, de tal modo que o desdobramento de uma substância deve-se unicamente à sua própria natureza interna,
não havendo, assim, sentido em falar da comunicação de uma unidade real de
algo a algo. A admissão, então, de que a alma produziria unidade no corpo
levantaria imediatamente a questão acerca do modo como essa unidade poderia ser produzida, isto é, acerca dos processos por meio dos quais a alma
influiria no corpo, de modo a produzir nele uma unidade.
5 Arnauld, ibid.:157.
6 “ O atributo do ens que se denomina unum , tomado como se queira dentro do rigor metafísico,
deve ser essencial e intrínseco ao que é chamado de unum ens. Então, se uma parcela da matéria
não é unum ens, mas sim plura entia, eu não concebo que uma forma substancial, sendo dele
realmente distinta, pudesse lhe dar algo além de uma denominação extrínseca, pudesse fazer
com que ele cesse de ser plura entia e que se torne unum ens por uma denominação intrínseca”.
Idem, ibid.:173.
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A distinção permanece mesmo se considerarmos os corpos como meros agregados de mônadas,
pois um agregado não pode, por princípio, ser idêntico a um simples.
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Em relação a esse ponto, aparentemente a tese mais forte que pode ser
atribuída a Leibniz é a de que a unidade que a alma atribui ao corpo reside
unicamente na representação que ela faz dele. Isto é, ela torna o corpo uma
unidade simplesmente ao representá-lo como tal 8 . Mas é claro que uma unidade dessa natureza consiste somente em uma unidade no campo da representação e não em uma unidade real, que corresponda à estrutura ontológica
do mundo, não podendo ser compreendida, portanto, como uma unidade na
coisa mesma, o que impediria a consideração de que ela garantiria substancialidade aos corpos.
A resposta que Leibniz oferece à objeção de Arnauld consiste mais propriamente em uma capitulação do que em uma defesa intransigente da idéia de
substância corpórea. Na carta a Arnauld de 9 de outubro de 1687 ele escreve:
Quanto a essa outra dificuldade que o senhor apresentou, a saber, que a alma
unida à matéria não torna esta um ser verdadeiramente uno, uma vez que a matéria
não é verdadeiramente una nela mesma, e que a alma, segundo seu julgamento,
dá à matéria somente uma denominação extrínseca, eu respondo que é a substância
animada à qual essa matéria pertence que é verdadeiramente um ser, e a matéria
considerada como massa não é nela mesma mais que um puro fenômeno ou
aparência bem-fundada, como ainda o são o espaço e o tempo9 .
Longe, então, de aferrar-se à idéia de que as formas substanciais — ou almas
— produziriam unidade nos corpos, Leibniz afirma que o que deve ser verdadeiramente tomado como sendo um ser — aqui por oposição a fenômeno ou
agregado — é a substância animada à qual o corpo pertence. O contexto da
discussão e a evolução posterior do pensamento de Leibniz tornam claro, creio,
que a substância em questão é a própria forma substancial ou alma.
E é exatamente nesse sentido que se desenvolve o pensamento de Leibniz.
Enquanto no Discurso de metafísica e nas cartas escritas a Arnauld nos anos de
1686 e 1687 encontramos ainda uma tentativa de caracterizar os corpos orgânicos em ligação com formas substanciais como constituindo substâncias individuais, escreve ele, já na carta a Arnauld de 23 de março de 1690, que “o
corpo é um agregado de substâncias e não é uma substância propriamente
8
Parece-me ser precisamente essa a interpretação que encontramos, por exemplo, em Rutherford:
“We have every reason to think that the dominant monad makes its mass of subordinates monads
into ‘one machine’ simply by virtue of representing them as a single extended entity, as opposed
to the plurality they are”. Rutherford 1995:272.
9 Leibniz, ibid:165.
Corpos e mônadas na metafísica madura de Leibniz
dita” 10 . Isso o leva a concluir que deve haver em todos os corpos substâncias
indivisíveis e incorruptíveis que sejam, e essas são minhas palavras, ontologicamente responsáveis pela produção dos corpos. Essas substâncias indivisíveis e incorruptíveis devem, por uma questão de princípio, ser incorpóreas,
sendo identificadas por ele às formas substanciais. Posteriormente ele passa a
chamá-las de enteléquias ou mônadas.
Em resumo, enquanto Leibniz, nos anos 80, atribui às formas substanciais a
tarefa de “fazer” com que corpos orgânicos sejam unos e, desse modo, “eleválos” à condição de legítimas substâncias corpóreas, deparamo-nos, no sistema
metafísico desenvolvido a partir dos anos 90, com uma, digamos assim, ontologização dessas formas, de tal maneira que elas passam a ser vistas como constituindo elas mesmas as substâncias últimas componentes do real11 . Parece haver, portanto, na passagem dos anos 80 aos 90, uma certa evolução idealista na
metafísica de Leibniz originada pela compreensão de que, no final das contas,
nada corporal pode satisfazer às condições de substancialidade colocadas por
ele mesmo, uma vez que nada de corpóreo pode ser em si mesmo uno.
A idéia basilar do sistema metafísico leibniziano da maturidade é, assim, a
de que há no plano ontológico fundamental, em sentido estrito, unicamente
substâncias simples de natureza espiritual, denominadas, por Leibniz, com
alguma flutuação terminológica, enteléquias ou mônadas. Essas substâncias
simples imateriais são, segundo ele, as entidades últimas constituidoras da
realidade, devendo ser, portanto, os corpos, enquanto entidades
ontologicamente derivadas e secundárias, de alguma maneira redutíveis a elas
e delas dependentes. Os corpos são caracterizados por Leibniz como produtos da agregação de mônadas, o que significa dizer que eles são, de alguma
forma, constituídos por elas. Essa relação de constituição não deve ser compreendida, contudo, como sendo uma relação de composição, análoga àquela
que vigora entre um todo e suas partes. As substâncias indivisíveis não são
partes das quais o corpo seja composto, mas sim, mais propriamente um
requisito interno e essencial para a existência deles, pois não se pode conceber a existência do múltiplo — todo corpo é múltiplo por ser divisível ao
infinito — sem a existência da unidade12 .
10 Ibid.:199.
11 Ver em relação a esse ponto o texto de Michel Fichant, “Da substância individual à mônada”
(Fichant 2000).
12 No artigo “Sobre a necessidade da ligação das mônadas a corpos em Leibniz” (Marques, no
prelo), esclareço de maneira mais precisa e detalhada a natureza dessa dependência ontológica
das mônadas relativamente aos corpos.
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O fato de os corpos dependerem ontologicamente das mônadas faz com
que se tenha de afirmar, como Leibniz o faz no parágrafo 66 da Monadologia,
que há enteléquias na mais ínfima porção de matéria, não havendo nada de
extenso que seja desprovido de mônadas. Isso não faz, entretanto, de acordo
com Leibniz, que se tenha de aceitar que a tudo aquilo que caracterizamos
cotidiamente como sendo um corpo físico deva se atribuir uma forma substancial que sirva como um princípio vital de sua organização. Essa atribuição
é válida unicamente no caso dos organismos vivos. Do fato de haver vida em
todas as porções de matéria não se segue que cada porção de matéria constitua por si um todo organizado e vivo13 .
Uma vez que as mônadas são ontologicamente mais primitivas e fundamentais que os corpos, seria razoável, creio, supor que elas pudessem existir
independentemente destes, pois enquanto a pluralidade não pode subsistir
sem a unidade, o contrário não parece ser o caso. Poderíamos pensar, aparentemente sem nenhuma contradição, que algumas dessas unidades imateriais e
imperecíveis não se encontram ligadas a nada de extenso.
Essa não é, contudo, a posição de Leibniz. Ele defende explicitamente, em
várias de suas obras, a tese de que todas as mônadas estão sempre ligadas a
corpos. Nas Considerações sobre os princípios da vida e as naturezas plásticas, por
exemplo, pode-se ler:
que não há parte do espaço que não esteja preenchida; que não há parte da matéria
que não esteja atualmente dividida e que não contenha corpos orgânicos; que há
almas em todo lugar, como há corpos por todo lugar; que as almas e mesmo os
animais subsistem sempre; que os corpos orgânicos não são nunca sem alma e
que as almas não são nunca separadas de todo corpo orgânico. ... Eu não admito,
então, que haja almas inteiramente separadas naturalmente, nem que haja espíritos
criados inteiramente separados de todo corpo 14 .
13 “É verdade (segundo meu sistema) que não há nenhuma porção de matéria onde não haja uma
infinidade de corpos orgânicos e animados, sob os quais eu compreendo não somente os animais e as plantas, mas também talvez outros tipos que nos são inteiramente desconhecidos. Mas
não é preciso dizer em função disso que cada porção da matéria é animada. É como não dizermos que um lago cheio de peixes é um corpo animado, ainda que o peixe o seja”. Leibniz, Die
philosophische Schriften, vol. VI:539-540. (Nas próximas referências a essa edição farei uso simplesmente do nome “Gerhardt” seguido do número do volume em algarismos romanos e do
número da página em algarismos arábicos).
14 Leibniz, in Principes de la nature et de la grâce, Monadologie et autres textes:101-102.
Corpos e mônadas na metafísica madura de Leibniz
Em março de 1706, em carta à Rainha Sofía, Leibniz escreve também de
forma clara:
Além de nossas almas, que são unidades, temos corpos, que são multiplicidades.
E creio, com a maior parte dos antigos filósofos e dos padres da Igreja, que somente
Deus é uma inteligência separada de todo corpo, enquanto todas as restantes
inteligências — gênios, anjos e demônios — estão acompanhadas, cada uma à
sua maneira, por corpos orgânicos15 .
Sob pena de perda da inteligibilidade do sistema metafísico leibniziano,
não se pode, então, reduzir simplesmente as relações entre corpos e mônadas
à relação de dependência ontológica dos primeiros relativamente às últimas,
sendo necessário, para poder explicitar as razões que levam Leibniz à afirmação da necessidade da ligação entre mônadas e corpos, que se mostre em que
medida essa ligação a um agregrado de substâncias que não é ele mesmo uma
substância é condição essencial para a subsistência de uma mônada criada.
A hipótese interpretativa que apresentarei e que tentarei esclarecer no que
se segue pode ser resumida por meio da seguinte afirmação: mônadas devem
representar a si mesmas como ligadas a corpos e devem perceber outras
mônadas como constituindo corpos — é nisso que consiste, em última instância, a ligação entre uma mônada e um corpo — para poderem pertencer a
um mundo, pois, caso contrário, cada mônada deveria ser tomada isoladamente como um mundo inteiramente à parte, subsistindo nesse mundo unicamente essa própria mônada, sendo a sua criação por Deus a única relação
na qual ela estaria envolvida. Minha proposta é, então, associar a questão
referente à necessidade da ligação de mônadas a corpos à questão referente à
possibilidade da constituição de mundos — isto é, de conjuntos maximais de
substâncias e fenômenos compossíveis — a partir de substâncias simples que
não estabelecem entre si quaisquer tipos de relações reais. Quer dizer, o que
pretendo mostrar é que, no sistema leibniziano, mônadas somente podem
constituir um mundo na medida em que se ligam a corpos16 . Para tornar essa
15 Leibniz, in Filosofia para princesas:92-93.
16 No artigo “Sobre a necessidade da ligação das mônadas a corpos em Leibniz” (no prelo), desenvolvo uma interpretação do argumento apresentado por Leibniz no parágrafo 124 da segunda
parte da Teodicéia para sustentar sua afirmação de que mônadas sempre estão ligadas a corpos.
O que esse argumento afirma é, em resumo, que mônadas devem estar ligadas a corpos para
poderem possuir representações confusas. O que eu tento mostrar naquele artigo é que essa
ligação garante tanto a inter-expressividade monádica quanto o caráter parcial e obscuro dessa
inter-expressão. A implicação dessas considerações é que a ligação das mônadas a corpos é
condição tanto para sua individuação quanto para seu pertencimento a um mundo.
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hipótese respeitável é preciso, em primeiro lugar, entretanto, esclarecer melhor em que sentido é problemática a constituição de mundos a partir de
mônadas.
Mundos possíveis são, para Leibniz, conjuntos maximais de substâncias e
fenômenos compossíveis. O adjetivo “maximal” indica que não há limites espaciais ou temporais para um mundo possível, abrangendo ele todos os fenômenos e substâncias cuja existência não seja incompatível com a existência
desse conjunto. Isso significa que consiste em uma impossibilidade lógica a
atualização, por parte de Deus, de mais de um mundo possível. Por serem
maximais eles são, por princípio, incompatíveis uns com os outros. Enquanto
a incompatibilidade vigora entre os diversos mundos possíveis, a compossibilidade é a característica relacional básica de todas as substâncias e fenômenos pertencentes a um mesmo mundo. Isso quer dizer que a existência de
qualquer um desses fenômenos ou substâncias não impede a existência de
nenhum outro que pertença a esse mesmo mundo. Na verdade, é precisamente a compossibilidade que serve como critério, relativamente a substâncias e fenômenos, para a determinação de seu pertencimento ou não a um
mesmo mundo.
A questão que se coloca aqui é a de como pode ser pensada essa idéia de
impedimento — ou a do seu contrário: a compossibilidade — entre substâncias que não estabelecem entre si nenhum tipo de relação real. Se todas as
modificações das substâncias simples são devidas à sua natureza interna, e se,
em um certo sentido, tudo se passa para cada uma delas como se somente
existissem ela e Deus, não parece ser de modo algum evidente o que faria com
que duas substâncias possíveis que não se relacionam de nenhuma forma
possam impedir-se mutuamente, de tal maneira que não possam ambas pertencer a um mesmo mundo, isto é, que não possam ser ambas criadas por
Deus. O ponto central de nossa dificuldade é, assim, o de como pensar a
relação de mútuo impedimento entre substâncias finitas partindo da premissa de que não há relações reais de nenhum tipo entre substâncias17 .
É importante ter em mente que essa dificuldade não diz respeito a uma
idéia periférica no sistema metafísico de Leibniz, cuja consideração não fosse,
então, no presente contexto, obrigatória, mas se refere, ao contrário, a uma
tese pertencente ao núcleo duro desse sistema, uma vez que ela atinge a idéia
17 Essa questão está formulada de uma maneira um pouco mais rigorosa e desenvolvida em meu
artigo “Possibilidade, compossibilidade e incompossibilidade em Leibniz” (Marques 2004:175187).
Corpos e mônadas na metafísica madura de Leibniz
mesma dos possíveis. Como se sabe, para Leibniz, apenas Deus existe necessariamente, caracterizando-se as substâncias criadas — e, consequentemente, o mundo criado — pela contingência de sua existência, isto é, pelo
fato de sua existência não se seguir de sua essência, sendo, portanto, plenamente concebível que substâncias delas distintas tivessem sido criadas por
Deus em seu lugar 18 . O conceito de contingência envolve, então, a idéia de
possíveis não-existentes, isto é, a idéia de que da mera possibilidade de uma
substância finita não se segue sua existência19 . Entretanto, e nesse ponto Leibniz
é enfático, todos os possíveis tendem à existência, somente não sendo
atualizados eles todos em função de não serem todos eles mutuamente compatíveis. A restrição que faz com que não haja uma passagem em todos os
possíveis da mera possibilidade à existência não tem sua origem, assim, nos
possíveis tomados em si mesmos, mas sim neles tomados em suas relações de
mútuo impedimento. É esse impedimento mútuo que faz com que Deus não
possa fazer com que todos os possíveis passem a existir, tendo ele de se conformar à criação do conjunto por meio do qual o maior número possível de
possíveis venha a existir, isto é, à criação do melhor dos mundos possíveis20 .
Se a incompatibilidade entre os possíveis é a razão para que algumas dessas essências nunca venham a passar para a existência, então é obviamente em
função dessa incompatibilidade que pode haver possíveis não-existentes, isto
é, que pode haver na mente de Deus representações de essências de substâncias singulares que nunca virão a ser atualizadas. Mas se, como vimos mais
acima, a atribuição de uma natureza contingente às substâncias individuais
18 “Em Deus a existência não difere da essência, ou, o que vem a ser o mesmo, é essencial a Deus
existir. Deus é, portanto, um ser necessário. As criaturas são contingentes, quer dizer, a existência não se segue de sua essência”. Leibniz, in Recherches générales sur l’analyse des notions et des
vérités:326.
19 “Se alguns dos possíveis não chegam a existir nunca, as existências certamente não são sempre
necessárias; com efeito, de outra maneira seria impossível que existissem outras coisas no lugar
das que existem, de tal modo que seriam impossíveis todas aquelas coisas que não existiram
nunca”. Leibniz, in Escritos em torno a la libertad, el azar y el destino:98.
20 Leibniz expressa-se de maneira clara acerca desses pontos em seu texto 24 teses metafísicas: “Mas
essa causa que faz com que alguma coisa exista, ou que a possibilidade exija a existência, ela faz
também com que todo o possível tenha uma tendência à existência, uma vez que não se pode
encontrar, falando em termos gerais, uma razão para restringir essa tendência a apenas alguns
possíveis. ... Mas daí não se segue que todos os possíveis existam; isso somente se seguiria se
todos os possíveis fossem compossíveis. Mas, por serem incompatíveis com outros possíveis,
certos possíveis não chegam a existir, e eles não são incompatíveis uns com os outros somente
em seu momento comum, mas também de maneira universal, pois os estados futuros estão
contidos nos estados presentes. Entretanto, resulta ao menos do conflito entre todos os possíveis que exigem a existência que exista a série por meio da qual a coisas existam em maior
número, quer dizer, a série maximal de todos os possíveis”. In Recherches générales sur l’analyse
des notions et des vérités:467-469.
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criadas depende da idéia de que outras substâncias individuais poderiam ter
sido criadas em seu lugar, então a contingência do mundo criado depende da
idéia de que há, dentre os possíveis, casos de incompatibilidade mútua, isto
é, casos em que a passagem de um determinado possível à existência impede
que determinados outros possíveis possam também existir. Essa idéia de impedimento entre possíveis deve ser reconhecida, assim, como desempenhando um papel fundamental no sistema leibniziano, pois sem ela Leibniz não
teria como fundamentar a tese, que a seus olhos o afasta dos perigos do
espinosismo, da contingência do mundo criado.
Do fato de a noção de mútuo impedimento entre substâncias possíveis
desempenhar um papel fundamental na metafísica leibniziana não se segue,
entretanto, que se tenha clareza acerca das razões que sustentam seu uso no
interior desse sistema. O problema, como já vimos mais acima, é que não
parece ser razoável supor, caso partamos do pressuposto de que substâncias
simples não estabelecem relações reais entre si, que a existência de uma dada
substância possível impeça que determinadas outras substâncias possíveis
venham a existir. Dito em forma de pergunta: se as substâncias são indiferentes umas às outras, isto é, se elas não se afetam mutuamente, qual pode ser a
origem do impedimento mútuo?
Minha hipótese é que esse impedimento tem sua origem na ligação das
mônadas a corpos. Considerando que, de acordo com Leibniz, essa ligação
consiste na harmonia pré-estabelecida entre as modificações dos estados internos das mônadas, por um lado, e as modificações dos corpos a elas conectados, por outro, então os estados corporais podem servir, por assim dizer,
como intermediários nas relações entre mônadas, uma vez que o plano corporal apresenta um sistema comum de coordenadas por meio do qual os
diversos corpos se situam uns em relação aos outros. Assim, em função (a) da
harmonia pré-estabelecida entre mônada e corpo e (b) do fato de os corpos
comungarem de um sistema comum de referências e de influências, as modificações dos estados internos das mônadas podem expressar relações entre os
corpos. Substâncias possíveis impedem-se, então, mutuamente na medida
em que seus estados internos expressam modificações dos corpos ligados a
essas substâncias que fariam com que eles não pudessem coexistir em um
mesmo mundo. Seria da incompatibilidade entre os possíveis corpos no interior de um mesmo sistema de coordenadas espácio-temporais que chegaríamos à incompatibilidade entre mônadas.
Mas não apenas o impedimento mútuo entre mônadas teria sua origem no
plano dos corpos. Também a unidade do mundo seria forjada a partir desse
plano. Na medida em que cada mônada está harmonizada ao seu corpo e na
Corpos e mônadas na metafísica madura de Leibniz
medida em que os corpos pertencem a um sistema comum no qual cada modificação afeta toda e cada parte pertencente ao sistema, então as modificações internas de cada mônada refletem o estado geral dos corpos existentes
no universo, vale dizer, refletem as modificações internas de todas as outras
mônadas. A harmonização entre as mônadas — isto é, a adequação entre seus
estados internos de modo a afigurarem o mesmo conjunto maximal de fenômenos e de substâncias, quer dizer, o mesmo mundo — pressupõe, então, a
harmonia pré-estabelecida mônada-corpo e o pertencimento dos corpos a
um sistema comum de referências e de relações21 . A posição de Leibniz poderia ser reconstruída, assim, como uma estratégia de atribuição às mônadas,
que são inextensas e desprovidas de janelas, de uma certa posição na extensão
capaz de lhes proporcionar um ponto de vista acerca do universo como totalidade22 . Em outras palavras, é sendo idéia de seu próprio corpo que a alma é,
para Leibniz, idéia do universo.
A concepção ontológica desenvolvida por Leibniz é, assim, extremamente
complexa e ardilosa. Por um lado, devemos considerar que a realidade é, em
última instância, constituída por substâncias simples imateriais e imperecíveis que não estabelecem umas com as outras nenhum tipo de relação de influência, considerando, entretanto, ao mesmo tempo, por outro lado, que as
modificações internas dessas substâncias estão previamente harmonizadas a
modificações presentes em corpos que estabelecem entre si relações de vários
tipos, de tal maneira que as modificações internas de uma substãncia representam as modificações de todas as outras substâncias, vale dizer, representam a totalidade do mundo ao qual essa substância pertence.
Se a referência mútua entre mônadas apenas é possível a partir da unidade
do plano fenomenal dos corpos, então estes, apesar de serem ontologicamente
21 Leibniz parece-me claro a esse respeito em seu texto Conseqüências metafísicas do princípio de
razão: “Pois mesmo se toda substância simples possui um corpo orgânico que corresponde a ela
— de outro modo ela não teria nenhum tipo de relação sistemática com outras coisas no universo, nem agiria sobre algo ou seria objeto de ação de uma maneira sistemática — ela é nela
mesma sem partes”. In Philosophical Writings:175.
22 Na carta a de Volder de 20 de junho de 1703, Leibniz escreve: “Mesmo não sendo extensas, as
mônadas têm um certo tipo de situação na extensão, isto é, elas têm uma certa relação ordenada
de coexistência com outras coisas, nomeadamente através da máquina na qual elas estão presentes. Eu penso que nenhuma substância finita existe separada de todo corpo e que, nessa
medida, elas não deixam de assumir uma posição ou uma ordem em relação às outras coisas
coexistentes no universo”. In Philosophical essays (1989:178). A mesma idéia é retomada por
Leibniz no parágrafo 62 da Monadologia: “Assim, embora cada mônada criada represente todo o
universo, representa mais distintamente o corpo que lhe está particularmente afeto e de que
constitui a enteléquia; e como esse corpo exprime todo o universo, pela conexão de toda a
matéria no pleno, a alma representa também todo o universo ao representar esse corpo que lhe
pertence de um modo particular”. In Gerhardt, VI: 517.
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redutíveis àquelas, são absolutamente indispensáveis para a constituição da
realidade. Isso significa que não se pode fornecer uma descrição ontológica
completa do mundo sem se referir ao plano dos fenômenos corporais, uma
vez que simplesmente não poderemos falar de mundos se nos restringirmos
ao plano monadológico fundamental.
Referências bibliográficas
Fichant, M. “Da substância individual à mônada”. Analytica vol. 5, n. 1-2:1134, 2000.
Leibniz, G.W. Filosofia para princesas. Madrid: Alianza Editorial, 1989.
———. Philosophical essays. Ed. e trad. R. Ariew & D. Garber. Indianapolis &
Cambridge: Hackett, 1989.
———. Escritos em torno a la libertad, el azar y el destino. Seleção, estudo preliminar e notas por C. R. Panadero. Tecnos: Madrid, 1990.
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