Padrão de ocupação do território nacional pela agropecuária Ivete Oliveira Rodrigues1 1. Introdução Esse artigo constitui uma contribuição aos estudos desenvolvidos no âmbito do ZEE no sentido de propor uma nova interpretação sobre a ocupação do território nacional a partir dos dados de utilização da terra constantes do Censo Agropecuário do IBGE2. O desafio dessa abordagem é superar o enfoque tradicional no qual os dados de utilização da terra são avaliados estritamente como inventário de usos agrícolas, na direção de um entendimento mais ampliado dessa categoria analítica, agora comprometida com uma análise integrada de constituição de padrões de ocupação do território nacional pela agropecuária. Tal esforço tem por objetivo permitir uma visão conjunta do país, reconhecendo que os dados agropecuários contribuem para subsidiar a elaboração de macropolíticas territoriais presentes no planejamento estratégico do território brasileiro e, mais especificamente, no ZEE Brasil. Nesse sentido, este mapeamento está comprometido com uma visão interligada dos processos e circunstâncias que modelaram, no tempo e no espaço, a ocupação econômica da agropecuária brasileira. É importante ressaltar que, em um país de dimensão continental como o Brasil, é de se esperar que a utilização da terra se dê através de múltiplas formas reveladoras, em última instância, da própria heterogeneidade desse imenso território nacional. 2. Padrões de ocupação e gestão do território Dada a complexidade da ocupação do território nacional, a Figura 1 dá ênfase não só aos grandes usos agropecuários, tipificados segundo o grau de especialização e, assim, classificados em “especialização”, “domínio”, “predomínio” e “associação agropastoril”3, como incorpora, também, o espaço urbano, através da superposição da área urbana das cidades4 com população acima de 25 mil habitantes. 1 Ivete Oliveira Rodrigues, pesquisadora do IBGE e Mestre em Geografia. O Censo Agropecuário define como utilização da terra as seguintes categorias: lavouras permanentes e temporárias, terras em descanso, pastagens naturais e plantadas, matas naturais e plantadas, florestas, além das terras produtivas não utilizadas e inaproveitáveis. Para efeito deste trabalho, a utilização da terra foi organizada em três grandes grupos, a saber: lavoura, pastagem e matas e/ou florestas. 3 O método de classificação em especialização, domínio, predomínio e associação corresponde ao agrupamento dos municípios segundo as diversas proporções das categorias de utilização da terra. 4 Esta seleção obedeceu às informações do Censo Demográfico 2000, do IBGE. 2 1 Figura 1 – Padrão de ocupação do território pela agropecuária Cabe destacar que ao projetar os espaços urbanos juntamente com o uso agropecuário, o padrão espacial resultante desta confluência seguramente contribui para aprofundar o debate acerca das relações cidade-campo ao revelar formas territoriais que, ao contrário da dualidade quase sempre presente em discussões desta natureza, sugerem o urbano como ponto de convergência de regiões eminentemente agrícolas, dado que, na atualidade: “paralelamente à intensificação do capitalismo no campo, com a difusão do agronegócio globalizado, que tem o poder de impor especializações produtivas ao território, processou-se um crescimento de áreas urbanizadas, porquanto, entre outras coisas, a gestão desse agronegócio necessita da sociabilidade e dos aspectos urbanos. Isso explica em parte a reestruturação 2 do território e a organização de um novo sistema urbano, muito mais complexo”. (ELIAS, 2007). Contextualiza-se, assim, a análise aqui proposta, de interpretação integrada dos padrões de ocupação do território nacional, no sentido de estabelecer que os usos agropecuários são definidos por particularidades que obedecem a lógicas (e dinâmicas) produtivas diferenciadas, que transitam de complexos sistemas de produção de alta sofisticação tecnológica a sistemas rudimentares de exclusão fundiária e técnica, assim como, eventualmente, apresentam áreas ainda intocadas no interior de estabelecimentos rurais. Além disso, parte-se do pressuposto de que todos esses diferentes usos estão presentes em distintas regiões do país, encontrando-se contraditoriamente articulados. Nesse sentido, como resultado final do mapeamento, podem ser observadas formas de especialização e domínio que representam a supremacia, em alguns casos a exclusividade, de determinados usos da terra, como também a diversificação das categorias de uso. Assim, cabe observar que a diversidade de formas definidas pela lavoura, pastagem e matas ou florestas forma um complexo mosaico territorial fruto de um processo diferenciador de áreas no interior das quais pode-se falar numa divisão territorial do trabalho cuja dinâmica desfaz e refaz a organização espacial. A cada etapa, a desigualdade sócio-espacial é refeita: a regionalização é refeita, desfazendo antigas regiões que tiveram existência sob outros processos e condições. Neste aspecto, o Brasil é um amplo laboratório de experiências já realizadas e a se realizarem, isto é, de construção e reconstrução do território (CORRÊA, s/d). Nesse contexto, torna-se necessário elaborar uma interpretação sintética do mapeamento e da sua interpretação, através da discussão de algumas áreas do território brasileiro consideradas emblemáticas do ponto de vista dos variados padrões de ocupação do território nacional, áreas essas que estão a exigir um tratamento, igualmente diferenciado, em termos de sua gestão territorial, uma vez que apontam questões relevantes a serem absorvidas ou, quando possível, resolvidas por esta última. 3. Questões territoriais levantadas pelas transformações nos padrões de ocupação do agro nacional Inicialmente, compreendendo um padrão de ocupação do agro nacional, caracterizado pela presença de áreas de lavoura, observa-se uma extensa faixa de terras localizadas na parte oeste dos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul que constitui, talvez, a mais significativa área de especialização, domínio e predomínio de lavouras no país, aí destacando-se, em área, as lavouras temporárias. Sem dúvida, esta porção territorial traz no seu interior as marcas profundas das transformações ocorridas no padrão de produção agropecuária nacional, acumulando características que resultaram de uma longa trajetória, que tem início com a formação da zona pioneira5, e, mais tarde, com a introdução de uma nova dinâmica produtiva marcante na evolução da agropecuária regional e nacional, a saber, a modernização da agricultura, até chegar à constituição do que se pode chamar de território do agronegócio por excelência, aí incluídas suas profundas articulações com as áreas, as atividades e os serviços localizados na zona urbana. 5 Segundo WAIBEL (1955): “... as zonas pioneiras no Brasil ainda hoje não formam uma faixa contínua, mas ficam a grandes distâncias umas das outras, separadas por várias centenas de quilômetros de terras de povoamento escasso e economicamente estagnadas”. Algumas décadas se passaram e, na atualidade, pode ser verificada, em áreas da antiga zona pioneira, uma alta densidade demográfica, dinâmica econômica em expansão e a presença de centros urbanos com grande expressão regional e nacional. 3 A extensa área formada pela especialização, domínio e predomínio em lavoura pode ser considerada, assim, a resposta da importância em extensão da área plantada com os cultivos de soja, girassol, milho, amendoim e cana-de-açúcar, dentre outros, aí incluindo-se, até recentemente, o cultivo de algodão. No interior desse padrão de ocupação, destaca-se a forte proximidade entre o rural e o urbano compondo formas contínuas que tornam possível identificar esse padrão de ocupação como detentor, por excelência, da “expressão contemporânea do agro nacional” 6. Com efeito, cidades como Ribeirão Preto, Campinas, Sertãozinho, Bebedouro e Matão, em São Paulo, Londrina e Maringá, no Paraná, dentre outras, inscreveram suas origens a partir da produção agrícola, muitas das quais caracterizando-se como “boca de sertão”, e, hoje, figurando como cidades centrais do agronegócio7. A Figura 2 distingue a região canavieira de Ribeirão Preto como um segmento do complexo mosaico territorial característico do moderno agro brasileiro, no qual o campo encontra-se intensamente articulado, por atividades complementares, com o espaço urbano regional, não podendo, portanto ser entendido fora dessa nova realidade. Figura 2 – Produção canavieira na região de Ribeirão Preto, São Paulo Fonte: IBGE, Censo Agropecuário. 6 Como aponta Elias (2007), nas cidades do agronegócio, realiza-se a materialização das condições gerais de reprodução do capital do agronegócio globalizado, cujas funções se associam às crescentes demandas por produtos e serviços especializados das redes agroindustriais. 7 Entretanto, da modernidade agrária aí verificada surgiram, também, novas formas de luta pela terra e inserção de famílias de produtores rurais destituídos de terra e excluídos do mercado ou daquelas cuja inserção se dá por sistemas de integração à indústria. Na atualidade, a contraposição ao agronegócio ganha novos contornos com a ação de movimentos sociais que põem em xeque este sistema produtivo como única alternativa para o desenvolvimento do setor agropecuário do país. Dentre as ações mais expressivas está a da ocupação de terras. Assim, sob o mesmo território, uma luta de contrários é travada no interior dessa grande área de uso de lavouras. 4 De caráter mais tradicional, a lavoura, como especialização e domínio, define outra área bem delimitada na porção litorânea do Nordeste brasileiro, onde a cultura da cana-de-açúcar responde por um tipo particular e historicamente marcado de estrutura econômica e social. Outro padrão espacial, muito significativo, pode ser verificado no município de Irecê (BA), também na região Nordeste, caracterizado por uma área contínua de domínio de lavouras. Segundo a descrição de Melo (1978), esse padrão: ... é encontrado na porção norte da Chapada Diamantina onde a altitude dominante (de 800m com áreas de mais de 1000m) e a ocorrência de solos férteis derivados da composição de calcários respondem por um franco prevalecimento das atividades agrícolas sobre as de pecuária. Trata-se, sem dúvida, da mais privilegiada área de exceção dos espaços em estudo. O feijão é o componente principal da combinação agrícola. Dela também participam a mamona, a mandioca e o milho. O caráter excepcional da área, além de se revelar em suas condições naturais e na primazia das atividades de lavoura, também se exprime na existência de processos produtivos intensivos, onde se incluem a mecanização. O exemplo de Irecê fortalece a interpretação sobre a importância da relação campo-cidade, uma vez que ficam evidenciadas a posição central e a funcionalidade dos setores urbanos em relação ao espaço agrícola. Outra situação exemplar verifica-se no pólo Juazeiro-Petrolina, situado nos estados da Bahia e Pernambuco, por ser um padrão espacial que, apesar da pouca extensão superficial, encerra uma das mais promissoras regiões de lavoura irrigada do Nordeste brasileiro. Neste caso, também, o padrão observado ressalta a posição central dessas duas cidades sinalizando uma configuração territorial marcada pela continuidade que caracteriza o rural, de domínio da lavoura, e o urbano, cujo dinamismo, nesse caso, tende a prever um cenário de expansão acelerada desse padrão espacial, pautado pela geometria dos perímetros irrigados e da mancha urbana derivada do crescimento do aglomerado urbano de Juazeiro-Petrolina. Apresentando um padrão de ocupação diferenciado, o cultivo da soja construiu, em anos recentes, capítulo importante na expansão da utilização da terra induzido pela lavoura. Exemplos característicos desse padrão constituem o oeste da Bahia, o sul do Maranhão, no Nordeste brasileiro e, principalmente, o Mato Grosso, na região Centro-Oeste, que deteve, em 2006, 26% da área plantada nacional. Na verdade, a natureza da ampliação dessa cultura é um fenômeno fundamental na observação das transformações pela qual passam tanto a economia agrícola do país, quanto o prolongamento da fronteira do agronegócio, aí incluída a expansão dos centros urbanos em direção à Amazônia. O segundo padrão de uso característico do território brasileiro corresponde às áreas de especialização, domínio e predomínio da pecuária, nas quais as pastagens constituem o uso mais difundido pelo território nacional e sua principal essência, dada a sua característica de ocupação econômica extensiva historicamente associada à abundante oferta de terra8. Ao lado desta constatação mais geral, existe uma expressiva definição em direção ao uso especializado cobrindo parte dos estados de Minas Gerais, especificamente o triângulo mineiro, o sudoeste de Goiás, o Mato Grosso do Sul e o Rio Grande do Sul. Nesse último 8 No Brasil, a ocupação de terras pela pecuária está longe de representar um movimento pacífico, ao contrário, é repleto de ações de extrema violência. 5 estado, a presença da pecuária moldou um padrão de ocupação do território que se confunde com a própria identidade cultural dos gaúchos. Outro conjunto caracterizado pela pecuária é formado por uma extensa área do semi-árido nordestino englobando os estados da Bahia, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí, no qual o padrão de ocupação é dominado pela pastagem e pelos sertanejos. Andrade (1980), numa descrição sobre a importância histórica do processo de expansão territorial da atividade pecuária nessa região, afirma que: “...os caminhos do gado eram muitos longos, ocupavam grande parte dos moradores do Sertão e, devido ao emagrecimento nas viagens, costumavam fazer os animais oriundos do Piauí, Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba e de Pernambuco, quando tangidos para a Bahia, passar algum tempo se refazendo nos campos de Jacobina. Só depois de refeitos é que eram tangidos para as imediações de Salvador. Para Olinda e, posteriormente, Recife, o gado também fazia longas caminhadas. Assim, havia um caminho de gado que partindo de Olinda se dirigia para o norte, passando por Goiana, Espírito Santo, Mamanguape, Canguaretema, Papari, São José do Mipibu, Natal, Açu, Moçoró, Praia do Tibau, Aracati e Fortaleza. Outra estrada ia drenar o gado piauiense para Olinda, através de Goiana, També, Vale do Espinharas, Taperoá, Patos, Pombal, Sousa, São João do Rio do Peixe, Tauá, atingindo Crateús, onde se juntava à vaqueirama piauiense e trazia o seu gado para a área canavieira. O autor prossegue afirmando que foi a pecuária quem conquistou para o Nordeste a maior porção de sua área territorial. Complementou a área úmida agrícola com uma atividade econômica indispensável ao desenvolvimento da agroindústria do açúcar e ao abastecimento das cidades nascentes. Carreou para o Sertão os excedentes de população nos períodos de estagnação da indústria açucareira e aproveitou a energia e a capacidade de trabalho daqueles que, por suas condições econômicas não puderam integrar-se na famosa civilização da casa-grande e da senzala. Permitiu, assim, a formação de “o outro Nordeste”, do Nordeste das caatingas e do gado, que a um só tempo se opõe e complementa, o Nordeste do massapê e da cana-deaçúcar.” A exposição feita pelo autor sobre a formação histórica da extensa área de influência da pecuária no Nordeste ainda ressoa na atualidade. Formada no período colonial, momento no qual Furtado (1979) indica o longo período que se estende do último quartel do século XVII ao começo do século XIX, quando a economia nordestina sofreu um lento processo de atrofiamento, com o declínio secular de sua renda e população. Com efeito, é interessante observar que esse atrofiamento constituiu o processo de formação do que no século XIX viria a ser o sistema econômico do Nordeste brasileiro, cujos processos de reprodução persistem até hoje. Como pode ser examinado na Figura 1, o vestígio deixado pelo passado ainda está inscrito no território nordestino e pode ser identificado nos limites formado por uma ampla mancha de predomínio de pastagem, inserida em áreas do semi-árido nos estados do Piauí, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Bahia. Desta maneira, é legitimo que se diga que tal recorte espacial retrata, ainda hoje, em grande parte, o caminho contido na descrição de Andrade. Assim, a persistente formação territorial, oriunda dos tempos coloniais, foi moldada por um processo econômico coerente com as condições naturais e estruturais da economia pastoril 6 extensiva, isto é, a abundância de terra e as longas distâncias percorridas pelo rebanho bovino, na marcha em busca de áreas de pastagens naturais “sertão adentro”. Na atualidade, em relação às pastagens, um novo padrão se dissemina por grandes extensões territoriais na fronteira pecuária do país, principalmente nos estados do Pará e Maranhão, sendo identificado pela representação de usos especializados, domínios e predomínios. “Ressalte-se que estas áreas paraenses foram envolvidas no processo de incorporação de novos espaços, viabilizado pela melhoria de suas condições de acessibilidade a grandes centros urbanos e pelos incentivos fiscais e financeiros, atraindo empresários que implantaram empreendimentos modificadores do quadro técnico-produtivo e desestruturadores das atividades pré-existentes.” (MESQUITA, 1988) Municípios do Maranhão, como Imperatriz, Santa Inês, Santa Luzia, Pindaré Mirim e Pedreiras figuram como domínios da pecuária e todos eles se inserem no mesmo processo de ocupação por pastagens da região de Marabá (PA). Hoje, as pastagens se estendem como uma ampla frente pecuarista para o interior do estado do Pará, “floresta adentro”. A complexidade de padrões de ocupação existentes na atualidade se faz presente, mais uma vez, quando se depara com a presença de combinações entre as categorias de uso da terra. De maneira exemplar, a região Nordeste oferece um número significativo de situações dessa natureza, como lavoura/mata ou floresta; pecuária/mata ou floresta e lavoura/pecuária. Com efeito, para o interior da região nordestina, no caso da bacia do rio São Francisco, dada a prática da invernada desde os tempos do povoamento dos “sertões do São Francisco”, entende-se a importância do domínio e predomínio das pastagens e matas e/ou floresta em vastas extensões territoriais da bacia, uma vez que a característica histórica da pecuária aí praticada até os dias de hoje é, em grande parte, baseada em processos produtivos extensivos. Assim, em linhas gerais, matas e/ou florestas e pastagens fazem parte de uma mesma dinâmica de ocupação nesta porção do território regional. Prova disto, pode ser apreciada pelo traço fisionômico marcante que se estende pelas margens do rio São Francisco, em seu médio curso, nos estados da Bahia e Pernambuco, onde se percebe a forma alternada de predomínio entre pastagem e mata ou floresta. Atualmente, algumas transformações nesse padrão tradicional de ocupação podem ser observadas na região da Bacia do São Francisco, devido, por um lado, à presença de grandes centros urbanos, como Belo Horizonte e Brasília, que influenciam, em grande parte, o desenvolvimento de uma pecuária com maior uso de tecnologia voltada para corte e, também, para a produção de leite. Por outro lado, observam-se mudanças através da substituição da pecuária extensiva, presente nas terras comunais do cerrado baiano, pelos plantios de grãos e do algodão herbáceo. Assim, constata-se um domínio de lavoura cujo trecho principal situa-se na rodovia que liga as cidades de Barreiras, Luís Eduardo Magalhães e Brasília. Nesse padrão espacial, as cidades de Barreiras e, mais recentemente, Luís Eduardo Magalhães, tornam-se importantes centros articuladores do espaço rural e da economia do oeste da Bahia, constituindo exemplos de interiorização do processo de urbanização alavancado, nessa região, pelo dinamismo do agronegócio. Cabe observar que, em relação à participação da lavoura, para Andrade (1980), foi o algodão, implantado em meados do século XIX, que operou uma revolução agrária no Nordeste. Cultura de grande amplitude social, mobilizou os pequenos e grandes produtores e 7 influenciou, até em anos recentes, a face do espaço agrário da Região. Assim, é notável que em grande parte do Nordeste sertanejo pode-se verificar, ainda hoje, a importância do quadro natural9, através do padrão de predominância mata/lavoura, oriunda, em grande parte, da combinação dada pela caatinga e pela cultura do algodão. Nos dias de hoje, a produção de algodão precisa ser reconsiderada. Na verdade, sua total decadência, principalmente do algodão arbóreo, chama atenção nas análises sobre este cultivo no Nordeste. Segundo dados estimados da Pesquisa Agrícola Municipal, do IBGE, no período entre 1990-2005 (Gráfico 1), pode-se observar uma queda vertical da área plantada do algodão arbóreo. Assim, os dados representados no gráfico não deixam dúvidas sobre a derrocada do cultivo do algodão, uma cultura que, no passado, determinou a ocupação desta região, pelos pequenos e grandes estabelecimentos rurais. 250000 200000 Valores (ha) 150000 100000 Ceará P iauí P araíba Rio G. do Nort e P ernambuco 50000 0 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 Anos Gráfico 1 - Evolução da área plantada segundo os principais estados produtores de algodão arbóreo, 1990 -2005 Fonte: IBGE, Produção Agrícola, 1990-2005 No entanto, é importante frisar que as combinações encontradas, principalmente no sertão, representadas por lavoura/mata e pecuária/mata, encerram, na prática, uma perversa e secular combinação, na qual figuram excessivas carências, como a de recurso hídrico somado à precariedade de acesso a novas técnicas agrícolas e à fragilidade da logística do território (rodovias, energia, cidades), entre tantas outras. Num quadro como este, somente iniciativas da sociedade civil organizada, junto com políticas públicas nas escalas municipal, estadual e da União, podem romper a atrofia secular que boa 9 Como toda ação supõe uma técnica, a idéia de meio geográfico natural não pode ser desvinculada dessa noção de técnica, daí o relativismo de denominações como “natural”. 8 parcela da população está submetida e modificar padrões seculares de estagnação social e econômica verificados no território. Neste sentido, a população sertaneja passa a contar em anos recentes com a orientação contemporânea introduzida pelo conceito de “convivência com o semi-árido”10, que incorpora um objetivo contrário às práticas itinerantes, nas quais se incluem o desmatamento e queimadas, e contribui para a preservação da biodiversidade, além de atuar num processo de construção de uma nova cidadania para homens e mulheres nordestinas. Da parte do poder público, as políticas que ganham maior visibilidade e espaço de discussão dizem respeito à transposição e à revitalização da bacia do rio São Francisco, ambas, com ações em áreas do semi-árido e que prometem romper com o quadro de paralisia econômica, em partes do Nordeste, e de imprimir um sentido mais amplo às políticas setoriais. Em prosseguimento, no Nordeste ocidental, diverso da porção sertaneja, encontra-se uma situação peculiar, no caso o estado do Maranhão, onde, nas décadas de 1950 e 1960, ocorreu um forte incremento da lavoura de arroz, principalmente, além de milho, feijão e mandioca, transformando a organização desse espaço. Tal produção ficou a cargo de migrantes provenientes de áreas sertanejas que promoveram a ocupação produtiva de amplas áreas deste estado. À época, a importância desse movimento elevou o Maranhão a um papel de destaque no abastecimento dos mercados urbanos do Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil. Além disso, a ocupação das áreas agrícolas, em que predominavam a pequena produção familiar, trouxe não só o aumento significativo da produção da lavoura, como acelerou o processo de desmatamento, com a simultânea formação e expansão das áreas de cocais. Assim, ficou definida uma outra atividade complementar, a extração de babaçu. Esta atividade vai marcar a pequena produção do Maranhão e relacioná-la, por excelência, à produção extrativa em boa parte do território maranhense. Em decorrência, como pode ser observado na Figura 1, a presença de predomínio de mata e lavouras adquire, no Meio Norte, essa duplicidade graças, em boa parte, à combinação de extrativismo e lavoura. Contudo, num quadro de mudanças nos processos econômicos e de ocupação do território, pode-se apontar também o Maranhão, cuja primeira onda da frente pastoril no sul do estado consistia na passagem de vaqueiros conduzindo tropas de gado provenientes da Bahia à procura de pastagens nativas no sertão maranhense. Na atualidade, a especialização em pastagem e o predomínio de lavoura/pastagem verificados na chamada pré-amazônia maranhense são representantes, ao mesmo tempo, de usos antigos e contemporâneos, nos quais a pecuária pode apresentar alto rendimento econômico aliado à promoção da imagem e estilo de vida do rural moderno e a lavoura ser remanescente da produção do pequeno produtor pobre. Finalmente, o leque de questões estimuladas pela Figura 1 não se esgota em si mesmo. As mudanças no padrão de uso da terra se inserem, na atualidade em outros campos de discussão como, por exemplo, no contexto das transformações da matriz energética do país, na qual a introdução da cana-de-açúcar está sendo indicada como capaz de viabilizar uma nova dinâmica de utilização da terra e de expansão das cidades e serviços que servem de apoio ao espaço agrário. Nesse sentido, as tendências apontam mudanças de processos e produtos 10 O conceito de convivência com o semi-árido é um marco no debate sobre as formas de aludir às peculiaridades climáticas da região e vem substituir a histórica abordagem do combate às secas. Assim, o reconhecimento de que a problemática da Caatinga não está simplesmente associada à seca, mas à irregularidade de chuvas e ao reconhecimento da existência de técnicas apropriadas para o manejo adequado de culturas peculiares ao clima e solo, faz parte de construção recente de outro modelo de desenvolvimento sustentável para o semi-árido. 9 decorrentes do avanço de lavouras em substituição à pecuária e, talvez, de maneira preocupante, às culturas alimentares. No contexto das incertezas crescentes que rondam as alterações que irão ocorrer nos padrões de ocupação do território, define-se uma nova agenda política e de estratégia de ação do Estado na qual a expansão da cana-de-açúcar, da pecuária e da soja, assim como os conflitos da terra e a expansão urbana e do mercado figuram no campo de força do debate e dos interesses, por vezes antagônicos, que envolvem a questão da base territorial do país. Na atualidade, esta base territorial é entendida cada vez mais em sua dupla face: a territorial propriamente dita e a da natureza11, que se afirmam como o fundamento das estruturas econômicas e sociais da produção agropecuária na contemporaneidade. Bibliografia ANDRADE, M.C.A. - A Terra e o Homem do Nordeste. São Paulo: HUCITEC, 1980, 278 p. -------------------------. Espaço Agrário Brasileiro: velhas formas, novas funções, novas formas, velhas funções. Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/publicações/Geousp/geousp12, p.1-8. Acesso em outubro de 2007. CASTRO, I.C., MIRANDA, M., EGLER, C. - Redescobrindo o Brasil (ogr.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, 392 p. CORRÊA, R.L. - A Organização Regional do Espaço Brasileiro. s/d, p. 1-12 ELIAS, D. - O Meio Técnico-científico-informacional e a Reorganização do Espaço Agrário Nacional. In: Abordagens teórico-metodológicas em Geografia Agrária Rio de Janeiro: EdUerj, 2007, p. 49-66. FERNANDES, B.M. - Agronegócio e Reforma Agrária. www2.prudente.unesp.br/dgeo/nera/Produção%20NERA/Agronegócio%20e%20Reforma %20AgráriA_Bernardo.pdf. Acesso em 25 de julho de 2007. p. 1-5 FURTADO, C. - Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1979, 248 p. LEITE, S.P. - Mitos sobre a Reforma Agrária. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, 2007, 4p. MELO, M.L. - Regionalização Agrária de Nordeste. Recife: SUDENE, 1978, 225 p. MESQUITA, O.V. e SILVA, S.T. - A Agricultura Brasileira: questões e tendências. In: BRASIL uma visão geográfica nos anos 80. Rio de Janeiro: IBGE, 1988, p. 87-124. MONBEIG, P. - Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo. São Paulo: HUCITEC e Pólis, 1984, 285 p. SANTOS, M.; SILVEIRA, M.L. - O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001, 473 p. SILVA, L.O. - Fronteira e Identidade Nacional. www.igeo.ufrj.br/fronteiras/pdf/LimitesPAlegre1998.pdf. Acesso em 1 agosto de 2007, 25 p. 11 Vários autores advertem sobre o caráter simultâneo do território. 10 WAIBEL, L.H. - As Zonas Pioneiras do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, Revista Brasileira de Geografia, ano XVII, out./dez., 1955, p. 3-35. 11