A COMPREENSÃO DA ÉTICA NA EXISTENCIA DO SER Vanessa Steigleder Neubauer1 Vaneza Cauduro Peranzoni2 Resumo: Esse texto está diretamente focado no ser que conduz a ética como um ser ético propondo-se deste seu projeto de vida na ação. A questão aqui em jogo envolve aproximação entre os filósofos Kierkegaard que conduz a ética como base da existência individual e a questão da ética e do ético, com Gadamer e suas elaborações referentes a existência do ser, e sua considerações a cerca de um saber prévio. Porém acredito ser necessário comentar que para os dois autores a condição da história não dá conta dessa estrutura que forma o ser ético. Ponderase que para Kierkegaard o pensador subjetivo não só pensa sua “existência como é o existente”; seu pensamento volta-se antes para a reflexão da interioridade, presumindo sempre sua ação, sem muletas ou bengalas para se ancorar. Para o autor o pensador subjetivo investe tudo no devir, omitindo o resultado e evitando a especulação. Bem como para Gadamer que comenta o modo como experimentamos o mundo, a forma como compreendemos as tradições históricas, as ocorrências naturais de nossa existência e de nosso mundo de experiências, envolvem um universo hermenêutico que nos abre para o mundo. Considera-se que ambos pensadores são bases para se pensar nos fundamentos que vertem ao “ser ético”, bem como são de ampla contribuição para se pensar distinção do “ser ético” e do “saber ético” na pós-contemporaneamente. Palavras chaves: Compreensão . Existência . Ser . Historicidade Abstract:This text is squarely focused on the being who leads ethics as an ethical being proposing from this project the life in action. The issue at stake here involves bringing together leading philosophers Kierkegaard ethics as the basis of individual existence and the question of ethics and ethical, with Gadamer and its elaborations concerning the existence of being, and his considerations about a previous knowledge. But I believe it is necessary to comment that the two authors the condition of history not realize how this structure being ethical. It is considered that for Kierkegaard the subjective thinker not only thinks his/her "existence as the existing is"; his/her thoughts turn first to the reflection of interiority, always assuming his/her action without crutches or canes to anchor. For the author the subjective thinker invests in all becoming, omitting the result and avoiding speculation. As well as Gadamer says that the way we experience the world, how we understand the historical traditions, the natural occurrences of our lives and our experience of the world, involve a hermeneutic universe that opens us to the world. It is considered 1 Doutoranda em Filosofia na UNISINOS. Docente da Universidade Cruz Alta. E-mail: [email protected] 2 Doutoranda em Educação da UFSM. Docente da Universidade Cruz Alta. E-mail: [email protected] that both thinkers are grounds for thinking that shed in the grounds to "be ethical" and are widely contribution to thinking distinction of "being ethical" and "ethical knowledge" post-contemporary. Keywords: Comprehension. Existence. Being. Historicity. Introdução “A ética se volta sobre as relações sociais, em primeiro lugar, esquece o céu e se preocupa com a terra, procurando, de alguma maneira, apressar a construção de um mundo mais humano, onde se acentua tradicionalmente o aspecto de justiça econômica, embora esta não seja a única característica deste paraíso buscado.” (VALLS 1997, p. 46 ). A hipótese que norteia esse texto aquela que Gadamer sustenta em seu conjunto de obras, sobretudo em Problema da Consciência Histórica, onde discorre questões fundamentais para se pensar nos aspectos que se referem à ética ao abordar e distinguir “ser ético” e “saber ético”. A proposta desse texto é criar uma aproximação de Gadamer com as argumentações de Kierkegaard em sua obra Pós-Escrito Conclusivo Não-Científico às Migalhas Filosóficas no que se refere à ética e a necessidade do ser “ser ético”. Ao longo da história, sempre existiram normas de comportamento e princípios estabelecidos pela sociedade para regular o ser humano, buscando o respeito, seja o respeito mútuo seja o respeito a si próprio, normas e princípios estes transmitidos para as gerações futuras através da família, do Estado, da religião, das instituições de ensino, entre outros, com o intuito de estabelecer uma determinada ordem. Podemos afirmar que todos estes comportamentos são organizados pela ética. O termo “ética” deriva do grego ethos, que significa caráter, modo de ser de uma pessoa. Segundo os pressupostos aristotélicos, a ética serve para que haja um equilíbrio e um bom funcionamento social. Neste sentido, a ética, embora não possa ser confundida com as leis, está relacionada com o sentimento de justiça social. Do ponto de vista desse estudo a ética se apresenta fecunda por apresentar valores que humanizam nossos atos e ações. A ética, que está diretamente relacionada com o nosso “existir” humano, é discutida pela tradição, e sua visão do bem e do mal no homem no seu processo de “domesticação” é pensada a partir do “ser ético”, considerado um pensador subjetivo que não dá conta somente da instrução, mas também se envolve com o existir. Assim, tanto Kierkegaard como Gadamer apontam contribuições significativas no que se refere à busca da clarificação de uma ética comprometida com os princípios da mundaneidade3. Em Gadamer “para compreender é necessário compreender-se”. Assim, inicio a argumentação com bases nessa paráfrase do autor alemão, levando em consideração que toda ética envolve aspectos pertencentes às leis morais de um conjunto de valores e ideias culturalmente alicerçadas em uma sociedade, embora a compreensão estabeleça uma necessidade primordial, a diferença entre “ser ético” e “saber ético”. O problema posto por Gadamer, com base já no pensamento de Aristóteles4, é, a saber, que sentido se deve dar ao fato de que uma única e mesma mensagem transmitida pela tradição nem sempre é suficiente para com relação aquele que a recebe, assim pensando no que se refere à ética e ao problema do compreender, portanto, como uma aplicação particular de algo geral a uma situação concreta e particular, essa ideia de Kierkegaard de “pensador subjetivo”. Para Kierkegaard o pensador subjetivo não só pensa sua “existência como é o existente”; seu pensamento volta-se antes para a reflexão da interioridade, presumindo sempre sua ação, sem muletas ou bengalas para se ancorar. Para o autor o pensador subjetivo investe tudo no devir, omitindo o resultado e evitando a especulação. A leitura que me proponho é diretamente focada no ser que conduz a ética como um ser ético propondo-se deste seu projeto de vida na ação. Kierkegaard aponta, como base da existência individual, a questão da ética e o ético. Porém acredito ser necessário comentar que para os dois autores a condição da história não dá conta dessa estrutura que forma o ser ético. Seja em Gadamer e sua ideia de que, por mais rica que seja a experiência, ela não é suficiente para fundar um saber ético ou estabelecer uma decisão em conformidade com a moral, porque é ainda sempre indispensável que a consciência oral seja dirigida por um saber 3 “A condição humana da obra é a mundaneidade...”. Revela uma dimensão transcendental que encerra um significado existencial... Hanna Arendt. A Condição Humana. 4 ...a ética de Aristóteles não se interessa pelo problema hermenêutico e menos ainda pela sua dimensão histórica, mas sim pelo exato papel que deve assumir a razão em todo comportamento ético (Gadamer, 1998, p.50).. prévio5, seja em Kierkegaard e a compreensão de que a relação histórica não dá conta da totalidade do “ser ético”, já o autor vê com desconfiança o saber histórico universal, dado que esse facilmente se torna uma armadilha, uma distração estética desmoralizante para o sujeito deste saber, na medida em que a distinção entre aquilo que se torna e aquilo que não se torna histórico é dialético-quantitativa, motivo porque também a distinção ética absoluta entre bem e mal é neutralizada, a distinção entre ser ético e saber ético se caracteriza como fundamental para compreender suas teorias. Gadamer descreve, assim como Aristóteles, que o conhecimento ético6 não é um conhecimento “objetivo”. O conhecimento não se encontra simplesmente diante de uma coisa que se deve constatar; o conhecimento se encontra antecipadamente envolvido e investido por seu “objeto”, isto é, pelo que ele tem que fazer (Gadamer, 1998, p.49). ...o conhecimento do imutável, é um conhecimento fundado na demonstração e, por conseqüência, algo que todos podem “aprender”. Opor a esse conhecimento teórico o conhecimento ético é algo fácil. É evidente que, à luz dessa distinção, as ciências humanas são consideradas “ciências morais”. Seu objeto é o homem e o que ele sabe de si mesmo. Esse saber que o homem tem de si mesmo lhe diz respeito, desde logo, como um ser atuante: portanto não visa, de modo algum, à simples constatação do que é. Pelo contrário, relaciona-se ao que não é sempre como é e que pode também ser diferente do que é neste ou naquele momento. Somente nas coisas que são desse modo Poe a ação humana intervir (Gadamer, 1998, p.50-51). O modo como experimentamos o mundo, a forma como compreendemos as tradições históricas, as ocorrências naturais de nossa existência e de nosso mundo de experiências, envolvem um universo hermenêutico que nos abre para o mundo. A indagação central que percorre considerações acerca da atividade humana de compreender/interpretar, nesse texto se alicerçam em Gadamer, sendo que para ele compreender e a interpretar, apresentam a necessidade de se ir além do método científico, perpassá-lo, reconhecendo estruturas ontológicas, questionando a razão neutra e pontuando a tradição e a historicidade como fio condutor da razão, 5 “Existe, pois, uma correspondência evidente entre o saber ético e o saber técnico” (Gadamer, 1998, p.50). 6 “a distinção estabelecida por Aristóteles entre o saber ético da Phronesis e o conhecimento teórico e ‘cientifico’ da Epistéme é particularmente clara quando lembramos que o ideal das matemáticas que representa a ‘ciência’ aos olhos dos gregos” (Gadamer, 1998, p.50). sendo a experiência e a pré-compreensão (dos pré-conceitos) dois fundamentos imprescindíveis para se pensar uma ética que abarque o movimento circular de construção e desconstrução do compreender e interpretar, levando em consideração que o mundo precisa ser vivido e o ente deve se reconhecer nele. Quanto mais a vida avança, e o existente, por suas obras, se deixa envolver nas teias da vida, tanto mais difícil fica separar o ético do exterior, e tão mais facilmente o [enunciado] metafísico parece ser reforçado, segundo a qual o exterior é o interior, e o interior exterior, cada um inteiramente comensurável com o outro. O ético é também um espelho, e aquele que ali se olha perde decerto alguma coisa, e quanto mais olha para si no ético, tanto mais perde – ou seja, perde todo o incerto, para conquistar o certo. Somente no ético há imortalidade e a vida eterna; entendida de outro modo, a história do mundo talvez seja um drama, uma peça teatral, que talvez continue – mas o espectador morre – passatempo. Assim este estudo se organiza em temas apontados por Gadamer e Kierkegaard que serão separados em dois momentos, no primeiro faço uma retomada de elementos fundamentais que norteiam os estudos de Gadamer no que se refere à compreensão – “compreender requer compreender-se” –, temas que estão diretamente ligados à compreensão/interpretação, Já no segundo momento pontuo aspectos fundamentais da obra Pós-Escrito Conclusivo Não-Científico às Migalhas Filosóficas, de Kierkegaard, no que se refere “a ética ser vivida”. A ÉTICA NA TEIA DA COMPREENSÃO/ INTREPRETAÇÃO NOS PRESSUPOSTOS GADAMERIANOS A questão aqui levantada é que o comportamento ético exige um saber ético que constitui um ser ético. Segundo Gadamer um conhecimento assim constituído poderia ordenar os elementos de um problema ético segundo forças predominantes e fornecer um tipo de apoio à consciência ética, isso implica de imediato um problema moral, e pertence à essência do fenômeno ético que o agente saiba não decidir-se na ação, mas também conhecer a si próprio e compreender como deve agir, e desse encargo não pode jamais desembaraçar-se (Gadamer, 1998, p.57). A compreensão/interpretação possui estruturas próprias, que organizam nosso modo de pensar e agir. Para Gadamer “compreender e interpretar não é tarefa fácil” a interpretação precisa da pré-compreensão para agarrar-se a “coisa” e ser agarrada por ela, essa discussão não lida com sentimentos, mas com a estrutura dinâmica da compreensão, assim a importância de reconhecer a tradição como fio condutor do projeto-prévio, conhecimento prévio, da pré-compreensão, significativos no projetar-se á coisa em si (Gadamer, 2007, p.36). A compreensão nunca está livre de preconceitos, embora a vontade do nosso conhecimento deva sempre buscar escapar de todos os nossos preconceitos. No conjunto da nossa investigação mostrou-se que a certeza proporcionada pelo uso dos métodos científicos não é suficiente para garantir a verdade. O fato de que o ser próprio daquele que conhece também entre em jogo no ato de conhecer marca certamente o limite do “método”, mas não o da ciência (Gadamer, 2006,p.87 ). A compreensão do outro supõe o engajar-se numa causa justa e, através desta, a descoberta de um vínculo com o outro. Esse vinculo se concretiza no fenômeno do “conselho moral”. Compreender é operar uma mediação entre o presente e o passado, é desenvolver em si mesmo toda a série contínua de perspectivas na qual o passado se apresenta e se dirige a nós. A compressão jamais é subjetiva frente a um objeto dado, ou seja, pertence ao ser daquilo que é compreendido (Gadamer, 2007, p. 18). Compreender uma tradição requer sem dúvida, um horizonte histórico. Mas não é verdade que alcançamos esse horizonte deslocando-nos a uma situação histórica. Ao contrário para podemos nos deslocar a uma situação precisamos já sempre possuir um horizonte (Gadamer, 2007, p.403). O conhecimento histórico não pode ser descrito segundo o modelo de um conhecimento objetivista, já que ele mesmo é um processo que possui todas as características de um acontecimento histórico. A compreensão deve ser entendida como um ato da existência, e é portanto um “pro-jeto lançado”. O objetivismo é uma ilusão(Gadamer, 1998, p.57). Ganhar um horizonte significa “Ouvir a voz da coisa” é deixar interpelarse por ela, aprender a ver para além do que está muito próximo, deslocar-se, fazer a abstração de si mesmo, representar-nos numa situação diferente, é no sentir desse deslocar, projetar-se que nos tornamos conscientes da alteridade e passamos a compreender (Gadamer, 2007, p. 403). Na experiência do projetar-se, que se tem à possibilidade de busca a autoconsciência, seja no confronto ou concordância dos projetos-prévios, nesse movimento de entregar-se ao jogo, e dele saímos modificados. Assim a universalidade do aspecto hermenêutico está centrada na compreensão, que não se funda em um ato de transferência, mas na ordem da experiência, entende-se que a função universal do caráter de linguagem no fenômeno hermenêutico possui por si mesmo um significado universal absoluto. Compreender e interpretar se subordinam de uma maneira específica à tradição da linguagem. Mas, o mesmo tempo, ultrapassa essa subordinação, não somente porque todas as criações culturais da humanidade, mesmo as que não pertencem ao âmbito da linguagem, querem ser entendidas desse modo, mas pela razão muito mais fundamental de que tudo o que é compreensível precisa tornar-se acessível à compreensão e à interpretação (Gadamer,2006,p.86 ) . A experiência está muito próxima do conceito do ser em si, e equivale ao conceito grego ontológico entre o que é um ente, segundo sua substância e sua essência, e aquilo que nele pode ser e que é mutável. O que pertence à essência permanente de um ente é, sem dúvida, cognoscível por excelência, isto é, detém sempre uma correspondência prévia com o espírito humano. O que é “em si”, no sentido da ciência moderna, não tem nada a ver com essa diferença ontológica entre essencial e inessencial, mas se determina como conhecimento assegurado, que permite a posse da coisa. As realidades asseguradas são como o objeto e a resistência com os quais deve contar (Gadamer, 2006, p.581). Portanto não significa que adquiramos um tipo de conhecimento científico, nem mesmo um tipo de conhecimento que nos permita “saber melhor para a próxima vez” quando deparamos com uma situação semelhante; antes quer dizer que, por meio do sofrimento, conhecemos as fronteiras da própria existência humana. Aprendemos a compreender a finitude do homem: “a experiência é experiência de finitude”. A experiência, no seu significado mais intimo, ensina-nos a conhecer que não somos senhores do tempo. O homem “experiente” é aquele que conhece os limites de toda a antecipação, a insegurança de todos os planos humanos (Palmer, 2006, p.199). Gadamer (2006) reitera, portanto, que a vinculação de nossa experiência de mundo com a linguagem não significa que uma única perspectiva exclua todas as outras. Igual aos viajantes sempre voltamos para casa com novas experiências e jamais mergulharemos num total esquecimento. Em particular, a pretensão de essa admissão ser absoluta e incondicionada não refuta a admissão desse condicionamento fundamental que, portanto, não pode ser aplicada a si mesma sem entrar em contradição. E não se trata de relações de juízos que devem ser mantidos livres de contradição, mas de relações de vida. A constituição da nossa experiência de mundo estruturada na linguagem está em condições de abarcar as mais diversas relações de vida (2006, p.579). Como comportamento especificamente humano, o ser ético se distingue do ser natural por não se constituir simplesmente como um conjunto de capacidades ou forças operantes. Ao contrário, o homem é um ser que apenas se torna o que é e adquire seus modos de se comportar a partir do que ele faz, a partir do “como” de seu agir (Gadamer, 1998, p.48). Os conhecimentos transmitidos através da instrução, em um trabalho manual, por exemplo, não possuem necessariamente um valor prático superior ao saber adquirido com a prática (Gadamer, 1998, p.50). Gadamer retoma Aristóteles, clarificando que o saber ético é um “saber-para-si”. Desse modo, o saber ético se distingue claramente do comportamento teórico da Epistéme (Gadamer, 1998, p.51). A função da decisão ética consiste então em encontrar, numa situação concreta, o que é justo. Em outros termos, a decisão ética encontra-se ali para “ver” e colocar em ordem tudo o que comporta numa situação concreta (Gadamer, 1998, p.51). Contudo Gadamer comenta o saber ético nem se aprende nem se esquece. Ele não é como o saber de uma profissão que se pode escolher; não se pode recusá-lo e escolher um outro saber. Pois, ao contrário, o sujeito da Phoronesis, o homem, se encontra desde já em “ação numa situação” e, assim, sempre obrigado a possuir um saber ético e a aplicá-lo7 segundo as exigências de sua situação concreta (Gadamer, 1998, p.52). Assim a consciência ética é aquela que, sem dispor previamente de conhecimentos já dados, é necessariamente a única responsável por sua decisões (Gadamer, 1998, p.53). Portanto o “saber-para-si” de que Aristóteles nos fala consiste, segundo Gadamer se desdobra como “saber” na interioridade de uma situação dada. Portanto, é somente em um “saber” do que é atualmente dado que se realiza um saber ético: trata-se, contudo, de um saber que não diz respeito à ordem da intuição sensível (Gadamer, 1998, p.55). A percepção no saber ético não é uma percepção de fatos brutos, desprovidos de significado. Trata-se uma “percepção ética”, em que a situação mostra-se a nós como situação-de-nossaação e à luz do “justo”. Nossa consciência da situação é consciência de um ato que atravessa a situação. Chamamos então de saber ético o que engloba, de modo inteiramente único, o nosso conhecimento dos meios e dos fins e que, desse ponto de vista, se opõe precisamente a um saber puramente técnico. Assim sendo, não há mais nenhum sentido em distinguir entre saber e experiência. Trata-se mesmo de uma forma absolutamente primordial de experiência, em relação à qual todas as outras experiências talvez sejam formas secundárias, não originais (Gadamer, 1998, p.55). O fantástico e fundamental desse estudo é que o “saber-para-si” da reflexão ética implica, efetivamente, uma relação absolutamente notável consigo mesmo. Para Gadamer a par da Phronesis, há o fenômeno da “compreensão”, no sentido da Synesis: modificação intencional do saber ético quando o que está em questão não é um saber “para mim” mas “para o outro” (Gadamer, 1998, p.56). Tal modificação comporta uma apreciação ética, na medida em que, por meio dela, nos colocamos na situação em que o outro deve agir. Aqui também não se trata de um saber em geral, mas sim de uma realização concreta, motivada pela realidade do momento. Além disso, o fato de se “desfrutar de um bom convívio” com alguém só manifesta todo o seu alcance ético no fenômeno da “compreensão”. Compreender o outro, como fenômeno original, não é o simples conhecimento técnico do psicólogo ou a experiência diária que possuem, igualmente, o “malicioso”, o “astucioso” (Gadamer, 1998, p.50). 7 Mas, por essa mesma razão, falar de “aplicação” é algo problemático, já que só se pode aplicar aquilo que já se possui. Ora, o saber ético não é nossa propriedade, como são as coisas de que dispomos e que podemos ou não usar.52 Vimos que a consciência ética é, ao mesmo tempo, saber ético e ser ético. É essa integração do saber à substância da moralidade, é a relação de “pertencimento”, na “educação” ou na “cultura” ( no sentido etimológico),entre a consciência ética e o conhecimento concreto das obrigações e dos fins que nos vão servir de modelo para analisarmos as implicações ontológicas da consciência histórica. No entanto, continua existindo uma diferença característica, a saber, cada “nuance” da percepção das coisas é diferente das demais, excluindo-as, e contribui para construir a “coisa em si” como a continuação dessas nuances, enquanto que cada uma das nuances que se dão nas visões de mundo próprias da linguagem contém potencialmente todas as demais, isto é, cada uma delas pode ampliar a si mesma nas outras. A partir de si mesma, está em condições de compreender e abarcar também a “visão” de mundo que se oferece noutra língua (Gadamer, 2006, p.578). A esta altura desse exposição, parece que o problema com o qual me envolvi foi a tentativa de entender a compreensão Humana a qual está imbricada a ação de um ser ético, pensando em tais considerações o segundo momento será um recorte de Kierkegaard sobre o pensador subjetivo a sua ligação com o ser ético . A ÉTICA COMO ESPELHO DE “SI MESMO” CONSIDERAÇÕES NOS PRESSUPOSTOS KIERKEGAARD Para Aristóteles, o pensamento é o elemento divino no homem e o bem mais precioso. Assim, quem é sábio não carece de muitas outras coisas.” (VALLS ,p. 32). Para Kierkegaard (ano,p.126), “no estudo do ético, todo ser humano é reportado a si mesmo” essa citação me parece tão significativa e remete-a de Gadamer “para compreender é necessário compreender-se”, partindo da ideia do ser “ele próprio é”, sendo suficiente para si mesmo; ele é o único lugar onde ele pode ser. Portanto, em relação à outra pessoa, o ser só pode entender com clareza pelo exterior e, nessa medida, sua opinião já se envolve em questões duvidosas, afirma Kierkegaard. Mas quanto mais complicada for a exterioridade em que a interioridade ética se reflete, mais difícil se tornará a observação, até que por fim ela se extravia no estético. Portanto esse “devir a ser /ser é” aponta o foco inicial da compreensão do ético, que exige uma individualidade verdadeiramente grande, a qual não é externa, mas antes parte do “interior”. No entanto, segundo Kierkegaard, a ética acaba por consumir a vida, embora a ela desenvolva ao extremo de suas capacidades; talvez produzindo um grande efeito no mundo exterior, mas isso não a ocuparia de modo algum, pois saberia que o exterior não está em seu poder. ... o ético não é apenas um saber , ele é também um agir que se relaciona com um saber, e um agir de tal natureza que sua repetição pode, de mais de uma maneira, tornar-se, às vezes, mais difícil do que o primeiro agir.. (Kierkegaard, ,p.152-153) A individualidade é o principio em que tudo começa, ou seja, a “interioridade” é ética, ela se aproxima do histórico-universal8, sendo uma composição não diretamente dialética para o ético, mas envolve o “tu deves, compreendes, tu deves querer o ético, tu deves, compreendes, tu deves te manter entusiasmado” Kierkegaard (ano, p.122). É prudente pensar que o ético é a interioridade, e deve ser visto de fato em sua infinitude, não necessitado de um cenário decorado histórico-universal. Segundo Kierkegaard o sujeito individual é infinitamente importante. Isso porque o individuo toma uma paixão humana qualquer e relaciona-a ao ético em si mesmo, indivíduo: do ponto de vista ético, isso terá grande significado; já do ponto de vista histórico-universal, um significado não tão relevante, ou talvez um significado muito grande, pois o histórico-universal, visto eticamente, entra em cena com um “talvez”. Enquanto aquela relação entre paixão e o ético ocupa ao máximo o indivíduo existente (é isso que o zombeteiro chama de nada e a especulação, especulativamente, ignora, com a ajuda da imanência), a Providência históricouniversal forma talvez um ambiente de reflexão para este indivíduo, por meio do qual sua situação de vida adquire uma importância histórico-mundana de larga abrangência. 8 Conceito caro para Kierkegaard, conceito este no qual tocarei brevemente, por ser amplo e complexo. Por isso o presente trabalho não pretende disseca-lo, mas comentar que o ser ético presume a ideia de “histórico-universal”. Aquele que não capta a validade infinita do ético, mesmo que este tenha a ver só com ele em todo o mundo, não capta propriamente o ético; pois que este tenha a ver com todos os seres humanos é algo que, em certo sentido, nem é da sua conta, a não ser como uma sombra que segue a claridade ética na qual ele vive (Kierkegaard , ano,p.127). Segundo Kierkegaard a resposta ética à questão a respeito do que “eu sou” deva fazer eticamente, volta-se ao ser observador. Para o dinamarquês, o problema não é se erudito ou pensador avulso se ocupa com a história do mundo, mas sim se é toda uma geração que clama pela história universal: Por isso, a concepção da história do mundo facilmente se torna um assombro meio poético, ao invés de uma orientação ética. Por exemplo o juiz não vai pronunciar um juízo ético, mas apenas um juízo civil, em que culpa e mérito se tornam dialéticos por uma consideração quantitativa das maiores ou menores relações das circunstâncias e de uma consideração casual do resultado (Kierkegaard , ano,p.126). Em relação ao passado, é fácil que os sentidos nos iludam e nos faça esquecer, o que pertence ao indivíduo e o que pertence àquela ordem objetiva das coisas, que é o espírito da história do mundo; mas em relação à geração que ora vive, e em relação a cada indivíduo singular, deixar que o ético se torne algo cuja descoberta requer um profeta com um olhar histórico-universal lançado para a história universal: A ética e o ético, por serem a base da existência individual, têm uma exigência irrecusável sobre todo e qualquer indivíduo existente, uma exigência tão irrecusável, que, qualquer coisa que um ser humano realize no mundo, a mais surpreendente, é, de qualquer modo, uma questão duvidosa, se ele tinha ou não clareza do ponto de vista ético, quando ele a escolheu; e se ele esclareceu para si mesmo, a sua escolha. A qualidade ética é coisa de si mesma... (Kierkegaard , ano,p.119). Para Kierkegaard, a ética vê com desconfiança todo saber histórico universal, entendendo que este saber pode ser uma armadilha, uma distração estética desmoralizante para o sujeito deste saber, na medida em que a distinção entre aquilo que se torna e aquilo que não se torna histórico é dialético-quantitativa, motivo pelo qual também a distinção ética absoluta entre bem e mal é neutralizada. Com efeito, o trato constante com o histórico-universal incapacita o indivíduo para o agir. Nas considerações de Kierkegaard uma época e um ser humano podem ser imorais, mas é também imoral aquela tentação de envolver-se demais com o histórico- universal, uma tentação que pode facilmente levar a que se queira ser histórico-universal também na hora em que se deve agir por si mesmo. A ética considera igualmente antiética aquela transição na qual alguém abandona a qualidade ética para experimentar ardentemente, ansiosamente, suas prioridades, não pensando no bem comum. O verdadeiro entusiasmo ético consiste em desejar ir ao extremo das próprias capacidades, mas também, exaltado num gracejo divino, jamais pensar se com isso se vai, ou não, levar a cabo alguma coisa. Tão logo o querer começa a entortar o olhar para resultado, o indivíduo começa a se tornar imoral: a energia do querer fica entorpecida, ou desenvolvida anormalmente num desejo ardente malsão, antiético, mercenário interesseiro; literalmente: viciado em recompensa, mesmo que venha a realizar algo de grandioso, não o realiza eticamente; o indivíduo quer algo que é diferente do que é justamente o ético (Kierkegaard , ano,p.120 ). O ético, como o absoluto, é infinitamente válido em si mesmo, e não precisa de cenário decorado para se dar uma melhor aparência. Mas tal cenário decorado duvidoso (quando não é um olhar de um onisciente, mas um olhar de um ser humano, o que deve visualizar), é exatamente o histórico-universal, onde o ético, tal como a natureza, de acordo com as palavras do poeta, serve servilmente à lei da gravidade, já que a diferença da quantidade é também uma lei de gravidade. Mas mesmo que o indivíduo observador não esteja desmoralizado desse modo, se o ético for, ainda assim, confundido com o histórico-universal, de forma que se transforme em alguma outra coisa por conceber milhões em vez de ter a ver com um só, outra confusão facilmente surge, a saber, que o ético só encontraria sua concreção no histórico-universal, e que só nesta concreção estaria a tarefa para os viventes. O ético é a única certeza, concentrar-se nela é o único saber que no momento derradeiro não se transforma numa hipótese, estar nela é o único saber garantido, onde o saber é garantido por alguma outra coisa. Querer estar eticamente envolvido com a história do mundo é um mal-entendido ético, do qual a verdadeira ciência não se faz jamais culpada. Mas enquanto em toda parte se faz pouco caso do ético, o que a vida ensina? Tal como eram poucos os amantes, tal como os crentes eram poucos, assim também, verdadeiras individualidades éticas são, talvez, poucas. Quem se expressa no ético, mantenha-se; uma individualidade para quem o tempo não se interpôs, como uma eternidade, entre ela e aquela impressão eterna recordada, mas para quem mesmo a mais longa das vidas, comparada à presença poderosa daquela eternidade, não é mais do que o dia de ontem; uma individualidade (evitemos falar à maneira estética, como se o ético fosse uma feliz genialidade). O ético só pode ser compreendido em si mesmo, por ser abstrato, embora seja, em outro sentido, concreto, por ser dialético, convergir num meio termo dos homens, mesmo sendo estes indivíduos particulares. CONSIDERAÇÕES FINAIS A ética é a arte que consiste em ser entusiasmada Kierkegaard A sociedade contemporânea passou a viver de maneira tão distorcida seus princípios morais anteriormente vividos e respeitados, que hoje a ética passa a ser tema imprescindível em discussões sobre a sociedade, principalmente quando se trata da moral capitalista, onde cada vez mais pessoas se dispõem a tudo em busca de alcançar objetivos financeiros e acentuar o consumismo de toda uma sociedade, sem preocupar-se com as consequências destes comportamentos exagerados. Assim, ao observar toda a trajetória que a moral e a ética perpassaram ao longo da história, considera-se a necessidade de se retomar alguns apontamentos de Gadamer e Kierkegaard. Apesar de distantes cronologicamente, sua intencionalidade em muitos momentos convergem no que diz respeito ao ser ético, da necessidade de um “existir eticamente”. Como apontei no inicio do texto, o conceito de compreensão é caro para Gadamer; para que haja compreensão, é preciso compreender o ser ético em jogo, bem como Kierkegaard, reconhece o “ser ético” como a mais alta tarefa atribuída a qualquer ser humano, ao atentar para a exigência de que se tenha compreendido a si mesmo eticamente, antes de se dedicar à sua área de estudo, que continue a compreender a si mesmo eticamente durante todo seu trabalho, porque o ético é a respiração eterna e, em meio à solidão, a comunhão reconciliadora com todo ser humano, como reforça dinamarquês. o A palavra Ética representa algo que tem inúmeras significações. È um vocábulo que permite ser interpretado de acordo com a cultura da região na qual é invocada. Quando as pessoas passaram a viver em comunidades, necessitaram de um conjunto de crenças, princípios, regras que norteiam o comportamento humano, a moral é o campo em que dominam os valores relacionados ao bem e ao mal, como aquilo que deve ser buscado ou de que se deve afastar. O conteúdo dessas noções ganha concretude no interior de cada contexto social específico e varia enormemente de sociedade para sociedade, de cultura para cultura, em cada situação concreta, intervêm interesses, estabelecem-se poderes, emergem conflitos. A ética está acima da moralidade. Sua reflexão é a reflexão a respeito da moralidade, é a reflexão crítica sobre a moralidade. Ela não tem um caráter normativo, pois, ao fazer uma reflexão ética, pergunta-se sobre a consistência e a coerência dos valores que norteiam as ações, busca-se esclarecer e questionar os princípios que orientam essas ações, para que elas tenham significado autêntico nas relações. Há uma multiplicidade de doutrinas morais que, pelo fato de serem históricas, refletem as circunstâncias em que são criadas ou em que ganham prestígio. Assim, são encontradas doutrinas morais cujos princípios procuram fundamentar-se na natureza, na religião, na ciência, na utilidade prática. Assim como a cultura varia, as normas culturais também. Dessa forma a sociedade se estrutura de forma diferente. Os valores diferem de sociedade para sociedade. Até mesmo uma mesma sociedade pode ter valores diferentes fundamentando interesses diversos. No cotidiano estão sempre presentes valores diferenciados, e a diversidade pode levar, sem dúvida, à situações de conflito. Longe de querer dissolver esses conflitos, impondo uma harmonia postiça, é importante que se instale a atitude problematizadora. O que é preciso considerar, sempre, é que não existem normas acabadas, regras definitivamente consagradas. A moral sofre transformações, principalmente quando submetida à reflexão realizada pela ética. A distinção que se faz contemporaneamente entre ética e moral tem a intenção de salientar o caráter crítico da reflexão, que permite um distanciamento da ação, para analisá-la constantemente e reformulá-la, sempre que necessário. Por ser reflexiva, a ética tem, sem dúvida, um caráter teórico. Isso não significa, entretanto, que seja abstrata, metafísica, deslocada das ações concretas. Não se realiza o gesto da reflexão por mera vontade de fazer um “exercício de crítica”. A crítica é provocada, estimulada, por problemas, questões-limites que se enfrentam no cotidiano das práticas. A reflexão ética só tem possibilidade de se realizar exatamente porque se encontra estreitamente articulada a essas ações, nos diversos contextos sociais. É nessa medida que se pode afirmar que a prática cotidiana transita continuamente no terreno da moral, tendo seu caminho iluminado pelo recurso à ética. As pessoas são produtos da sociedade. Se transformando de acordo com os preceitos e os valores impostos. Muitas são as instituições responsáveis pela educação moral dos indivíduos, a igreja, a família, a política, o Estado e a família. É preciso deixar claro que ela não deve ser considerada onipotente, única instituição social capaz de educar moralmente as novas gerações. Também não se pode pensar que a escola garanta total sucesso em seu trabalho de formação. Na verdade, seu poder é limitado. Todavia, tal diagnóstico não justifica uma deserção. Mesmo com limitações, a escola participa da formação moral de seus alunos. Valores e regras são transmitidos pelos professores, pelos livros didáticos, pela organização institucional, pela forma de avaliação, pelos comportamentos dos próprios alunos. Assim, em vez de deixá-las ocultas, é melhor que tais questões recebam tratamento explícito, que sejam assuntos de reflexão da escola como um todo, e não apenas de cada professor. Daí a proposta da presença da Ética na organização curricular. Referências GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 2008. ______Verdade e Método II. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes; ______ O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007a.2000. Johnannes Climacus, editado por S. Kierkegaard- Pós-Escrito Conclusivo Não-Científico ÀS Migalhas Filosóficas - coletânea mímico-patético-dialética, contribuição existencial, tradução em andamento por Álvaro L. M. Valls E Marilia M. de Almeida-2012_loyola. PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70,2006. VALLS, Álvaro. O que é Ética. São Paulo: Brasiliense, 1991.