document - Filipe Carreira da Silva

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5.5-Justiçaeequidade
In:
40AnosdePolíticasdeJustiçaemPortugal.Organizadores:MariadeLurdes
Rodrigues,NunoGaroupa,PedroMagalhães,AlexandraLeitão,Conceição
Gomes.Coimbra:Almedina,2016.
Estecapítulopropõe-sediscutirjustiçaeequidadedaperspectivadoimpactoda
constitucionalizaçãodedireitossociaissobreapercepçãocolectivadaequidade
emPortugal.Paratanto,discutir-se-ãoosdireitossociaisemdoismomentos
diversos:poralturadasuaconstitucionalização,entre1975e1976,equarenta
anosdepois,norescaldodagrandecrisefinanceirade2008edoresgate
financeirode2011.Aligarestesdoismomentosencontra-seumconceito:
“consciênciajurídica”,ou,sesepreferir,“consciênciasocialdosdireitos”.Aideia
ésimpleseintuitiva:osdireitossociais,aexemplodosdemaistiposdedireitos,
nãosãoumamerarealidadejurídica-formal;sãotambém,efundamentalmente,
umarealidadenormativapresentenaconsciênciasocialdacomunidade,sendo,
porconseguinte,passíveisdeseranalisadospelasciênciassociaisdestamaneira.
Quandosevoltaaatençãoparaaformacomooentendimentodosdireitos
circulanasrelaçõessociais–paraaquiloquediferentesagentesdizemsobree
fazemcomessesdireitos–entra-senodomíniodopoderinerenteàsformações
discursivas(Foucault2005).Oestudodaconsciêncialegalé,porisso,tambémo
estudodasformasdeinterpretaçãoatravésdasquaisdiferentesactoressustêm,
reproduzemoudesafiamestruturasdesignificadodaleiquesepodemter
tornadohegemónicas(EwickeSilbey1998).Istoporque,umavez
institucionalizados,taissignificadosfacilmentesetornampartedossistemas
materiaisediscursivosque,aumtempo,possibilitamelimitamaproduçãode
significadofutura.Talfactoapontaparaasdificuldadesenfrentadasporleituras
“originalistas”daConstituiçãoedosdireitossociaisnelapresentes.Estasapelam
tipicamenteàrecuperaçãodosignificadodaConstituiçãotalcomoestabelecido
pelosseusobreirosoupela“letradalei”(porcontraposiçãoàideiadeuma
Constituiçãoviva,queevolui,esetransforma,emrespostaaocontexto).
Subjacenteaesteapeloencontra-se,porvezes,umoutro:àobjectividadedeuma
talinterpretação,comoalgonecessárioaoEstadodeDireitoeaoimpériodalei,
contrapostoaoimpériodoshomens(edosseusgovernos).Contudo,aspalavras,
inclusiveaspalavrasquefazemalei,designamconceitos,etodososconceitos
são,pornatureza,contestáveis.Maisdoqueumaherançainquestionável
resultantedeumconsenso(ouacordo“impoluto”),alei–todaalei–éfrutode
compromissoshistoricamentecontingentes,quenosfalamamúltiplasvozes,e
comosquaisacomunicação(maisparitáriadoquedeferencial)nãodeveser
cortada.Aquestãoacolocarnãoé,pois,adesaberqueentendimentodaleinos
devegovernar–odelesouonosso–masantesqueentendimentodalei–ou,por
vezes,mesmoquelei–melhorseajustaànossarealidade–istoé,aosproblemas
edesafios,talcomoosenfrentamos.Esperarquea“lei”nosdêaresposta,eque
estasesitueacimadoconflitopolítico-partidário,éconvivermalcomavidaem
democracia.
Oargumentoaquiprosseguidoéapresentadoemtrêssecções.Na
primeira,apresenta-seumadefiniçãosumáriadoquesãodireitossociais.Na
segunda,discute-seoseuprocessodeconstitucionalizaçãoemPortugalem
1975-76econsideram-seassuasimplicaçõesqueraoníveldaconstruçãodeum
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Estado-Providência,querdopontodevistadodesenvolvimentodeumacultura
políticaemquealinguagemdos“direitos”veioaadquirirumpapeldestacado.
Naterceiraeúltimasecção,apresentam-seosresultadosdeumestudorecente
sobreoimpactodacrisefinanceiraeeconómicade2008-2013sobreasatitudes
sociaisdosportuguesesperanteoEstado-Providência(Vieira,SilvaePereira
2016),comparticulardestaqueparaopapeldosdireitossociais.
1.OQUESÃODIREITOSSOCIAIS?
Nestaprimeirasecção,apresentamosdeformasucintaonossoentendimentodo
quesãodireitossociais,ecomosepodemestudar.Juridicamente,osdireitos
económicos,sociaiseculturais(vulgo,direitossociais)definem-secomo
garantiasoubenefíciosemmatérialaboral,segurançasocial,saúde,eeducação
cujostitularessãotodososcidadãosecujarealizaçãoincumbeaoEstado(CRP,
TítuloIII).Esteentendimentoformalnãoesgota,todavia,todasasformasde
manifestaçãodosdireitossociais.Atente-senocaso,porexemplo,dodireitoà
protecçãonasaúde.Terodireitoàprotecçãonasaúdenãoquerdizerteralgono
mesmosentidoqueterumcarroouumtelemóvel.Significaantesentrarnuma
relaçãocomosdemaiscidadãoseentrenós,cidadãos,eoEstado.Umarelaçãoda
qualtemosconsciência(Silva2013).Claroquepodemosestartãocientesdos
direitosquenostiramcomodaquelesdequeusufruímos,ouaindadaquelesque
gostaríamosdetermasnãotemos:emtodoocaso,aconsciênciadosdireitosé
umadimensãofulcraldoqueestessignificam.Nestesentido,osdireitossociais–
comoosdireitoscivisouosdireitospolíticos–sãoumarelaçãoquenosajudaa
constituirenquantocidadãos.Éistoquesequerdizerquandousamosa
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expressão“cidadãostitularesdedireitos”–indivíduosquesetornamcidadãos
namedidaemqueimaginam,conquistamegozamdedireitoscivis,políticos,
sociais.Emboranaoseesgotenoseuregimededireito,umpovotorna-seuma
comunidadepolíticanosentidomodernodotermo–i.e.autónoma,democrática,
igualitária–namedidaemqueasrelaçõesentreosseusmembros(eentreestes
eoEstado)assentemnumregimededireitosemqueestessereconhecem
mutuamente.Chamaraalgo“direito”éalgoplenodeconsequências:“aforma
comodamosnomesàscoisaseasdiscutimosmoldaosnossossentimentos,
juízos,escolhas,eacções,incluindoasnossasacçõespolíticas”(Glendon,1991:
13).Porconseguinte,afirmaralgocomoumdireitonãosetrataapenasuma
descrição,masantesdeumaactividade,dodesempenhodeumaaçãoembusca
decertosefeitos–pôrfimaumadiscussão,obterreconhecimento,acederaum
benefício,etc.(Zivi2012).Talcomoodireitodevotoganhaexpressãoe
significadoquandooexercemos(ouescolhemosnãoexercer),osdireitossociais
contribuemparanosconstituirenquantocidadãosnamedidaemquedão
origemadeterminadosauto-entendimentoseformasdecontestaçãopolítica,
mastambémnamedidaemquedãoorigema,ouganhamexpressãoatravésde,
instituiçõescomoumServiçoNacionaldeSaúde(SNS),umsistemadesegurança
social,ouumsistemanacionaldeeducação,quenosconstituemindividuale
colectivamentedeumacertaforma.Aestearranjoinstitucionalchamamos,
comummente,“EstadoSocial”.
DiscutiroEstadoSocialédiscutiralgoqueétransversalànossarelação
enquantocidadãos,queganham,mastambémsacrificamalgo,nosistemade
cooperaçãoorganizadopeloEstado.Diferentesgeraçõesdeportuguesesestão
implicadasesãodirectaouindirectamenteafectadaspelaformacomose
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estrutura,epelaformacomofunciona,onossoEstado-Providência:daspensões
dereformaeinvalidezqueosmaisvelhosusufruem,aosserviçosdesaúdeaque
todosrecorrem,aosistemadeeducaçãoqueosmaisnovosfrequentam.Épois
corretaaexpressãodequeoEstadoSocialnosacompanha“doberçoàcova”.Um
Estadosocialuniversalesolidáriorege-sepelaideiadequeosdestinosde
pobres,classemédiaericossedevementrecruzarnasfunçõessociaisdoEstado:
quercomocontribuintes,quercomobeneficiários.Emcadaumasdascategorias
anaturezado“demos”queparaelacontaédiversificada:contribuintese
beneficiáriosnãosãonecessariamente“cidadãos”.São,defacto,milharesos
imigrantesque,apesardenãopossuíremcidadaniaportuguesa,são
contribuintesactivosparaanossasegurançasocialebeneficiam,aindaquenem
sempredeformaplena,dosserviçosdesaúdedisponibilizadospeloEstado.A
basedesustentaçãodoEstadosocialpodeaindasermaisalargada.Comoocaso
daintervençãoexternadatroikaveiopôradescoberto,ofinanciamentodo
nossoEstado-Providêncianãoéhojeindependentedosfluxosfinanceirosque
noschegamdoestrangeironaformadeonerososempréstimos.
TãopróximaéhojearelaçãoentreoEstadosocialealegitimidadedo
Estadoedoregimequenoscustaimaginarumtempoemqueasrazõesde
Estadoforamprosseguidasdecostasvoltadas–ou,pelomenos,semi-voltadas–
paraaspolíticassociais.1Noentanto,aassociaçãodajustiçaeequidadesociaisa
direitossociaisinstitucionalmentegarantidosporumEstado-Providência
1Recorde-sequeasorigensdoEstadosocial,sobretudonamãodereformistasconservadores
comoOttovonBismarckouvonTaffe,nãosãoinocenteseestãoassociadasàpromoçãodo
controloeestratificaçãosociais.TambémemPortugal,aextensãodarededeapoiosocialcom
MarceloCaetanoobedeceuafinslegitimizadores.ComoMaxWebernota,apropósitodas
políticassociais,“ofimabsolutodoEstadoésalvaguardar(oumudar)adistribuiçãointernae
externadopoder”(Weber1946:334).
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universalista,geral,unificadoetendencialmentegratuito,é,nonossopaís,fruto
deumimagináriopolíticorecenteedistintamentedemocrático.
2.ASORIGENSDOSDIREITOSSOCIAISNACONSTITUIÇÃO
Oanode1975éusualmentevistopelaliteraturaespecializadacomooanoque
marcaofimdequaseumséculodecrescimentodoEstado-Providênciaeoinício
dalutapolítico-ideológicaemtornodoseudesmantelamento.Pelocontrário,em
Portugal,osanosde1975-6foramaquelesemqueseredigiueaprovouanova
Constituição,porsinalentreasmaisgenerosasdomundonoquedizrespeitoao
catálogodedireitossociaisnelaconsagradoscomodireitosfundamentais(Vieira
eSilva2010).Assimsendo,ademocracianasceeconsolida-seentrenóscomo
umapromessadeigualdadepolítica,mastambémsocialeeconómica,um
objectivoparaoqualaconstruçãodeumEstado-Providênciaeratidapor
essencial.Paraasuaconstrução,contribuíramideologiasvárias,eamiúde
conflituantes,desdeosocialismodemocráticodoPartidoSocialista,partidoque
dominouostrabalhosconstituintes,adoutrinasocialdaIgrejaeopersonalismo
dospartidosmaisàdireita,aomarxismodospartidosmaisàesquerda
(apologistasdos“direitossociais”enquantoconquistasdaclassetrabalhadora,
mascépticosquantoaoseuefeitoideologicamentemistificadorereprodutordo
sistemacapitalista).É,pois,nãosóemrupturacomaditadura,mascomuma
geraçãodediferençafaceaorestodaEuropaedospaísesmaisindustrializadose
porviadeumcompromissopolítico-ideológicoporvezestenso,quenós
encetámosaconstruçãodonossoEstadoSocial.QuandonaEuropasecomeçaa
questionarestemodelo,emPortugaldão-seosprimeirospassosnasua
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implementação.Ésintomáticoque,porexemplo,onossoServiçoNacionalde
Saúdenasçaem1979,omesmoanoemque,emInglaterra,MargaretThatcheré
eleitaparaliderarumgovernocujoobjectivodeclaradoéoderompercomo
supostonannystatedopós-guerra.
EmPortugal,asdécadasseguintesforammarcadaspelaprogressiva
implementaçãodoEstado-Providência,numprocessomarcadoporumforte
consensoquantoàimportânciadomesmoparaalegitimidadedonovoregime.O
seuimpactonasociedadeportuguesafoitremendo,possibilitandopelaprimeira
veznahistóriadonossopaísoacessouniversal(aindaquegradual)aserviçosde
saúde,educaçãoesegurançasocialatodaapopulação,independentementeda
suaprofissãoouposses.Naliteraturacomparativista,porém,onossoEstado
Socialapareceaumaluzmenospositiva.Relativamenterecenteepouco
desenvolvido,osseusefeitosredistributivossãovistoscomobaixosquando
comparadosaosrestantespaísesdaOCDE.Oseudesenhoinstitucionalétidopor
perpetuaralgunsesquemasdeprotecçãosocialanteriores,dependor
corporativista,criadospeloregimedeSalazareCaetano.Igualmentesalientadaé
autilizaçãodosistemaparagarantirumabaseeleitoraleredespolíticas
clientelares(ondeseincluempartidos,sindicatos,ordensprofissionais,eoutros
gruposdeinteresse),interagindocomumaparelhodeEstadorelativamente
fracoevulnerável(Ferrera1996).
Maisoumenoscontroversas,estascaracterísticasinstitucionaisquea
literaturatendeasalientarcontamapenaspartedahistória.Aoutrapartetema
vercomaformacomoaspessoaspercepcionamoEstadoSocialeosdireitos
sociaisqueselheencontramassociados.Istoremete-nosparaanoçãode
“culturapolítica”(Silva,ClarkeVieira2015),nosentidodeumaconstelaçãode
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crençaserepresentaçõescolectivassobreodomíniopolíticoquetemorigem,em
largamedida,nopróprioprocessopolítico-eleitoraldelutapelopoder.Noque
dizrespeitoaosdireitossociais,aculturapolíticaquesedesenvolveudesdeo25
deAbrilsaiucaracterizadaporumnotávelconsensoentreasdiferentesforças
partidárias,numaprimeirafase,emtornodasuaefectivaçãoeexpansãoe,mais
recentemente,sobretudoàesquerda,emtornodasuadefesacontraoquesão
tidasporameaçasàsuasobrevivência,internaseexternas.Aomesmotempoque
istosucedia,tornou-sepoliticamentedifícileeleitoralmentecustosodiscutiros
direitossociais.Oresultadofoiaemergênciadeumaespéciede“gagrule”,que
impunha,econtinuaaimpor,limitesmuitoestritosaodebatepolíticosobre
direitossociaisemPortugal:umacríticademocráticaaoEstadosocialétida
comoumacontradiçãonosprópriostermos.Senoutrospaísesécomum
questionar-seabertamenteaarquitecturadoEstadosocial,aconcepçãode
justiçaquelhesubjazeasuacapacidadeparaarealizar,quemdevemserosseus
titularesprioritários,ouassuasfontesdefinanciamento,quetipodepolíticaso
robustecemoudebilitam,entrenóstaisquestõessãoprontamente
desclassificadascomoumataqueaosfundamentosdanossademocracia.Com
efeito,emPortugal,ademocraciaconstituiu-se,econtinuaadefinir-se,paraa
maioriadosportugueses,emtermosdosbenefíciossociaisqueécapaz(ounão)
degarantir,enãotantoemtermosderegraseprocedimentosabstractoscomo
eleiçõeslivreseperiódicas.Masestavisãosubstantivadademocracianão
justifica–anãoserportacticismo–osilenciamentoouotecnicismoaquea
discussãodoEstadosocialéfrequentementevotada.Seestaspolíticassão
constitutivasdonossocontratodemocrático,epartecentraltambémdecomoo
poderdeEstadoseexerce,oaprofundamentodanossademocraciaassenta,
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necessariamente,nasuatematizaçãoediscussãocolectiva(Habermas1992:
329-87).
Estaétantomaisurgentequantoseassisteaumcrescente
desalinhamentoentreaspromessasinscritasnaConstituiçãoemmatériasociale
arealidadesócio-económicaqueopaísenfrenta.Numexemploirónicodas
consequênciasinesperadaseindesejadasdaacçãopolítica,emcertamedidatal
desalinhamentoverifica-seemresultadoda,enãoapesarda,implementaçãodos
direitossociais,nostermosacordadosporváriasforçaspolíticas.Comefeito,por
exemplo,aslongascarreirascontributivasdasgeraçõesmaisvelhassão
recompensadascompensõesdereformagenerosasesemteto,cujo
financiamentodependeemgrandepartedascontribuiçõesdasgeraçõesmais
novasdetrabalhadores,cujascarreirascontributivassão,
desproporcionadamente,marcadaspeladescontinuidadeeprecariedade.Se
questionarumatalaparenteinjustiçainter-geracionaléanátemaentrenós,não
otemsidoemmuitospaíseseuropeus,ondeseefectuaramreformasvastasno
sistemadepensões,porformaaadequá-lasaoclimadeausteridadefinanceirae
denovosriscossociais.Umacrescenteliteraturatem-sedebruçadosobreas
consequênciasda“dualização”dassociedadespós-industriais,cadavezmais
divididasentreaquelescomsituaçõeslaboraisestáveis(oschamados“labour
marketinsiders”)eaquelesousemempregoouemsituaçãoprecária(“labour
marketoutsiders”),esobreascondiçõesquepresidemàcapacidadepolíticapara
lidarcomelas(paraoscasosdaFrança,AlemanhaeSuíça,veja-seHäusermann
2010).
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3.ÀESPERADEGODOT?PRECARIEDADE,DIREITOSEESTADO-PROVIDÊNCIA
EMTEMPOSDECRISE
SendoPortugalumpaísfortementedualizado,etendoaopiniãopúblicaum
papelimportantenasustentaçãodepolíticaspúblicas,aquestãoimpõe-sede
saberseasatitudesepreferênciasdoschamados“outsiders”diferemdasdos
chamados“insiders”nonossopaís.Notratamentodestaquestão,onossoponto
departidafoiacrisefinanceirade2008,eaconsequentecriseeconómicae
socialqueafectouonossopaísnasequênciadopedidodeajudaexternaemAbril
de2011(Vieira,SilvaePereira,2016).Talpedidoveioassociadoaum
MemorandodeEntendimento,quepreviaumconjuntodereformasprofundas
quantoàsfunçõessociaisdoEstadoportuguêspercepcionadaspelatroikade
credorescomoumdosentravesaodesenvolvimentoeconómicofinanceiramente
sustentável.Asconsequênciassociaisdaaplicaçãodopacotedereformas
previstonoMemorandoforamsignificativas,comaeconomiaportuguesaa
sofrerumretrocessosemparalelodesdeo25deAbril,umaforteemigraçãopara
aEuropaepaíseslusófonos,eodesempregoaalcançarníveishistoricamente
elevados.Onossoprojectoprocurouestudar,primeiro,seadiferençaquantoà
naturezadasituaçãoperanteotrabalhoerelevanteparaaformacomose
concebemeseposicionaperanteosdireitossociaiseoEstado-Providência,e,
casoissoseverificasse,seacriseteriatidoumefeitodiferentesobreasatitudes
epreferênciasdeunseoutros,levando,porexemplo,aumdesencantodos
portuguesescomsituaçõeslaboraismaisinstáveis(oschamados“outsiders”)
comumsistemadesenhadoparabeneficiareprotegersobretudo“insiders”.Para
tanto,comparámosasatitudesdosPortuguesesfaceaoEstado-Providênciaentre
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20082e2013,3istoé,antesedepoisdacrise.Demodoasimplificaraleitura,
iremossumariarosnossosresultados,reenviandooleitorinteressadoemmais
detalhesparaoartigo“WaitingforGodot?WelfareAttitudesinPortugalBefore
andAftertheFinancialCrisis”.
OnossoestudodemonstraqueasatitudesrelativamenteaoEstado-
Providênciasealteraramcomacriseeconómica.Porém,estamudançaocorreu
porvezesdeformadiscrepantedoqueseesperariafaceàsexplicações
dominantesnaliteratura(Taylor-Gooby2001).Salientamostrêsresultados.
Emprimeirolugar,etalcomoesperado,oapoioàintervençãodoEstado
emmatériadeassistênciasocialaumentounorescaldodacrise.Esteapoioveio
acompanhado,emboranãosejaexplicado,porumaviragemideológicaà
esquerdaporpartedageneralidadedapopulação.Poroutrolado,a
disponibilidadeparapagarmaisimpostosparafazerfrenteàsdificuldadesnão
aumentou.Estesresultadosverificam-sequerparainsiders,querparaoutsiders.
Há,porém,diferenças.Se,porumlado,ambososgruposrejeitampagarmais
impostos,poroutro,quantomaisprecáriaéasituaçãodoinquiridomais
pronunciadoéoapoioàintervençãodoEstado.Esteresultadoparececonfirmar
ahipótesedequepartedasatitudessociaisseexplicampelointeressepróprio:
maiororisco,maiortambémoapoioàintervençãodoEstadoqueopossa
minorar.
Emsegundolugar,osnossosresultadosmostramquesepassarmosde
umapoiogenéricoaoEstado-Providênciaparaaconsideraçãodepolíticas
2Módulosobre“WelfareAttitudesinaChangingEurope”,2008FourthRoundEuropeanSocial
Survey(ESS).Aamostradapopulaçãoportuguesafoide2,367inquiridos.
3EstesegundoinquéritoporquestionárioreplicapartesdomódulodoESS2008,aque
acrescentaquestõesquerdeinquéritosanteriores(ISSP2004),quernovasquestões.Éocasoda
bateriadeperguntassobre“consciênciajurídica”.Aamostrafoide1,258inquiridos.
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sociaisconcretas,vemosinsiderseoutsidersadesejaremcoisasdiferentes.Ao
contráriodoprevistopelaliteratura,noentanto,osnossosoutsiderspreferem
políticassociaisproporcionais,emvezderedistributivas,emáreascomoas
pensõesdereformaouosubsídiodedesemprego(HäusermanneSchwander
2009:14).Poroutraspalavras,osoutsidersapoiampolíticasquenãoaquelas
que,emprincípio,maisdirectamenteosbeneficiariam.Umapossívelexplicação
paraesteresultadoalgoinesperadoéateoriadajustificaçãodosistema(Jost,
BanajiieNosek2004),segundoaqualavontadedosoutsidersemdefendere
justificarostatusquopodesermaisimportantedoqueoseuinteressepróprio.
Todavia,naquelaqueéanossaterceiraconclusãodignadenota,os
nossosresultadosparecemsugeriranecessidadedeumaoutraexplicação.Mais
doquetereminteriorizadoadesigualdadeeteremreduzidoadissonância
ideológicafaceaosistemadominante,averdadeéque,segundoonossoestudo,
osoutsidersdesejamveradesigualdadediminuiratravésdaacçãodoEstadoe
políticasigualitáriasdeesquerda.Istosugerequeaspreferênciasdosoutsiders
podemserexplicadasdoutraforma,nomeadamentepelaadesãoaum
determinadoquadrodevaloreseaumaconcepçãoespecíficadedireitossociais
–nãocomodireitosnaturais,masenquantoconquistas,alcançadasem
circunstânciashistóricasconcretas,cujostermosdeimplementação,acordados
comoEstado,devemserrespeitados.Anossaanáliseàconsciênciadosdireitos
deinsiderseoutsidersdemonstraissomesmo:queosoutsiderstêmumavisão
mais“originalista”emenos“tacticista”destesdireitos.
Subjacenteatalexplicaçãoencontra-seanecessidadedesepassardeuma
concepçãodeinteressesepreferênciascomosendodefinidosapriorideforma
exógenaparaaideiadequeasidentidadeseosinteressescolectivostêmorigem
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noprópriodebatepolítico;maisconcretamente,numaculturapolítica
caracterizada,porumlado,pelaparcarepresentaçãopolíticadosoutsidersedos
seusinteresses,e,poroutro,porumacertaforma,praticamentehegemónica,de
pensaracidadaniademocrática.Estaancora-senaideiadeumpactooriginal
comoEstado-Providênciatalcomoesteseinstitucionalizouentrenós,quenão
podeserincumprido,sobpenadefazerdesmoronaraprópriademocracia.
QuandocomparadocomospaísesdaOCDE,Portugaldistingue-sepela
combinaçãoentreumelevadograudeprotecçãonoempregoeumagrande
dualização(ousegmentação)domercadodetrabalho.Éistoqueexplicaque,
apesardopronunciadoaumentododesempregoedaprecariedadelaboralentre
2008e2013,osinsiderstenhamcontinuadoabeneficiaremlargamedidadessa
proteção,incluindoosbenefíciossociaisqueselhetornaraminerentesecujo
financiamentoéasseguradoporumacombinaçãodeimpostosecontribuições.É
importantenãoperderdevistaopodergenerativodaspolíticassociais.As
políticassociaisdesempenhamumpapelmuitosignificativonaconstruçãode
identidadeseinteressescolectivos,ajudandoatransformargruposdeindivíduos
emclientelaspolíticascominteressesbemdefinidos,ou,omesmoédizer,
categoriasdemográficaseprofissionaisemforçaspolíticas.Desdeainstauração
dademocraciaemPortugal,edaconstruçãodasbasesjurídico-políticasdonosso
Estado-Providência,queospartidospolíticosfizeramdosinsidersumadassuas
principaisclientelaseleitorais.Emresultadodisto,osinsiderstomaram
consciênciadosseusinteresses,consolidaramapercepçãodequelhessão
devidoscertosbenefícioseprotecções,efizeramusodoseudireitodevotopara
osproteger.
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Osresultadosobtidosreflectemisto:confrontadoscomumacrise
económicaprofunda,osinsiders,quesãogeralmentemaisreflexivossobreos
trade-offssubjacentesaosdireitossociais,viraramàesquerda,cujoprincipal
objectivoemtermosdepolíticasocialcontinuaaserpreservareexpandiras
protecçõesdosinsiders,aomesmotempoquesemantiveramunidosnadefesa
daspolíticassociaisqueasseguramprioritariamenteosinteressesdosinsiders,
comoéocasodeumasegurançasocialquepremeiaoempregocontínuoeuma
longacarreiracontributiva.Emcontrapartida,osoutsiders,quecontinuamno
geralórfãosderepresentação,permanecemumgrupomuitomaisfragmentado,
difícildedefinircomrigor,ecomumaposiçãopolíticaincerta,invisívelparasi
próprioseporarticularpelosagentespolíticos.Arepresentaçãodemocráticade
unseoutroséassimétrica,oqueéreforçado,nalgunscasos,pelaformacomoas
políticassociaissãodefinidas.Porexemplo,ascondiçõesimpostasaquem
recorreaosubsídiodedesempregoestigmatizamcertosgruposdeoutsiders
(nestecaso,osdesempregados)detalformaquequalquerlutapordireitos
carecedosujeitoqueaconsigaenunciarnapraçapública.Nãoé,pois,de
estranharqueashipótesesquesublinhamointeresseprópriotenhamsido
invalidadaspelonossoestudo.Apesardeseposicionaremmaisàesquerdado
queosinsiders,osoutsidersportuguesessubscrevemomesmoentendimento
históricodosdireitossociaisquelegitimaasposiçõesdosinsiders,acabandopor
preferirpolíticassociaiscontributivasque,àpartida,beneficiamsobretudoestes
últimos.
Seriaumerro,pensamos,reduziristoaumaquestãode“falsa
consciência”.Parece-nosnecessáriomobilizarumaexplicaçãomaiscomplexa,
dadoqueosoutsidersrejeitamenfaticamenteadesigualdadedosistema
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dominante.Elesnãoestãoareproduzirosistemadeformairreflectida.Antes,
identificam-sepositivamentecomasprincipaiscaracterísticasnormativasdeum
Estado-Providênciauniversalista,comumafortecomponentedeprotecção
socialnoemprego,doençaevelhice.Estesistemanãoétantoalgoaqueos
outsidersseajustamapesardetereminteressesdivergentes,masalgoque,
apesardesaberemqueagoranãoosbeneficiadirectamente,aindaassim
aspiramavirabeneficiarnofuturo.Ouseja,oquedesejaméveralteradaasua
situaçãonomercadodeemprego,nãooEstado-Providência.Daíanossadecisão
deterintituladoestasecção,àsemelhançadoartigoqueainforma,“Àesperade
Godot”,numaalusãoàpeçadeSamuelBeckettemqueosdoisprotagonistas,
VladimireEstragão,esperamemvãopelachegadadealguémchamadoGodot.
Nonossocaso,aalusãoéàespera(emvão?)dosoutsidersportuguesespelo
regressodaeradouradadoEstado-Providênciatalcomofoiimaginadoe
implementadopeloseparaosinsidersdeummercadodetrabalhoquenãoé
maisomesmo.
***
Autores:
FilipeCarreiradaSilva,InstitutodeCiênciasSociaisdaUniversidadedeLisboa;
UniversidadedeCambridge,[email protected]
MónicaBritoVieira,UniversidadedeYork,[email protected]
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16
Bibliografia
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