5.5-Justiçaeequidade In: 40AnosdePolíticasdeJustiçaemPortugal.Organizadores:MariadeLurdes Rodrigues,NunoGaroupa,PedroMagalhães,AlexandraLeitão,Conceição Gomes.Coimbra:Almedina,2016. Estecapítulopropõe-sediscutirjustiçaeequidadedaperspectivadoimpactoda constitucionalizaçãodedireitossociaissobreapercepçãocolectivadaequidade emPortugal.Paratanto,discutir-se-ãoosdireitossociaisemdoismomentos diversos:poralturadasuaconstitucionalização,entre1975e1976,equarenta anosdepois,norescaldodagrandecrisefinanceirade2008edoresgate financeirode2011.Aligarestesdoismomentosencontra-seumconceito: “consciênciajurídica”,ou,sesepreferir,“consciênciasocialdosdireitos”.Aideia ésimpleseintuitiva:osdireitossociais,aexemplodosdemaistiposdedireitos, nãosãoumamerarealidadejurídica-formal;sãotambém,efundamentalmente, umarealidadenormativapresentenaconsciênciasocialdacomunidade,sendo, porconseguinte,passíveisdeseranalisadospelasciênciassociaisdestamaneira. Quandosevoltaaatençãoparaaformacomooentendimentodosdireitos circulanasrelaçõessociais–paraaquiloquediferentesagentesdizemsobree fazemcomessesdireitos–entra-senodomíniodopoderinerenteàsformações discursivas(Foucault2005).Oestudodaconsciêncialegalé,porisso,tambémo estudodasformasdeinterpretaçãoatravésdasquaisdiferentesactoressustêm, reproduzemoudesafiamestruturasdesignificadodaleiquesepodemter tornadohegemónicas(EwickeSilbey1998).Istoporque,umavez institucionalizados,taissignificadosfacilmentesetornampartedossistemas materiaisediscursivosque,aumtempo,possibilitamelimitamaproduçãode significadofutura.Talfactoapontaparaasdificuldadesenfrentadasporleituras “originalistas”daConstituiçãoedosdireitossociaisnelapresentes.Estasapelam tipicamenteàrecuperaçãodosignificadodaConstituiçãotalcomoestabelecido pelosseusobreirosoupela“letradalei”(porcontraposiçãoàideiadeuma Constituiçãoviva,queevolui,esetransforma,emrespostaaocontexto). Subjacenteaesteapeloencontra-se,porvezes,umoutro:àobjectividadedeuma talinterpretação,comoalgonecessárioaoEstadodeDireitoeaoimpériodalei, contrapostoaoimpériodoshomens(edosseusgovernos).Contudo,aspalavras, inclusiveaspalavrasquefazemalei,designamconceitos,etodososconceitos são,pornatureza,contestáveis.Maisdoqueumaherançainquestionável resultantedeumconsenso(ouacordo“impoluto”),alei–todaalei–éfrutode compromissoshistoricamentecontingentes,quenosfalamamúltiplasvozes,e comosquaisacomunicação(maisparitáriadoquedeferencial)nãodeveser cortada.Aquestãoacolocarnãoé,pois,adesaberqueentendimentodaleinos devegovernar–odelesouonosso–masantesqueentendimentodalei–ou,por vezes,mesmoquelei–melhorseajustaànossarealidade–istoé,aosproblemas edesafios,talcomoosenfrentamos.Esperarquea“lei”nosdêaresposta,eque estasesitueacimadoconflitopolítico-partidário,éconvivermalcomavidaem democracia. Oargumentoaquiprosseguidoéapresentadoemtrêssecções.Na primeira,apresenta-seumadefiniçãosumáriadoquesãodireitossociais.Na segunda,discute-seoseuprocessodeconstitucionalizaçãoemPortugalem 1975-76econsideram-seassuasimplicaçõesqueraoníveldaconstruçãodeum 2 Estado-Providência,querdopontodevistadodesenvolvimentodeumacultura políticaemquealinguagemdos“direitos”veioaadquirirumpapeldestacado. Naterceiraeúltimasecção,apresentam-seosresultadosdeumestudorecente sobreoimpactodacrisefinanceiraeeconómicade2008-2013sobreasatitudes sociaisdosportuguesesperanteoEstado-Providência(Vieira,SilvaePereira 2016),comparticulardestaqueparaopapeldosdireitossociais. 1.OQUESÃODIREITOSSOCIAIS? Nestaprimeirasecção,apresentamosdeformasucintaonossoentendimentodo quesãodireitossociais,ecomosepodemestudar.Juridicamente,osdireitos económicos,sociaiseculturais(vulgo,direitossociais)definem-secomo garantiasoubenefíciosemmatérialaboral,segurançasocial,saúde,eeducação cujostitularessãotodososcidadãosecujarealizaçãoincumbeaoEstado(CRP, TítuloIII).Esteentendimentoformalnãoesgota,todavia,todasasformasde manifestaçãodosdireitossociais.Atente-senocaso,porexemplo,dodireitoà protecçãonasaúde.Terodireitoàprotecçãonasaúdenãoquerdizerteralgono mesmosentidoqueterumcarroouumtelemóvel.Significaantesentrarnuma relaçãocomosdemaiscidadãoseentrenós,cidadãos,eoEstado.Umarelaçãoda qualtemosconsciência(Silva2013).Claroquepodemosestartãocientesdos direitosquenostiramcomodaquelesdequeusufruímos,ouaindadaquelesque gostaríamosdetermasnãotemos:emtodoocaso,aconsciênciadosdireitosé umadimensãofulcraldoqueestessignificam.Nestesentido,osdireitossociais– comoosdireitoscivisouosdireitospolíticos–sãoumarelaçãoquenosajudaa constituirenquantocidadãos.Éistoquesequerdizerquandousamosa 3 expressão“cidadãostitularesdedireitos”–indivíduosquesetornamcidadãos namedidaemqueimaginam,conquistamegozamdedireitoscivis,políticos, sociais.Emboranaoseesgotenoseuregimededireito,umpovotorna-seuma comunidadepolíticanosentidomodernodotermo–i.e.autónoma,democrática, igualitária–namedidaemqueasrelaçõesentreosseusmembros(eentreestes eoEstado)assentemnumregimededireitosemqueestessereconhecem mutuamente.Chamaraalgo“direito”éalgoplenodeconsequências:“aforma comodamosnomesàscoisaseasdiscutimosmoldaosnossossentimentos, juízos,escolhas,eacções,incluindoasnossasacçõespolíticas”(Glendon,1991: 13).Porconseguinte,afirmaralgocomoumdireitonãosetrataapenasuma descrição,masantesdeumaactividade,dodesempenhodeumaaçãoembusca decertosefeitos–pôrfimaumadiscussão,obterreconhecimento,acederaum benefício,etc.(Zivi2012).Talcomoodireitodevotoganhaexpressãoe significadoquandooexercemos(ouescolhemosnãoexercer),osdireitossociais contribuemparanosconstituirenquantocidadãosnamedidaemquedão origemadeterminadosauto-entendimentoseformasdecontestaçãopolítica, mastambémnamedidaemquedãoorigema,ouganhamexpressãoatravésde, instituiçõescomoumServiçoNacionaldeSaúde(SNS),umsistemadesegurança social,ouumsistemanacionaldeeducação,quenosconstituemindividuale colectivamentedeumacertaforma.Aestearranjoinstitucionalchamamos, comummente,“EstadoSocial”. DiscutiroEstadoSocialédiscutiralgoqueétransversalànossarelação enquantocidadãos,queganham,mastambémsacrificamalgo,nosistemade cooperaçãoorganizadopeloEstado.Diferentesgeraçõesdeportuguesesestão implicadasesãodirectaouindirectamenteafectadaspelaformacomose 4 estrutura,epelaformacomofunciona,onossoEstado-Providência:daspensões dereformaeinvalidezqueosmaisvelhosusufruem,aosserviçosdesaúdeaque todosrecorrem,aosistemadeeducaçãoqueosmaisnovosfrequentam.Épois corretaaexpressãodequeoEstadoSocialnosacompanha“doberçoàcova”.Um Estadosocialuniversalesolidáriorege-sepelaideiadequeosdestinosde pobres,classemédiaericossedevementrecruzarnasfunçõessociaisdoEstado: quercomocontribuintes,quercomobeneficiários.Emcadaumasdascategorias anaturezado“demos”queparaelacontaédiversificada:contribuintese beneficiáriosnãosãonecessariamente“cidadãos”.São,defacto,milharesos imigrantesque,apesardenãopossuíremcidadaniaportuguesa,são contribuintesactivosparaanossasegurançasocialebeneficiam,aindaquenem sempredeformaplena,dosserviçosdesaúdedisponibilizadospeloEstado.A basedesustentaçãodoEstadosocialpodeaindasermaisalargada.Comoocaso daintervençãoexternadatroikaveiopôradescoberto,ofinanciamentodo nossoEstado-Providêncianãoéhojeindependentedosfluxosfinanceirosque noschegamdoestrangeironaformadeonerososempréstimos. TãopróximaéhojearelaçãoentreoEstadosocialealegitimidadedo Estadoedoregimequenoscustaimaginarumtempoemqueasrazõesde Estadoforamprosseguidasdecostasvoltadas–ou,pelomenos,semi-voltadas– paraaspolíticassociais.1Noentanto,aassociaçãodajustiçaeequidadesociaisa direitossociaisinstitucionalmentegarantidosporumEstado-Providência 1Recorde-sequeasorigensdoEstadosocial,sobretudonamãodereformistasconservadores comoOttovonBismarckouvonTaffe,nãosãoinocenteseestãoassociadasàpromoçãodo controloeestratificaçãosociais.TambémemPortugal,aextensãodarededeapoiosocialcom MarceloCaetanoobedeceuafinslegitimizadores.ComoMaxWebernota,apropósitodas políticassociais,“ofimabsolutodoEstadoésalvaguardar(oumudar)adistribuiçãointernae externadopoder”(Weber1946:334). 5 universalista,geral,unificadoetendencialmentegratuito,é,nonossopaís,fruto deumimagináriopolíticorecenteedistintamentedemocrático. 2.ASORIGENSDOSDIREITOSSOCIAISNACONSTITUIÇÃO Oanode1975éusualmentevistopelaliteraturaespecializadacomooanoque marcaofimdequaseumséculodecrescimentodoEstado-Providênciaeoinício dalutapolítico-ideológicaemtornodoseudesmantelamento.Pelocontrário,em Portugal,osanosde1975-6foramaquelesemqueseredigiueaprovouanova Constituição,porsinalentreasmaisgenerosasdomundonoquedizrespeitoao catálogodedireitossociaisnelaconsagradoscomodireitosfundamentais(Vieira eSilva2010).Assimsendo,ademocracianasceeconsolida-seentrenóscomo umapromessadeigualdadepolítica,mastambémsocialeeconómica,um objectivoparaoqualaconstruçãodeumEstado-Providênciaeratidapor essencial.Paraasuaconstrução,contribuíramideologiasvárias,eamiúde conflituantes,desdeosocialismodemocráticodoPartidoSocialista,partidoque dominouostrabalhosconstituintes,adoutrinasocialdaIgrejaeopersonalismo dospartidosmaisàdireita,aomarxismodospartidosmaisàesquerda (apologistasdos“direitossociais”enquantoconquistasdaclassetrabalhadora, mascépticosquantoaoseuefeitoideologicamentemistificadorereprodutordo sistemacapitalista).É,pois,nãosóemrupturacomaditadura,mascomuma geraçãodediferençafaceaorestodaEuropaedospaísesmaisindustrializadose porviadeumcompromissopolítico-ideológicoporvezestenso,quenós encetámosaconstruçãodonossoEstadoSocial.QuandonaEuropasecomeçaa questionarestemodelo,emPortugaldão-seosprimeirospassosnasua 6 implementação.Ésintomáticoque,porexemplo,onossoServiçoNacionalde Saúdenasçaem1979,omesmoanoemque,emInglaterra,MargaretThatcheré eleitaparaliderarumgovernocujoobjectivodeclaradoéoderompercomo supostonannystatedopós-guerra. EmPortugal,asdécadasseguintesforammarcadaspelaprogressiva implementaçãodoEstado-Providência,numprocessomarcadoporumforte consensoquantoàimportânciadomesmoparaalegitimidadedonovoregime.O seuimpactonasociedadeportuguesafoitremendo,possibilitandopelaprimeira veznahistóriadonossopaísoacessouniversal(aindaquegradual)aserviçosde saúde,educaçãoesegurançasocialatodaapopulação,independentementeda suaprofissãoouposses.Naliteraturacomparativista,porém,onossoEstado Socialapareceaumaluzmenospositiva.Relativamenterecenteepouco desenvolvido,osseusefeitosredistributivossãovistoscomobaixosquando comparadosaosrestantespaísesdaOCDE.Oseudesenhoinstitucionalétidopor perpetuaralgunsesquemasdeprotecçãosocialanteriores,dependor corporativista,criadospeloregimedeSalazareCaetano.Igualmentesalientadaé autilizaçãodosistemaparagarantirumabaseeleitoraleredespolíticas clientelares(ondeseincluempartidos,sindicatos,ordensprofissionais,eoutros gruposdeinteresse),interagindocomumaparelhodeEstadorelativamente fracoevulnerável(Ferrera1996). Maisoumenoscontroversas,estascaracterísticasinstitucionaisquea literaturatendeasalientarcontamapenaspartedahistória.Aoutrapartetema vercomaformacomoaspessoaspercepcionamoEstadoSocialeosdireitos sociaisqueselheencontramassociados.Istoremete-nosparaanoçãode “culturapolítica”(Silva,ClarkeVieira2015),nosentidodeumaconstelaçãode 7 crençaserepresentaçõescolectivassobreodomíniopolíticoquetemorigem,em largamedida,nopróprioprocessopolítico-eleitoraldelutapelopoder.Noque dizrespeitoaosdireitossociais,aculturapolíticaquesedesenvolveudesdeo25 deAbrilsaiucaracterizadaporumnotávelconsensoentreasdiferentesforças partidárias,numaprimeirafase,emtornodasuaefectivaçãoeexpansãoe,mais recentemente,sobretudoàesquerda,emtornodasuadefesacontraoquesão tidasporameaçasàsuasobrevivência,internaseexternas.Aomesmotempoque istosucedia,tornou-sepoliticamentedifícileeleitoralmentecustosodiscutiros direitossociais.Oresultadofoiaemergênciadeumaespéciede“gagrule”,que impunha,econtinuaaimpor,limitesmuitoestritosaodebatepolíticosobre direitossociaisemPortugal:umacríticademocráticaaoEstadosocialétida comoumacontradiçãonosprópriostermos.Senoutrospaísesécomum questionar-seabertamenteaarquitecturadoEstadosocial,aconcepçãode justiçaquelhesubjazeasuacapacidadeparaarealizar,quemdevemserosseus titularesprioritários,ouassuasfontesdefinanciamento,quetipodepolíticaso robustecemoudebilitam,entrenóstaisquestõessãoprontamente desclassificadascomoumataqueaosfundamentosdanossademocracia.Com efeito,emPortugal,ademocraciaconstituiu-se,econtinuaadefinir-se,paraa maioriadosportugueses,emtermosdosbenefíciossociaisqueécapaz(ounão) degarantir,enãotantoemtermosderegraseprocedimentosabstractoscomo eleiçõeslivreseperiódicas.Masestavisãosubstantivadademocracianão justifica–anãoserportacticismo–osilenciamentoouotecnicismoaquea discussãodoEstadosocialéfrequentementevotada.Seestaspolíticassão constitutivasdonossocontratodemocrático,epartecentraltambémdecomoo poderdeEstadoseexerce,oaprofundamentodanossademocraciaassenta, 8 necessariamente,nasuatematizaçãoediscussãocolectiva(Habermas1992: 329-87). Estaétantomaisurgentequantoseassisteaumcrescente desalinhamentoentreaspromessasinscritasnaConstituiçãoemmatériasociale arealidadesócio-económicaqueopaísenfrenta.Numexemploirónicodas consequênciasinesperadaseindesejadasdaacçãopolítica,emcertamedidatal desalinhamentoverifica-seemresultadoda,enãoapesarda,implementaçãodos direitossociais,nostermosacordadosporváriasforçaspolíticas.Comefeito,por exemplo,aslongascarreirascontributivasdasgeraçõesmaisvelhassão recompensadascompensõesdereformagenerosasesemteto,cujo financiamentodependeemgrandepartedascontribuiçõesdasgeraçõesmais novasdetrabalhadores,cujascarreirascontributivassão, desproporcionadamente,marcadaspeladescontinuidadeeprecariedade.Se questionarumatalaparenteinjustiçainter-geracionaléanátemaentrenós,não otemsidoemmuitospaíseseuropeus,ondeseefectuaramreformasvastasno sistemadepensões,porformaaadequá-lasaoclimadeausteridadefinanceirae denovosriscossociais.Umacrescenteliteraturatem-sedebruçadosobreas consequênciasda“dualização”dassociedadespós-industriais,cadavezmais divididasentreaquelescomsituaçõeslaboraisestáveis(oschamados“labour marketinsiders”)eaquelesousemempregoouemsituaçãoprecária(“labour marketoutsiders”),esobreascondiçõesquepresidemàcapacidadepolíticapara lidarcomelas(paraoscasosdaFrança,AlemanhaeSuíça,veja-seHäusermann 2010). 9 3.ÀESPERADEGODOT?PRECARIEDADE,DIREITOSEESTADO-PROVIDÊNCIA EMTEMPOSDECRISE SendoPortugalumpaísfortementedualizado,etendoaopiniãopúblicaum papelimportantenasustentaçãodepolíticaspúblicas,aquestãoimpõe-sede saberseasatitudesepreferênciasdoschamados“outsiders”diferemdasdos chamados“insiders”nonossopaís.Notratamentodestaquestão,onossoponto departidafoiacrisefinanceirade2008,eaconsequentecriseeconómicae socialqueafectouonossopaísnasequênciadopedidodeajudaexternaemAbril de2011(Vieira,SilvaePereira,2016).Talpedidoveioassociadoaum MemorandodeEntendimento,quepreviaumconjuntodereformasprofundas quantoàsfunçõessociaisdoEstadoportuguêspercepcionadaspelatroikade credorescomoumdosentravesaodesenvolvimentoeconómicofinanceiramente sustentável.Asconsequênciassociaisdaaplicaçãodopacotedereformas previstonoMemorandoforamsignificativas,comaeconomiaportuguesaa sofrerumretrocessosemparalelodesdeo25deAbril,umaforteemigraçãopara aEuropaepaíseslusófonos,eodesempregoaalcançarníveishistoricamente elevados.Onossoprojectoprocurouestudar,primeiro,seadiferençaquantoà naturezadasituaçãoperanteotrabalhoerelevanteparaaformacomose concebemeseposicionaperanteosdireitossociaiseoEstado-Providência,e, casoissoseverificasse,seacriseteriatidoumefeitodiferentesobreasatitudes epreferênciasdeunseoutros,levando,porexemplo,aumdesencantodos portuguesescomsituaçõeslaboraismaisinstáveis(oschamados“outsiders”) comumsistemadesenhadoparabeneficiareprotegersobretudo“insiders”.Para tanto,comparámosasatitudesdosPortuguesesfaceaoEstado-Providênciaentre 10 20082e2013,3istoé,antesedepoisdacrise.Demodoasimplificaraleitura, iremossumariarosnossosresultados,reenviandooleitorinteressadoemmais detalhesparaoartigo“WaitingforGodot?WelfareAttitudesinPortugalBefore andAftertheFinancialCrisis”. OnossoestudodemonstraqueasatitudesrelativamenteaoEstado- Providênciasealteraramcomacriseeconómica.Porém,estamudançaocorreu porvezesdeformadiscrepantedoqueseesperariafaceàsexplicações dominantesnaliteratura(Taylor-Gooby2001).Salientamostrêsresultados. Emprimeirolugar,etalcomoesperado,oapoioàintervençãodoEstado emmatériadeassistênciasocialaumentounorescaldodacrise.Esteapoioveio acompanhado,emboranãosejaexplicado,porumaviragemideológicaà esquerdaporpartedageneralidadedapopulação.Poroutrolado,a disponibilidadeparapagarmaisimpostosparafazerfrenteàsdificuldadesnão aumentou.Estesresultadosverificam-sequerparainsiders,querparaoutsiders. Há,porém,diferenças.Se,porumlado,ambososgruposrejeitampagarmais impostos,poroutro,quantomaisprecáriaéasituaçãodoinquiridomais pronunciadoéoapoioàintervençãodoEstado.Esteresultadoparececonfirmar ahipótesedequepartedasatitudessociaisseexplicampelointeressepróprio: maiororisco,maiortambémoapoioàintervençãodoEstadoqueopossa minorar. Emsegundolugar,osnossosresultadosmostramquesepassarmosde umapoiogenéricoaoEstado-Providênciaparaaconsideraçãodepolíticas 2Módulosobre“WelfareAttitudesinaChangingEurope”,2008FourthRoundEuropeanSocial Survey(ESS).Aamostradapopulaçãoportuguesafoide2,367inquiridos. 3EstesegundoinquéritoporquestionárioreplicapartesdomódulodoESS2008,aque acrescentaquestõesquerdeinquéritosanteriores(ISSP2004),quernovasquestões.Éocasoda bateriadeperguntassobre“consciênciajurídica”.Aamostrafoide1,258inquiridos. 11 sociaisconcretas,vemosinsiderseoutsidersadesejaremcoisasdiferentes.Ao contráriodoprevistopelaliteratura,noentanto,osnossosoutsiderspreferem políticassociaisproporcionais,emvezderedistributivas,emáreascomoas pensõesdereformaouosubsídiodedesemprego(HäusermanneSchwander 2009:14).Poroutraspalavras,osoutsidersapoiampolíticasquenãoaquelas que,emprincípio,maisdirectamenteosbeneficiariam.Umapossívelexplicação paraesteresultadoalgoinesperadoéateoriadajustificaçãodosistema(Jost, BanajiieNosek2004),segundoaqualavontadedosoutsidersemdefendere justificarostatusquopodesermaisimportantedoqueoseuinteressepróprio. Todavia,naquelaqueéanossaterceiraconclusãodignadenota,os nossosresultadosparecemsugeriranecessidadedeumaoutraexplicação.Mais doquetereminteriorizadoadesigualdadeeteremreduzidoadissonância ideológicafaceaosistemadominante,averdadeéque,segundoonossoestudo, osoutsidersdesejamveradesigualdadediminuiratravésdaacçãodoEstadoe políticasigualitáriasdeesquerda.Istosugerequeaspreferênciasdosoutsiders podemserexplicadasdoutraforma,nomeadamentepelaadesãoaum determinadoquadrodevaloreseaumaconcepçãoespecíficadedireitossociais –nãocomodireitosnaturais,masenquantoconquistas,alcançadasem circunstânciashistóricasconcretas,cujostermosdeimplementação,acordados comoEstado,devemserrespeitados.Anossaanáliseàconsciênciadosdireitos deinsiderseoutsidersdemonstraissomesmo:queosoutsiderstêmumavisão mais“originalista”emenos“tacticista”destesdireitos. Subjacenteatalexplicaçãoencontra-seanecessidadedesepassardeuma concepçãodeinteressesepreferênciascomosendodefinidosapriorideforma exógenaparaaideiadequeasidentidadeseosinteressescolectivostêmorigem 12 noprópriodebatepolítico;maisconcretamente,numaculturapolítica caracterizada,porumlado,pelaparcarepresentaçãopolíticadosoutsidersedos seusinteresses,e,poroutro,porumacertaforma,praticamentehegemónica,de pensaracidadaniademocrática.Estaancora-senaideiadeumpactooriginal comoEstado-Providênciatalcomoesteseinstitucionalizouentrenós,quenão podeserincumprido,sobpenadefazerdesmoronaraprópriademocracia. QuandocomparadocomospaísesdaOCDE,Portugaldistingue-sepela combinaçãoentreumelevadograudeprotecçãonoempregoeumagrande dualização(ousegmentação)domercadodetrabalho.Éistoqueexplicaque, apesardopronunciadoaumentododesempregoedaprecariedadelaboralentre 2008e2013,osinsiderstenhamcontinuadoabeneficiaremlargamedidadessa proteção,incluindoosbenefíciossociaisqueselhetornaraminerentesecujo financiamentoéasseguradoporumacombinaçãodeimpostosecontribuições.É importantenãoperderdevistaopodergenerativodaspolíticassociais.As políticassociaisdesempenhamumpapelmuitosignificativonaconstruçãode identidadeseinteressescolectivos,ajudandoatransformargruposdeindivíduos emclientelaspolíticascominteressesbemdefinidos,ou,omesmoédizer, categoriasdemográficaseprofissionaisemforçaspolíticas.Desdeainstauração dademocraciaemPortugal,edaconstruçãodasbasesjurídico-políticasdonosso Estado-Providência,queospartidospolíticosfizeramdosinsidersumadassuas principaisclientelaseleitorais.Emresultadodisto,osinsiderstomaram consciênciadosseusinteresses,consolidaramapercepçãodequelhessão devidoscertosbenefícioseprotecções,efizeramusodoseudireitodevotopara osproteger. 13 Osresultadosobtidosreflectemisto:confrontadoscomumacrise económicaprofunda,osinsiders,quesãogeralmentemaisreflexivossobreos trade-offssubjacentesaosdireitossociais,viraramàesquerda,cujoprincipal objectivoemtermosdepolíticasocialcontinuaaserpreservareexpandiras protecçõesdosinsiders,aomesmotempoquesemantiveramunidosnadefesa daspolíticassociaisqueasseguramprioritariamenteosinteressesdosinsiders, comoéocasodeumasegurançasocialquepremeiaoempregocontínuoeuma longacarreiracontributiva.Emcontrapartida,osoutsiders,quecontinuamno geralórfãosderepresentação,permanecemumgrupomuitomaisfragmentado, difícildedefinircomrigor,ecomumaposiçãopolíticaincerta,invisívelparasi próprioseporarticularpelosagentespolíticos.Arepresentaçãodemocráticade unseoutroséassimétrica,oqueéreforçado,nalgunscasos,pelaformacomoas políticassociaissãodefinidas.Porexemplo,ascondiçõesimpostasaquem recorreaosubsídiodedesempregoestigmatizamcertosgruposdeoutsiders (nestecaso,osdesempregados)detalformaquequalquerlutapordireitos carecedosujeitoqueaconsigaenunciarnapraçapública.Nãoé,pois,de estranharqueashipótesesquesublinhamointeresseprópriotenhamsido invalidadaspelonossoestudo.Apesardeseposicionaremmaisàesquerdado queosinsiders,osoutsidersportuguesessubscrevemomesmoentendimento históricodosdireitossociaisquelegitimaasposiçõesdosinsiders,acabandopor preferirpolíticassociaiscontributivasque,àpartida,beneficiamsobretudoestes últimos. Seriaumerro,pensamos,reduziristoaumaquestãode“falsa consciência”.Parece-nosnecessáriomobilizarumaexplicaçãomaiscomplexa, dadoqueosoutsidersrejeitamenfaticamenteadesigualdadedosistema 14 dominante.Elesnãoestãoareproduzirosistemadeformairreflectida.Antes, identificam-sepositivamentecomasprincipaiscaracterísticasnormativasdeum Estado-Providênciauniversalista,comumafortecomponentedeprotecção socialnoemprego,doençaevelhice.Estesistemanãoétantoalgoaqueos outsidersseajustamapesardetereminteressesdivergentes,masalgoque, apesardesaberemqueagoranãoosbeneficiadirectamente,aindaassim aspiramavirabeneficiarnofuturo.Ouseja,oquedesejaméveralteradaasua situaçãonomercadodeemprego,nãooEstado-Providência.Daíanossadecisão deterintituladoestasecção,àsemelhançadoartigoqueainforma,“Àesperade Godot”,numaalusãoàpeçadeSamuelBeckettemqueosdoisprotagonistas, VladimireEstragão,esperamemvãopelachegadadealguémchamadoGodot. Nonossocaso,aalusãoéàespera(emvão?)dosoutsidersportuguesespelo regressodaeradouradadoEstado-Providênciatalcomofoiimaginadoe implementadopeloseparaosinsidersdeummercadodetrabalhoquenãoé maisomesmo. *** Autores: FilipeCarreiradaSilva,InstitutodeCiênciasSociaisdaUniversidadedeLisboa; UniversidadedeCambridge,[email protected] MónicaBritoVieira,UniversidadedeYork,[email protected] 15 16 Bibliografia Canotilho,J.J.G.eV.Moreira(orgs.).(2007)ConstituiçãodaRepúblicaPortuguesa anotada,4ªedição.Coimbra:Almedina. Ewick,P.eSilbey,S.S.(1998)TheCommonPlaceofLaw.Chicago:Universityof ChicagoPress. Ferrera,M.(1996)‘SouthernModelofWelfareinSocialEurope’,Journalof EuropeanSocialPolicy6(1):17-37. Foucault,M.(2005[1969])AArqueologiadoSaber.Coimbra:Almedina. Glendon,M.A.(1991)RightsTalk:TheImpoverishmentofPoliticalDiscourse. NovaIorque:FreePress. Habermas,J.(1996[1992])BetweenFactsandNorms.Cambridge:Polity. 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