direito fundamental à moradia digna e adequada como

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DIREITO
FUNDAMENTAL
À
MORADIA
DIGNA
E
ADEQUADA
COMO
INSTRUMENTO DE REDUÇÃO DA VULNERABILIDADE HABITACIONAL E
PROMOÇÃO DA EMANCIPAÇÃO SOCIAL
Bruno Pereira Nascimento1
RESUMO
O direito à moradia constitui um direito fundamental social e ao mesmo tempo um direito
humano, reconhecido internacionalmente em diversos documentos e amparado pela Constituição
da República. Mais que isso, o direito à moradia é elemento de grande importância para o
desenvolvimento dos espaços urbanos, enquanto elemento
imprescindível ao pleno
desenvolvimento dos cidadãos e das comunidades.
Porém, face ao alto grau de relevância e fundamentalidade do direito à moradia digna e
adequada, por que existem tantos entraves à sua plena efetivação?
O presente artigo possui, pois, por escopo, analisar o grave quadro de vulnerabilidade
habitacional no qual os indivíduos desprovidos da segurança da posse encontram-se inseridos,
vez que excluídos de uma política de desenvolvimento urbano capaz de garantir a função social
da propriedade garantida pela Carta Política de 1988.
Não olvidaremos no enfoque ora proposto, da discussão acerca do poder emancipatório do
direito à moradia digna e adequada, vez que ela contribui de imediato para igualizar indivíduos
vulneráveis socialmente e, via de conseqüência, proporcionar-lhes uma vida digna e sustentável.
1
Aluno do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu (mestrado) em Direitos e Garantias Fundamentais da
Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Defensor Público do Estado, Coordenador de Direitos Humanos da
Defensoria Pública do Estado, Vice-Presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos e Interventor dos
Contratos de Gestão IASES-ACADIS/ICISEC/IGES.
PALAVRAS-CHAVE
Moradia Digna. Vulnerabilidade Habitacional. Emancipação Social.
ABSTRACT
The right to housing is a fundamental social right and at the same time a human right, recognized
internationally in various documents and supported by the Constitution. More than that, the right
to housing is an element of great importance for the development of urban spaces, while
essential element to the full development of individuals and communities.
However, given the high degree of relevance and fundamentality of the right to decent housing
and adequate, why there are so many barriers to their full effectiveness?
This article has therefore to scope, analyze the serious housing situation of vulnerability in which
individuals lack the security of tenure are inserted, deleted because of an urban development
policy that can guarantee the social function of property guaranteed by Political Letter 1988.
Not ostracize in the proposed approach, the discussion about the emancipatory power of the right
to decent housing and adequate, since it contributes immediately to equalize socially vulnerable
individuals and, as a result, provide them with a dignified and sustainable.
KEY WORDS
House Worthy. Housing Vulnerability. Social Emancipation.
1 INTRODUÇÃO
O modelo econômico, dependente e concentrador, que vigorou durante décadas no
Brasil foi o fator responsável pelo acelerado processo de urbanização e de “favelização”
trazendo, como consequência a situação caótica das cidades e apresentando um cinturão de
miséria em sua periferia.
Na contramão de tal contexto, atualmente o Brasil apresenta uma economia estável,
favorecendo a retomada do crescimento econômico e atraindo os bancos privados a investirem
nos negócios imobiliários, uma vez que, com a estabilidade econômica e a tendência de queda
sustentável das taxas de juros, a habitação se tornou uma atividade econômica bastante atrativa
para os incorporadores e agentes financeiros.
As cidades brasileiras cresceram vertiginosamente nas últimas décadas a partir de uma
forte migração da população da zona rural para a zona urbana, provocando um “inchaço” das
cidades. Este fato, aliado a outros, tem provocado muitos problemas ligados à moradia, tais
como, coabitações, habitações precárias, autoconstrução e falta de infra-estrutura.
Não são raros os assentamentos informais e precários, carentes de condições mínimas
de salubridade e habitabilidade, o que demonstra a ampla necessidade da regularização fundiária
integral, capaz de garantir aos cidadãos de tais áreas o efetivo direito à uma moradia adequada e
cercada da infra-estrutura necessária.
Por outro lado, a dificuldade no acesso ao mercado formal de obtenção de propriedade,
faz com que a maioria das pessoas e comunidades carentes sofra constantes ameaças pela
insegurança da posse de suas casas, ou o pior, são vítimas de despejos forçados.
Em que pesem as recentes inovações propostas na política pública de desenvolvimento
habitacional social-urbanístico, pouco ou nada se fez no sentido de se criar e implementar
políticas públicas sustentáveis.
Tanto assim, que o quantitativo de ocupações irregulares, inclusive em áreas de risco e
de preservação ambiental, vem crescendo de forma exponencial, gerando vários conflitos
fundiários, comumente “resolvidos” através de ações de reintegração de posse efetivadas com
emprego de truculência e violência por parte da Polícia Militar.
Ademais, parcela significativa da população continua vivendo em condições
subumanas, sem moradia, sem água, sem esgoto, sem transporte, demandando vultosos
investimentos sociais e exigindo uma tomada de posição por parte do Poder Público. A falta de
um planejamento integrado (econômico, social e espacial) e de políticas de desenvolvimento
urbano agrava ainda mais esta situação.
O problema social in foco se revela ainda mais agravado em decorrência da crescente
especulação imobiliária, vez que os moradores das áreas de interesse do capital imobiliário estão
sendo forçados, inclusive, com emprego de violência física e psicológica, a migrar para áreas
suburbanas periféricas, localizadas em regiões de risco para a defesa civil, carentes do necessário
e devido desenvolvimento social-urbanístico, através de ocupações irregulares.
Afinal, Qual a relação entre o direito à moradia digna e adequada e a emancipação
social dos grupos sociais em situação de vulnerabilidade habitacional? É o que o presente artigo
busca discutir.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA DIGNA FACE AO PRINCÍPIO
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
O direito à moradia adequada é essencial à dignidade da pessoa humana, sendo que a
sua falta impede o exercício de outros direitos básicos, tais como saúde, educação, trabalho e
lazer. Seu conceito se desenvolve a partir dos tratados internacionais de direitos humanos, sendo
parte integrante do direito a um padrão de vida adequado.
Isso significa que a moradia não se trata apenas de um espaço físico, sendo imperioso
que ela se dê em local com condições dignas, com segurança (sem ameaça de remoção) e
cercado de toda a infraestrutura de água, esgoto, transporte, saúde, educação, dentre outros.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (ratificada pelo Brasil em
10/12/1948), em seu Art. XXV, I, já preconizava que,
Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família
saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os
serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em
circunstâncias fora de seu controle.
Contudo, à época ainda não havia uma preocupação específica com o detalhamento do
que constituiria uma “moradia adequada”, limitando-se a declaração em estabelecer o direito
humano à moradia.
Não destoa de tal diretriz o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e
Culturais (ratificado pelo Brasil em 24/04/1992, através do Decreto Federal nº 591, de 06 de
julho de 1992), o qual, sem seu Art. 11, assim dispõe:
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a nível de vida
adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia
adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados
Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito,
reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional
fundada no livre consentimento.
Mas tais preceitos não eram suficientemente aptos a determinar um conceito adequado
de moradia. Por tal motivo, o Comitê das Nações Unidas de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais editou o comentário geral nº 04, que se tornou o principal instrumento de interpretação
do direito à moradia adequada2 (DONIZETE GOMES, 2005, p. 34).
Em seguida, o Comitê editou o Comentário de nº 07, que trata somente dos despejos
forçados, demonstrando a preocupação internacional com essa violação ao direito à moradia 3
(DONIZETE GOMES, 2005, p. 37).
Nele, os compromissos adotados no Comentário nº 04 são reafirmados, incluindo
recomendação expressa aos Estados signatários para que tomem “todas as medidas necessárias”
para que não haja nenhuma violação ao direito de moradia adequada, em especial através de
despejos ilegais, estabelecendo uma série de exigências para que seja observado um devido
processo legal pautado nas normas de direitos humanos.
Ressalte-se, entretanto, que muitas vezes tais parâmetros são completamente ignorados,
o que impõe a necessidade não só de divulgação de toda essa proteção ao direito à moradia
2
Segundo o Comentário do Comitê das Nações Unidas, o primeiro elemento fundamental do direito à moradia é a
segurança jurídica da posse, garantida através da seguinte redação: “todas as pessoas devem possuir um grau de
segurança de posse que lhes garanta a proteção legal contra despejos forçados, expropriação, deslocamento e outras
ameaças”.
33
O Comitê expressamente afirma que o procedimento utilizado em litígios relativos à moradia não pode deixar os
desalijados na condição de sem-teto, ou em situação de vulnerabilidade com relação aos direitos humanos, devendo
os Estados signatários providenciar todas as medidas necessárias para ofertar uma moradia alternativa, o
reassentamento ou o acesso à terra produtiva.
adequada, mas também de haver uma reforma legislativa que possa incluir expressamente tais
diretrizes na legislação interna.
Além dos tratados internacionais de direitos humanos, temos um grande sistema de
proteção do direito à moradia, a começar pela Constituição da República atualmente em vigor,
consagrando-o como direito fundamental, particularmente no rol dos Direitos Sociais do Art. 6º,
sendo seu componente principal o princípio da dignidade da pessoa humana, disciplinado no Art.
1º, inciso III, já que, como aludido, o direito à moradia está atrelado a parâmetros mínimos de
uma vida com dignidade.
Também na Constituição da República encontramos um capítulo próprio sobre a
política urbana, que privilegia a função social da cidade e da propriedade, determinando que a
política de desenvolvimento tenha por objetivo o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes (Art. 182), corroborando o que já consta
elencado no rol dos direitos fundamentais do Art. 5º, inciso XXIII, que é a função social da
propriedade.
O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que se destina a regulamentar os artigos 182
e 183 da Carta Magna, também subordina a propriedade ao cumprimento de sua função social, e
cita expressamente o direito à moradia em seu Art. 2º.
Em que pese o arsenal jurídico-constitucional em prol da função social da propriedade,
a realidade demonstra grande resistência do Poder Público, em especial do Poder Judiciário, no
reconhecimento dos direitos dos possuidores, em grave prejuízo à segurança da posse, tão
consagrada nos marcos internacionais retro mencionados.
Portanto, mister que todos os atores envolvidos na política habitacional e urbanística
lance novo olhar sobre o direito de propriedade, que em sua moderna acepção apresenta-se sob
uma perspectiva essencialmente social.
Fruto de um processo de constitucionalização do Direito Civil, o direito de propriedade
se orienta pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, solidariedade social,
da igualdade e da função social da propriedade. Tais princípios, que ocupam o topo da pirâmide
normativa, dão sustentáculo aos direitos fundamentais instituídos pela Constituição Federal de
1988.
Oportuno se faz analisar, dentro do contexto da constitucionalização da ordem civilista,
o fenômeno jurídico da repersonalização do Direito Civil, consiste no fenômeno contemporâneo
que retira o patrimônio do centro do ordenamento jurídico para colocar a pessoa humana em seu
lugar (LÔBO, 1999, p. 49). 4
Desse modo, o exercício da propriedade, em razão da constitucionalização e
publicização do Direito Civil, passou a ser condicionado à sua função social. E o direito à
moradia digna ganhou a qualificação de direito social fundamental, compondo o mínimo
existencial.
O novo direito de propriedade parte da função interventiva estatal sobre a ordem
econômica a fim de regular e equilibrar as relações privadas de cunho socioeconômico,
desniveladas pelo capitalismo financeiro transnacional. Esse sistema, de índole neoliberal,
pretende afastar por inteiro a intervenção por parte do Estado sobre o domínio econômico e as
relações sociais.
O conceito do direito de propriedade evoluiu a ponto de ser tratado em caráter
transdisciplinar, eis que encontra guarida e fundamento tanto no Direito privado quanto no
Direito público. A propriedade deixou de ser um direito eminentemente privado e absoluto, para
relativizar-se em prol de sua função social. Desse modo, não mais se desvincula do Direito
Constitucional, que é o fundamento de validade de todos os ramos do direito.
A Constituição Federal de 1988 representa, após longos anos de totalitarismo da
ditadura militar, um marco importante no que diz respeito ao reconhecimento de direitos e
garantias fundamentais, tanto de índole individual, como social. Fruto de um intenso debate entre
diversos setores da sociedade, a Constituição Federal tornou-se um importante fórum
democrático de efetivação dos valores fundamentais de uma sociedade aberta (HÄBERLE, 1997,
p. 83).
Todo o ordenamento jurídico é norteado por princípios constitucionais permeados de
máxima normatividade e carga valorativa, tornando-se pontos cardeais na construção do Estado
Democrático de Direito, que tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana
(RANGEL; RIBEIRO, 2010, p. 12).
4
Lôbo sustenta que a publicização deve ser entendida como o processo de intervenção legislativa
infraconstitucional, ao passo que a constitucionalização tem por fito submeter o direito positivo aos fundamentos de
validade constitucionalmente estabelecidos. Enquanto o primeiro fenômeno é de discutível pertinência, o segundo é
imprescindível para a compreensão do moderno direito civil.
Em verdade, os princípios são o oxigênio das Constituições na época do póspositivismo. É graças aos princípios que os sistemas constitucionais granjeiam a unidade de
sentido e auferem a valoração de sua unidade normativa (BONAVIDES, 2009, p. 288).
Nesse contexto, o princípio constitucional da função social da propriedade está inserido
no Art. 5º, inciso XXIII, e no Art. 170, inciso III da Constituição da República, o que faz dele
um princípio-garantia, com status de norma cogente, vinculante, de cumprimento obrigatório,
tanto enquanto direito fundamental, quanto princípio norteador da atividade econômica.
Em que pese os significativos avanços legislativos e políticos com relação ao direito à
moradia e à segurança da posse, em prol da proteção integral dos direitos humanos, contudo, a
realidade demonstra que um longo e tortuoso caminho há de ser percorrido em busca de sua
plena efetivação.
3 A FORÇA EMANCIPATÓRIA DO DIREITO À MORADIA
3.1 A emancipação
Antes de se adentrar a discussão acerca da emancipação, necessário, primeiramente,
analisar o seu significado e a sua importância para a sociedade. A palavra emancipar segundo o
dicionário significa “tornar independente; dar liberdade” (FERREIRA, 1999, p. 730). Entende-se,
portanto que a emancipação traz como elemento norteador a libertação humana onde o homem é
responsável pelo seu próprio desenvolvimento.
No entanto, além de ser necessária ter em linha de vista a emancipação sobre a
perspectiva do indivíduo, imprescindível compreender em que aspectos sociais, políticos e
econômicos este processo se iniciou.
Para Boaventura de Souza Santos a emancipação social é um conceito central na
modernidade ocidental e está organizada por meio de uma tensão entre regulação e emancipação,
entre experiências muitas vezes desiguais ou opressoras e a expectativa de uma vida melhor
(SANTOS, 2003, p. 08).
Sob essa perspectiva, Boaventura desenvolve uma série de críticas ao projeto da
globalização, no que tange às políticas neoliberais excludentes, para desenvolver uma ótica em
prol da globalização contra hegemônica, ou seja, uma globalização pautada no respeito às
culturas locais, que contemplem as novas configurações societárias instituídas.
Segundo Santos (1997, p. 14),
uma definição de globalização mais sensível às dimensões sociais, políticas e culturais.
Aquilo que habitualmente definimos por globalização, são de facto, conjuntos
diferenciados de relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização.
Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização;
existem, em vez disso, globalizações [...] a globalização é o processo pelo qual
determinada condição ou entidade local estende a sua influencia a todo globo e, ao fazêlo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade
rival.
Portanto, observa-se que o projeto de globalização situada por Boaventura envolve
outras formas de organização, chamados por ele de “alternativa contra-hegemônica”. Esta nova
organização baseia-se a partir de conjuntos de iniciativas, movimentos e organizações, que juntas
lutam contra a globalização neoliberal, buscando um mundo justo e pacífico, com direito
igualitário para todos. Assim a contra-hegemonia citada representa às formas de opressão,
imposta pelo sistema capitalista.
Esta perspectiva acerca da emancipação social se evidenciou e fortaleceu no I Fórum
Social Mundial, pois, a partir deste, novos atores coletivos compromissados com a luta contra as
formas de opressão, exclusão e dominação se envolveram em um alvissareiro processo de
sinergia.
Destarte, que o conceito de emancipação abordada pelo autor lusitano tem como
proposta a construção de cidadanias emancipatórias a partir do avanço das lutas sociais, na
perspectiva de resistir às formas de exclusão instituídas na globalização hegemônica.
Outro ponto relevante apontado por Boaventura atenua a efetivação dos direitos
humanos para a conquista da emancipação. Quando se trata em direitos humanos, entende-se que
estes devem ser concebidos a todo cidadão. Mas não é o que se observa na realidade, vez que o
autor busca identificar em sua discussão as condições culturais, pelo qual eles são concebidos.
Para tanto, Boaventura utiliza a terminologia cosmopolitismo ou globalização contrahegemônica (globalização de baixo-para-cima). Aponta ele que o multiculturalismo enquanto
pré-condição de uma relação equilibrada e multuamente potenciadora entre a competência global
e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica, apta a
reforçar o potencial emancipatório dos direitos sociais (SANTOS, 1997, p. 19).
Portanto, o projeto emancipatório busca mostrar a humanidade que é possível adquirir à
promoção da liberdade e da autonomia através do reconhecimento e do respeito das diversidades
culturais sejam elas de raça, gênero, cor e etnia.
Tal concepção visa dar projeção ao exercício da cidadania crítica e geradora de ação,
cujo desafio do contexto atual é estimular e possibilitar a emancipação pessoal através da
conquista da autonomia, evidenciada pelo respeito às diferenças e o diálogo entre as culturas
como processo de emancipação social.
3.2 A dupla crise (regulação social versus emancipação social)
Para Boaventura de Souza Santos, o paradigma da modernidade se baseia numa tensão
dialética entre regulação social e emancipação social, presente, mesmo que de modo diluído, na
divisa positivista “Ordem e Progresso” (SANTOS, 2003, p. 32).
Enquanto até finais dos anos sessenta as crises de regulação social suscitavam o
fortalecimento das políticas emancipatórias, hoje a crise de regulação social, simbolizada pela
crise do Estado-Regulador e do Estado-Providência, e a crise da emancipação social, simbolizada
pela crise da revolução social e do socialismo enquanto paradigma de transformação social
radical, são simultâneas e alimentam-se uma da outra.
Como se não bastasse, tal crise também é responsável pela tensão que ocorre entre o
Estado e a sociedade civil.
O processo de globalização desencadeou vários efeitos colaterais nas relações entre o
Estado, a sociedade e a economia, acarretando a ampliação do desemprego e a ampliação da
precarização das relações de trabalho, resultando no aumento da violência e na perda de
confiança nas instituições da vida social, como a família, o Estado e as Instituições religiosas.
Esse ambiente propiciou um encolhimento dos espaços públicos enquanto precursor de
políticas sociais, alargando em contrapartida os espaços privados, ou seja, as funções que
anteriormente centravam-se no Estado passaram a assumir novos rumos com o processo de
reestruturação produtiva, estes, por sua vez, expressos entre parceiras do Estado e sociedade
civil.
A política de direitos humanos deste milênio que se inicia é um fator-chave para
compreender tal crise. Essa política, que foi simultaneamente reguladora e emancipadora, está
“presa” nessa dupla crise, ao mesmo tempo que é sinal do desejo de ultrapassá-la.
O Estado moderno apresenta-se como minimalista, mas é potencialmente maximalista,
pois a sociedade civil, enquanto o outro do Estado, reproduz-se através de leis e da regulação que
deriva do Estado, para as quais não parecem existir limites, desde que as regras democráticas da
produção das leis sejam respeitadas.
Os direitos humanos estão no cerne dessa questão, vez que enquanto a primeira geração
de direitos humanos (civis e políticos) foi concebida como uma luta da sociedade civil contra o
Estado, a segunda e a terceira gerações (sociais, econômicos e culturais) pressupõem que o
Estado é o principal garantidor dos direitos humanos.
Nessa ordem de idéias, é necessário desenvolver um quadro analítico capaz de, em um
primeiro momento, reinventar a emancipação social, em um segundo momento, reforçar o
potencial emancipatório dos direitos humanos e em um último plano, mas não menor importante,
implementar uma política progressista de efetivação de direitos sociais fundamentais.
3.3 A política de desenvolvimento urbano emancipatória
Os preceitos acima não devem ser ignorados na construção de uma política pública de
desenvolvimento habitacional social-urbanística exitosa na erradicação dos altos índices de
vulnerabilidade habitacional constatados atualmente em nossas cidades, em especial, nos grandes
aglomerados urbanos.
O direito às cidades sustentáveis, reconhecido pela Constituição da República (Art. 182)
compreende, dentre outros, o direito difuso à moradia, ao saneamento ambiental e à infraestrutura urbana.
A Carta Mundial do Direito à Cidade5 estipula que o usufruto eqüitativo das cidades
deve ser regido pelos princípios da sustentabilidade, da democracia e da justiça social, vez tratarse de direito concebido integralmente na perspectiva de interdependência e indivisibilidade dos
demais direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais).
5
Construída a partir das discussões no Fórum Social Mundial de 2002, no Fórum Social das Américas, na cidade de
Quito, em julho 2004, no Fórum Mundial Urbano, na cidade de Barcelona, em setembro de 2004, no V Fórum
Social Mundial, na cidade de Porto Alegre, em janeiro 2005 e no III Fórum Urbano Mundial na cidade de
Vancouver, 2006.
Prefacialmente, a vulnerabilidade habitacional deve ser contextualizada face ao
processo de urbanização desordenada e irregular, agravada pela desigualdade social evidenciada
pela crescente industrialização da década de 90, período em que o neoliberalismo guiou a
iniciativa privada no processo de produção das cidades, sem quase nenhuma interferência do
Poder Público nesse processo.
Tal cenário econômico, aliado à ausência de legislação urbanística específica,
regulamentando a ocupação dos espaços públicos pela população de baixa renda, a toda
evidência, culminaram por dificultar o acesso à terra na medida em que a valorização decorrente
dos investimentos públicos passou a ser apropriada tão somente pela iniciativa privada.
Corroborando, citamos Maria Coeli Simões (2008, p. 380):
É claro que o processo de urbanização acelerada, sem as cautelas do planejamento da
sustentabilidade das cidades, é tinta forte nesse traçado de múltiplos constrangimentos.
Há, porém, que se colocar á evidência a grande causa: a concepção do solo urbano e da
produção da cidade vinculada aos propósitos mercantilistas e especulativos. A
apreensão do espaço urbano como mero bem de produção, objeto de simples
apropriação privada submetida á lógica capitalista, acaba por alijar largas parcelas da
população do direito difuso à cidade. Isso porque a sobrevalorização de terrenos e
imóveis compele as camadas sociais dotadas de menor poder aquisitivo a se deslocarem
para regiões periféricas ou de pouco interesse econômico.
Assim, os grupos socialmente vulneráveis tornaram-se as principais vítimas do processo
de urbanização excludente e segregador, impulsionado, por um lado, pela agressiva e intensa
atividade do mercado imobiliário e, por outro, pela omissão histórica do poder público em
promover o desenvolvimento urbano equilibrado, mediante planejamento que assegurasse a
todos razoável igualdade de oportunidades de gozo de bem-estar, independente do perfil sócioeconômico.
Tal processo condenou a população de baixa renda à criação de suas próprias
alternativas de moradia, progressivamente, em terras sem valor econômico, marcadas por severas
restrições urbanísticas, tais como as áreas de risco e de preservação ambiental.
Como se não bastasse, essa massa social também foi condenada à privação do acesso à
infra-estrutura urbana, expondo-a, assim, a um lugar não só de precariedade, mas de violência
moral e cívica.
Eis aqui um grave cenário social onde, de um lado, os cidadãos dessas áreas estão à
mercê de práticas políticas assistencialistas, e, de outro, são vítimas do crime organizado
infiltrado nas periferias, verdadeiros enclaves de marginalização social.
Na tentativa de amenizar tal quadro, a Carta Mundial do Direito à Cidade 6 preceitua o
seguinte:
1. Os grupos e pessoas mais vulneráveis devem ter o direito a medidas especiais de
proteção e integração, evitando os reagrupamentos discriminatórios.
2. Para efeitos desta carta consideram-se grupos mais vulneráveis as pessoas e grupos
em situação de pobreza, de risco ambiental (ameaçados por desastres naturais ou
vitimas de desastres ambientais gerados pelo homem), vitimas de violência, os
incapazes, imigrantes e refugiados e todo grupo que segundo a realidade de cada cidade
esteja em situação de desvantagem a respeito dos demais habitantes. Nestes grupos
serão objeto de maior atenção os idosos ou pessoas da terceira idade, mulheres, em
especial as chefes de família e as crianças.
3. As Cidades, mediante políticas de afirmação positiva aos grupos vulneráveis devem
suprir os obstáculos de ordem política, econômica e social que limitam a liberdade,
equidade e de igualdade dos cidadãos(ãs), e que impedem o pleno desenvolvimento da
pessoa humana e a participação efetiva na organização política, econômica, cultural e
social da cidade.
Face a tal contexto e considerando o dever do Poder Público de promover políticas
públicas tendentes a reverter o caráter vicioso da exclusão sócio-territorial, que viola o direito à
moradia, é imperioso que os grupos sociais vulneráveis sejam priorizados no desenvolvimento e
implantação da política urbana consubstanciada na justa distribuição dos ônus e benefícios do
processo de urbanização.
Nesse sentido, Nelson Saulo Junior (2004, p.87):
A política de desenvolvimento urbano estabelecida pelo Município pelo plano diretor
que não tiver como prioridade atender as necessidades essenciais da população
marginalizada e excluída das cidades, estará em pleno conflito comas normas
constitucionais norteadoras da política urbana com o sistema internacional de proteção
dos direitos humanos, em especial com o principio internacional do desenvolvimento
sustentável.
Portanto, evidencia-se a necessidade da política de desenvolvimento urbano ser
realizada, prioritariamente, em favor dos mais vulneráveis dentro do território urbano, como por
exemplo, pessoas em situação de rua, moradores de assentamentos precários, dentre tantos
outros, pois, somente assim, o direito à moradia alcançará a finalidade que foi outorgada pela
6
Disponível em http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/documentos-do-fnru/41-cartas-e-manifestos/133carta-mundial-pelo-direito-a-cidade.html.
Constituição da República, bem como se consolidará como instrumento de efetiva emancipação
dos estratos sociais mais debilitados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como analisado no presente artigo, o debate acerca do direito à moradia, enquanto
instrumento de redução da vulnerabilidade habitacional e promoção da emancipação social alçou
relevante importância no cenário jurídico pátrio.
Partindo-se da premissa de que os direitos sociais são direitos fundamentais autoaplicáveis, enquadra-se, portanto, o direito à moradia digna como uma categoria de Direito
Fundamental Social, sendo considerado uma diretriz para o Estado, carente de necessária e
urgente implementação.
Entretanto, não se pode falar de direito à moradia na Constituição da República, sem
um entendimento sistemático, isto é, através de uma interpretação extensiva, relacionando este
direito com a qualidade de vida, com a proteção do meio ambiente, dentre outros princípios, para
que se compreenda o termo “moradia digna” na amplitude e complexidade da sua acepção, ou
seja, habitação em que se vive com certa qualidade de vida, isto é, em que alguns elementos
vitais são básicos para a sobrevivência do ser humano.
Todos, portanto, têm direito a garantia de uma existência digna. Neste sentido, podese dizer que o direito à moradia é um pressuposto para a vivência da dignidade, pois contribui
para o combate à pobreza, para a ausência de dignidade, visando uma melhor autonomia
individual.
A autonomia individual da vontade permite ao homem livre realizar suas atividades,
e, portanto, usufruir de uma qualidade de vida. Quando esta autonomia é restrita, o que é
vivenciado, via de regra, pelos cidadãos carentes e grupos socialmente excluídos, o Estado deve
intervir para proporcionar o bem-estar social, garantindo, se necessário, o desenvolvimento de
uma maioria em detrimento de uma minoria.
Depreende-se, assim, que o direito à moradia também favorece ao exercício da
liberdade real, vez que a habitação figura no rol das necessidades mais básicas do ser humano.
Seu tamanho e sua qualidade são importantes para a saúde, a segurança e a privacidade, e a sua
localização é decisiva para o acesso ao emprego e aos serviços oferecidos pelo município. Para o
indivíduo, ela representa uma referência central, uma vez que condiciona as soluções adotadas
para suprir as demais necessidades básicas.
A construção doutrinária e o arcabouço jurídico nesta sede analisados, apontam para
a necessidade de se melhorar e assegurar o acesso das pessoas pertencentes a grupos vulneráveis
à habitação, financiamento, infra-estrutura, serviços sociais básicos, mecanismos de segurança e
processos de tomada de decisão nas esferas nacional e internacional.
É compreensível que nem todos os indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis ou
desfavorecidos sejam assim sempre. A vulnerabilidade e a desvantagem costumam ser causadas
pelas circunstâncias e não pelas características inerentes, o que as reveste na categoria de risco.
Reconhecendo que a vulnerabilidade e o desfavorecimento são afetados, dentre outras coisas,
pelas condições do setor da habitação e pela viabilidade e eficácia da proteção jurídica
garantindo igualdade de acesso a recursos e oportunidades, os integrantes de determinados
grupos têm maior tendência à vulnerabilidade no que se refere às condições de moradias e
assentamentos humanos.
Os indivíduos de grupos vulneráveis ou desfavorecidos enfrentam uma situação de
risco quando não têm a segurança da posse, não usufruem de serviços básicos, enfrentam
impactos ambientais e de saúde extremamente negativos, podendo ser excluídos, inadvertida ou
deliberadamente, do mercado e dos serviços relacionados à política de desenvolvimento urbano.
Importa frisar que tais impactos indesejáveis podem ser superados com a adoção de
uma política de planejamento urbano e habitacional que prima pela sustentabilidade, no sentido
de se garantir à todos e todas os direitos socioambientais da cidade. Assim, tem-se que levar a
sério a concretização dessas políticas para se garantir um fim maior, qual seja, a justiça social e
ambiental.
Nesse cenário, o direito à moradia digna e adequada se destaca enquanto instrumento
de redução da vulnerabilidade habitacional e promoção da emancipação social, vez que qualquer
atuação no sentido de sua efetivação deverá sempre ter como destinatário final a pessoa humana,
conforme os padrões internacionais determinados pelos documentos de ordem internacional, a
fim de cumprir os fundamentos e objetivos determinados pela Constituição da República.
Ante o exposto, constata-se que a efetivação do direito à moradia digna, elevado ao
patamar de direito fundamental social pela Constituição da República, contribui de imediato para
igualizar indivíduos vulneráveis socialmente, que habitam em locais periféricos, no sentido de
garantir uma vida digna e sustentável em prol do bem-estar social.
REFERÊNCIAS
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ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da Função Social da Posse e sua conseqüência frente à
situação proprietária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
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Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. (Org. OSORIO,
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TORRES, Ricardo Lobo (orgs) Arquivos de Direitos Humanos. Vol. 04. Rio de Janeiro:
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Porto Alegre: SAFE, 2004.
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