O Verbo buscar em processo de gramaticalização – sua

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O Verbo buscar em processo de gramaticalização – sua
recategorização
Paulo Henrique de Oliveira Barroso
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas – Universidade de São Paulo (USP)
[email protected]
Abstract: The aim of this paper is to evidence the grammaticalization of the
verb buscar in Portuguese Language. For this, we analysed the direct relation
between narrative texts and concrete semantics notion / dissertative texts and
abstract semantics notion. It was possible in these contexts to identify the verb
recategorization, from principal verb > auxiliary verb.
Keywords: Grammaticalization; verb buscar; categorial change; auxiliarity.
Resumo: O objetivo deste artigo é evidenciar a gramaticalização do
verbo buscar no Português. Para tanto, analisamos a relação direta
entre textos narrativos e noção semântica concreta / textos
dissertativos e noção semântica
abstrata.Foi
possível,
nesses
contextos,
identificar
a
recategorização verbal, de verbo principal > verbo auxiliar.
Palavras-chave: Gramaticalização; verbo buscar; mudança categorial;
auxiliaridade.
Introdução
A dinamicidade e a funcionalidade são características fundamentais da
língua utilizada por seus falantes para atingir propósitos e intenções no
momento da enunciação. E ao aceitarmos a língua como algo dinâmico e
funcional, aceitamos também que ela está sujeita a variações e mudanças. Nessa
perspectiva, surge em 1912
o termo gramaticalização, empregado por Meillet (1948) para referir-se à atribuição de
um caráter gramatical a uma palavra anteriormente autônoma. A partir daí,
a gramaticalização passa a envolver qualquer tipo de função gramatical, e através
desse processo, itens lexicais e construções sintáticas passam a assumir funções
referentes à organização interna do discurso ou a estratégias comunicativas.
Para a operacionalização dos estudos da gramaticalização, Hopper & Traugott
(1993) indicam duas perspectivas a serem seguidas: a) histórica, através da qual
se estuda a origem das formas gramaticais e as mudanças típicas que as afetam e b)
mais sincrônica, que estuda a gramaticalização sob o ponto de vista de padrões fluidos
do uso lingüístico. Representa-se, assim, uma perspectiva sincrônica porque implica
variação, e outra diacrônica porque envolve mudança.
1. Os estágios e princípios que regem a gramaticalização
O processo de gramaticalização é metafórico por natureza, utilizando-se de
metáforas categoriais e de reinterpretação induzida por situações contextuais.
Sendo assim, Heine, Claudi&Hünnemeyer (1991) propõem o seguinte contínuo de
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desenvolvimento metafórico: pessoa > objeto > espaço > tempo > processo >
qualidade, desenhando uma espécie de cadeia de extensão metafórica direcionada do
‘mundo real, físico’ para o ‘mundo do discurso’. A esse pressuposto teórico associa-se a
proposta de Hopper & Traugott (1993), mais especificamente utilizada para verificar a
gramaticalização de formas verbais: verbo pleno > verbo auxiliar > clítico > afixo >
zero, em que se evidencia também um processo de abstratização categorial.
Ainda nesse mesmo quadro teórico, foram descritos por Hopper (1991)
cinco princípios que regem o processo de gramaticalização: estratificação,
divergência, especialização, persistência e recategorização.
2. A gramaticalização de verbos
Conforme citado acima, seguiremos a proposta de Hopper & Traugott
(1993) para verificar a recategorização do verbo buscar, ou seja, o seu
deslizamento da categoria pleno para auxiliar.
Sobre os verbos plenos e auxiliares, Travaglia (2003:309) apresenta
características norteadoras das duas categorias quando diz que o verbo pleno funciona
como núcleo do predicado, tem conteúdo nocional, valor lexical e expressa ações, fatos,
fenômenos etc. E o verbo auxiliar acompanha o verbo pleno numa
construção perifrástica e a ele pode atribuir as mais diversas funções gramaticais.
Outra proposta de classificação refere-se aos sete estágios para a
gramaticalização de verbos, identificados por Heine (1993:58-66 apud TRAVAGLIA,
2002:18-21). Para Heine, nos diferentes estágios de gramaticalização, os verbos podem
ser resumidamente classificados assim: a) estágios 1 e 2: lexemas, verbos plenos;
b) estágio 3: semi-auxiliares ou auxiliares semânticos; c) estágios 4 e 5:
auxiliares; d) estágio 6: auxiliares ou afixos; e) estágio 7: afixos ou flexões.
É preciso deixar claro que esses estágios não são estanques, pois em função do
caráter gradual e ininterrupto da gramaticalização, os verbos podem apresentar
num dado momento de análise características de mais de um estágio. Além disso, um
verbo não tem necessariamente que passar por todos os estágios, podendo seu
processo de gramaticalização nunca chegar ao último estágio.
E ainda, tomando de empréstimo a proposição de Travaglia (2003:311312), verifica-se que os verbos em gramaticalização podem apresentar, de acordo
com seu valor, uso e função, um dos três status: marcador, indicador, e item funcional.
3. Os valores semânticos do verbo buscar
Inicialmente, como pressuposto da pesquisa, tomamos como recorrente o uso do
verbo buscar com noção semântica abstrata, e numa primeira abordagem, encontramos
seis ocorrências comprobatórias dentre as 11 acepções do verbo listadas pelo Dicionário
Houaiss (2001). A maior incidência de acepções em sentido abstrato para o
verbo buscar num dicionário contemporâneo de grande aceitação foi um fator
motivador para
a comprovação de que se trata realmente de um verbo em processo de gramaticalização,
tendo em vista o contínuo de abstratização proposto por Heine, Claudi & Hünnemeyer
(1991).
O passo seguinte foi identificar (também partindo de um pressuposto relacional
entre noção semântica concreta / narração; e noção semântica abstrata / dissertação) o
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contexto textual em que ocorrem predominantemente as noções de concreto/abstrato,
seguindo a classificação tipológica de textos que os contrapõe em textos
temáticos e figurativos (PLATÃO e
FIORIN, 2002).
Nessa
perspectiva, entendemos que predominantemente
os
textos narrativos apresentam figuras, utilizando termos concretos,
representando ações físicas do “mundo natural”. E textos dissertativos
apresentam, predominantemente, temas, utilizando palavras abstratas que explicam
fatos e ações do “mundo natural”. Sendo assim, o verbo buscar deve representar, com
mais freqüência, ações físicas em textos narrativos/figurativos, e ações mentais
em textos dissertativos/temáticos.
4. Aspectos metodológicos
O corpus da pesquisa é composto por três contos literários do final do século 19
e início do século 20, dos seguintes autores: Machado de Assis, João Simões
Lopes Neto e Lima Barreto (textos narrativos), escolhidos aleatoriamente dentre os
contos de autores cujos direitos autorais já são de domínio público, e três artigos
de veiculação científica na área de lingüística, publicados pela revista Estudos
Lingüísticos XXXIV
2005 do GEL (textos dissertativos), também escolhidos aleatoriamente dentre os outros
artigos da mesma publicação. A escolha do corpus, apesar de parcialmente aleatória, foi
norteada pela preocupação de apresentar um recorte temporal distanciado (ainda
que predominantemente sincrônico), a fim de demonstrar a diferença de uso do
verbo buscar em análise comparativa entre os dois gêneros textuais num
percurso evolutivo/temporal da modalidade escrita. Consideramos que pelo
princípio da estratificação (HOPPER, 1991) e até pelo fato do verbo apresentar
em cinco das 11 acepções dicionarizadas uma noção semântica concreta, se
analisássemos narrativas contemporâneas, certamente encontraríamos o verbo
buscar com sentido concreto e como verbo principal, assim como nos textos
narrativos dos séculos 19 e 20 aqui analisados.
O verbo buscar apresentou 14 ocorrências nos contos e 06 ocorrências nos
artigos científicos, distribuídos da seguinte forma:
07 ocorrências em “Um Erradio”, de Machado de Assis (1899); 04 ocorrências em
“Contrabandista”, de João Simões Lopes Neto (1912); 03 ocorrências em “Um
Especialista”, de Lima Barreto (1924); e 01 ocorrência em “Possibilidades
e impossibilidades da tradução interidiomática”, de Mário Ferreira (2005);
03 ocorrências em “O ethos nas cartilhas do MST”, de Oriana Fulaneti (2005);
02 ocorrências em “Leitura e escrita escolares e universitárias recontadas por
professores em formação inicial”, de Ludmila Andrade (2005).
Para estudar o processo de gramaticalização, utilizamos os seguintes critérios:
● Gênero: contos (narrativos) / artigos acadêmicos (dissertativos).
A escolha desse critério deve-se à hipótese já descrita acima de que há relação
entre os valores semânticos do verbo e o gênero textual em que ocorrem, sugerindo a
mudança de categorização do verbo.
● Tipo de ação: atividade física / atividade mental.
A classificação do tipo de atividade representada pelo verbo serviu
para demonstrar o grau de abstratização relacionado ao gênero textual.
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● Composição formal: buscar + verbo / substantivo / zero / pronome / sintagma
nominal.
Esse fator foi proposto para verificar as relações possíveis entre a composição
formal e os diferentes valores do verbo em gramaticalização.
● Complementos: pessoa / objeto / espaço / tempo / processo / qualidade.
O grau de abstratização também está relacionado ao tipo de complemento,
conforme a proposta de Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991), assumida nesse trabalho.
● Presença de elemento interveniente: presença / ausência.
A presença ou ausência de elemento interveniente entre o verbo e o seu
complemento pode indicar o grau de integração entre eles, e quanto maior ou menor a
integração, podemos dizer que o verbo está mais ou menos gramaticalizado.
Os cinco critérios utilizados para verificar a gramaticalização do verbo buscar
foram correlacionados em duas etapas, tendo como determinantes o gênero na primeira
etapa, e o tipo de ação na segunda, conforme demonstram as tabelas abaixo.
4.1. Resultados
Tabela 1. Tipo de ação indicada pelo verbo e determinada pelo gênero textual
Tipo de ação
Gênero
física
mental
narrativo
85,7%
14,3%
dissertativo
-
100%
Tabela 2. Concentração, no gênero textual, do tipo de ação indicada pelo verbo
Gênero
Tipo de
ação
narrativo
dissertativo
física
100%
-
mental
25%
75%
As tabelas 1 e 2 apresentam a correlação entre gênero e tipo de ação. Sendo o
gênero o fator determinante, podemos observar a forte tendência do texto narrativo de
indicar atividade física em 85,7% das ocorrências, contra 14,3% indicando
atividade mental; e 100% das ocorrências em textos dissertativos indicam atividade
mental. Isso demonstra, já no final do século 19 (conto de Machado de Assis), o uso do
verbo buscar em sentido abstrato, como prenúncio do processo de gramaticalização,
intensificado na passagem de 14,3% (texto narrativo do séc. 19) para 100% (texto
dissertativo do séc.
21) em relação à atividade mental indicada pelo verbo.
Ao invertermos o determinante da análise para tipo de ação, temos a atividade
física concentrada unicamente em textos narrativos (100%) e atividade
mental predominante em textos dissertativos (75%). Ou seja, em textos
dissertativos só há ocorrências de atividade mental indicada pelo verbo buscar, assim
como esse verbo só indica atividade física em textos narrativos.
A partir dos resultados dessas duas tabelas fundamentais (1 e 2), por terem sido
eleitos gênero e tipo de ação, não só como fatores variantes, mas também como
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determinantes na correlação dos dados, podemos estabelecer dois contextos em que se
dão predominantemente as ocorrências do verbo em análise:
● contexto I [+ narrativo / + ação física]
● contexto II [+ dissertativo / + ação mental]
É justamente pela passagem do contexto I para o contexto II, em termos gerais,
que podemos observar o processo de gramaticalização do verbo buscar. Vejamos
adiante, pelos resultados das próximas tabelas, mais alguns traços definidores
desses contextos e algumas especificidades do processo.
Tabela 3. Correlação composição formal X gênero textual
Composição formal
Gênero
narrativo
verbo
substantivo
zero
pronome
sintagma nominal
7,1%
7,1%
21,4%
21,4%
43%
-
-
-
16,7%
dissertativo 83,3%
Tabela 4. Correlação composição formal X tipo de ação indicada pelo verbo
Composição formal
Tipo de
ação
verbo
substantivo
zero
pronome
sintagma nominal
física
-
8,3%
16,7%
25%
50%
mental
75%
-
12,5%
-
12,5%
As tabelas 3 e 4 apresentam a composição formal gerada pelo verbo buscar + o
elemento a sua direita na oração, demonstrando o contraste percentual das ocorrências
analisadas no contexto I em relação às ocorrências do contexto II. O sintagma nominal
predomina como elemento à direita do verbo no contexto narrativo (43%),
indicando ação física (50%); e o verbo principal da oração predomina à direita
do verbo gramaticalizado no contexto dissertativo (83,3%), indicando ação mental
(75%).
Esses valores percentuais, além de demonstrarem a predominância na
composição formal, revelando assim mais um traço para cada um dos contextos
do verbo, indicam também uma estruturação mais bem marcada para a
forma gramaticalizada (contexto II), em que apenas 16,7% (em textos dissertativos) e
25% (em relação à atividade mental) fogem à regra de verbo + verbo, ilustrando,
desse modo, o princípio da especialização. Ao passo que a estruturação da forma nãogramaticalizada
(contexto I), apresenta 57% (em textos narrativos) e 50% (em relação à atividade física)
de elementos outros em concorrência com o sintagma nominal, diluídos entre verbo,
substantivo, zero e pronome.
Os contextos I e II ficam assim configurados e exemplificados:
● contexto I {[+ narrativo / + ação física] V + SN}
Exemplo: – Assim. A última vez que estivemos juntos, não te disse que no dia seguinte
iria a bordo de um paquete buscar um amigo que chegava do Norte? (BARRETO,
1924)
● contexto II {[+ dissertativo / + ação mental] V+V}
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Exemplo: No segundo parágrafo, a proposta de mudança vem acompanhada pela
actorialização enunciativa, buscando envolver o enunciatário no projeto. (FULANETI,
2005)
Tabela 5. Correlação complemento X gênero textual
Complemento
Gênero
pessoa
objeto
espaço
tempo
processo
qualidade
narrativo
21,6%
64,2%
-
-
14,2%
-
dissertativo
-
-
-
-
100%
-
Tabela 6. Correlação complemento X tipo de ação indicada pelo verbo
Complemento
Tipo de
ação
pessoa
objeto
espaço
tempo
processo
qualidade
narrativo
25%
75%
-
-
-
-
dissertativo
-
-
-
-
100%
-
As tabelas 5 e 6 revelam o quarto traço definidor dos contextos I e II,
identificado a partir do tipo de complemento do verbo na formação dos exemplos
analisados. Como se vê, em textos dissertativos em que o verbo buscar indica
ação mental, o complemento configura-se ‘processo’ na totalidade das
ocorrências, confirmando a tendência para a especialização das formas
gramaticalizadas. Já nos textos narrativos, o complemento do verbo divide-se
entre pessoa (21,6%), objeto
(64,2%) e processo (14,2%), e ao representar ação física, o verbo tem pessoa (25%) e
objeto (75%) como complementos. Esses resultados demonstram uma concentração dos
complementos no contexto I voltada para a extremidade “mais concreta” do contínuo de
abstratização proposto por Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991), também confirmando
a hipótese de que as formas não-gramaticalizadas estão mais associadas a noções
semânticas concretas.
Os contextos I e II ficam assim configurados e exemplificados:
● contexto I {[+ narrativo / + ação física] V + SN (Objeto)}
Exemplo: – Como disse, na madrugada véspera do casamento, Jango Jorge saiu para
ir buscar o enxoval da filha. (LOPES NETO, 1912)
● contexto II {[+ dissertativo / + ação mental] V+V (Processo)}
Exemplo: O discurso de linguagem busca referir de modo unívoco a magnitude do
objeto e, correlatamente, as relações que o constituem. (FERRERIRA, 2005)
Tabela 7. Correlação elemento interveniente X gênero textual
Elemento interv.
Gênero
presença
ausência
narrativo
14,3%
85,7%
dissertativo
16,7%
83,3%
Tabela 8. Correlação elemento interveniente X tipo de ação indicada pela verbo
Elemento interv.
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Tipo de
ação
presença
ausência
física
8,3%
91,7
mental
25%
75%
Em relação à presença ou ausência de elemento interveniente entre o verbo e o
seu complemento, as tabelas 7 e 8 demonstram diferença pouco significativa entre os
contextos I e II acima definidos. Em ambos os casos predomina a ausência de elementos
intervenientes: contexto I (narrativo 85,7%, ação física 91,7%) e contexto II
(dissertativo 83,3%, ação mental 75%). Desse modo, casos em que aparece
elemento interveniente entre o verbo e o seu complemento, apesar de válidos
semanticamente e bem formados sintaticamente, podem ser considerados atípicos nos
dois contextos. Os resultados dessa última variante não nos serviram para marcar
mais um traço do processo de gramaticalização na passagem de I para II, inclusive
porque ao analisarmos
o tipo de ação indicada pelo verbo, encontramos um salto crescente de 8,3%
(ação física) para 25% (ação mental) nas ocorrências com presença de elemento
interveniente, sendo
que
justamente
o
contrário
poderia
validar
mais
um
princípio da
gramaticalização, a coalescência , em que o item gramaticalizado fica cada vez
mais preso com o qual ele se combina (LEHMANN, 1982 apud CASTILHO, 1997:49).
5. Os estágios de gramaticalização do verbo buscar
Para a classificação dos estágios do verbo buscar no processo de
gramaticalização, utilizamos os exemplos do contexto II, tendo em vista sua
configuração formal (V+V) e sua noção semântica (ação mental / processo). O suporte
teórico utilizado, já apresentado no início do trabalho, segue três propostas
classificatórias, a de Hopper & Traugott (1993); de Heine (1993); e de Travaglia (2003).
O verbo buscar, quando deixa de funcionar como núcleo do predicado e perde a
noção semântica concreta de expressar ações físicas, passa a ser
considerado gramaticalizado e começa a aparecer acompanhando um verbo pleno
em construção perifrástica, com sentido mais abstrato que não chega a constituir
uma situação, mas contribui semanticamente para o entendimento da situação.
Portanto, podemos afirmar que houve um deslizamento da categoria verbo pleno
para verbo auxiliar, como primeira evidência de gramaticalização (verbo pleno >
verbo auxiliar).
Pela classificação em estágios, proposta por Heine (1993), o verbo buscar tende
mais para o estágio 3, em que é classificado como auxiliar semântico, preso a
uma forma verbal não-finita e com noção semântica abstrata aplicada à situação
indicada por outro verbo. Nesse estágio, os verbos detêm o traço de [+
identidade] de sujeito, constituindo assim uma unidade semântica.
Porém, dentre os exemplos analisados, encontramos um caso em que
a classificação em estágios deixa claro seu caráter não-estanque e gradual.
Seu complemento se expressa por uma forma nominal (estágio 2), apesar de
indicar uma noção semântica verbal, de atividade ou situação dinâmica (estágio
3), apresentando características de mais de um estágio:
Buscamos a distribuição das sobras, de forma direta ou indireta, proporcional à
participação de cada sócio nas atividades da cooperativa. (FULANETI, 2005)
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Esse exemplo pode ser classificado tanto no estágio 2, que admite complementos
nominais ou associação a complementos representados por verbos não-finitos (formas
nominais), quanto no estágio 3, que admite ser o complemento ou o sujeito do verbo em
gramaticalização representados por um nome que, muito provavelmente, refira-se a um
conceito da categoria das atividades ou das situações dinâmicas.
Mas é ainda mais grave a controvérsia se dermos a esse exemplo dois enfoques
distintos (sintático e semântico) em que num deles o verbo buscar deixa de ser
considerado gramaticalizado e passa a exercer função de verbo principal. Sob o ponto
de vista sintático temos na oração apenas o verbo principal buscar seguido por
um sintagma nominal, quando na verdade, o sentido pretendido da oração é:
“Buscamos distribuir as sobras...”, tendo “a distribuição” como forma nominal do
verbo distribuir, configurando-se, então, uma perífrase em que o verbo buscar
torna-se auxiliar semântico do verbo distribuir, com sentido de “Preferimos / fizemos
a distribuição das sobras...”. Ou seja, nesse caso temos o verbo buscar sintaticamente
como principal, mas semanticamente como auxiliar.
Finalmente, seguindo a terceira e última proposta classificatória, verificamos a
tendência de valor, uso e função do verbo buscar e o identificamos como “carregador”
da categoria gramatical de modo em relação à situação indicada por outro verbo, e com
noção semântica abstrata e voltada para a ação mental. Portanto, esse verbo assume o
status de marcador de modalidade, tendo a volição como principal característica
modalizadora. Vejamos alguns exemplos:
a) Buscamos compreender a utilização peculiar da linguagem efetuada por professores
em formação inicial universitária, indo de encontro... (ANDRADE, 2005)
Essa perífrase tem o sentido de “procuramos compreender / pretendemos
compreender”, em que o verbo buscar aparece como modalizador volitivo para marcar a
intenção de compreender, sem dar certeza de que “a utilização peculiar da linguagem”
será compreendida.
b) Têm-se dois principais percursos temáticos: aquele centrado no estado inicial, e o
que privilegia os meios de realizar a passagem para o estado final. Neles, buscase
principalmente transmitir um saber-fazer, transmissão que se realiza em forma de...
(FULANETI, 2005)
Nessa perífrase o verbo buscar também aparece como modalizador volitivo com
sentido de “tem-se a intenção de transmitir / pretende-se transmitir”, eximindo o sujeito
indeterminado da obrigatoriedade de transmitir um saber-fazer. Dessa forma, o
autor diminui sua responsabilidade diante da afirmação não dita: “... transmite-se um
saber- fazer”, suavizando uma possível incapacidade de realização indicada
pelo verbo principal.
c) Todas as funções desempenhadas por estas figuras demonstram a marcada
importância de adultos buscarem inserir a criança nas práticas de letramento.
(ANDRADE, 2005)
Nesse último exemplo podemos parafrasear o verbo buscar por querer, dando o
sentido de “adultos quererem / terem a intenção de inserir a criança”. Portanto, mais um
exemplo de modalizador volitivo que mostra a intenção e ao mesmo tempo a incerteza
de inserção da criança nas práticas de letramento.
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Embora saibamos que em outro corpus analisado o verbo buscar tenha sido
classificado como auxiliar semântico indicador de tentativa (cf. TRAVAGLIA 2003),
nesse trabalho o classificamos como auxiliar semântico marcador de modalidade
volitiva, em função do tipo específico dos textos analisados, sendo eles não só
dissertativos, mas principalmente veiculadores de informação científica, ou seja,
um tipo de texto que realmente requer moderação nas afirmações baseadas em
pesquisa, podendo essas afirmações ser refutadas por outros estudiosos da mesma área
científica. Nesses casos, dizer “buscamos desvendar / busco comprovar / buscou-se
compreender etc.” é mais honesto e menos arrogante do ponto de vista empírico das
pesquisas do que dizer “desvendamos / comprovarei / compreendemos”. Portanto, nesse
contexto o verbo buscar torna-se adequadamente um marcador de modalidade
volitiva, demonstrando
a intenção dos autores-pesquisadores em realizar a ação indicada pelo verbo principal
precedido pelo seu modalizador.
Considerações finais
Neste estudo analisamos contos do final do século 19 e início do século 20 em
comparação com artigos acadêmicos de lingüística publicados em 2005 para evidenciar
a gramaticalização do verbo buscar, representando a cadeia de extensão metafórica
direcionada do “mundo real, físico” para o “mundo do discurso”.
Pela classificação em estágios, proposta por Heine (1993), o verbo buscar tende
mais para o estágio 3, em que é classificado como auxiliar semântico, preso a
uma forma verbal não-finita e com noção semântica abstrata aplicada à situação
indicada por outro verbo, constituindo assim uma unidade semântica perifrástica. E
seguindo a proposta classificatória de Travaglia (2003), verificamos a tendência de
valor, uso e função do verbo buscar como marcador de modalidade
volitiva, com noção semântica abstrata de intenção.
No entanto, a pesquisa suscitou, além desses resultados comprobatórios da
gramaticalização, um problema de interpretação classificatória para os casos em
que parece haver gramaticalização do ponto de vista semântico, mas
sintaticamente evidenciamos o buscar como verbo principal da oração, em
estruturas marcadas por verbo + nominalização de verbo (ex.: buscamos a
distribuição... em vez de buscamos distribuir...). Neste momento, assumimos o
problema como a mola propulsora para a continuidade e ampliação do trabalho,
inclusive podendo incluir outros verbos que apresentem características semelhantes.
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