Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC O crime de sedução nas décadas de 1970 e 1980 a partir do estudo de inquéritos policiais do Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina (CEOM) Ana Caroline Campagnolo Bellei1 Resumo: As fontes de trabalho do historiador estão a cada dia se ampliando, esta extensão, contudo, requer que o pesquisador esteja atento aos desafios e cuidados de cada documento e fonte. Ao trabalhar com arquivos de justiça criminal ou documentos policiais o pesquisador precisa ser capaz de identificar o que de fato lhe interessa no documento, que abordagem este traz e como lidar com essa abordagem nas questões de linguagem, estrutura e objetivo do registro. Assim sendo, este trabalho pretende expor alguns desafios desta modalidade de pesquisa, e neste sentido e também com fins de interpretar a questão de sexualidade como é considerada nos documentos policiais, este trabalho cataloga e observa um acervo de 30 inquéritos policias de casos de Sedução salvaguardados no Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina – CEOM, que abarcam as décadas de 1970 e 1980. Compreender a partir de que momento a sedução se torna um crime passível de ser tratado perante uma instituição policial e de que forma a família se configura nesse processo também são propostas deste trabalho. Palavras-chaves: Fontes históricas, Inquéritos Policiais, Sexualidade, Gênero. Introdução Inquéritos Policiais (IP) são documentos históricos e oficiais que em sua definição já expressam os desafios do seu uso: construir através deles a informação histórica, levando em conta seu caráter oficial. Um inquérito policial geralmente traz registrado em seus autos a representação do ofendido em face do ofensor, os depoimentos das partes e testemunhas (sendo em juízo, interrogatório), documentos requeridos, ato de recebimento dos autos, relatório do delegado que presidiu o inquérito e remessa do inquérito ao Juiz da Comarca, com devida conclusão. Os autos de cada inquérito mencionam o crime e o desenrolar do embate jurídico travado para punir ou não o indiciado. Para realização deste trabalho foram catalogados 30 inquéritos policiais que se encontravam arquivados no Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina – CEOM. O CEOM é uma criação de professores da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ) no ano de 1986. Trata-se de um programa permanente de pesquisa e extensão. O acesso ao CEOM e seu acervo são gratuitos. Especializada em História Regional e nas áreas de ação e pesquisa do CEOM, a Biblioteca Setorial do CEOM guarda trabalhos de 1 Graduada em História – Licenciatura Plena pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó – Unochapecó. Docente atuando com Ensino Fundamental e Médio. E-mail: [email protected] 1 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC conclusão de cursos (TCC), dissertações, teses, relatórios de pesquisa e bibliografias na área de humanidades, história oral, fotografia, conservação documental – como os inquéritos policiais e processos criminais, civis e eleitorais disponíveis na Coleção “Comarca de Chapecó” – arqueologia e história regional. Inquéritos Policiais como fonte histórica: interpretação e desafio Todo pesquisador deve estar ciente dos seus objetivos ao iniciar seu estudo, levando em conta a diversidade de possibilidades que este tipo de documento oferece. Definidos os objetivos, é preciso optar por trabalhar quantitativamente ou qualitativamente. Quantitativamente iremos obter dados como proporção de absolvições e condenações. Qualitativamente a preocupação será com condutas, valores, regras e representações sociais em geral. Trabalhar com processos judiciais traz diversas facetas de interpretação. É possível dedicar-se a estudar o discurso em si, e a forma como se articulam as palavras e pensamentos, para compreender a construção social específica de um grupo. Neste sentido cabe debruçar-se na análise da metodologia, dos objetivos do escritor (que neste caso é o Estado) e da forma peculiar de escrita nos campos da justiça e do direito. Sendo assim, afirmam os autores Oliveira e Silva que “como se trata de um documento oficial (...) o Estado pode ser considerado o verdadeiro produtor do que está escrito,” (Oliveira e Silva, 2005, p.245) o que dá a linguagem um caráter de universalidade, neutralidade e impessoalidade. O efeito da neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio de construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impessoalidade do enunciado normativo e para construir o enunciador em sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e obejtivo. O efeito da universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego (...) de verbos atestivos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado; (...) o uso de indefinidos (“todo condenado”) e do presente intemporal – ou do futuro jurídico – próprios para exprimirem a generalidade e a omnitemporalidade daa regra do direito: a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético (por exemplo, “como bom pai de família”); o recurso de fórmulas lapidares e a formas fixas, deixando pouco lugar às variações individuais (Bourdieu, 1990, p. 215-216) Nesse caso se trabalhará com a forma como foi produzido o que está escrito e não com o que está sendo narrado, ou seja, o que pode ter acontecido fora dos depoimentos. É um trabalho histórico que terá a linguagem como alvo do estudo. No caso dos inquéritos policiais, por exemplo, o historiador pesquisador deve evitar fazer o papel de juiz, lendo os 2 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC depoimentos a fim de conhecer quem é culpado ou inocente, mas sim assumir sua postura investigativa quanto a importância histórica de como os acontecimentos são narrados. Mesmo o historiador que pretender utilizar os inquéritos policiais como fonte para outro tipo de análise, que não a da linguagem, deverá levar em consideração o caráter peculiar que esta possui nos processos policiais, considerando inclusive, que todos os discursos registrados foram produzidos em um campo e espaço específico – o jurídico. É possível também, dedicar-se a compreensão de um grupo social, através da representação social que este faz de si mesmo, expressa nos discursos constantes nos autos dos processos. “A verdade acaba sendo dada muito mais na compreensão das coisas do que nelas próprias.” (Oliveira e Silva, 2005, p.247) Ou seja, compreender a lógica da construção do discurso pode dizer muito sobre o grupo que o constrói, “a análise qualitativa das narrativas dos processos permite evidenciar o modo como as pessoas percebem elas mesmas e os outros, definindo-se e posicionando-se no espaço social.” (Oliveira e Silva, 2005, p.247). Um desafio a ser enfrentado nessas situações é o fato de que os discursos da população expressos nos autos de processos, como em depoimentos, por exemplo, apenas são registrados após terem sido filtrados pela justiça e seus representantes – juízes, promotores e escrivães. Podendo estes depoimentos, contudo, numa análise mais profunda, revelar algumas associações, valores, preconceitos ou marcas dos depoentes em seus discursos registrados nos autos. Os juízes, delegados, promotores e advogados também podem revelar especificidades de sua classe profissional ou dos valores morais de uma determinada época em suas falas, mesmo a retórica pretendendo ser autônoma, impessoal e universal. É preciso, portanto, atentar para a posição e campo de poder em que estão inseridos cada um dos autores quanto a quem fala e sobre quem fala. Representação social nos Inquéritos Policiais Uma das pioneiras na legitimação deste tipo de fonte no Brasil é Maria Sylvia de Carvalho Franco, que explica que analisou os processos tomando como partida a atividade de localizar os aspectos sociais registrados nos arquivos judiciais, buscando os padrões de vida (regularidades ou repetições), valores, representações e comportamentos. São as “coisas” que se repetem sistematicamente: versões que se reproduzem muitas vezes, aspectos que ficam mal escondidos, mentiras ou contradições que aparecem com freqüência (...) cada história recuperada através dos jornais e, principalmente, 3 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC dos processos criminais é uma encruzilhada de muitas lutas (...) Resta ao historiador a tarefa árdua e detalhista de desbravar o seu caminho em direção aos atos e às representações que expressão, ao mesmo tempo que produzem, estas diversas lutas e contradições sociais. (CHALHOUB, 2001, P.41) Ou seja, um inquérito policial sempre registrará em seus autos versões dos fatos narrados pela vítima, representante, indiciado e testemunhas chamados a depor. Steinmetz (1992) define narrativa como um discurso estruturado em início, meio e fim, que descreva alguma mudança ou desenvolvimento mencionando conflitos e explicações. Nas narrativas estão contidas representações sociais, e estas exprimem realidades coletivas, são coisas sociais e produto do pensamento coletivo (...) Por outro lado, é importante que não se recuse à consciência individual “o poder de perceber semelhança entre as coisas particulares que ela representa para si”, mesmo que seja da sociedade que se tomem emprestados os fatos para, em seguida, projetá-los na representação do mundo que as pessoas fazem (...) Representações são aquelas responsáveis por justificar, aos próprios indivíduos que as forjam, suas escolhas e condutas. (Oliveira e Silva, 2005, p.252). Em suas narrativas, os depoentes colocam sua interpretação do evento ocorrido segundo o grupo a qual pertencem, e nesse ínterim realizam uma seleção prévia do que irão ou não contar de acordo com os objetivos de seu depoimento. Ao historiador também cabe levar em conta esta questão. Partindo disto percebe-se que o estudo e análise dos inquéritos policiais possibilitam conhecer “aquilo que é transmitido com a ocorrência de determinados comportamentos e com o discurso sobre esses comportamentos, ou seja, pode-se apreender a lógica que informa tais comportamentos e discursos empreendidos pelos grupos sociais estudados.” (Oliveira e Silva, 2005, p.257). Os autores ROSEMBERG e SOUZA também mencionam que a partir desta fonte também se pode reconstruir aspectos do cotidiano, indo muito além dos autores Oliveira e Silva na confiança devotada à capacidade dos arquivos policiais em fornecer informações sobre os grupos sociais. Dos Crimes Sexuais O crime de sedução caracterizava-se pela investida contra a honra sexual da mulher virgem, menor de 18 anos e maior de 14 anos, submetendo-a ao congresso carnal aproveitando-se da sua inexperiência ou justificável confiança. Conforme define o Juiz de Direito José Eulálio de Almeida, existem requisitos básicos para enquadrar uma relação carnal no quadro da Sedução: 4 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC (...) requer-se concomitantemente: a) virgindade da mulher; b) idade superior a 14 anos e inferior a 18 anos; c) a cópula, isto é, a conjunção carnal; d) inexperiência ou justificável confiança da mulher. Portanto, para a configuração da sedução, indispensável é o concurso de todos esses elementos. Ausente qualquer um deles, descaracterizada estará a infração porque sua consumação exige a coexistência de tais requisitos. A virgindade de que fala a lei se circunscreve ao seu aspecto físico e moral. Diz-se física a virgindade himenal, a qual diz respeito à presuntiva honestidade da mulher, embora não seja o único indício dessa característica. Diz-se moral aquela relativa à inexperiência ou justificável confiança da mulher. Caracterizada estará a infração, se a vítima ao tempo da ação delituosa for de menoridade, ou seja, encontrar-se dentro da faixa etária delimitada pelo art. 217, do Código Penal e, também, for virgem, sendo desnecessário, para a definição do delito, a rotura ou não da membrana himenal pelo membro viril. A prova desses elementos se fará através de sua certidão de nascimento e do exame de conjunção carnal respectivamente. (ALMEIDA, 2002) Nos inquéritos policiais pesquisados são mencionados alguns artigos da legislação brasileira, a saber: Art. 39, 213, 217, 218, 224 e 225 do Código de Processo Penal. Em vista dos objetivos deste trabalho faz-se preciso focar nos artigos 213, 215, 217 e 218. Os crimes sexuais foram introduzidos na legislação no ano de 1949, onde se descreviam dois tipos de crime: estupro e atentado ao pudor. Dos anos 90 em diante esses crimes passaram a ser considerados penalmente iguais. No ano 2005 a Sedução deixou de ser caracterizada crime, conforme as mudanças que foram feitas nos artigos do Título VI do Código Penal Brasileiro, “Crimes Contra a Dignidade Sexual”. O Art. 213 intitulado “Estupro” discorria sobre o crime de “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” foi alterado pela lei Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009 para o texto: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. O Art. 215 intitulado “Violação Sexual Mediante Fraude” descrevia o crime como “Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude” e foi alterado pela Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005 para o texto “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. 5 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC O Art. 217 (de Sedução) que descrevia “Seduzir mulher virgem, menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (catorze), e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança” foi revogado pela Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, passando a ser (de Estupro de Vulnerável): “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, abarcando os atos que culminem em violência física ou mortal ou sejam realizados com enfermos ou deficientes mentais. O Art. 218 denominado “Corrupção de Menores” legisla acerca dos atos de praticar ou incitar menor de 14 anos assistir a prática do ato sexual ou a praticar prostituição. Valores morais relacionados nos registros de crimes de sedução Para compreender de que modo os valores morais podem ser estudados através da pesquisa com Inquéritos Policiais e outras fontes judiciais basta perceber, inicialmente, a mudança que ocorreu na legislação brasileira nas últimas décadas. O que hoje, sob o Título VI do Código Penal Brasileiro denomina-se “Crimes Contra a Dignidade Sexual”, era, antes da Lei 12.015 de 7 de agosto de 2009 denominado “Crime Contra os Costumes”. Esta alteração na legislação deixa evidente a transformação social das últimas décadas. Estes tais “costumes” referem-se as regras impostas socialmente e oriundas de uma prática repetida de forma generalizada e delongada, que acaba gerando convicção de obrigatoriedade na população. A alteração pareceu necessária levando em conta a mudança que os hábitos sexuais sofreram na sociedade e o papel que desempenham hoje. Hábitos da vida sexual aprovados pela moral prática, ou, o que vale o mesmo, a conduta sexual adaptada a conveniência e disciplina sociais. O que a lei penal se propõe a tutelar, in subjecta matéria, é o interesse jurídico concernente a preservação do mínimo ético reclamado pela experiência social em torno dos fatos sexuais. (HUNGRIA, pp. 103 104, 1956) Hodiernamente a lei visa proteger não os costumes, mas a liberdade sexual do indivíduo e conseqüentemente a dignidade da pessoa humana. O Código Penal Comentado (2008) esclarece que o legislador deve supervisionar o que é da dignidade da pessoa humana, e não a respeito dos hábitos sexuais adotados pelos indivíduos. Tal policiamento deve, ainda, ser realizado sem trazer constrangimento e sem ofender o direito alheio, ainda que para alguns os hábitos sexuais de outrem seja imorais ou inadequados. 6 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC Entre os pré-requisitos que caracterizam um crime de sedução encontra-se a constatação da inexperiência da moça. Para Heleno Fragoso, "a sedução pela inexperiência da ofendida é a chamada sedução simples. Nela não há artifício, nem fraude, nem engano. Aproveita-se o agente da ingenuidade da ofendida em matéria sexual, isto é, de sua incapacidade de avaliação ética do ato sexual e suas conseqüências" (Fragoso, p.20, 1979) Nos inquéritos policiais analisados também é possível perceber costumeira queixa das moças – vítimas – quanto à promessa de casamento não cumprida, conforme se percebe na imagem a baixo: Figura: Folha 02 do Inquérito Policial CCOC845. Acervo próprio da autora. Quanto a estes casos, o Juiz de Direito, Almeida, esclarece que aos olhos da justiça a promessa de casamento é, dentre as acusações prestadas nos depoimentos, a forma mais utilizada pelo sedutor para obtenção do coito vagínico. Mas para que se possa dar crédito a essa tradicional e usual forma de 7 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC sedução é necessário que seja séria e formal, não sendo de se admitir, como digna de crédito, a promessa de himeneu feita aestuante libidine, pois o despucelamento da ofendida, nesse caso, é debitado unicamente à sua sofreguidão, ao insopitável desejo de aderir à cópula, de concorrer ao cômpito sexual, ao risco do congresso carnal, não raras vezes, ex proprio marte. (ALMEIDA, 2002) Como exemplo, pode-se utilizar o IP CCOC846, no qual, acompanhada por seu genitor, L.X.C, a menor de dezesseis anos representa contra o indiciado, e afirmando que após dez meses de namoro passaram a ter relações sexuais. Comprometeu-se o indiciado a noivar nas festas da páscoa, porém, descobrindo a gravidez de um mês da vítima nunca mais apareceu. Questionado pelos pais da vítima veio prometendo casamento sucessivas vezes após o ato, porém, nunca cumprindo o prometido. O Indiciado nega ter tido relações sexuais com a vítima e afirma ter terminado o namoro antes do início da gravidez. Neste sentido, ressalta Chrysolito Gusmão que a promessa de casamento deve ser anterior a relação sexual, e que também deve ter sido feita com seriedade: “Deve ser séria e formal porque, doutra forma, não se poderia pretender que ela pudesse exercer uma atuação influente e ser fator decisivo para que a menor se entregasse, na suposição de, com isso, praticar uma antecipação de consórcio; inadmissível, em princípio, quando feita estuante libidine, porque é de ver que em tais momentos em que o cérebro se congestiona, os sentidos se exaltam e todas as irradiantes energias se focalizam na função sexual, certamente a promessa não pode ser tida, na maior parte dos casos, como válida perante o direito e diante dessa vítima que cedeu, não a uma atuação psicológica de sedução preliminar, mas a influências momentâneas para que, muita vez, terá concorrido, direta ou indiretamente; em circunstâncias tais se produz uma exaltação de todo o organismo, na complexidade de seus órgãos e funções, como já mostramos na introdução deste livro, ao estudarmos a fisiologia do instinto genésico." (GUSMÃO, 2001) Além da inexperiência, a confiança de uma moça também pode levá-la a ceder as intenções do rapaz sob propostas passíveis de crença, como é a promessa formal de casamento. Quanto a isso, Costa Júnior caracteriza como justificável confiança da moça aquela obtida por meios que são idôneos a iludir qualquer moça normal. Poderá essa confiança resultar do noivado oficial, do namoro indissimulado e da promessa de matrimônio. Ainda declara que, nas intenções que o homem possa ter para com a moça, 8 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC “com a voz empastada da libido estuante, o agente promete não só o anel de casamento, mas até o anel de saturno. Essa promessa isolada, sem atitudes anteriores que manifestassem propósitos bem intencionados, normalmente não basta para caracterizar o crime." (COSTA JÚNIOR, p.457, 1989). A idade da vítima e do indiciado também são fatores determinantes na questão do crime de sedução, pois se ambos possuírem menoridade penal, por exemplo, pouco ou nenhum crédito se poderá conferir de compromisso assumido pelo agente, (art. 3º, Lei nº 8.609, de 13/07/90), nem será exigido punição. No inquérito CCOC845, por exemplo, o arquivamento deu-se em questões de idade da vítima, conforme se percebe na imagem a baixo: Figura: Folha última do Inquérito Policial CCOC845. Acervo próprio da autora. 9 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC No discorrer dos autos de um IP é possível confirmar o que afirma Rosa, que "para caracterizar a sedução, é importantíssimo também a verificação do comportamento anterior da vítima, seus hábitos, sua compostura, sua responsabilidade familiar e social, enfim.” (ROSA, p. 573, 1995). Isso porque na representação e nos depoimentos são bastante nítidas as tentativas dos depoentes em afirmar a boa honra ou não da vítima, o que revela a importância que a questão dos costumes sexuais tinha na respectiva época. Considerações Finais Apesar dos inúmeros desafios encontrados no uso de fontes históricas como os documentos oficiais, esta análise traz novas e promissoras janelas para os historiadores perceberem a trajetória humana no tempo. Tomados os devidos cuidados e traçados os objetivos, os processos judiciais podem ajudar o historiador a compreender muitas peculiaridades de épocas passadas não apenas pelo que trazem escrito, mas por como trazem. Dos 30 inquéritos policiais analisados foi possível compreender a importância de determinados costumes, tidos como valores morais, ainda muito presentes nas décadas de 1970 e 1980 na região do oeste catarinense, mais especificamente, na cidade de Chapecó-SC. Entre estes costumes ressalta-se o de manter a castidade até o casamento, evidentemente respaldado pela religião e tradição. É em razão destes costumes que na época se caracterizava o crime de Sedução, hoje extinto. A ciência que regula as relações sociais, o Direito, necessita escoltar a trajetória da sociedade que está em constante evolução. A sociedade está em constate mudança e as leis de um país e época devem acompanhar estas mudanças. Sendo assim, os motivos que outrora sustentavam a existência do crime de Sedução estão cada vez mais desusados e descontextualizados tendo em vista os atuais rumos da sociedade. Muitas publicações na área do Direito têm confirmado estas verificações. O penalista Antônio Rosa explica que "seduzir é enganar, ludibriar, utilizar-se de manobras ardilosas, fraudulentas, falsas promessas para obter a posse sexual da vítima, sem o emprego da violência.” E ainda que "para caracterizar a sedução, é importantíssimo também a verificação do comportamento anterior da vítima, seus hábitos, sua compostura, sua responsabilidade familiar e social, enfim.” (ROSA, p. 573, 1995) Para Heleno Fragoso, "a sedução pela inexperiência da ofendida é a chamada sedução simples. Nela não há artifício, nem fraude, nem engano. Aproveita-se o agente da ingenuidade da ofendida em matéria sexual, isto é, de sua 10 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC incapacidade de avaliação ética do ato sexual e suas conseqüências. É hoje raríssimo encontrar um caso autêntico de sedução por inexperiência da ofendida. A moça moderna, mesmo nas cidades do interior, desde cedo encontra no cinema, no teatro, nas praias, nas revistas, nas conversas das colegas mais velhas, uma lição completa do sentido ético-social do primeiro ato sexual, cuja importância até por instinto conhece. Inexiste, por outro lado, na generalidade dos casos, o processo de sedução, através do qual o agente procura desfrutar abusivamente do congresso sexual. Via de regra o que ocorre é um envolvimento amoroso recíproco, levado às últimas conseqüências. Vai desaparecendo também o tabu da virgindade. A honra da mulher não está na integridade de uma membrana, passando hoje ao primeiro plano a autenticidade e a seriedade de sentimentos e a firmeza de caráter." (Fragoso, p.20, 1979) Paulo Costa Júnior também esclarece a dificuldade de se encontrar hodiernamente um legítimo caso de sedução: "Não será fácil sustentar a inexperiência da moça menor de 17 anos, da cidade grande, provida dos meios de comunicação de massa, nos dias hodiernos." (COSTA JÚNIOR, p.457, 1989). A extinção deste fenômeno esclarece a quantas andam as mudanças sociais no que se refere a sexualidade. Referências ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo de. Sedução: Instituto lendário do Código Penal, 2002. Disponível em: <http://users.elo.com.br/~eulalio>. Acesso em 10/06/2010. ALTAVILLA, Enrico BAUER, Carlos. Breve história da mulher no mundo ocidental. São Paulo: Xamã, 2001. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. São Paulo: Difel, 1990. COSTA Jr, Paulo José. Direito Penal Objetivo, pág. 457, 1.ª ed., Forense, 1989. COULOURIS Daniella Georges,. Violência, gênero e impunidade: A construção da verdade nos casos de estupro. 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