Quarta-feira, 30 agosto de 2006 edições anteriores VIDA& ÍNDICE GERAL | ÍNDICE DA EDITORIA | ANTERIOR | PRÓXIMA Uma bactéria que não teme o aquecimento global Fernando Reinach* Se você olhar embaixo de uma pedra vai encontrar minhocas; nos rios, peixes e no gelo, pingüins. O fato de quase todos os ambientes do planeta serem ocupados por plantas e animais demonstra que a seleção natural gera uma grande diversidade de seres vivos capazes de viver nos mais diversos ambientes. Apesar de muitos seres vivos escolherem locais estranhos para viver, como o interior de outro ser vivo ou a água que se acumula nas folhas das bromélias, talvez nenhum ambiente seja tão exótico como as chaminés que existem no fundo dos oceanos. Recentemente os cientistas conseguiram cultivar em laboratório uma das muitas bactérias que habitam estas chaminés. No fundo dos oceanos existem fissuras por onde a lava do interior da Terra vaza continuamente. Esses 'vulcões submarinos' são chamados de chaminés hidrotérmicas. Nesses locais, muitas vezes a centenas de metros de profundidade, o líquido quente, ácido e desprovido de oxigênio vindo do interior do planeta se mistura com a água fria, alcalina e bem oxigenada dos oceanos. Quando isso ocorre, diversos sais se precipitam ao redor da fenda e formam estruturas porosas que se assemelham às chaminés. Dentro dessas chaminés se forma um gradiente de temperatura e acidez, e nas suas paredes, provavelmente nos poros dos sais precipitados, vivem diversos tipos de bactérias. Essas chaminés foram descobertas em 1977 e, devido às dificuldades de coletar amostras, faz poucas décadas que se descobriu a existência de seres vivos nesse ambiente. Foi uma surpresa encontrar bactérias capazes de viver em temperaturas superiores a 70 graus C, quando a maioria das formas de vida não sobrevive em temperaturas superiores a 50 graus C. Até hoje o que impedia um estudo detalhado desses seres era a dificuldade de reproduzir no laboratório as condições necessárias para sua sobrevivência. A partir de amostras coletadas em uma dessas chaminés, perto das ilhas Fiji, no Oceano Pacífico, um time de cientistas conseguiu isolar e cultivar uma dessas bactérias e a batizou de Aciduliprofundum boonei. Ela cresce em temperaturas superiores a 50 graus C e deixa de crescer quando a temperatura chega a 77 graus C. Prefere ambientes ácidos com pH por volta de 4,5, mas em vez de oxigênio, utiliza enxofre ou ferro como receptor de elétrons em seu metabolismo. ENZIMAS REVOLUCIONÁRIAS As enzimas que existem na A. boonei, por funcionarem em altas temperaturas, têm o potencial de revolucionar os processos industriais, aumentando sua eficiência e velocidade. É interessante que quase 200 mil anos depois de nossos ancestrais terem buscado na biodiversidade os cereais que permitiram o surgimento da agricultura, continuamos a descobrir seres vivos úteis para o desenvolvimento de nossas tecnologias. Se um dia o homem vier a provocar um aquecimento global de tal monta que cause o extermínio de todas as formas de vida incapazes de viver a temperaturas superiores a 50 graus C podemos ficar tranqüilos que a vida não desaparecerá da face da Terra. Os descendentes da A. boonei estarão preparados para recolonizar o planeta. Mais informações: A ubiquitous thermoacidophilic archeon from deep-sea hydrothermal vents. Nature vol. 442 pag. 444 2006. *[email protected] Biólogo